RESENHA/REVIEW

 

João de Fernandes 1EIXEIRA[1]

 

DRETSKE, F. - Knowlegde and the flow of information. Cambridge, Mass., V.S.A., The MIT Press, 1981. 2 73 p.

 

A tese de F. Brentano segundo a qual fenômenos mentais caracterizam-se por uma peculiar direcionalidade ou intencionalidade em relação a seus referentes tomou-se um ponto de partida indispensável para a investigação da natureza de nossas faculdades de representação do meio ambiente desenvolvida pelas teorias cognitivistas contemporâneas. É neste panorama que se insere o trabalho de F. Dretske, cuja proposta central consiste na aplicação da teoria matemática da informação para explicar como se formam estados psicológicos que exibem uma dimensão semântica (significativa). Partindo de uma noção primitiva de transmissão de informação entre dois sistemas, a tarefa de que se incumbe Dretske é mostrar como desta última noção podemos derivar uma explicação da natureza representacional de nossos estados internos. Um dos mais importantes resultados desta abordagem será a refutação do ponto de vista defendido por Bretano na sua formulação clássica do problema da intencionalidade, segundo a qual o caráter intencional dos nossos estados internos constitui ao mesmo tempo uma linha divisória entre os domínios do físico e do mental - uma linha intransponível que forçaria a adoção de uma perspectiva dualista no que diz respeito às relações entre mente e natureza.

Um estudo da noção de informação (baseado nos principais conceitos da teoria matemática da comunicação desenvolvida por C. Shannon e W. Weaver) ocupa a primeira parte do livro de Dretske (Caps. 1 a 3). Neste estudo a informação é definida como uma entidade real na natureza e não como um produto dependente da atividade interpretativa dos agentes ou sujeitos humanos. Em outras palavras, o mundo contém uma vastà­ quantidade de informação cuja existência é independente de nossa intervenção ou interpretação. Mesmo que a espécie humana viesse a se extinguir, isto não significaria que a in formação ou as relações informac ionais entre os sistemas também se extinguiriam.

Partindo desta perspectiva acerca da natureza das relações informacionais, Dretske desenvolve uma noção preliminar de informação entendida como a mudança num sistema sendo registrada noutro sistema de uma maneira uniforme. A quantidade de informação transmitida entre dois sistemas - que pode ser medida usando-se os recursos da teoria matemática da comunicação - é uma função do grau de dependência nômica entre eventos que ocorrem em tais sistemas. Se considerarmos, por exemplo, os sistemas S e S' podemos afirmar que a transmissão de informação entre S e S' depende do grau de probabilidade (expresso numa lei do tipo probabilística) de que mudanças em S ocasionem mudanças em S' respectivamente. Se existir apenas uma correlação esporádica entre o que ocorre em S e o que ocorre em S' não podemos falar de um fluxo de informação entre S e S'. Assim sendo, qualquer sistema físico cujos estados exibam uma dependência nômica (na maior parte das vezes expressando uma lei causal) em relação ao seu meio ambiente pode ser considerado um sistema que gera informação. Um sistema natural, por exemplo uma praia com seus sulcos na arei.a, pode ser considerado como contendo informação acerca do movimento das marés e, conseqüentemente, acerca do movimento das órbitas lunares - um registro de informação que não depende de nenhuma interpretação, uma vez que não existe nenhum monopólio humano sobre esta noção.

A segunda parte do livro de Dretske (Caps. 4 a 6) aplica esta concepção de informação a alguns problemas tradicionais da epistemologia numa tentativa de resolvê-los ou reformulá-Ios a partir desta nova ótica. São analisadas as noções de conhecimento e de percepção. O conhecimento é definido (Cap. 4) como uma crença causada pelo registro de uma determinada informação.

Embora a análise da noção de conhecimento apresentada por Dretske seja limitada às formas mais simples de conhecimento perceptual, restringindo-se a estados de coisas contingentes num determinado meio ambiente, a abordagem informacional desta noção permite, no entender do autor, evi tar um conjunto de dificuldades epistemológicas tradicionais (problemas céticos, problemas de justificação, da evidência disponível etc).

No que diz respeito à noção de percepção, esta é também concebida como registro de informação: informação transmitida pelo nosso aparato sensorial e que recebe em seguida um processamento interno que origem a nossas crenças perceptuais. Este processamento corresponde à passagem de informação codificada em forma analógica para uma forma digitalizada (Cap. 6). Estes dois termos, analógico e digital, derivados do vocabulário usado para descrever a arquitetura dos computadores, são utilizados pelo autor de uma maneira heterodoxa para conceber a transformação da informação recebida pelos nossos órgãos sensoriais em informação codificada numa forma proposional. O registro de infonnação operado pelos nossos órgãos sensoriais é analógico na medida em que a informação nos chega de forma contínua, enquanto que a informação em forma proposicional assume um caráter discreto, qual seja, um conteúdo proposicional ao qual podemos atribuir um único valor de verdade, seja este "V" ou "F', que corresponde às posições de mecanismo interno de um computador (ON ou OFF). Assim, por exemplo, o velocímetro de um automóvel é um mecanismo que registra o aumento de velocidade de uma maneira contínua ou analógica, na medida em que este último encontra-se ligado às rodas através de cabos que são progressivamente tensionados. Contudo, este mesmo velocímetro, além de um marcador, possui um mostrador onde velocidades diversas estão representadas de uma maneira digitalizada ou discreta. Quando dizemos: "O automóvel atingiu 40 Km.!h", ao lennos a posição do marcador estamos transfonnando infonnação analógica em infonnação digital de um tipo proposicional: temos aqui uma proposição cujos únicos valores de verdade "V" ou "F' dependem da posição do ponteiro em relação ao mostrador.

O processo de transfonnação analógica em digital constitui um passo importante para que se possa compreender como, a partir da noção de infonnação, um organismo ou sistema pode vir a gerar representações cognitivas (proposicionais) dotadas de uma dimensão semântica. Em outras palavras, este processo de transfonnação do contínuo para o discreto é o primeiro passo para passannos de uma simples mensuração da quantidade de informação transmitida por um sistema ( o que é fornecido pela teoria matemática da comunicação) para uma noção preliminar do que está sendo transmitido ­ uma passagem qualitativa que envolve um dimensionamento semântico da infonnação que é processada. Na transformação do quantitativo em qualitativo ocorre uma perda de informação similar àquela que ocorre quando transformamos uma representação pictórica (um quadro ou uma gravura) num conjunto de proposições. Esta noção de perda de informação desempenha um papel fundamental na abordagem dretskiana da representação mental e na geração dos chamados contextos epistêmicos que analisaremos a seguir.

A terceira parte do livro de Dretske - e, sem dúvida, a mais impotante - concentra-se sobre a geração de atitudes proposicionais por parte dos organismos (crenças, desejos, etc) e o caráter intencional das representações cognitivas envolvidas nestas últimas. A questão fundamental que parece nortear seu texto é: como são geradas as crenças e quais os sistemas físicos aptos a fazê-lo? Para respoder a esta pergunta é preciso, em primeiro lugar, saber o que diferencia certos sistemas físicos de outros que estão espalhados pela natureza e faz com que somente alguns desses sistemas, dotados de características especiais, possam gerar atitudes proposicionais. Em segundo lugar, é preciso saber como a recepção de informação por parte desses sistemas físicos especiais pode vir a gerar os chamaqos contextos epistêmicos ou contextos opacos, cuja formação constitui a chave para a explicação do caráter representacional dos conteúdos proposicionais de crenças, desejos ou outras atitudes.

Os contextos epistêmicos ou intensionais (com s) adquirem relevância numa teoria da natureza das representações mentais na medida em que estes evidenciam como o modo de apreensão de um determinado objeto no mundo (ou representação) influi na sua caracterização, determinando uma variação dos valores de verdade das sentenças que expressam crenças ou desejos acerca desse mesmo objeto. Assim, por exemplo, se se atribui valor de verdade "V" à sentença: "José acredita que os presidentes dos Estados Uilidos entre 1961 e 1968 foram democráticos", não podemos atribuir esse mesmo valor de verdade à sentença: "José acredita que Johnson e Kennedy foram democráticos", a não ser que José saiba que os termos "os presidentes dos Estados Unidos entre 1961 e 1968" e "Kennedy e Johnson" designam os mesmos referentes no mundo. Caso contrário, a substituição de termos coextensivos "salva veritate" pode falhar, e neste caso gera-se um contexto intensional produzido pela variação de representações de um mesmo referente. O estudo de como e porque contextos intensionais sãb produzidos pode esclarecer acerca da natureza das representações mentais: em outras palavras, a intensionalidade (com s) pode ser a chave para se explicar a intencionalidade (com c) dos nossos estados mentais.

Para justificar porque nem todos os sistemas físicos que mantêm relações nômicas (ou informacionais) entre si são capazes de gerar atitudes proposicionais, como ocorre em organismos mais complexos, Dretske introduz a noção de perda de informação. É a partir desta noção que Dretske propõe-se igualmente a explicar a origem e a formação dos contextos epistêmicos. Um exemplo desenvolvido num artigo de sua autoria "The Intentionality of Intentional S tates" l , e posteriormente retomado (em forma modificada) em Knowledge and the Flow of Information esclarece o ponto de vista sustentado pelo autor. No exemplo, Dretske considera o caso de um galvanômetro, ou seja, um sistema físico que recebe informação do meio ambiente mas não gera estados intencionais. O galvanômetro representa aspectos do meio ambiente, mas suas "representações" não podem ser consideradas genuínos estados cognitivos represen tacionais, uma vez que ele não possibilita uma perda de informação acerca do meio ambiente. Uma vez que a construção deste tipo de aparelho baseia-se numa lei física que co-relaciona passagem de corrente elétrica com diferenças de voltagem (o enunciado desta lei diz: há passagem de corrente elétrica entre os pontos A e B se, e somente se, existe uma diferença de voltagem entre os pontos A e B), a mudança de posição do ponteiro de um galvanômetro quando houver corrente elétrica entre os pontos A e B dependerá igu<llmente da existência de uma diferença de voltagem entre A e B. A informação que o ponteiro do galvanômetro está transmitindo não poderia ser, por exemplo, unicamente acerca da mudança de voltagem que está ocorrendo: as duas informações não são independentes, e isto se deve às próprias características funcionais do aparelho, que impedem a transmissão de informações isoladamente. O galvanômetro não gera estados intencionais porque transmite um excesso de informação acerca do meio ambiente. Mas por que a perda de informação constitui uma condição para a geração de estados intencionais? A resposta que Dretske fornece a tal questão é a seguinte: se houvesse uma perda de informação, poderíamos conceber que um sistema possa registrar, por exemplo, a informação de que "s é F" sem registrar, simultaneamente, que "s é G" apesar de uma possível equivalência extensional de F e G. Ora, isto é precisamente o que o galvanômetro não pode fazer: ele não pode separar duas informações extensionalmente equivalentes, no caso, a passagem de corrente e a diferença de voltagem. Contudo, se as duas informações pudessem ser obtidas isoladamente poderíamos afirmar que o aparelho seria capaz de "apreender" um mesmo objeto de duas diferentes maneiras, ou em outras palavras, que ele seria capaz de gerar duas representações do mesmo objeto. Quando duas representações de um mesmo objeto são geradas, obtemos uma situação similar àquela que ocorre no caso dos contextos epistêmicos a que nos referimos anteriormente. Com efeito, a possibilidade de separação de informações coextensivas acerca de um mesmo objeto permite que alguém possa formar uma crença de que o homem que eu vejo perto da porta é meu primo e não acreditar, contudo, que ele é o marido de Maria, apesar do fato de que meu primo seja casado com Maria. Uma vez que a perda de informação não me permite, nesta circunstância especial, saber que ambas informações se referem ao mesmo objeto, o valor de verdade de minhas proposições acerca desse homem que vejo perto da porta e sei ser meu primo, poderá não se aplicar a proposições que expressam crenças acerca do marido de Maria, embora o objeto de tais crenças seja o mesmo.

Assim sendo, a capacidade de perder informações toma-se uma condição para a separação de informações coextensivas de uma determinada fonte no meio ambiente, e somente sistemas que exibam tal capacidade especial de processamento de informações podem vir a gerar autênticos estados cognitivos. Tais sistemas exibem uma hierarquia determinada pela progressiva perda de informação que é recebida do meio ambiente ou de outros sistemas físicos - uma espécie de seleção de conteúdos informacionais.

A idéia de perda de informação através de uma hierarquia funcional exibida por sistemas de processamento de informação é estendida por Dretske para o caso específico do aparelho cognitivo humano. A aplicação desta analogia permite entender como da pura e simples transmissão de informação formam -se conteúdos proposicionais (uma vez que o processo de digitalização também envolve perda de informação), e como estes podem vir a dar lugar a atitudes proposicionais. No nível mais baixo da hierarquia estão as sensações, que formam a matéria-prima de nossas percepções. A organização dos obejtos perceptuais, obtida através de um processo de digitalização, consiste numa primeira filtragem da imensa quantidade de informação que nos é trazida pelos órgãos dos sentidos. A formação de objetos perceptuais permite o aparecimento de habilidades cognitivas básicas, tais como a classificação desses objetos , sua identificação e sua recognição. O exercício destas habilidades cognitivas permitirá, por sua vez, a formação dos conceitos que ocupam um estágio superior na hierarquia cognitiva. Finalmente, no nível mais alto da hierarquia estão estados cognitivos mais sofisticados, como, por exemplo, as crenças, que se tomam possíveis na medida em que um organismo ou sistema tem uma estrutura funcional capaz de registrar informações separando-as de outras in form ações extensionalmente equivalentes. A garantia de que estes estados que ocupam a parte superior da hierarquia cognitiva constituem genuínos estados representacionais é dada pelo fato de que, mesmo nestes estados onde a informação foi processada e elaborada, é possível traçar sua etiologia causal (informacional) que estabelece sua relação de dependência nômica em relação ao meio ambiente.

O último capítulo do livro de Dretske (Cap. 9) desenvolve um esboço de uma teoria da natureza e formação dos conceitos. Estes são tratados como um tipo especial de informação resultante de um processo hierárquico e seletivo que oculta suas relações causais e informacionais derivadas de suas instâncias particulares no meio ambiente. É também nesta última parte que o trabalho de Dretske adquire um tom acentuadamente polêmico. Suas críticas são dirigidas aos defensores de posições comportamentalistas e funcionalistas que visam vincular a análise da natureza da estrutura intencional ào comportamento manifesto dos organismos. Esta posição é fortemente rechaçada por Dretske, que sustenta que o comportamento tem um papel apenas secundário na análise da intencionalidade dos estados mentais e qualquer teoria a este respeito que tome como ponto de partida o comportamento incorre na confusão entre determinante e determinado. É a estrutura intencional que determina o comportamento e não vice-versa.

Na defesa de sua posição, Dretske chega ao exagêro de invocar um experimento cirúrgico realizado com salamandras. Este experimento consiste em inverter a posição das patas dianteiras deste animal (as patas dianteiras são removidas e costuradas no lugar das traseiras e vice-versa) através de uma cuidadosa cirurgia. Ao se observar o comportamento manifesto deste animal verifica-se que ele avança em direção a situações de perigo e recua quando percebe alimen to. No entender de Dretske este experimento ilustra a inadequação das análises de estrutura intencional baseadas no comportamento manifesto dos organismos: o comportamento da salamandra é exatamente o inverso daquele que deveria ocorrer como conseqüência de suas crenças produzidas pela percepção do seu meio ambiente.

O ponto de vista de que o comportamento manifesto é irrelevante na análise da natureza da intencionalidade e da representação mental pode, entretanto, suscitar diversas críticas e objeções à abordagem destes problemas desenvolvida por Dretske. Com efeito, poder- se-ia perguntar como é possível para um organismo desenvolver representações internas capazes de contribuir para a geração de respostas comportamentais adequadas para o meio ambiente, se o processo de elaboração de tais representações não é mediado, pelo menos inicialmente, por comportamentos. Estes últimos, ao proporcionar uma espécie de "feed-back" na relação entre estados internos e características ambientais, serviriam para testar em que medida essas representações mentais preservariam um aspecto in formacional que as tomariam um mapa eficaz na orientação das ações desses organismos, de forma a garantir-lhes condições de adequação comportamental mínima, viabilizando sua sobrevivência e reprodução. Se o comportamento é totalmente excluído como forma de teste do aspecto informacional das representações internas, restaria supor que tais representações espelham características do meio ambiente na medida em que teriam sido transmitidas hereditariamente ou mesmo dadas "a priori" - duas hipóteses cuja validade ainda está por ser demonstrada. Ainda nesta linha de objeções, poder-se-ia assinalar que na medida em que se exclui o comportamento da análise da natureza das estruturas intencionais toma-se difícil conceber como um organismo poderia se aperceber de uma eventual inadequação das informações acerca do seu meio ambiente, recebidas através de seus órgãos sensoriais. Aliás, é de se notar que a análise da noção de representação, baseada numa ligação de caráter nômico entre organismo e meio ambiente (que toma possível a produção de informações), não deixa espaço para se conceber a noção de informação falsa , o que sem dúvida constitui uma lacuna na abordagem informacional defendida por Dretske.

As objeções ressaltadas acima não constituem, entretanto, razão suficiente para supor que a abordagem informacional da natureza das representações mentais seja defectiva: elas apontam apenas para algumas incompletudes apresentadas por este tipo de enfoque. Contra estas críticas é preciso ressaltar o caráter marcadamente original da análise empreendida por Dretske, que se manifesta sobretudo no tipo de perspectiva naturalista e fisicalista defendida pelo autor: em vez de tentar naturalizar o mental, como o tentam a maioria das teorias que adotam esta perspectiva, a proposta de Dretske concebe a intencionalidade como um fenômeno espalhado pela natureza. Qualquer sistema físico capaz de gerar informação terá um grau maior ou menor de intencionalidade, dependendo de sua estrutura funcional propiciar ou não uma perda de informação. Passamos a ver os sistemas físicos da natureza como dotados de predicados mentais ou quase-mentais, o que nos desobriga de adotar posturas dualistas: o caminho entre o físico e o mental pode ser traçado na medida em que existe uma continuidade entre organismo humano e sistemas físicos, que difeririam entre si unicamente pelo fato destes últimos serem portadores de um grau de intencionalidade inferior ao nosso. É por introduzir esta nova perspectiva na Filosofia da Mente contemporânea, ainda dominada pelos matizes de um naturalismo de tipo convencional, que o livro de Dretske traz uma abordagem inovadora do problema da intencionalidade e da representação mental.



[1] Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP - 17500 - M arília SP.