A EDUCAÇÃO DO LEITOR EM MACHADO DE A SSIS: DA CRÍTICA LITERÁRIA ÀS MEMÓRIA S PÓSTUMA S DE BRÁS CUBAS

 

Sílvia Maria AZEVEDO[1]

 

RESUMO: Os textos de crítica literária de Machado de Assis mostram a preocupação do autor com o leitor; mas será em Memórias Póstumas de Brás Cubas que o leitor terá uma participação decisiva na estrutura do romance.

UNITERMOS: Leitor; crítica literária; linguagem literária; romance.

 

I

Sobre a importância de Machado de Assis enquanto crítico literário muito se falou, e textos como "O Ideal do Crítico" e "Instinto de Nacionalidade", para só mencionarmos os mais conhecidos, são apontados como exemplos da perspicácia do escritor: o primeiro, por entender o exercício da crítica como fundamental para o processo de criação literária; o segundo, por questionar a reprodução da cor local como critério de aferição de "brasilidade" do texto literário.

Outro aspecto que também tem sido com igual constância apontado diz respeito ao período relativamente curto em que Machado atuou como crítico literário. E as interpretações se dividem; para uns, como, por exemplo, Afrânio Coutinho, Machado de Assis teria encerrado a atuação de crítico literário porque a forma como entendia o exercício da crítica - "uma crítica doutrinária, normativa, reguladora, apuradora do gosto, corretora e animadora da invenção, portanto, que atuasse nos outros e em cada um, que fosse crítica e autocrítica" (4, p. 341) - muito em breve levaria o escritor a se indispor com os seus pares. Ora, para o projeto de ascensão social e literária de Machado, seria importante não ferir suscetibilidades que pudessem dificultar o seu ingresso no reduzido círculo dos homens de letras da sociedade brasileira do século XIX. Daí o escritor ter abandonado a profissão de crítico literário e se concentrado em escrever preferencialmente ficção.

Uma segunda interpretação, que não chega a se opor à primeira, vê por outro ângulo o abandono do exercício convencional da crítica literária por Machado de Assis. Para Valentim Faccioli, por exemplo, depois de 1880, o escritor não teria abandonado propriamente a crítica literária, como viram Mário de Alencar, Tristão de Ataíde e Afrânio Coutinho, mas o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas passaria a realizá-la internamente em sua própria obra. São palavras de Faccioli:

"Assim, pode-se dizer que Machado nunca deixou de lado a prática, e sim abandonou a discussão convencionalizada da produção literária alheia, segundo 'normas' tradicionais. Integrou na práxis textual a crítica de outro objeto, sua própria ficção, e fraturou o gênero (...)". (5, p. 70).

Finalmente, uma terceira linha interpretativa seria aquela que aprofunda a sugestão da crítica literária internalizada por Machado de Assis ao texto ficcional. Essa é a posição de João Alexandre Barbosa, para quem a "intensa auto-reflexividade" da obra machadiana - aspecto que a indicia como literatura moderna - integra-se a um contexto mais amplo de evolução da crítica literária brasileira. A partir do momento em que a ficção brasileira faz da auto-reflexão objeto da própria criação, também na crítica, segundo João Alexandre, opera-se uma ruptura:

"... a ruptura que se opera na evolução de nossa crítica literária ruptura que eu localizo na transferência do eixo interpretativo sobre o eixo analítico - é correlata à própria evolução verificada na criação de uma literatura, seja na ficção, seja na poesia, que criava a necessidade de uma tal ruptura". (1, p. 8)

Portanto, no caso brasileiro, com Memórias Póstumas de Brás Cubas, surge a necessidade de a crítica literária rever-se em seus conceitos e pressupostos, sob pena de deixar de cumprir o papel que lhe fora designado por Machado de Assis em "O Ideal do Crítico".

Mas, se o autor de Memórias Póstumas conseguiu visualizar com extrema lucidez e clareza, em 1865, a importância da crítica literária, por outro lado, foi enquanto ficcionista que superou os impasses de "O Ideal do Crítico", com repercussão, entre outros aspectos, no tratamento dispensado ao leitor.

Antes, porém, de tratarmos do leitor em Memórias Póstumas, vejamos como ele aparece em alguns textos de crítica literária de Machado de Assis.

 

o texto "O Ideal do Crítico", como observamos, figura como um dos mais importantes dentro da produção de crítica literária de Machado de Assis.

Aqui, mais umavez, o escritor dá mostras da extrema seriedade com que sempre encarou sua função de crítico. Nesse sentido, talvez um dos aspectos mais pertinentes de "O Ideal do Crítico" seja a consciência de Machado sobre a importância do exercício da crítica para o aprimoramento da criação literária:

"As musas, privadas de um farol seguro, correm o risco de naufragar ' nos mares sempre desconhecidos da publicidade. O erro produzirá o erro; amortecidos os nobres estímulos, abatidas as legítimas ambições, só um tribunal será acatado, e esse, se é o mais numeroso, é também o menos decisivo". (7, v. 3, p. 798)

Por essa época, além de "O Ideal do Crítico", textos como "O Passado, o Presente e o Futuro da Literatura" e "Idéias Sobre o Teatro" estão ainda impregnados por aquilo que poderíamos chamar de "espírito de reforma". No caso de "Idéias Sobre o Teatro" esse "espírito de reforma" consiste em analisar a atuação do Conservatório Dramático e constatar que ele não está cumprindo as duas finalidades que presidiram a sua fundação, ou seja, a moral e a intelectual: zelar pela decência das peças dramáticas e analisar-lhes os méritos literários.

No entanto, Machado acredita que o Conservatório Dramático, enquanto instituição investida dessas duas funções, só poderá contribuir para o aprimoramento da dramaturgia brasileira se passar por uma reforma:

"Mas, entendam bem! inculco esse encargo ao Conservatório, mas a um Conservatório que eu imagino, que além de possuir os direitos conferidos por uma reforma, deve possuir esses direitos de capacidade, conferidos pela inteligência e pelos conhecimentos". (7, p. 797)

Voltando agora a "O Ideal do Crítico", podemos observar que esse mesmo "espírito de reforma" está aqui presente. Se, de um lado, Machado consegue detectar com bastante clareza os maiores entraves ilO exercício da "crítica fecunda" - "o ódio, a camaradagem e a indiferença" -, por outro, imagina, talvez um pouco ingenuamente, que seja possível a simples substituição dessas "três chagas da crítica" por outras tantas virtudes: "a sinceridade, a solicitude e a justiça".

Não por um acaso, o texto se encerra com a expectativa de Machado de Assis de que, no campo da crítica literária, ocorram as reformas por ele almejadas:

 

"Se esta reforma, que eu sonho, sem esperanças de uma realização próxima, viesse mudar a situação atual das coisas, que talentos novos! que novos escritos! que estímulos! que ambições!" (7, p. 801)

Aliás, em muitos aspectos, o texto "0 Ideal do Crítico" lembra o artigo de Macedo Soares, "Da Crítica Brasileira", publicado em 1860, na Revista Popular (3, p. 263-8). Como Machado, também Macedo Soares vê o exercício da crítica como a forma de contribuir no processo de criação e aperfeiçoamento da literatura. Porém, enquanto Machado está mais preocupado em discorrer sobre as qualidades do crítico, Macedo Soares prefere identificar os quatro tipos de crítica literária, a seu ver, responsáveis pelos descaminhos da literatura brasileira: a crítica contemplativa, a crítica administrativa, a crítica noticiosa e a crítica satírica. Não será o caso de nos determos na exposição de cada uma dessas críticas. Basta observarmos que, num texto de crítica da crítica, como é o de Macedo Soares, esses quatro tipos de crítica "viciosa" seriam expressões do que não deve ser a crítica literária.

Ora, se nos lembrarmos da primeira passagem transcrita de "0 Ideal do Crítico" ("As musas privadas de um farol seguro... "), pode-se supor se Machado de Assis não estaria se referindo àqueles quatro tipos de crítica literária viciosa, identificados por Macedo Soares. Também nas virtudes apontadas pelo autor de Memórias Póstumas como indispensáveis àquele que pretende exercer o papel de crítico literário estariam presentes os "defeitos" da crítica, só que sob a forma de solução. Pode-se dizer que, nesse aspecto, o texto machadiano dá um passo à frente ao estabelecer, a partir da consciência do estado da crítica literária brasileira, as formas de superar os seus impasses.

No entanto, Machado acaba criando outros, ao eleger o crítico virtuoso como aquele a quem caberá trazer a crítica literária brasileira para o bom caminho. Nesse sentido, é pertinente a observação de Wilson Martins:

"...'0 ideal do crítico', para Machado de Assis, era o 'crítico ideal', em quem a competência literária propriamente dita devia ir de par com as qualidades éticas". (8, p. 145)

Centralizar a eficácia da crítica literária na figura do crítico virtuoso aponta igualmente para um vazio, ou sej a, a inexistência da crítica literária enquanto exercício de reflexão da linguagem. Nesse sentido, conviria lembrar uma passagem de João Alexandre Barbosa:

"... a linguagem da crítica (...) não é viável sem a crítica da linguagem". (2, p. 157)

Sintomática da ausência desse tipo de reflexão sobre o caráter lingüístico da crítica e, por extensão, do caráter de objeto verbal da literatura é a proximidade entre os papéis do crítico e do político, ainda segundo "0 Ideal do Crítico". Assim, o exercício da crítica é tarefa que exige do crítico tanto quanto exige do político:

"Exercer a crítica, afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a.tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais do que um simples desejo de falar à multidão". (7, p. 798)

A correlação entre os papéis do crítico e do político já se fazia presente em outro texto, este, de 1858, " O Passado, o Presente e o Futuro da Literatura", embora, aqui, Machado aproxime a literatura da política.

Em "O Ideal do Crítico", em vez da literatura, aparece o crítico: este torna-se na sua "representação literária", da mesma forma que o político é a "representação política". Enquanto representantes da política e da literatura, o político e o crítico devem estar investidos de certas qualidades para bem exercer as suas funções. Não por um acaso, em "O Ideal do Crítico", Machado fala em "virtudes" e "deveres".

Está claro que num texto onde o crítico é apresentado como aquele que, pela via da virtude, é o único capaz de apreender o verdadeiro significado da obra literária, sobra bem pouco espaço para se considerar o leitor, quer como destinatário do texto, quer como elemento atuante na criação da obra literária.

É curioso que "O Ideal do Crítico" é contemporâneo de uma época em que Machado de Assis, já há um ano, colaborava com textos de ficção para o Jomal das Famílias. E nessa condição de escritor de literatura para jornal, Machado deve ter sentido na própria pele como, em muitos aspectos, o leitor também determina e influencia os rumos da literatura.

No entanto, no texto de 1865, é o crítico quem fala, o que explica a mudança de enfoque: em vez da relação literatura-leitor, conforme se processava a práxis ficcional de Machado, colaborador do Jomal das Famílias, em "O Ideal do Crítico" a literatura é considerada em relação a um tipo muito especial de leitor - o crítico, ou sej a, o leitor mais autorizado a falar sobre o texto literário e a corrigir os descaminhos da literatura brasileira. Não por um acaso, o texto chama-se "O Ideal do Crítico", e não, "O Ideal da Crítica".

Embora a distância de treze anos separe "O Ideal do Crítico" do texto de 1878, sobre O Primo Basílio, de Eça de Queirós, na crítica sobre o romance do escritor português ainda se fazem presentes certos aspectos do texto de 1865, principalmente aqueles relacionados às virtudes que Machado atribuía ao exercício do crítico ideal.

Aliás, para o bem e para o mal, o texto "O Ideal do Crítico" sempre esteve presente nas considerações de Machado sobre crítica literária, notadamente nos juízos de ordem moral.

A impossibilidade de Machado de desvincular ojuízo estético dosjuízos de ordem moral poderia ser explicada em função dos compromissos com a classe social para a qual estava ingressando. No entanto, quer nos parecer que a impossibilidade de separar o julgamento

moral do julgamento estético reflete o impasse da crítica literária do seu tempo, que ainda não se cônstituíra como linguagem específica, porque também a literatura ainda não é percebida na sua especificidade de objeto verbal.

Portanto, os "erros" em que incorre Machado enquanto crítico literário não são propriamente "erros" só seus, mas os de uma época; já os "acertos" parece-nos que são méritos exclusivos do autor de Memórias Póstumas. Em relação ao texto de crítica a O Primo Basílio, um desses "acertos" diz respeito à consciência que Machado adquiriu sobre a importância do leitor no processo de recepção da obra literária.

Ao contrário do texto de 1865, no qual o exercício da crítica se concentrava exclusivamente na figura do crítico, neste, de 1878, Machado recupera o leitor como figura decisiva, ao lado do crítico, para o sucesso (ou o fracasso) de uma obra literária.

Esse contato mais estreito entre o trabalho da crítica e a atuação do leitor pode ser observado, em nível estilístico, no texto sobre o romance de Eça de Queirós, pelo uso freqüente da 1a pessoa do plural. Eis alguns exemplos:

"De ambos os lados do Atlântico, apreciávamos (...)". (7, p. 903)

"Víamos aparecer na nossa língua um realismo sem rebuço (...)". (7, p. 904)

"Não se conhecia no nosso idioma (...)". (7, p. 904)

Está claro que o uso da 1a pessoa do plural (veroos e pronomes) pode designar o próprio crítico, que se faz presente através do plural majestático; mas a ênfase no papel do leitor, conforme se depreende dos exemplos anteriormente citados, permite ver, nesse recurso estilístico, a expressão do trabalho conjunto de crítico e leitor.

O uso das interrogações é também outro indício da proximidade entre crítico e leitor, na medida em que o recurso à pergunta, além de procedimento retórico, pressupõe a existência do interlocutor. Exemplificando:

"Mas esse triunfo é somente devido ao trabalho real do autor?" (7, p. 903).

"Haverá alguma verdade moral?" (7, p. 904)

"A que atribui a maior aceitação deste livro?" (7, p. 904)

No entanto, ao mesmo tempo em que o leitor é recuperado, é igualmente criticado:

"Pois que havia de fazer a maioria, se não admirar a fidelidade de um autor que não esquece nada, e não oculta nada?" (7, p. 904)

A "maioria" à qual o crítico se refere muito certamente é o leitor menos cultivado, interessado em leituras fáceis e digestivas, e que encontra nas obras realistas, a exemplo de O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro, com que alimentar a sua curiosidade pelo obsceno e pelo imoral. Por seu lado, o escritor é outro responsável por essa situação: ao invés vez de trabalhar para o aprimoramento do gosto do público, acaba corrompendo-o, por oferecer-lhe aquilo que cai fácil no paladar do leitor comum.

Já que o escritor não cumpriu essa missão, cabe ao crítico executá-la. Daí Machado colocar-se mais uma vez no papel de leitor privilegiado que pretende esclarecer o público sobre o que é O Primo Basílio:

. "Vejamos o que é o Primo Basílio e comecemos por uma palavra que nele". (7, p. 905)

Assim, num primeiro momento, o texto de crítica ao romance O Primo Basílio parece recuperar um elemento fundamental para o trabalho do crítico: o leitor. Mas, como se viu, o autor é ambíguo no tratamento que dispensa a ele. Se o leitor a quem Machado se refere é o leitor comum, o público de uma maneira geral, desse leitor, o autor se afasta, colocando-se, enquanto crítico, no papel de leitor privilegiado, aquele que julga e decide sobre o valor do romance. Do outro lado do texto de crítica a O Primo Basílio está o leitor comum, leitor desprezado, porque responsável pelo prestígio e sucesso de dois equívocos: o romance de Eça e a escola realista.

Portanto, o texto de crítica literária de 1878 não se libertou da ênfase nos aspectos morais da obra - o alicerce de uma crítica que se pretende recuperadora da verdade do texto ­ nem da atuação do crítico virtuoso, o leitor ideal da obra literária.

 

III

Passemos, em seguida, a considerar o leitor em Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Como já foi observado, é com essa obra de 1880 que, no cenário literário brasileiro, surge a necessidade de a crítica rever-se em seus conceitos e pressupostos. A superação dos impasses da crítica literária do século XIX pela via da crítica integrada à obra ou da crítica enquanto mecanismo de elaboração do texto passa pela interação do texto com o leitor.

A presença do leitor em Memórias Póstumas é uma evidência, o que levou a crítica a referir-se a esse, que é um dos dispositivos técnicos mais modernos na narrativa machadiana, como "leitor implícito" ou "leitor incluso".

Mas o que significa o conceito de "leitor implícito" ou "leitor incluso"? Significa que esse leitor é capaz de resgatar o significado da obra de acordo com um horizonte de exigências e expectativas semelhante ao do próprio narrador-autor ou do "defunto autor" de Memórias Póstumas.

Passando para outro plano de consideração, pensemos um pouco sobre quem seria, a grosso modo, o leitor de literatura ao tempo de Machado de Assis. Seria o leitor criado na e pela tradição literária romântico-folhetinesca, e que, por isso, está mais interessado nas peripécias, na ação, na história, do que no processo de confecção do texto ficcional. Aliás, é a esse leitor, a quem é dirigido o prólogo das Memórias, em que fica evidente o desprezo do narrador.

Ora, sendo esse o leitor de Machado, talvez fosse melhor chamá-lo de "leitor explícito", já que o receptor é uma presença ostensiva no romance, e se refere àquele tipo de leitor gestado pela literatura romântico-folhetinesca.

Por outro lado, o "leitor implícito", ou seja, o leitor capaz de compactuar do mesmo horizonte de expectativas do narrador-autor, este está sendo "educado" pelas Memórias. Ou antes, o leitor em Memórias, leitor criado pela literatura romântica e recuperado na obra, deverá passar pelo processo de "educação pela ficção".

Como acontece essa educação do leitor nas Memórias Póstumas? A própria estruturação do texto, na linha do vai-e-vem, de o narrador remeter o leitor a capítulosjá lidos, à releitura, enfim, se encarrega de "educar" o leitor no sentido de torná-lo um leitor de textos ficcionais, ou de um tipo de texto ficcional, aquele identificado com a "tradição de rigor" (*), que se opõe, embora integrando, à tradição romântico-folhetinesca.

Vej amos como isso se processa na fatura das Memórias Póstumas. A partir do capítulo X a narrativa propriamente dita concentra-se na disposição diacrônica dos acontecimentos, indo do nascimento de Brás Cubas ao balanço final de sua existência, no capítulo CLX. Mas, mesmo agora, são constantes as interrupções e as intervenções do narrador-autor, que parece se divertir em frustrar as expectativas dos leitores no tocante ao progresso da ação narrativa. É o que acontece, por exemplo, quando, entre o capítulo XV, intitulado "Marcela", e o XVII, "Do trapézio e outras cousas", o narrador intercala o capítulo XVI, chamado "Uma reflexão imoral".

Ora, a intromissão de tal capítulo interrompe não O fio da narrativa, mas impede que o leitor, se venceu a dificuldade dos nove capítulos iniciais, se acomode na leitura tranqüila do narrar das peripécias.

Por outro lado, sem a intromissão dessa "reflexão imoral", é impossível ao leitor, se pulou o referido capítulo, compreender porque o seguinte, "Do trapézio e outras cousas", se inicia por reticências. É por reticências que o capítulo intrometido termina, e é por reticências que se inicia aquele onde é retomado o fio narrativo. Portanto, um está indissoluvelmente ligado ao outro, não há como escapar de ler o capítulo XVI, um capítulo de "reflexão", como poderia acontecer nos romances românticos, onde o leitor, identificado o "tom de reflexão", pularia a passagem, e retomaria a leitura mais à frente, sem que ficasse comprometida a compreensão da história.

Outro exemplo de enxerto é o capítulo XXI, chamado "O almocreve", que se inicia dessa forma:

"Vai então, empacou o jumento em que eu vinha montado (...)". (7, v.

I, p. 542)

 

João Alexandre usa o conceito de "tradição de rigor" para designar as obras que fazem da auto-reflexão o objeto da criação literária.

 

No capítulo anterior, "Bacharelo-me", o narrador conta sucintamente o tempo em que, obrigado pelo pai a largar Marcela, vai para Coimbra fazer curso de Direito. E o capítulo termina assim:

"Guardei-o (o diploma), deixei as margens do Mondego, e vim por ali assaz desconsolado, mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver - de prolongar a Universidade pela vida adiante..."(7, p. 542).

No entanto, em momento algum do capítulo XX se fala em jumento; quando umjumento é mencionado, mais precisamente um asno, é no capítulo XV, em que o narrador relata o caráter mercantil de sua relação com Marcela. Daí o capítulo, intitulado, exatamente, "Marcela", iniciar-se desta forma:

"Gastei trinta dias para ir do Rocio Grande ao coração de Marcela, não cavalgando o corcel do cego desejo, mas o asno da paciência, a um tempo manhoso e teimoso" (7, p. 534).

Quer dizer, do "primeiro beijo" (título do capítulo XIV) a trinta dias depois, o narrador percebeu claramente que, para passar da "fase consular" à "fase cesariana", ou seja, para tornar-se amante exclusivo de Marcela, precisava conquistá-la pelo dinheiro. Por isso, o capítulo "Do trapézio e outras cousas" se inicia assim:

"... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos réis (...)" (7, p. 536)

Isso explica porque, no início da relação com Marcela, o narrador montava "o corcel cego do desejo", e depois, conhecendo melhor as regras do jogo, muda de montaria e passa para "o asno da paciência". As imagens, portanto, sintetizam a direção tomada pela relação amorosa: do amor cego ao amor comprado.

Voltando a "O almocreve", é, portanto, no capítulo "Marcela" que aparece um asno. Como se verá, é esse asno que é retomado no capítulo XXI - ou antes, o asno como imagem -, que, como o XVI, é um capítulo de "reflexão imoral". A situação é aquela em que ia Brás Cubas montado num jumento, quando este empaca, e não quer prosseguir caminho; fustigado pelo narrador, o animal se põe em desabalada corrida, arriscando a vida do j ovem Brás. É quando surge o almocreve, que, não sem esforço, consegue dominar o jumento, salvando o narrador. Este, em recompensa, três moedas de ouro ao almocreve. É a extrema alegria do homem, ao se ver tão regiamente recompensado, que desperta no narrador a impressão de que deu dinheiro demais, quando o justo seria ter dado as moedas de cobre que trazia no bolso do colete.

Mas, afinal, qual a razão e. o sentido desse capítulo? Uma vez que o jumento, ou o asno, que aparece no capítulo "Marcela" representa o tipo de relação que o narrador passa a ter com a espanhola, relação marcada pelo dinheiro, o jumento, ao aparecer no capítulo XXI, cumpre a mesma função que no XV, ou seja, caracteriza o caráter mercantil, não apenas das relações afetivas, mas das relações humanas de uma maneira geral.

Os limites do presente trabalho não permitem que nos alonguemos na citação de outros exemplos, pois seriam vários, dessa leitura ziguezagueante e imbricada dos capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Antes, porém, de encerrarmos, gostaríamos de fazer menção ao trabalho de Luiz Costa Lima em que analisa a influência de Tristam Shandy sobre Memórias Póstumas. Segundo Costa Lima, a influência de Sterne sobre Machado se faz presente sobretudo em função de dois aspectos: a quebra da linearidade narrativa e a crítica da retórica. Enquanto em Tristam Shandy a quebra de linearidade narrativa é mais acentuada, nas Memórias ocupa mais espaço a crítica à retórica, identificada ao seu papel no novo mundo: "o papel de encobrir o vazio, de dar-se ares de importância" (6, p. 64). Ainda segundo o crítico brasileiro, a alusão irônica ao leitor, nas Memórias, "assume seu verdadeiro peso ao notarmos que este pertencia ao mesmo meio dos usuários da retórica" (6, p. 64).

É verdade que, no romance de 1880, esse leitor é criticado, mas o texto de Machado aponta para uma via de mudança, muito diferente daquela que se viu na crítica de 1878 ao romance O Primo Basílio. Daí que, nas Memórias Póstumas, o narrador-autor se incumbe de despertar a consciência do leitor sobre a sua presença no processo de confecção do romance, ou ainda, sua verdadeira interação com o texto literário. Por isso também a presença do leitor em Memórias Póstumas é uma evidência. É preciso mostrar ao leitor que ele está ali, tomando parte ativa na criação/estruturação do texto. Este o sentido "pedagógico" do romance machadiano.

 

AZEVEDO, S.M. - L'éducation du lecteur chez Machado de Assis: de la critique littéraire aux Memórias Póstumas de Brás Cubas. Trans/Form/Ação, São Paulo, 13: 95 - 105, 1990.

 

RÉSUMÉ: Les textes de critique littéraire de Machado deAssis montrent lapréoccupation de l'auteur avec le lecteur; mais c'est dans l'oeuvre Memórias Póstumas de Brás Cubas que le lecteur aura une participation decisive dans la strncture du romano

UNiTERMES: Lecteur; critique littéraire; langage littéraire; romano

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.         BARBOSA, J.A Forma e literatura brasileira; de 1800 a 1950. In : JACKSON, D., ed. Transformations of literature language in latin literature ; from Machado de Assis to the vanguarde. Austin, University of Texas, 1987.

2.          BARBOSA, J.A A tradição do impasse. São Paulo, Ática, 1974.

3.         COUTINHO, A, org. Caminhos dopensamento crítico. Rio de Janeiro, Ed. Americana /Prolivro, 1974. V.1.

4.         COUTINHO, A A crítica literária romântica. In : A literatura no Brasil. ed; Rio de Janeiro, José Olympio/EDUFF, 1986. v.3.

5.        FACCIOLI, V. Textos de Machado de Assis: a crítica. In : BOSI, Alfredo et alii, org. Machado de Assis. São Paulo, Ática,1982.

6.        LIMA, L.c. Dispersa demanda. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981.

7.         MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1985. v.1 e 3.

8.        MARTINS, W. A crítica literária no Brasil. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1952.



[1] Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP - 17500 - Manlia - SP.