O GRANDE EXPERIMENTO: SOBRE A OPOSIÇÃO ENTRE ETICIDADE (SITTLlCHKEIT) E AUTONOMIA EM NIETZSCHE[1]
Oswaldo GIACOIA JUNIOR[2]
RESUMO: Elegendo motivo principal da exposição a noção nietzscheaflil de eticidade do costume (Sittlichkeit der Sitte), este trabalho procura ressaltar a posição estratégica ocupada pela reflexão sobre a procedência dos valores morais fIil critica da metaflsica tradicional empreendida por Nietzche, bem como a especificidade da contribuição deste fúósofo para o tratamento do tema em questão.
UNITERMOS : Ética; moral; direito; autonomia da vontade; pessoa; consciência; consciência mor.a1
Já as primeiras recepções relevantes de seu pensamento consideram Nietzsche como o filósofo da cultura, identificando neste tema o eixo problemático nuclear de sua filosofia: "Nietzsche é o filósofo da cultura A cultura é o problema central a que se relacionam todos os seus pensamentos mais essenciais. Esta tarefa não é alterada em função da mudança de suas concepções; ela interliga os períodos de seu pensamento e se encontra no centro de sua filosofia" (20, p. 54). Com efeito, em O Nascimento da Tragédia, obra inaugural de sua trajetória filosófica, Nietzsche empreendera a crítica da cultura socrático alexandrina, tomando-a como um tipo de cultura científica animada pela crença na verdade e no ideal dela decorrente, segundo o qual é possível ao pensamento, "seguindo o fio condutor da casualidade, estender-se até os abismos mais profundos do ser e não apenas conhecê-lo, mas até mesmo corrigi-lo" (10, XV) (Nota A). No contexto de suas obras de juventude, Nietzsche crítica a cultura socrática-alexandrina do ponto de vistà de uma concepção metafísica da arte e da experiência do artista, a que a Tentativa de Autocrítica acrescentada ao Nascimento da Trágedia dá o nome de "metafísica de artista" (10, 1lI e V). A partir de Humano, Demasiaoo Humano, a crítica nietzscheana da cultura abandona suas características e pressuposições iniciais para ir se determinando progressivamente como genealogia dos valores supremos da moral. "Meus pensamentos sobre a procedência (Herkunft) dos prejuízos morais (...) tiveram sua primeira expressão provisória e parca nessa coleção de aforismos que tem por título Humano, Demasiado Humano. Um Livro para Espíritos Livres. (...) foi então a primeira vez que trouxe à luz aquelas hipóteses genealógicas (...) com torpeza, que eu seria o último a querer ocultar-me e, além disso, sem liberdade, sem dispor de uma linguagem própria para dizer coisas próprias, e com múltiplas recaídas e flutuações" (1 1, Prefácio, li e IV). À vista de semelhante mudança de orientação cumpre perguntar-se: o que faz com que o programa crítico nietzscheano abandone seus pressupostos e características iniciais, que fundavam a interpretação dos fenômenos culturais na 'metafísica de artista'? Indício importante para uma resposta possível a esta questão pode ser encontrado no aforismo 344 de A Gaia Ciência - texto elaborado no mesmo período que Para Além de Bem e Mal e Para a Genealogia da Moral, nos quais Nietzsche imprime a seu projeto genealógico dos valores morais e forma lingüística e metodológica que supera, a seu ver, as recaídas e flutuações em que incorria ainda Humano, Demasiaoo Humano. Pode-se depreeender do aforismo supra mencionado que, para Nietzsche, a cultura ocidental se caracteriza, desde o apogeu do ideal socrático, por responder previamente de maneira afirmativa a questão de se saber se a verdade é necessária; tal resposta prévia é de tal modo afirmativa que "nela alcança expressão esta crença, esta convicção: 'Nada é mais necessário do que a verdade, e em proporção a ela o resto só tem um valor de segunda ordem'" (19, p. 220). A cultura do ocidente se caracteriza, portanto, segundo Nietzsche - pelo menos a partir do triunfo do ideal socrático - como cultura científica por excelência, de modo a resultar de sua própria natureza que à verdade deve ser atribuído valor incondicional e exclusiva relevância. O tipo de cultura expresso pelo ideal socrático é aquele para o qual a verdade - mais precisamente, a crença no valor incondicional da verdade - é tomada como suprema aspiração e estimativa de valor, de modo que ao Verdadeiro há que ser atribuído o caráter de supremo bem. Para a cultura científica do ocidente há, segundo Nietzsche, equivalência entre o Bem, o Verdadeiro, o Justo e o Belo, de sorte que o erro e a ignorância da verdade são considerados como a origem efetiva do mal. Diante disso, pergunta-se Nietzsche: o que pode significar uma tal vontade incondicionada e exclusiva de verdade? De onde provém a crença no exclusivo valor da verdade? Qual a natureza do valor atribuído ao valor-verdade? Como se poderia avaliá-lo? Do exame de tais questões, resultará, para Nietzsche, em primeiro lugar, que a crença na verdade como valor incondicional é o resultado de uma avaliação moral, de modo que a suprema aspiração da cultura de tipo cientifico ocidental não é, para ele, a expressão de um fato ou lei científica, mas, paradoxalmente, daquilo precisamente que a ciência-procura banir de seu território próprio: trata-se de uma convicção e de uma estimativa moral de valor. O desdobramento do exame deste problema determinará, para Nietzsche, em seguida à constatação da natureza moral do valor-verdade, a necessidade de uma avaliação do valor atribuído à verdade; tal avaliação SÓ poderá ser levada a efeito segundo um critério que possa servir de base suficiente para a medida do valor atribuído à verdade, sem que tal critério possa, no entanto, transformar-se em objeto de avaliação por intermédio de outro valor no qual aquele pudesse ser subsumido. Este último critério, que permite a Nietzsche efetuar a avaliação do fundo moral dos valores da ciência, é, portanto, a instância fundamental de seu pensamento: a vida. Eis a perspectiva fundamental a partir de que se determina e orienta a genealogia Nietzscheana, seu mais recuado limiar de compreensão, além, ou aquém do qual nenhuma transposição é possível: "Seria preciso ter uma posição fora da vida e, por outro lado, conhecê-la tão bem quanto um, quanto muitos, quanto todos que a viveram, para poder em geral tocar o problema do valor da vida: razões bastantes para se compreender que este problema é um problema inacessível para nós. Se falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos coage a instituir valores; a vida mesma valoriza através de nós, quanto instituímos valores..." (19, p. 341).
Se ilusão, cegueira, velamento, delírio, engano, transfiguração, falsidade, erro, integraÍn as condições da vida em geral, então a crença no valor incondicional e exclusivo da verdade e a vontade de verdade a qualquer custo não encontram justificativa num cálculo utilitário, cujo resultado determinase a absoluta e exclusiva necessidade e utilidade da verdade para a vida. Se é admissivel suspeitar que tanto a falsidade quanto a verdade fazem parte das condições gerais de vida (ou, como afirma Nietzsche, "se houvesse a aparência - e há essa aparência - de que a vida depende da aparência, quero dizer, do erro, da impostura, disfarce, cegamento, auto-cegamento e... se a grande forma da vida sempre se tivesse mostrado, de fato, do lado do mais inescrupuloso polytropoi" (19, p. 221) de onde poderia, então, a ciência e a cultura que nela repousa extrair sua crença incondicionada de que a verdade é mais importante que toda outra coisa, do que qualquer outro valor? Esta vontade de verdade a qualquer preço, esta eleição de verdade como valor incondicional em detrimento do erro, do engano e da ilusão, não é senão, para Nietzsche, o resultado de uma escolha qualificatória e legitimadora de um dos possíveis condicionamentos da vida em geral. Trata-se, por outro lado, de uma desqualificação e ilegitimação de possíveis condicionamentos vitais que, do ponto de vista da vida em geral, são igualmente "legítimos, bons úteis". A vontade incondicional de verdade se revela, portanto, como um princípio hostil às condições da vida em geral, e, neste sentido, poderia "ser uma velada vontade de morte. - Dessa forma, a questão: por que ciência? reconduz ao problema moral: para que em geral moral, se vida, natureza, história, são 'imorais'? Sem dúvida o veredito, naquele sentido temerário e último, como o pressupõe a crença na ciência, afrrma com isso um outro mundo do que o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse 'outro mundo', como? não precisa justamente com isso, de... negar seu reverso, este mundo, o nosso mundo?.. " (19, p. 221) Esta vontade que elege a verdade como supre o valor se auto-institui, com isso, em ponto de vista perspectivo de valor, como sendo ela própria estimativa de valor. Ora, para Nietzsche, "o ponto de vista do valor é o ponto de vista de condições de conservação e crescimento de formações complexas de vida de relativa duração no interior do devir" (18, p. 36; Fr. 11 (73). Valores são, portanto, condições de conservação e crescimento de complexos vitais, precisamente do tipo de vida que os elege e institui a partir de uma perspectiva ou ponto de vista. Desse modo, o ponto de vista de valor expresso como vontade incondicional de verdade é o ponto de vista de condições de conservação e crescimento do tipo vital expresso por essa mesma vontade. Se a vontade incondicional de verdade é constitutiva da essência da cultura científica do ocidente, para a qual a verdade se apresenta, de plena evidência, como forma suprema de valor, essa crença no valor incondicional da verdade só encontra justificativa numa avaliação moral, então a empresa de submeter à crítica a cultura do ocidente ganha forçosamente a determinação de uma genealogia da moral. "Mas... não são os juízos de valor lógicos os mais profundos e mais radiciais até os quais a bravura de nossa suspeita desceu: a confiança na razão, com a qual a validez desses juízos permanece ou perece, é, como confiança, um fenômeno moral... " (19, p. 165). Sendo de natureza moral os problemas fundamentais da cultura do ocidente e morais os valores nos quais esta cultura se assenta, tem-se que uma crítica radical da cultura deve forçosamente se determinar como genealogia da moral, pois "não existiram até aqui problemas mais fundamentais do que os problemas morais, é na força propulsora desses problemas que tiveram origem todas as grandes concepções no terreno dos valores até então vigentes (-por exemplo tudo aquilo que comumente é chamado de 'Filosofia'; e isso até as últimas pressuposições de teoria do conhecimento)" (17, p, 220; Fr. 5 (80». Daí a necessidade e a urgência de uma crítica dos valores morais. "Carecemos de uma crítica dos valores morais, é necessário alguma vez colocar em questão o valor destes valores - e para isto é preciso ter conhecimento das condições e circunstâncias em que surgiram, se desenvolveram e modificaram" (1 1, Pref. VI). Uma crítica dos valores morais, que seja mais do que uma simples história dos sistemas éticos (Cf. 9, Af. 345) e tome por base o conhecimento das condições e circunstâncias em que surgiram e se desenvolveram tais valores, deve compreender, em sua radical idade, uma genealogia da instância originária de todo valor moral: esta crítica compreende, portanto, como um de seus momentos constitutivos, uma história da proveniência da consciência moral: solo onde se originam e se enraízam todos os valores morais.
Esta genealogia empreendida por Nietzsche dos supremos valores da moralidade ocidental comporta; como uma de suas dimensões essenciais, a reflexão sobre a eticidade do costume (Sittlichkeit der Sitte) (Nota B) e sobre o direito primitivo, em especial o direito penal.
A questão que ora se coloca é a de explicitar a função específica e estratégica para a es trutura da argumentação que temas como a eticidade do costume e as formas elementares do direito desempenham como momentos essenciais da genealogia nietzscheana das for mas superiores da moralidade. Pode-se compreender a ingente necessidade da presença desses temas como peças de importância fundamental no projeto genealógico nietzschea no - e, de modo especial, na configuração que este adquire a partir de Para Além de Bem e Mal e Para a Genealogia da Moral - se se tem em conta dois pontos de vista capitais destes dois escritos: 1) o direito primitivo e a eticidade do costume são abordados por Nietzsche como tendo se constituído hipoteticamente durante a pré-história da humanidade, ou seja, durante incomensuráveis lances de tempo, agora apenas imagináveis, ao longo dos quais o caos pulsional daquilo que lenta e penosamente viria a se transformar na espécie humana recebe a impressão das primeiras determinações gerais do tipo homem. Trata-se, portanto, de um recuo hipotético para além dos limiares da história, um ousado salto na região obscura onde transcorreram os lances iniciais da epopéia ainda inacabada de auto-constituição da humanidade. Tais incomensuráveis lances de tempo precedem a "história mundial (We1tgeschichte) como a efetiva e decisiva história principal (Hauptgeschichte) que flXO U o caráter da humanidade" (15, M. 1 8). É do solo desta primitiva eticidade - lodo fecundo, sombrio, perigoso, movediço - que brotam as mais raras orquídeas da cultura. 2) Direito primitivo e eticidade do costume são abordados por Nietzsche como domínios de concreção da vontade de poder, de maneira que é somente nos situando do ponto de vista da vontade de poder que podemos compreender adequadamente essas duas determinações; inversamente, comprendendo-as ascendemos a uma inteligência mais clara e abrangente do próprio conceito de vontade de poder - horizonte da fIlosofia nietzscheana*. Reportar a gênese do direito primitivo e da eticidade do costume à instância conceitual da vontade de poder implica uma estratégia teórica de múltiplos efeitos. Isto torna possível, por exemplo, compreender adequadamente o caráter específico do procedimento metodológico da genealogia nietzscheana em sua discussão com estilos de filosofar concorrenciais; permite, além disso, resgatar e trazer à luz uma dimensão artística fundamental do conceito de vontade de poder, com base na qual se torna possível colocar em questão a validade de interpretações deste conceito que insistem em inscrevê-lo imediatamente no circuito de categorias sócio-políticas. No que respeita ao primeiro aspecto, Nietzsche procede em seu projeto genealógico das formas e valores superiores da moralidade vinculando-os às suas condições iniciais de possibilidade. As circunstâncias e condições de onde provieram os supremos valores da moralidade são detectadas por Nietzsche no território da primitiva eticidade do costume e das formas elementares do direito. Nietzsche considera, no entanto, o primitivo universo da eticidade do costume e do direito de um ponto de vista que lhe é característico, qual seja, o das forças ativas, plásticas, agressivas. Este é um dos pontos de vista metodológicos decisivos apresentados por Nietzsche de forma crítica e polêmica em Para a Genealogia da Moral. Nietzsche recusa decididamente a hipótese social-darwinista a respeito da procedência dos valores morais e das instituições originárias da cultura, que considera seu surgimento como tendo sido devido a razões de utilidade e seu desenvolvimento como integrando o progresso e o aprimoramento da espécie humana Seu surgimento e desenvolvimento seriam devidos, destarte, à utilidade que puderam ter para a conservação e reprodução da vida em sociedade, isto é, seriam resultantes do esforço tendente à satisfatória adaptação coletiva do homem às condições externas de vida. Ao vincular a eticidade e as categorias elementares do direito à vontade de poder, Nietzsche trabalha em oposição ao social darwinismo, privilegiando o caráter primário, espontâneo, assimilador da atividade, em detrimento do caráter secundário, reativo, da adaptação. O princípio primário dos fenôme nos do mundo orgânico - princípio este no qual a vontade de poder encontra, segundo Nietzsche, imediata expressão - é a energia das forças ativas, agressivas, assimiladoras, assujeitadoras, cujos efeitos são seguidos pelos fenômenos secundários da adaptação con servadora (Cf. lI, lI, 1 2). Ora. o universo normativo do direito e da eticidade do costume se apresenta para ele como domínio temático privilegiado para a explicitação de suas hipóteses concernentes à proveniência e desenvolvimento das instituições primárias da cultura, pois que este universo de hierarquias e regramentos é animado por uma vontade organizadora fundamental, que é princípio plástico, ativo, transformador. A eticidade do costume e as formas elementares do direito aparecem, portanto, para Nietzsche, como expressões miméticas dessa energia propulsora, criadora de formas, instituidora de sentidos, distâncias, hierarquias, que é a própria vontade de poder - força plástica e princípio artístico de organização (Nota C). Para imprimir à errância anárquica original do animal-homem as mais incipientes formas de organização social, foi necessário consolidar disciplinas e regramentos, instituir critérios de hierarquização, instaurar distâncias e diferenças, plasmar, enfim, tudo aquilo que constitui essencialmente o universo da mais primitiva eticidade. Isto se toma especialmente claro na hipótese elaborada por Nietzsche, em Para a Genealogia da Moral, para explicitar a proveniência das formas mais embrionárias de Estado, onde este é tomado como uma impiedosa maquinaria, com auxilio da qual se promove a inserção forçada do animal-homem livre e errante no interior de rígidas formas sociais. Tal hipótese, a despeito das macabras interpretações a que deu lugar ao longo da recepção nietzscheana, deve, no entanto, ser entendida em seu contexto expecífico, isto é, como hipótese de trabalho que·visa drama tizar esteticamente a atuação de um princípio plástico e organizador, prima fade artístico, princípio de formação, figuração e transfiguração (Gestaltung e Bildung são termos freqilentemente empregados por Nietzsche neste contexto). Trata-se de uma ousada alegoria aventurando-se na noite sombria de uma possível pré-história da espécie, sem pretender o estatuto de rigorosa objetividade científica. "O 'Estado' mais antigo apareceu... como uma horrível tirania, como uma máquina trituradora impiedosa que continuou trabalhando deste modo até que aquela matéria bruta feita de povo e semi-animalidade não somente acabou por ficar bem amassada, maleável, como também por ter umaforma" (1 1, 11, 17).
É sabido. o que Nietzsche pretende significar, neste contexto, com o termo "Estado": uma horda de animais de rapina, conquistadores organizados para a guerra e dotados da força de organizar, que, sem escrúpulos ou consideração, lança suas garras impiedosas sobre uma população informe e errante, possivelmente muito mais forte do ponto de vista numérico, inculcando-lhe a fogo a marca da própria vontade (1 1, 11, 1 7). Sabe-se também a que tipo de interpretação deu azo a esta funesta passagem. Mas se atentou menos para o "Leitmotiv " artístico que empresta seu vigor à dramatização da "b/onde Bestie" nietzscheana: "sua obra é um instintivo criar formas, são os mais involuntários e inconscientes artistas que existem: em pouco tempo surge, lá onde eles aparecem, algo novo, uma concreção de domínio dotada de vida em que as partes e funções foram delimitadas e postas em conexão, na qual não tem lugar absolutamente nada a que não se tenha antes dado um 'sentido' em relação ao todo. Estes organizadores natos não sabem Ó que é a culpa, o que é a responsabilidade, o que é consideração; impera neles aquele terrível egoísmo de artista que olha as coisas com olhos de bronze e que de antemão se acha justificado na 'obra' por toda a eternidade, como a mãe em seu filho" (1 1, lI, 1 7).
Direito primitivo e eticidade do costume - enquanto modos de instauração de distâncias, hierarquias, privilégios, proporções e regramentos - trazem à luz, de modo conveniente, o caráter essencial da vontade de poder, ela própria sendo energia organizadora, delimitadora, instauradora de sentidos, hierarquias, funções, portadora de critérios de medida e avaliação. O trabalho auto-modelador que o animal-homem empreende consigo mesmo (Ausgestaltung) é realizado qual direito primitivo e eticidade do costume, por via de um domínio normativo composto de ordenações e hierarquias, diferenças e distâncias, mecanismos de disciplina e coerção. A vontade de poder é tomada por Nietzsche como a dynamis deste processo em cujo curso se institui e consolida a mais primitiva forma de vida em comum (primitivstes Gemeinwesen), de cujo desdobramento se originam as mais complexas e sofisticadas figurações tardias da cultura superior (Arte, Religião, Filosofia), culminando na figura sem par do indivíduo soberano, na qual toma corpo a liberdade tornada possível por intermédio de seu contrário, isto é, da sujeição inexorável e dos brutais dispositivos de coerção e tortura inerentes às formas primitivas do mundo do direito. O processo civilizatório é visto, nesta perspectiva, como um prodígio de crueldade empregado pela humanidade contra si mesma, como um terrível processo de domesticação e domestificação, quebrantamento e sublimação das pulsões mais rebeldes e selvagens do animal-homem. A barbárie deste processo em sua inevitável desmedida inicial, seu refinamento ulterior, sua "espiritualização", são descritas por Nietzsche ao abordar o tema da eticidade primitiva. Este é o processo que se apresenta para ele como condição de surgimento das formas mais sutis e refinadas da cultura superior, este reino de liberdade distinto e contraposto ao abismo sombrio da necessidade e da heteronomia. O lento e penoso processo de aquisição de costumes - processo ao qual Nietzsche dá, por vezes, o nome de Gesittung (1 1, lI, 9), m antendo a proximidade etimológica com Sitte e Sittlichkeit - é o esforço épico de formação e conformação da humanidade em seu devir, cujo ponto de partida é constituído pela matéria explosiva dos mais poderosos instintos do animal-homem, aos quais Nietzsche dá o nome de "antigos instintos da liberdade", isto é, as pulsões selvagens e irrefreadas do animal livre e errante, "a hostilidade, crueldade, prazer no assalto, na perseguição, na agressão, na m udança, na destruição" (11, lI, 16; 19, p. 31 7) 1.
Por essa razão, situa-se o genealogista Nietzsche no extremo oposto da reflexão de Hegel sobre a "Sittlichkeit". a despeito da ressonância hegeliana do termo e de surpreendentes analogias parciais de certos momentos da argumentação (Nota D). Para Nietzsche, de outro modo que para Hegel, o solo onde se enraiza o direito não é "überhaupt das Geistige und seine niihere Stelle und Ausgangspunkt der Wille. welcher frei isto so dass die Freheit seine Substanz und Bestimmung ausmacht. und das Rechtsystem das Reich der verwirklichten Freiheit. die Welt des Geistes aus ihm selbst hervorgebracht ais eine zweite Natur" (6, §4, p. 50), Tampouco se pode dizer que a eticidade (Sittlichkeit) seja para Nietzsche, como é para Hegel, "die gedachte Idee des Guten realisert in dem in sith refektierten Willen und in der ausserlichen We1t; so dass die Freiheit ais die S ub stanz ebenso sehr ais Wirklic hk eit und Notwendigkeit existiert. ais subjektiver WilIe; die Idee in ihrer an und für sich allgemeinen Existenz " (6, § 33, p. 84)**. Eticidade e diretio não são, para Nietzsche determinações concretas da liberdade, não são etapas necessárias de um processo de auto revelação do espírito - considere- se tal processo do ponto de vista das realizações históricas concretas ou do ponto de vista dos momentos lógicos necessários à realização do conceito de liberdade. São antes, do ponto de vista nietzscheano, domínios antitéticos da liberdade. "O homem livre é não-ético, porque em tudo quer depender de si e não de uma tradição: em todos os estados primitivos da humanidade, 'mau' significa o mesmo que 'indidual', 'livre', 'arbitrário', 'inusitado', 'imprevisto', 'incalculável''' (18, Af. 9; 19, p. 1 67). "Sittlichkeit" não significa, para Nietzsche, o momento do reconhecimento pelo espírito da aparente alteridade do mundo como sendo, em verdade, sua obra e, portanto, expressão da identidade consigo mesmo; não é o tomar-sefür sich da liberdade substancial do espírito que, an sich, é desde sempre liberdade somente abstrata. Para Nietzsche o espiritual (das Geistige) e sua liberdade sustancial são produzidos ao longo do trabalho brutal da eticidade do costume, cuja cega contígência não é redimida por nenhuma ralio embrionária que atuas como energia oculta de um processo formativo, nem resgatada como etapa necessária ao cumprimento de uma teleologia pacificadora. O processo de vir a ser das mais refinadas formações da cultura superior que têm sua origem na eticidade do costume e nos dispositivos rudimentares do direito primitivo é enfocado por Nietzsche de um duplo ponto de vista: do ponto de vista que se poderia denominar "macro-cósmico", quando se trata da criação das comunidades ou "estados" primitivos, constituídos com base na instituição forçada de diferenças funcionais hierarquizadas e regramentos diversos de domínios de poder, e do ponto de vista a que se poderia chamar "micro-cósmico", segundo o qual se considera a introjeção ao nível da psiquê individual dos processos de diferenciação e hierarquização de funções, por meio do qual se toma possível tanto o desdobramento e especificação das funções quanto o concurso harmonioso de distintas faculdades e disposições psíqui<:as. Para conquista deste 'optimum' de harmonia e equilIbrio, com o que se obtém o auto-domínio sobre pulsões e paixões, deve o indivíduo reproduzir em si, internalizando-o, o esforço formativo do qual resultou a consolidação da coletividade, com o que esta se transforma para ele em superfície de reflexão e reconhecimento". "Sem o pathos de distância. tal como surge da inveterada diferença dos estamentos, do permanente olhar à distância dirigido pela classe dominante para além e para baixo sobre súditos e instrumentos e de seu permanente exercício de obedecer e comandar, manter os outros subjugados e distanciados, não poderia surgir tampouco, de modo algum, aquele outro palhos misterioso, aquele desejo de ampliar incessantemente as distâncias dentro da própria alma, a elaboração de estados sempre mais elevados, raros, mais distantes, tencionados, abrangentes, em suma, justamente a elevação do 'tipo' homem, a contínua auto-superação do homem, para empregar em sentido extra-moral uma fórmula moral". (13, Ai. 257).
Depreende-se do exposto que os temas do direito primitivo e da etícidade do costume não são meramente episódicos na genealogia nietzscheana das formas superiores da moralidade, mas momentos imprescindíveis à economia da. argumentação. Empreendemos a seguir, a partir do exame dos textos de Nietzsche, a tentativa de comprovação desta afirmação, examinando, para tanto, dois aspectos complementares dessa genealogia.
2. SOBRE A CONSCIÊNCIA DO DEVER MORAL E O MORS US CONSCIENTIAE; OU PA CTA S UNT SERVANDA
Em Para a Genealogia da Moral, Nietzsche retoma parcialmente temas e procedimentos já desenvolvidos por ele em Humano, Demasiado Humano, especialmente a estratégia de relacionar os supremos valores da cultura ocidental aos seus obscuros começos. às suas inconfessáveis condições de surgimento. à mesquinhez de seu passado humano. demasiado humano. Para Nietzsche. não existem dados definitivos. absolutos ou eternos. A divisa de seu filosofar histórico lhe prescreve que "tudo veio a ser. não existem /atos eternos, do mesmo modo como não existem verdades absolutas" (13. I. M. 2; 19, p. 1 (0). Para Nietzsche não basta. portanto. fundar a moralidade na idéia de liberdade da vontade. nem é convincente o argumento kantiano segundo o qual há que pressupor-se a liberdade como propriedade da vontade de todo ser racional (Cf. 7. p. 82). Igualmente inconvincente se apresenta para Nietzsche o argumento de acordo com o qual os valores morais surgem como conseqüência de ações úteis à conservação e desenvolvimento da comunidade. as quais se transformam. em decorrência disso. em costume inveterado. até que. tendo sua origem utilitária caído no esquecimento. aparecem como sendo por si mesmas portadoras de valor. independentemente de suas conseqüências. Recorrer a semelhante explicação acerca da proveniência das categorias m orais significa. para Nietzsche. romper apenas em aparência com os quadros explicativos da metafísica tradicional. de vez que se permanece com isso no horizonte da categoria lógica de finalidade. o que faz pressupor a existência velada de uma ratio operando desde as origens da história da espécie. dirigindo-Ihe de antemão o destino. Para Nietzsche. a genealogia da moral é. ao mesmo tempo. a genealogia da própria ralio e da espiritualidade em geral. cuja especificidade consiste precisamente em não tomar seus objetos de investigação como dados ou faculdades naturais (Gegebenes) e sim como resultados (Gewordenes) de um laborioso processo formativo (Bildung), presumivelmente ocorrido na pré-história da espécie e recuperado hipoteticamente pela reflexão filosófica. Nietzsche não pode. portanto. fazer apelo a nenhuma faculdade moral existente em germe nos recônditos da alma humana. cujo ulterior desenvolvimento faria surgir o mundo ético, e. no interior deste. como suas determinações parciais. os continentes da moralidade e do direito, como de ordinário procede a filosofia do direito. Com efeito, constitui lugar-comum entre os teóricos do direito a divisão do universo ético nas esferas da Moral e do Direito. tomando-se este como o conjunto de normas protetoras do bem (valor) comum sancionado pela organização política dos grupos sociais (Nota E). É fácil perceber que semelhante explicação do direito como garantia estatal do bem comum pressupõe a existência de valores que devem ser necessariamente reportados a pessoas como a seus suportes ou sujeitos. Pessoa é. neste sentido. sujeito de direito e fonte de valor. Como se esclarecerá a seguir, a genealogia nietzscheana da moral constitui uma ousada tentativa da inversão radical deste ponto de vista. Ao invés de derivar o direito da personalidade e da consciência do dever moral em geral. Nietzsche faz derivar as categorias da moralidade. a consciência do dever moral das formas elementares do direito. em especial da primitiva obligalio contratual de direito privado entre credor e devedor. A procedência das formas mais sutis da moralidade é buscada por Nietzsche no domínio material onde se instituem as mais primitivas obrigações de direito pessoal. de modo especial as que se estabelecem com base na matriz da compra. venda e comércio. "O sentimento de culpa. de obrigação pessoal•... teve sua origem... na mais antiga e ordinária relação pessoal que há, na relação entre comprador e vendedor, credor e devedor: aqui entrou pela primeira vez pessoa contra pessoa, aqui se mediu pela primeira vez pessoa a pessoa. Ainda não se encontrou nenhum grau de civilização em que não se notasse algo dessa relação. Fazer preços, medir valores, inventar equivalentes, trocar isso preocupou o primeiríssimo pensar do homem em uma medida tal que, em certo sentido, é o pensar: aqui foi cultivada a mais antiga espécie de perspicácia, aqui se poderia supor, do mesmo modo, o primeiro germe do orgulho humano, de seu sentimento de prioridade sobre os outros animais. Talvez ainda exprima nossa palavra 'Mensch (manas) algo, precisamente, desse sentimento de si: o homem se designou como o ser que 'mede valores, que valora e mede, como o 'animal estimador em si'" (1 1, 11, 8) (Nota F).
Dívida, ou Culpa (Schuld), no sentido jurídico deve ser interpretada, segundo Nietzsche, a partir da matriz da obligatio de direito pessoal que planta suas raízes mais ancestrais na relação jurídico-econômica da compra, venda, troca e intercâmbio. Esta obrigação contratual de direito privado implica uma relação regrada por uma norma, da qual deve decorrer uma ação ou abstenção a que se tem direito - ou, correlativamente, a que se está obrigado. Dever, obrigação significam, no contexto da compra e venda primitivas, a representação do ato que se deve praticar ou de que se deve abster, de onde se origina a embrionária reciprocidade entre diretio e dever. Semelhante estrutura de relações pressupõe a existência de sujeitos de direito, de pessoas investidas da faculdade ou poder de levar a cumprimento uma palavra empenhada, de responsabilizar-se pelo próprio comportamento futuro, isto é, de oferecer garantias de si mesmo no futuro, o que é pressuposto de relações recíprocas entre o cumprimento de uma obrigação e a conquista de uma prerrogativa de direito. Esta faculdade de responsabilidade ou poder de garantir-se a si mesmo no futuro não é pensada por Nietzsche como uma disposição natural ou qualidade inata do animal-homem, mas como resultado de um lento e laborioso processo de formação. "Que ao homem lhe seja lícito responder por si mesmo, e fazê-lo com orgulho, ou seja, que ao homem seja lícito dizer sim também a si mesmo - isto é... um fruto maduro, mas também um fruto tardio: quanto tempo teve que pender acre e amargo da árvore! E durante um tempo muito mais longo ainda não foi possível ver nada deste fruto; a ninguém teria sido lícito prometê-lo, por mais certo que fosse que tudo na árvore estava preparado e crescendo direto em sua direção" (1 1, 11, 3; 19, p. 312). Ao tratar da procedência da responsabilidade, Nietzsche reconstitui o longo e penoso processo no qual se realiza o trabalho formativo (Ausgestaltung), a domesticação efetiva do animal-homem levada a cabo por meio da eticidade do costume. Para Nietzsche, um tal resultado maduro e tardio é obtido por meio da criação no animal-homem de uma segunda natureza, que substitui o embotamento inicial cravado à eternidade do instante e do esquecimento. Trata-se da criação, no animal-homem, da memória da vontade, com o que se lhe descortina a possibilidade das dimensões temporais do passado e do futuro; trata-se da criação das faculdades psíquicas das qUIDS se originam a consciência e a memória, com o que se adestra o animal-homem para o exercício da capacidade ou 'do poder de comportamento regular, previsível, normativo, ou seja, do poder de se comportar o comando de uma regra, condição de possibilidade do surgimento de sujeitos de direitos.
Trata-se aqui de dois momentos reversíveis da aventura auto-formação da humanidade por meio do processo de desenvolvimento do 'espírito', cujo resultado é o surgimento da liberdade como autonomia da vontade na forma do indivíduo soberano e capaz de prometer. Por um lado, não seria possível a aquisição de costumes (Gesillung) sem a súbita irrupção dos dispositivos e regramentos que constituem o estado primitivo, resultante da ação inexorável de uma poderosa força organizadora que modela indivíduos e grupos, constringindo-os no interior de rígidas formas sociais. Por outro lado, a repetição prolongada e exaustiva inerente ao processo de aquisição de costumes regulares constitui o desdobramento desta efetividade inicial, possibilitando a emergência de uma ética rudimentar e incipiente, a partir da qual a humanidade se recria e transfigura segundo formas cada vez mais variadas e complexas. Sobre a base desta eticidade rudimentar se insitui e consolida uma estrutura relacional que é pressuposto de toda e qualquer forma de autonomia e liberdade: a faculdade ou poder de comportamento segundo a representação de uma norma, de agir de acordo com a consciência de uma obrigação, enfim, a capacidade interna de determinação da própria vontade. Para tanto são necessários dois requisitos fundamentais: a memória da palavra empenhada e a reverência, o respeito pela autoridade da norma cujo conteúdo determina uma obrigação. Estes são, para Nietzsche, os pressupostos gerais de toda ética, a ponto de eticidade (Slllichkeit)" ser compreendida por ele como "o sentimento do costume (das Gefuehl der Sille)" que se relaciona à idade, à santidade, à indiscutibilidade do costume (15, Af. 19). O trabalho de modelagem levado a efeito ao longo do processo de aquisição de costumes tem como objetivo satisfazer esse duplo requisito. "Para dispor assim antecipadamente do futuro - quanto deve o homem antes ter aprendido a separar o acontecimento necessário do casual, a pensar casualmente, a ver e a antecipar o distante como presente, a sahcr estabelecer com segurança o que é o fim e o que é meio para o fim, a saber contar em geral, calcular, - quanto deve o próprio homem, para conseguir isso, ter se tomado calculável regular, necessário, para poder responder por si mesmo segundo sua própria representação, para finalmente poder responder por si como futuro do modo como O faz quem promete". (1 1, 11, 1) Este processo é, para Nietzsche, inteiramente conduzido pelo exercício da crueldade, de modo que a pré-história da civilização se constitui num prodigioso esforço de plasmar formas elementares de eticidade à contra-corrente da poderosa faculdade ativa de esquecimento do semianimal-homem (1 1, 11, 3; 19, p. 31 2). Para Nietzsche, é este o pressuposto de toda forma superior de consciência do dever e, genericamente, de todo comportamento normativo; a previsibilidade da conduta futura tem como condição a faculdade ou poder de garantir-se a si mesmo no futuro. "Esta tarefa de criar um animal ao qual seja lícito fazer promessas inclui em si como condição e preparação... a tarefa mais concreta de fazer antes o homem, até certo ponto, necessário uniforme, igual entre iguais, ajustado à regra, e, em conseqüência, calculável" (1 1, lI, 2). Tomar o homem, até certo ponto, previsível e regular, implantar na mistura semi-animal de pulsões e esquecimento uma memória da vontade, isso constitui, para Nietzsche, uma tarefa que só pode ser levada a efeito por meio de uma monstruosa instrumentação da dor e do sofrimento, pois tais são, segundo ele, os mais poderosos auxiliares da mnemotécnica (Cf. 11, 11, 3; 19, p, 312). Como resultado de um prodigioso exercício da crueldade, obtém-se que fique impresso a fogo no homem "cinco ou seis 'eu não quero' na memória, com relação aos quais deu sua palavra com a frn alidade de viver entre as vantagens da sociedade - e, realmente!, com ajuda desta espécie de memória se acabou por chegar à 'razão'! Ah, a razão, a seriedade, o domínio dos afetos, todo esse sombrio assunto que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: quão caros se fizeram pagar! QuaI\to sangue e horror há no fundo de todas as 'boas coisas'" (1 1, 11, 3; 19, p. 312).
Por meio do processo acima descrito chega-se, enfim, ao surgimento de sujeitos de direito, de pessoas que se afrontam a se medem na relação de direito pessoal de compra e venda/débito e crédito. "Situemo-nos... ao final deste ingente processo, lá onde a árvore faz amadurecer enfim seus frutos, lá onde a sociedade e a eticidade do costume trazem à luz por fim aquilo para o que elas eram tão somente meios: encontraremos, como o fruto mais maduro de sua árvore, o indiv{duo soberano... o homem da duradoura vontade própria, a quem é lícito fazer promessas" (1 1, 11, 2). Correlativamente à capacidade de obrigar-se e responder por si, desenvolve-se a consciência das próprias prerrogativas e direitos, originariamente no domínio das relações de direito pessoal entre comprador I vendedor. Como, porém, para Nietzsche, a representação de prerrogativas de direito e de correlativas obrigações pressupõe o poder de empenhar-se e garantir-se no futuro, disso se depreende que direitos e obrigações somente ganham significação, para ele, quando pensados como integrando a esfera de poder de indivíduos ou grupos. "Direitos são graus de poder reconhecidos e mantidos". "Somente a partir do domínio do poder é que se pode atribuir direitos" (15, Af. 1 12 e Af. 437). Daí decorrem duas importantes conseqüências: em primeiro lugar, que direitos e obrigações são graus de poder cuja atribuição e manutenção exigem reconhecimento. isto é, pressupõem a existência de domínios de relações sociais; em segundo lugar, que tais domínios de relações se originam e desenvolvem segundo o modelo do mais primitivo núcleo no interior do qual se originaram relações de poder, isto é, no domínio das relações de direito pessoal entre credor e devedor e vendedor e comprador. Desse modo, pode-se transplantar a primitiva estrutura de relações econômico-jurídicas entre credor e devedor para o âmbito genérico do equilíbrio de forças entre indivíduos e grupos. Daí se origina, para Nietzsche, a forma geral mais elementar da justiça e da eqüidade: tudo tem seu preço, é possível encontrar para qualquer coisa um seu equivalente (Cf. 11, 11, 8). Como direitos e obrigações integram a esfera de poder de seus respectivos titulares, toda lesão de direito originada pelo eventual descumprimento de uma obrigação importa necessariamente em atentado a uma esfera de poder. Para que o equilíbrio de forças necessariamente subjacente a toda obligatio entre sujeitos de direito seja mantido em sua instável integridade, é necessário que toda diminuição do sentido de poder, originada de uma eventual lesão de direito, seja reparada - isto é, paga - por meio de algum equivalente do ato lesivo. Este equivalente do prejuízo - entendido como decréscimo do sentimento de poder - estabelece a mediação entre a lesão do direito e a satisfação reparatório-compensatória. Como reparação do prejuízo, obtém-se uma satisfação e, conseqüentemente, uma restauração da integridade da lesionada esfera de poder. Nos tempos pré-históricos da eticidade do costume, esta função de equivalente compensatório geral, por cuja mediação são mantidos e restabelecidos equilíbrios de força entre indivíduos e grupos segundo a matriz de relação contratual de débito e crédito, é desempenhada, para Nietzsche, pela crueldade. O equivalente geral do prejuízo originado pela lesão de um direito é encontrado na vingança (Vergeltung), esta compreendida como retribuição e pagamento e consistindo na prática de uma ação específica que tem por base a crueldade: a ação de causar dor ou infligir sofrimento. O devedor inadimplente - que infringiu ou quebrou a norma - deve sofrer dor causada mediata ou imediatamente pelo credor lesado, como reparação compensatória do prejuízo advindo da infração. "Esclareçamos a lógica de toda essa forma de compensação: ela é bastante estranha. A equivalência é dada pelo fato de que em lugar de uma vantagem diretamente equilibrada com o prejuízo (quer dizer, em lugar de uma compensação em dinheiro, terra, posses de alguma espécie), ao credor se lhe concede, como restituição e compensação, uma espécie de sentimento de bem estar... a voluptuosidade de faire le mal pour le plaisir de le faire... A compensação consiste, pois, em uma remissão e em um direito à cureldade" (1 1, 11, 5). Esta retribuição compensatória repõe o equilíbrio de forças no seu status quo ante. As categorias elementares do direito penal se determinam, para Nietzsche, como modos de exercício regrado da crueldade, relativamente fixado como procedimento normativizado e sistemático que tem por base um cálculo minucioso de equivalentes e prejuízos. A regra fundamental do hipotético direito pré-histórico se formula, para Nietzsche, sobre o fundamento de uma obscura equivalência entre o exercício da crueldade, implicada na ação de causar dor através do castigo, e a reparação do prejuízo advindo do inadimplemento de uma obligatio. Para resolver o problema desta obscura equação pré-histórica entre castigo e prazer, Nietzsche investiga o papel desempenhado pela crueldade nos destinos da cultura e da civilização. Para ele, esta equação se esclarece se se tem em conta o papel desempenhado pela recusa à satisfação instintiva (Triebverzicht) na gênese do processo civilizatório. Somente a partir do exame do fenômeno da recusa à satisfação instintiva e da espiritualização dos assim chamados "antigos instintos da liberdade" (11, 11, 16) - basicamente, portanto, dos instintos agressivos - é que se desvenda o enigma da equivalência entre dor e prazer. Precisamente com relação à categoria fundamental do "Triebverzicht" impõe-se uma comparação esclarecedora entre as gêneses do processo civilizatório escritas por Nietzsche e por Freud.
É certo que para Freud, pelo menos para o Freud do período de Totem e Tabu, o ato inaugural do processo civilizatório é desencadeado num paroxismo de crueldade irrefreada, como parricídio seguido de antropofagia. Com isso, o exercício da crueldade - neste contexto tomado como sinônimo de agressividade - se inscreve positivamente como desencadeante da transformação de onde resultarão as primitivas organizações sociais. "... Um dia os irmãos expulsos se juntaram, mataram e devoraram o pai, pondo fim, dessa maneira, à horda paterna. Unidos, ousaram e conseguiram aquilo que a cada um deles isoladamente não seria possível. (Talvez um progresso cultural, a posse de uma nova arma, lhes tenha dado o sentimento de superioridade). Tratando-se de selvagens canibais, é natural que tenham devorado o assassinado. O pai tirânico foi certamente o temido e invejado modelo de cada um dos membros da irmandade. Ao devorá-lo, realizaram a identificação com ele e cada um se apropriou de uma parte de sua força. A refeição totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria a repetição e o memorial comemorativo deste ato memorável, criminoso, com o qual tanta coisa começou, as organizações sociais, as restrições éticas e a religião" (3, p. 146).
É verdade que a condição anterior do exercício do ato criminoso com o qual se originaram as primitivas organizações sociais reside na expulsão dos irmãos adultos da horda primitiva pelo pai ciumento, brutal e prepotente. Em última instância, é a disputa pela posse sexual da mãe e das mulheres da horda paterna que determina tanto a expulsão quanto o assassinato. Pode-se dizer que, em Freud a positividade da ação agressiva é duplamente matizada: de um lado, porque ela irrompe de um fundo não agressivo essencialmente erótico; de outro lado, porque este episódico exercício inicial da crueldade é imediatamente negado depois da execução, a virulência contida dos impulsos agressivos encontram condições de exercícios apenas na substituição compensatória. "A sociedade se funda agora na culpa comum (Mitschuld) pelo crime cometido em comum, a religião sobre a consciência de culpa (Schuldbewusstsein) e sobre o remorso pelo crime. A eticidade (SittlichJceit) em parte sobre as necessidades (Notwendigkeiten) dessa sociedade, em parte sobre as expiações (Bussen) exigidas pela consciência de culpa" (3, p. 150). Apesar de Freud notar expressamente que "a religião do Totem não compreende apenas expressões de remorso e a tentativa de conciliação, porém também se presta à lembrança do triunfo sobre o pai" (3, p. 149) - com o que se vislumbra ainda algum resíduo de atuação positiva dos instintos agressivos -, não se pode negar, todavia, que a satisfação desse modo obtida só pode ocorrer via sublimação e substituição, de modo que os primitivos impulsos agressivos se encontram separados de suas condições naturais de realizaç.
"Se os irmãos se uniram para subjugar o pai, cada um tomou-se e, então, rival do outro em relação às mulheres. Cada um teria querido tê-las todas para si, como o pai, com o que a nova organização teria perecido na guerra de todos contra todos. Não havia mais entre eles nenhum mais forte (Überstãrke), que pudesse tomar o papel do pai... Com isso nada mais restava aos irmãos, se quisessem viver juntos,... senão a instituir a proibição do incesto, com o que todos renunciavam ao mesmo tempo às mulheres desejadas, por causa das quais sobretudo eles tinham eliminado o pai. Eles salvaram desse modo a organização que os tinha fortalecido e que pode ter se fundado em sentimentos e práticas homossexuais, que podem ter se estabelecido entre eles no tempo da expulsão" (3, 148).
Considerando desse ponto de vista a gênese do processo civilizatório segundo Freud, pode-se dizer que, a despeito da inegável presença efetiva da crueldade e da agressividade como desencadeantes do processo e da extraordinária semelhança de certas figuras de pensamentos existentes entre Nietzsche e Freud. a civilização é, para Freud, obra exclusiva de Eros, permanentemente em guarda contra os ameaçadores assaltos sempre possíveis de seu poderoso inimigo: o instinto agressivo. Cultura é, portanto, "um processo a serviço de Eros que desejaria reunir indivíduos isolados, mais tarde famílias, depois tribos, povos, nações em uma grande unidade, a Humanidade. Nós não sabemos por que é que isso deva acontecer; isso seria precisamente a obra de Eros. Os grupos humanos devem ser libidinosamente ligados entre si: a necessidade (Notwendigkeit) apenas, as vantagens da comunidade de trabalho, não os manterão juntos. A esse programa da cultura se contrapõe, porém, o impulso agressivo natural do homem, a hostilidade de um contra todos e de todos contra um" (4, p. 481) (Nota G).
Da mesma fonna que Freud, também Nietzsche situa a renúncia à satisfação instintiva (Triebverzicht) na raiz das primitivas coletividades humanas. Porém, ao tratar dessa renúncia, Nietzsche não atribui preponderância a Eros, cujos representantes pulsionais, inibidos em suas condições naturais de satisfação, encontram-na por intermédio de formações substitutivas sublimadas, enquanto que os instintos agressivos devem pennanecer mantidos sob guarda e vigilância pennanente, como o outro absoluto e absolutamente hostil do impulso civilizatório. Para Nietzsche é a renúncia ao exercício natural das mais poderosas pulsões agressivas - dos "antigos instintos de liberdade" do animal errante - que constitui o elemento nuclear do processo de civilização. É certo que também para Nietzsche este processo se realiza, em parte, por meio de satisfação substitutiva e da sublimação: "Em Para Além de Bem e Mal... e já antes em Aurora...apontei com dedo cauteloso para a espiritualização e divinização (Vergottlichung) sempre crescentes da crueldade, que perpassam toda história da cultura superior (e, tomadas em um sentido importante, inclusive a constitue.m)" (l I, lI, 6). Porém é necessário insistir em que, para Nietzsche, a civilização, enquanto processo de domesticação do animal-homem, é algo que se institui e consolida exclusivamente por meio de um prodigioso e tenaz exercício de crueldade. A transfonnação do animal livre e errante em animal social não se processou por meio de uma "modificação gradual ou voluntária, nem como um crescimento orgânico no interior de novas condições, mas como uma ruptura, um salto, uma coação, uma inevitável fatalidade, contra a qual não houve luta nem sequer ressentimento... a inserção de uma população até então não sujeita a fonnas nem a inibições em uma fonna rigorosa (foi) iniciada com um ato de violência e levada até seu final exclusivamente com puros atos de violência" (l I, lI, 17). Os instintos agressivos são, para Nietzsche, sobretudo uma energia positiva de assimilação e assujeitamento (Überwaltigung); é por meio de seu ilimitado exercício que se obtém a transfonnação do explosivo caos instintivo do animal-hbmem em ser social, submetido a fonnas rígidas, inibições, disciplinas e regramento. Este exercício positivo da crueldade exteriorizada está, no entanto, irresistivelmente condenado a desaparacer tão logo se obtém como resultado a "regularização" do tipo homem, pois que a continuidade deste exercício despertaria inevitavelmente a primitiva bellum omnia contra omnes, com o que a própria obra da civilização estaria condenada a perecer imediatamente depois de seu aparecimento. Privados, de modo violento e abrupto, de suas condições naturais de satisfação, "aqueles velhos instintos não tinham deixado, de um golpe, de reclamar suas exigências! Apenas que resultava difícil e poucas vezes possível dar-lhes satisfação: foi principalmente necessário procurar novas satisfações, por assim dizer, subterrâneas" (l I, lI, 16). Essas novas condições subterrâneas de satisfação dos impulsos agressivos se detenninam. como uma fatal inversão de suas condições naturais de exercício. Com efeito, a hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição, originalmente voltados para o o mundo exterior, são forçados a procurar novas e subterrâneas condições de satisfação; em outras palavras, todas essas forças instintivas só encontram condições de exercício internalizado". Todos os instintos que não se descargam para fora voltam-se para dentro - é isso que eu denomino interiorização do homem: é somente com isso que cresce no homem aquilo que mais tarde se denomina sua 'alma'. O inteiro mundo interior, originariamente delgado como algo retesado entre duas peles, separou-se e aumentou, adquiriu profundeza, largura, altura, na medida em que a descarga do homem para fora foi obstruída". (1 1, 11, 16; 19, p. 318). O principal efeito dessa interiorização é que os antigos instintos do animal livre e errante passam a ser dirigidos contra o próprio homem; compreende-se, portanto, que as "poucas ocasiões" em que é possivel satisfazê-los segundo suas condições naturais de exercício sejam experimentados com intenso primitivo, ao qual é atribuído extraordinário valor. Compreende-se também que o primitivo direito penal tenha podido cumprir uma função compensatória, servindo de ocasião para a satisfação substitutiva dos instintos agressivos:
"Ver sofrer produz bem estar; fazer sofrer produz mais bem estar ainda - esta é uma tese dura, porém é um axioma antigo, poderoso, humano, demasiado humano, que, além disso, talvez seja subscrito pelos próprios macacos; pois se conta que, na invenção de crueldades, eles prenunciam em grande medida o homem, e, por assim dizê-lo, o 'preludiam'. Sem crueldade não há festa: assim o ensina a mais antiga, a mais longa história do homem - também na pena há muitos elementosfestivos!" (11, 11, 6).
Assim, à crueldade é atribuído, ao longo da mais antiga história da espécie humana, o raro e incomparável valor extraído da inteireza da força e do prazer. Destarte, pode-se então compreender como e porque o exercício da crueldade pode passar a servir de equivalente geral investido no regramento das contra-prestações entre credores e devedores. Por meio dessa equivalência se obtém a reparação do prejuízo causado pelo devedor inadimplente e, concomitantemente, se processa a mediação entre sucessivas transposições e reinvestimentos desta matriz de relações obrigacionais, partindo de suas condições originárias de exercício - circunscritas ao domínio das relações contratuais de conteúdo econômico jurídico -, até sua inscrição no âmbito de relações de natureza muito mais variada e complexa. A distância que separa a noção de conteúdo jurídico de dever (Schulden) da noção moral de dever ou culpa (Schuld) recobre a trajetória percorrida pela humanidade partindo da tosca representação do cumprimento de um dever de conteúdo jurídico-econômico, por meio da realização exteriorizada de uma ação ou abstenção, para chegar à noção puramente interior de um sentimento de dever moral, à idéia de "santidade do dever" (11, 11, 6). Esta trajetória pode ser reconstituída por meio da série de transposições e re-interpretações por que passou a primitiva matriz de relações cbntratuais entre credor e devedor/comprador e vendedor. A segunda dissertação de Para a Genealogia da Moral constitui sobretudo um esforço de recuperação desta cadeia de transposições, conduzindo das primitivas relações implicadas na venda e no comércio às fonnas supremas da moralidade e do dever, tais como reconhecidas no ocidente. A reconstituição dos elos desta cadeia se processa segundo uma metodologia própria, orientada por um ponto de vista c apital de metódica histórica, formulado por Nietzsche nos termos seguintes: "a causa do surgimento de uma coisa e sua utilidade final, seu emprego e ordenação de fato em um sistema de fins estão toto coelo um fora do outro '" algo existente, algo que de algum modo se instituiu, é sempre interpretado outra vez por uma potência que lhe é superior para novos propósitos, requisitado de novo, transformado e transposto para uma nova utilidade... a história inteira de uma 'coisa', de um órgão, de um uso, pode ser, dessa forma, uma continuada série de signos de sempre novas interpretações e ajustamentos, cujas causas mesmas não precisam estar em conexão entre si, mais, antes, em certas circunstâncias, se seguem e se revezam de um modo meramente contingente" (11, lI, 12; 19, p. 315 - 6). Diante deste ponto de vista capital de metódica histórica seguido por Nietzsche em sua genealogia da moral, deve-se renunciar à tentação de tomar a cadeia de transposições a seguir reconstituída como se nela se descrevesse a trajetória de uma linearidade sem lacunas, ou como se fossem seus elos constitutivos principais equivalentes e etapas necessárias de uma progressão natural dirigida à realização de um fim previamente fixado.
A obligatio contratual entre vendedor e comprador/credor e devedor - acompanhada da correlativa capacidade psicológica de fazer preços, encontrar equivalências, medir, apreciar, comparar - constitui para Nietzsche, conforme já se afirmou anteriormente, o grau mais baixo das formas sociais de organização e associação humanas. Nietzsche chega a estabelecer uma relação etimológica entre os termos 'Mensch' (homem) e manas, na qual pretende perceber uma ressonância ancestral de um suposto sentido originário de fonte emanativa de valor (Cf. 11, lI, 8). A forma mais incipiente das relações pessoais faz-se acompanhar, para Nietzsche, necessariamenrte, da faculdade de medida e avaliação e se determina como "relação contratual entre credor e devedor, que é tão antiga quanto a existência de 'sujeitos de direito' e que, por sua vez, remete às formas básicas de compra, venda, troca, comércio e tráfico" (l I, 11, 4). Não se trata aqui, portanto, de uma esfera de relações entre pessoas que se regesse por princípios ou critérios transplantados de outros domínios de "sociabilidade". "Compra e venda, com todo seu aparato psicológico, são mais antigos do que os próprios inícios de quaisquer formas de organização e ligas sociais: foi, pelo contrário, da mais rudimentar das formas do direito das pessoas que o sentimento germinante de troca, contrato, dívida, obrigação, quitação, foi transposto para os mais grosseiros e incipientes complexos comunitários (em sua relação com complexos similares), ao mesmo tempo que o hábito de comparar potência com potência, medi-las, calculá- las (1 1, lI, 8; 19, p. 313). Esta primeira transposição consiste, portanto, numa generalização da forma mais rudimentar das relações de direito pessoal, que assim é transporta para o domínio de relações supra-individuais mantidas entre complexos comunitários incipientes e grosseiros. Com isso se processa uma nova interpretação da obligatio primitivamente vigente no âmbito das relações de direito pessoal, interpretação que se caracteriza, sobretudo, por seu efeito generalizador: o que se limitava ao domínio privado das relações entre pessoas passa a ser aplicado para regular o plano das relações entre complexos comunitários, com o que estes assumem status de sujeitos de direito. Correlativamente, generaliza-se também o conteúdo da primitiva obligatio contratual: doravante tudo é passível de ser intercambiado por um seu equivalente, não apenas aquilo que imediata e usualmente pode prestar-se a objeto de compra ou venda; com isso se ascende a uma primeira representação de equivalência geral, segundo a qual "toda coisa tem seu preço". Com base nesta representação se obtém, para Nietzsche, "o mais antigo cânom da justiça, o início de toda 'bondade', de toda 'eqüidade', de toda 'boa vontade', de toda 'objetividade' sobre a terra. Justiça, nesse primeiro grau, é a boa vontade, entre os que têm potência mais ou menos igual, de se acomodarem uns aos outros, de, por meio de um igualamento, voltarem a se 'entender' - e, em referência aos que têm menor potência, coagi-los, abaixo de si, a um igualamento" (lI, lI, 8; 19, p. 314).
SEGUNDA TRANSPOSIÇÃO
Como conseqüência da generalização supra mencionada, transformam-se os mais rudimentares e incipientes complexos comunitários em sujeitos de direito. A partir de então toma-se inevitável que passem a se relacionar como tais não apenas no que respeita a complexos semelhantes, como também com relação aos indivíduos e grupos de indivíduos que os integram, de modo que o plano das relações internas entre coletividade e indivíduos passa se regrar segundo o modelo das relações contratuais entre credor e devedor. Trata-se, portanto, de um plano de relações recíprocas, cujo conteúdo é formado por prerrogativas de direito e obrigações. Com relação aos indivíduos, a coletividade se comporta como poder protetor e credor de determinadas obrigações. Sua tarefa consiste, sobretudo, na proteção dos indivíduos contra as forças da natureza e contra o arbítrio dos demais indivíduos; compete-lhe em especial a tarefa de impedir a todo custo o ressurgimento da guerra de todos contra todos. Aos indivíduos compete, correlativamente, prestar obediência às regras e ditames obrigatórios da coletividade; os indivíduos estão, desse modo, obrigados ao cumprimento da palavra empenhada não apenas junto a outros particulares, como também com respeito às normas da coletividade. Todo desrespeito às prescrições da comunidade, todo desvio das regras de conduta instituídas pela coletividade equivale a uma lesão de sua esfera de poder e, conseqüentemente, a uma ameaça à sua existência. Tal lesão pertubadora do equilíbrio interno de forças deve ser reparada por meio de um seu equivalente. Na pré-história da espécie humana, pena e castigo funcionam também como equivalente reparatório da desobediência às regras coletivas de conduta. Uma vez que à crueldade exteriorizada nas penas e castigos é atribuída, nos obscuros começos da epopéia humana, raro e elevado valor, podem as penas e castigos cumprir função reparatória da inadimplência de obrigações para com a coletividade. Não retribuindo o indivíduo, sob o modo da obediência, as vantagens que recebe da vida em comum, "a comunidade, o credor enganado se fará pagar da melhor maneira que puder, com isso se pode contar. O que menos importa aqui é o dano imediato, causado pelo danificador: para além do dano imediato, o delinqüente é antes de tudo um infrator, alguém que quebrou, frente à totalidade, o contrato e a palavra com respeito a todos os bens e comodidades da vida em comum de que até então havia participado. O delinqüente é um devedor que não apenas não retribui os créditos e vantagens que lhe foram dados, como ainda atenta contra o credor: por isso perde, a partir de então, como é justo, todos aqueles créditos e vantagens e, ademais, se lhe recorda a importância que poss�em tais bens. A cólera do credor prejudicado, da comunidade, o devolve ao estado selvagem e sem lei, do qual até então estava protegido: expulsa-o para fora de si - e agora pode descarregar sobre ele toda sorte de hostilidade" (1 1, lI, 9; p. 314 - 5). No interior das mais rudimentares coletividades, equivale a imposição de penas e castigos a uma restituição do culpado ao selvagem estado de natureza, ao seu banimento para fora dos limites da coletividade, apaziguando-se a fúria decorrente da lesão do direito através da exteriorização de crueldade. Por meio dessa exteriorização restaura-se a esfera de poder da coletividade, lesada pela desobediência de indivíduos ou grupos. Esta aparece, então, como credor lesado, e encontra reparação compensatória do seu prejuízo na prática ostensiva de atos que demonstram seu poder; na medida em que a imposição de penas equivale a uma prova da eficácia e vigor do poder da coletividade, compreende-se que as primitivas ordenações penais adquiram aspectos tanto mais terrificantes quanto mais incipientes e frágeis sejam os laços sociais, e, conseqüentemente, quanto mais ameaçada em sua existência e esfera de poder esteja uma comunidade. Nesses tempos pré-históricos, a coletividade recusa ao "infrator" - àquele que quebra sua promessa em relação à totalidade - o extraordinário privilégio da vida protegida e assegurada, precisamente aquilo que constitui, nos limiares da civilização, o mais valioso dos privilégios: O direito de invocar para si a proteção da coletividade contra as potências da natureza e o arbítrio dos semelhantes. Nos termos desta re-interpretação da matriz de direito pessoal entre credor e devedor, figuram, doravante, de um lado os particulares como detentores do direito à proteção pela coletividade e devedores de obediência incondicional às normas e regras de conduta instituídas por ela; por outro lado, a própria coletividade figura como credor supra individual. Quanto m ais ameaçada em sua integridade esteja uma coletividade, tanto mais cruel e assustador se configurará o seu sistema de defesa: a rudeza dos sistemas penais está em relação direta com a fragilidade dos laços sociais e, conseqüentemente, da esfera de poder de uma coletividade: "Se o poder e a auto-consciência de uma comunidade crescem, então se suaviza também sempre o direito penal; toda debilitação e todo perigo um pouco grave da primeira voltam a fazer aparecer formas mais duras do segundo" (l I, lI, 10).
A primitiva relação contratual de direito privado que se estabelece entre credor e devedor passa a ser objeto de uma profunda reestruturação, ao transplantar-se para um domínio inteiramente diverso de relações supra-pessoais: aquelas que se estabelecem entre as gerações presentes e as ancestrais. As relações entre os indivíduos e seus antepassados passam a se regular, desse modo, segundo o modelo da obligatio resultante do crédito e do débito, enriquecida com novas dimensões, necessarimente emergentes desta re estruturação. No interior das formas mais embrionárias de comunidade - em especial no seio de comunidades de estirpe fundadas no parentesco sangüíneo -, a figura do ancestral comum passa a ser interpretada como a do responsável pela doação do mais precioso dos bens, precisamente a vida protegida e a prosperidade asseguradas pela coletividade. Deste valiosíssimo legado se origina, para as subseqüentes gerações, a consciência de estarem obrigadas a uma retribuição por meio de um equivalente aproximado. Ocorre que a dívida resultante dessa doação possui características especialíssimas e, por assim dizer, efeitos permanentes, pois que os resultados benéficos do legado recebido se prolongam e desdobram na prosperidade ulterior e no acréscimo de poder das primitivas comunidades. Daí decorre também que os ancestrais comuns passam a ser vistos como espíritos protetores que velam pela segurança, bem estar e prosperidade de seus filhos, donde resulta que a todo fortalecimento do sentimento de poder de uma comunidade corresponde uma intensificação do sentimento de obrigação para com o ancestral comum, cuja figura se vai aos poucos divinizando, até se transformar em divindade doméstica. "Reina aqui a convicção de que a estirpe subsiste graças apenas aos sacrifíc ios e às obras dos antepassados - e que é necessário que isso seja pago com sacrifício e com obras: se reconhece assim uma dívida (Schuld) que cresce constantemente pelo fato que os antepassados, que sobrevivem como espíritos poderosos, não deixam de conceder à estirpe novas vantagens e novos préstimos devidos à sua força" (l I, lI, 19). Este sentimento de uma dívida permanente tem como conteúdo uma obligatio de natureza jurídica e não uma simples vinculação afetiva; de tempos em tempos, e em condições especialíssimas, impõe-se uma espécie qualquer de prodigiosa indenização e resgate geral, sob a forma, por exemplo, dos sacrifícios de sangue. Dado que o conteúdo de uma tal obrigação produz efeitos perduráveis, seus modos de resgate e retribuição adquirem formas complexas e espiritualizadas. Aos antepassados só se pode retribuir adequadamente com obras e sacrifícios, isto é, segundo a modalidade do culto sacrificial, da reverência, veneração e, sobretudo, da obediência, pois todos os costumes e preceitos das comunidades são ordens e comandos ditados pelos antepassados. Esta re-interpretação do modelo primitivo das relações contratuais entre credor e devedor torna possível o surgimento de uma espécie de obligatio cujo conteúdo consiste, da parte do devedor, na prestaçao de obediência e culto sacrificial (em determinadas condições até mesmo na prática do auto-sacrifício a um credor divinizado). Apesar do incremento desta dimensão religiosa, esta obligatio tem sentido eminentemente jurídico; seu cumprimento não se torna exigível por razões de piedade e sim como modo de contra-prestação, como pagamento e resgate. Nietzsche se preocupa, neste contexo, em mostrar como a transposição da matriz de relações de direito privado entre devedor e credor se processa, no início, no interior das comunidades de estirpe baseada nas relações de parentesco sangüíneo, para ampliar-se em seguida, estendendo-se a esferas de relações sociais mais amplas e complexas. As relações dos membros da estirpe para com o ancestral comum são interpretadas como sendo congêneres da contra-prestação jurídica exigível em virtude do recebimento de um bem ou vantagem. Veneração e louvor lhe são devidos como retribuição, pagamento e resgate.
Tem-se aqui certamente a noção de uma dívida para com a divindade, porém a relação que se estabelece entre as partes as mantém como exteriores umas às outras. À figura da divindade protetora da comunidade de estirpe subjaz o credor que exige, a título de pagamento e retribuição, o cumprimento de uma obrigação de natureza especial; quanto mais poderosa e próspera a estirpe, tanto mais ingente o dever de obediência; quanto mais são sentidos como valiosos os benefícios da vida em comunidade, tanto maior se toma a dívida contraída com o poderoso ancestral. "A história nos ensina que a consciência de ter dívidas com a divindade não se extinguiu nem sequer depois do ocaso da forma organizativa da 'comunidade' baseada no parentesco sangüíneo; do mesmo modo como a humanidade herdou os conceitos 'bom' e 'mau' da aristocracia de estirpe (juntamente com a tendência básica desta a estabelecer hierarquias), assim recebeu também, com a herança das divindades da estirpe e da tribo, a herança do peso de dívidas não pagas e do desejo de satisfazê-las. (a transição é formada por aquelas vastas populações de escravos e servos de gleba que, por coação ou servilismo e mimicry, se adaptaram ao culto dos deuses de seus senhores: a partir delas essa herança se esparma em todas as direções)" (1 1, lI, 21).
Este nível de re- interpretação não se apresenta apenas como possibilitando uma generalização da obligatio de direito pessoal entre credor e devedor. Aqui intervém uma transformação qualitativa desta relação que a transfigura em sua natureza e funcionamento. Aqui se leva a efeito uma interpenetração entre o que Nietzsche denomina má-consciência (schlechtes Gewissen) e a mencionada obligatio (Cf. l I, lI, 21), sendo que esta última é aqui apropriada pela má-consciência. Má consciência - aqui tomada como sinônimo de consciência da culpa ou remorso de consciência - é uma formação originada ao longo do processo de interiorização e espiritualização dos "antigos instintos da liberdade", do qual já cuidou anteriormente. Como figura psíquica, a má-consciência é constituída pela vontade de causar dano a si mesmo, de afligir-se de modo permanente e, desse modo, criar condições "subterrâneas" para a vivência espiritualizada de uma crueldade voltada para o interior do próprio homem. Sob forma do auto-sacrifício e da tortura interior, encontram condições de exercícios justamente as poderosíssimas correntes pulsionais agressivas, cuja vivência exteriorizada fora tomada impossível pela inibição advinda do constrangimento à vida social. A violência irresistível, qua atua de modo grandioso nos artifícos dos "Estados" mais primitivos, naqueles organizadores natos, "esta força construtora de estados é, com efeito, a mesma que aqui, mais interior, menor, amesquinhada, reorientada para trás... se cria a má-consciência e constrói ideais negativos; é cabalmente aquele instinto de liberdade (dito em meu vocabulário: a vontade de poder): só que a matéria na qual se descarrega a natureza conformadora e violenta daquela força é aqui justamente o próprio homem, seu inteiro, animalesco, velho eu e não... o outro homem, os outros homens" (1 1, 11, 18). Compelido à vida em comum no interior de rígidas formas sociais, o "animalesco, velho eu" do animal-homem teve que se privar da satisfação natural de seus mais vigorosos instintos, justamente daqueles que constituiam seu prazer animal e sua terribilidade (Cf. 11, 11, 1 6). A esta renúncia à satisfação instintiva corresponde a primitiva inibição imposta ao vigoroso domínio pulsional que arrastava os semi-animais errantes humanos incessantemente às volúpias do ataque, da perseguição, da vida nômade e aventurosa. Impedidos de exteriorizar-se pela via da ação motora dirigida contra outrem, estas vigorosas correntes instintivas carecem de satisfação compensatória, de vez que, como afirma Nietzche, não deixaram de "reclamar as suas exigênias" como efeito da repressão. Nietzsche entende por sublinhação a satisfação compensatória das exigências das energias instintivas, obtida por meio da aliança com a imaginação. Por esse meio vêm à luz formações psíquicas de extremo refinamento e complexidade. Impedida de se exercer como assujeitamento (Überwiiltigung) do mundo exterior, a natureza conformadora e violenta de tais cargas instintivas se volta contra o próprio homem, interiorizando-se, intemalizando-se e. com isso, dando origem àquilo que Nietzsche denomina "seu mundo interior" (Cf. 11, 11, 1 6). É a energia desta vontade intemalizada de fazer o mal e causar dor, energia que escava seus canais de escoamento nas profundezas do homem, que se apropria da matriz j urídico obrigacional da obligatio de direito privado entre credor e devedor, nela investindo uma nova função, um novo sentido, interpretando-a a partir de seu próprio ponto de vista. Ganhando cada vez mais profundidade e intensificando-se progressivamente ao sublimar se em formas e figuras cada vez mais refinadas e espirituais, esta 'maldade' interior traz consigo uma completa transformação da natureza primitivamente econômico-jurídica da relação pessoal oriunda do débito e do crédito. O que primordialmente era um obligatio de natureza jurídica se transfigura em dever ou culpa moral. Este efeito é obtido através da internalização das relações obrigacionais decorrentes do débito e do crédito, mudando-se a representação de uma obrigação exterior num sentido permanente de dever. "Agora é necessário fechar-se, de modo definitivo; de um modo pessimista, justamente a perspectiva de um resgate definitivo; agora o olhar deve-se deter, rebater contra uma férrea impossibilidade; agora aqueles conceitos de 'culpa' e de 'dever' devem retomar para trás" (11, 11, 21). No curso desse processo as noções de divida e obrigação são re-interpretadas em duas direções complementares: a) na direção da figura do devedor: este se sente culpado por vivenciar em si - subterrâneos, mas vigorosos - precisamente aqueles antigos "instintos da liberdade", cuja vivência exteriorizada se toma progressivamente mais difícil na medida em que se consolidam as formas sociais. "Aquela vontade de auto tortura, aquela posposta crueldade do animal-homem interiorizado, afugentado para o interior de si mesmo, encarcerado no 'Estado' com a finalidade de ser domesticado, que inventou a má-<:onsciência para causar dano a si mesmo, depois que a via mais natural de descarga deste causar-dano tinha sido bloqueada - este homem da má-consciência se apoderou do pressuposto religioso para levar seu próprio auto-martírio até sua mais horrível dureza e acritude. Uma dívida com Deus: este pen samento se converte em instrumento de tortura" (1 1, lI, 22). É desse modo que esta vontade de auto-tortura re interpreta a figura do devedor: o indivíduo é culpado precisamente por pulsarem nele aqueles inextirpáveis instintos do semi-animal seivagem e errante, pulsões nas quais reconhece o mal e a maldade em si, de modo a operar-se tamanha extensão a aprofundamento da vontade de auto-flagelação que, conseqüentemente, à permanência eterna de uma dívida que não se pode pagar, impõe-se a necessidade de uma expiação eterna; b) na direção da figura do credor: paralelamente ao processo supra descrito, se re interpreta a figura do credor; uma vez que a origem da culpa radica na própria natureza maligna do homem, não pode mais sua existência, tal como fora legada pelos ancestrais, ser vivenciada como o mais precioso dos bens. Ela deve, ao contrário, ser interpretada como castigo e expiação inflingida à humanidade a título de pena pela impiedade de um crime de desobediência perpetrado pelos primitivos ancestrais. O verdadeiro credor não é mais o pai comum da humanidade e sim um Outro absoluto da natureza humana. O Deus credor da dívida é captado pelo devedor como a mais extremada antítese "que é capaz de encontrar para seus autênticos e insuprimíveis instintos de animal" (1 1, 11, 22), de modo que esses mesmos instintos são re-interpretados como "dívida para com Deus (como hostilidade, rebelião, insurreição, contra o 'Senhor', o 'Pai', o progenitor e o começo do mundo); (o devedor) se tenciona na contradição 'Deus e demônio' e todo não que se diz a si mesmo, à natureza e à naturalidade, à realidade de seu ser, projeta-o fora de si como um sim, como algo existente corpóreo, real, como Deus, como santidade de Deus, como Deus juiz, como Deus verdugo, como Além, Eternidade, tormento sem fim, inferno, incomensurabilidade de pena e culpa" (11, 11, 22). Também o ancestral humano, outrora objeto de veneração, é re-interpretado como culpado e devedor: "Pense-se aqui na causa prima do homem, no começo do gênero humano, no progenitor deste, a quem agora se maldiz (Adão, 'o pecado original', 'falta de liberdade da vontade'), ou na natureza, de cujo seio surge o homem e na qual agora se situa o princípio do mal ('diabolização da natureza'), ou na existência em geral, que se toma não-valiosa em si (alheamento nihilista da existência, desejo do nada ou desejo de seu 'oposto', de ser-outro, budismo e similares)" (1 1, 11, 21).
Diante do credor agora situado no além, o homem, em sua existência terrena, não é devedor no sentido jurídico, ele é culpado, no sentido moral. A consciência dê culpa adquire com isso uma dimensão inteiramente nova: trata- se de uma consciência e sentimento de dívida permanente, que jamais pode ser resgatada de modo definitivo, pois que a própria existência do devedor é que a origina. A consciência permanente desta inferioridade advinda do sentimento de uma obrigação insatisfeita se toma o aguilhão do morsus conscientiae, e, paradoxalmente, é a consciência e o reconhecimento permanentes dessa inferioridade e desnível entre credor e devedor que constituem doravante a única forma de culto e veneração do credor. Trata-se de reverência à figura espiritualizada do credor sob a forma da consciência de culpa eterna do devedor, que suprime inteiramente o conteúdo jurídico da obligatio contratual de crédito e débito. O que com isso vem à luz não é mais a representação de um dever jurídico, ao qual a relação de exterioridade entre as partes é inerente; a dívida moral é, sobretudo, sentimento de culpa, consciência da justiça e da necessidade da expiação e do castigo; com isso não se paga ou resgata uma obrigação, vivencia-se interiormente, com relação ao credor, uma obligatio que tem a forma de uma vinculação irresolúveI. O conteúdo dessa obrigação se transformou de dívida em sentimento de culpa, e, com isso, transformou-se em "espiritual". Em face da instância superior representada pelo credor, só resta ao devedor a consciência de sentir-se tomado nas malhas de uma vinculação da qual já não se pode resgatar, pois que esta tem origem em sua própria existência. Transformada em sentimento e consciência de culpa, o sentimento de dever moral só pode, paradoxalmente, encontrar alguma satisfação por meio de intensificação paroxística do sentimento de culpa, pois esta contra-prestação "espiritual" se apresenta como o único tributo legítimo e adequado à natureza divina do credor. O tributo do devedor consiste, portanto, na consciência intensificada de uma culpa irresgatáveI. À noção de eternidade da culpa corresponde um maximwn de intensificação da crueldade introjetada sob a forma da vontade de causar dor e sofrimento a si mesmo como modalidades de expiação da culpa. Tal intensificação da consciência de culpa abre caminho para o surgimento de figuras mais sutis da rigidez moral e prepara o surgimento da noção de santidade do dever, na qual se fundem, no interior do próprio devedor - em seu foro íntimo, por assim dizer - as figuras do dever e do credor. Este se confunde, então, com o que há de "divino" no devedor, com sua consciência moral, ao mesmo tempo em que a representação do dever, que nesta se origina, é sentida como sagrada e suprema. Desse modo, são lançados os fundamentos daquilo que mais tarde se transforma na reverência incondicional da lei moral, independentemente de toda autoridade ou coerção externa, bem como de toda promessa de retribuição ou recompensa. Um exercício milenar de autoflagelação toma possível o surgimento da noção de um dever moral sentido como sagrado, fundado numa norma absolutamente imperativa que a consciência se outorga em plena liberdade e cujo cumprimento incondicional exige de si mesma. "Liberdade" significa, então, aos olhos de Nietzsche, um resultado conquistado que toma a forma de uma elevação do "tipo" homem, laboriosamente arrancado à letargia do instante e à cega sujeição ao comando inexorável das pulsõcs.
Nietzsche entende por eticidade do costume o trabalho de autoformação da humanidade levado a efeito durante enormes períodos de tempo que precederam a assim chamada história mundial (Weltgeschichte). "O ingente trabalho do que chamei 'eticidade do costume'... o autêntico trabalho do homem sobre si mesmo no mais largo período do gênero humano, todo seu trabalho pré-histórico. tem aqui seu sentido e sua justificação, ainda que nele residam também tanta dureza, tirania, estupidez e idiotia: com a ajuda da eticidade do costume e da camisa de força social o homem foifeito realmente calculável" (1 1, 11, 2). Por intermédio deste trabalho se instituem, segundo Nietzsche, os fundamentos de relações sociais estáveis. Para ele as relações da sociabilidade com a aquisição de costumes são tão estreitas que um dos termos é, de fato, impensável sem o outro: onde existe uma coletividade, aí existe também, necessariamente, eticidade do costume. Esta se define como imperiosa coerção sob cujo domínio teve que viver necessariamente toda comunidade (Cf. 15, Af. 9 e Af. 14). Desta "mais antiga e originária espécie de moral" (1 1, Pref. IV) provêm todas as formas mais elaboradas de moralidade superior, do mesmo modo que liberdade e autonomia se apresentam como resultados tardios de um esforço brutal de sublimação a que foram submetidas as forças instintivas mais poderosas e anárquicas do animal-homem. Nietzsche define eticidade (Sittlichkeit) em termos de reverência, sentimento de respeito ao costume (Sitte): "Eticidade não é nada outro (portanto, em especial, nada mais) do que obediência a costumes, seja de que espécie forem... Em coisas onde nenhuma tradição manda não há nenhuma eticidade; quanto menos a vida é determinada por tradição, menor se toma o círculo da eticidade" (15, Af. 9; 19, p. 167). Obediência implica, por sua vez, uma relação de força em cujo interior pelo menos dois pólos se determinam com precisão: a instância que obedece, da qual a obediência é exigida, e a instância à qual a obediência é tributada, a quem esta é devida. Eticidade implica, portanto, um modo efetivo de comportamento e relação que supõe a capacidade de fazer ou deixar de fazer aquilo que é prescrito ou proscrito pelos costumes. A noção de eticidade envolve, portanto, a noção de comportamento normativo, ou melhor, a faculdade de agir ou se abster segundo a representação de uma máxima. Na origem da eticidade há que se postular, portanto, apenas a capacidade de determinar a própria ação segundo o comando de uma regra, e não uma espécie qualquer de vocação inata do homem para o Bem e a Virtude, existente em germe como dado da natureza humana. Eticidade não tem, para Nietzsche, como pressuposto e condição senão a faculdade de agir em geral; eticidade não é senão, para ele, uma modalidade de ação, qual seja, ação de obediência à autoridade imperativa do costume. Costumes, acrescenta Nietzsche, se instituem com base na tradição (Herkommen). "O que é tradição? Uma autoridade superior, a que se obedece, não porque ela manda fazer o que nos é útil, mas porque ela manda". (15, Af. 9; 19, p. 167). Costumes aos quais se deve observância e reverência são, destarte, modos tradicionais de agir e avaliar (15, Af. 9; 19, p. 167). Costumes são, portanto, regras de conduta, cuja observância é exigida pela autoridade da tradição; eticidade é, por sua vez, obediência reverente a tais normas da ação. Determinadas perspectivas de interpretação do mundo e orientação do comportamento são isoladas pela tradição sob a forma de usos e costumes, passando a valer como imperativos cuja obediência é exigida no interior de determinada coletividade. Tais visões de mundo expressas como normas de conduta são, essencialmente, pontos de vista de valor com base nos quais são instituídas formas de apreciação das condutas e critérios de medida. Obediência às regras consubstanciadas nos usos e costumes implica, destarte, obediência orientada em relação a valores, obediência exigida pela autoridade da tradição de uma coletividade como um dever ser ou valor.
Estimativas de valor inerentes aos costumes constituem a razão de ser de sua exigibilidade pela autoridade da tradição. A ação praticada em respeito ao comando da tradição se distingue pelo temor e pela reverência prestados a "um intelecto superior que manda, diante de uma potência inconcebível, indeterminada, diante de algo mais que pessoal - há superstição nesse medo. Na origem, toda educação e cuidado com a saúde, o casamento, a arte de curar, a agricultura, a guerra, o falar e calar, o relacionamento com os outros, com os deuses, faziam parte do domínio da eticidade; ela exigia que se observassem prescrições, sem pensar em si como indivíduo" (15, Af. 9; 19, p. 167-8). Garantia da eticidade do costume é, portanto, um poder ou intelecto superior que comanda 'e cujo imperativo exige obediência incondicional; uma potência impessoal que se teme e reverencia. A ação ou omissão exigidas pelos costumes não se explicam prima facie sob o ponto de vista de sua utilidade demonstrada, e sim em virtude do comando daquela autoridade, ou seja, em acatamento de uma ordem superior, cujo propósito não é sequer necessário perquirir: diante desta autoridade e seu imperativo não cabe a pergunta a re�peito do por quê ou do para que da prescrição. No Aforismo 57 de O Anticristo Nietzsche explicita com mais detalhes a natureza desse intelecto que comanda por meio dos costumes *. "Em um determinado ponto da evolução de um povo, a camada mais circunspecta do mesmo, isto é, aquela que é capaz de olhar mais para trás e mais para frente, declara concluída a experiência de acordo com a qual se deve - quer dizer, se podeviver. Sua meta consiste "em recolher a colheita mais rica e completa possível dos tempos de experimento e de má experiência. Por conseguinte, trata-se' agora de evitar sobretudo o continuar fazendo experiências, a perduração do estado fluido dos valores, o continuar examinando, escolhendo, criticando in infinitum. Frente a isto se coloca uma dupla muralha: por um lado, a revelação, quer dizer, a assertiva de que a razão daquelas leis não é de procedência humana, não foi procurada e encontrada com lentidão e erros, mas, por ser de origem divina, é completa, perfeita, não tem história, é uma dádiva, um milagre, foi simplesmente comunicada... Em segundo lugar, a tradição, isto é, a assertiva de que a lei vem existindo desde antiquíssimos tempos, de que colocá-la em dúvida constitui uma impiedade, um crime contra os antepassados" (8, Af. 57).
A autoridade da lei e dos costumes se determina, em última instância, porque foram dados e revelados por Deus; porque sagrados, são também intocáveis. Além disso, esta autoridade já se demonstrou a si mesma ao longo da história, de vez que por ela se regrou ' a vida dos antepassados. Costumes e leis são, portanto, para Nietzsche, prima facie condições de existência, nas quais um povo, num determinado estágio de seu desenvol vimento, reúne e protege os m ais valiosos resulta{ios de suas experiências com o mun do ambiente; costumes, instituições, leis resumem a experiência, a prudência, a sabe doria adquirida no curso de tempos imemoriais e ao longo de sucessivas experimentações (Cf. 8, Af. 57). Por isso mesmo conservam eles a incondicionalidade do imperativo "tu deves", sem ter necessidade de declinar motivos ou razões de utilidade, de vez que se o fizessem, perderiam a autoridade que é condição e pressuposto da obediência (Cf. 8, Af. 57).
Aqui se apresenta uma ocasião extremamente oportuna de efetuar uma aproximação entre a genealogia nietzscheana da moral e as hipóteses antropológicas de A. Gehlen a respeito do homem primitivo. Gehlen vê o caráter essencial das primitivas instituições culturais na luta contra a transitoriedade do homem, de onde se determina como tarefa constitutiva dessas instituições a de proteger e assegurar as conquistas da humanidade contra a influência deletéria da passagem do tempo. Também para Gehlen as instituições primárias da cultura se explicam como tentativas de proteger e conservar contra o decurso do tempo o resultado de experiências coletivas acumuladas. Tanto para Gehlen como para Nietzsche, as instituições primitivas da civilização devem ser entendidas como meios de formação (Gestaltung) e transformação (Umgestaltung) da humanidade. "É verdade que longos intervalos medeiam entre esses períodos de formação - transformação (Gestaltung - Umgestaltung). Então a humanidade faz experiências consigo mesma, em graus até então inexistentes, como no neolítico ou na era atômica" (5, p. 88).
Instituições culturais são, para Gehlen, modalidades de fixar, isolar e proteger os resultados mais valiosos da experimentação secular que a humanidade empreende consigo mesma. Instituições são a atividade humana fundamental cujo propósito consiste em estabilizar o ser humano (menschliches Dasein): "Como é possível estabilizar-se um ser com excedente pulsional (antriebsübershüssiges Dasein), liberto para o mundo ambiente (umweltbefreit), errante (weltoffnen)? Certamente não por meio de doutrinas, cultura ou propaganda, porém somente por meio de instituições é que o ser humano se estabiliza de modo duradouro" (5, p. 42).
Nota-se, portanto, que Gehlen, tanto quanto Nietzsche, privilegia a função estabilizadora das formas elementares da cultura, por meio das quais se toma o ser humano estável, regular, previsível, calculável, a ponto de se poder, a esse respeito, apontar uma estrita complementariedade entre ambos. Assim é que, no mesmo aforismo 57 de O Anticristo, esclarece Nietzsche: "A razão superior de semelhante procedimento" ele se refere à autoridade incondicional das leis e da eticidade - "está no propósito de desalojar a consciência, passo a passo, da vida reconhecida como correta (isto é, provada por uma enorme e bem crivada experiência): de tal modo que se obtenha o completo automatismo do instinto - esse pressuposto de toda espécie de maestria, de toda espécie de perfeição na arte de viver" (8, Af. 57). Encontramos em Gehlen ponto de vista surpreendentemente semelhante a este: "... somente por meio de instituições é que o homem se toma efetivo, durável, regulável, quasi-automático e previsível... Essa essencial função de descarga (Entlastungsfunktion) das motivações subjetivas e das duradouras improvisações que é inerente a todas as instituições é uma das mais prodigiosas das características culturais, pois esta estabilização... se enraiza no coração mesmo de nossas posições espirituais" (5, p. 43). Tal função de descarga (Entlastungsfunktion) inerente às instituições culturais, pela qual estas são liberadas das motivações subjetivas e constantes improvisações, equivale àquilo que Nietzsche pretendia com o "desalojar" (Zurückdrangung) da consciência do domínio da vida "correta". Porém, a despeito de todas essas semelhanças no tratamento das primitivas instituições culturais, não podem ser esquecidas as vigorosas diferenças entre ambos, cujo tratamento não pode encontrar lugar neste escrito. Que seja referida apenas a divergência principal de que para Gehlen não há que se falar numa fase pré-cultural ou pré-histórica da espécie humana, enquanto que Nietzsche define a eticidade do costume precisamente como o trabalho pré-histórico da humanidade consigo mesma. Encerrado o parênteses comparativo, retomemos à abordagem nietzscheana da eticidade do costume.
Costumes são, como já se esclareceu, imperativos de ação porque integram aquilo que Nietzsche denominou de "vida provada por uma enorme e bem crivada experiência"; daí advém sua autoridade: de um lado porque, tendo sido diretamente comunicados por uma instância sobre-humana por meio da revelação, são intocáveis; por outro lado, porque por eles se orientou a vida dos antepassados. Duvidar desta autoridade constitui impiedade; recusar-lhe obediência equivale a sacnlego atentado, eis que ela se funda na revelação e na tradição. Sendo os costumes um bem tão precioso e objeto de veneração, por que razão se demonstrou necessário, no entanto, protegê-los? Por que se é obrigado a erigir ao redor deles fortalezas e muralhas protetoras e assegurar, recorrendo às mais temíveis formas de pena e castigo, que seu comando não seja desobedecido? A razão de ser da necessidade de proteção e segurança dos costumes reside no próprio ser humano, que a eticidade dos costumes pretende modelar, este animal errante (weltoffenen), portanto em si um excedente de energia instintiva liberada (antriebsüberschüssiges. instinktentbundenes Lebewesen, nos termos de Gehlen). As poderosas energias instintivas liberadas do animal-homem são ameaça permanente à estabilização pretendida pelas instituições e à estabilidade das próprias instituições. Tais propriedades das cargas pulsionais humanas, tal como Gehlen as descreve, podem ser, com propriedade, relacionadas às características do que Nietzsche denominou "antigos instintos da liberdade". Crueldade e errância, prazer na destruição, no assalto, na mudança, este rebelde contingente pulsional a que a eticidade do costume procura dar forma e regularidade, se contrapõe de modo permanente a toda tentativa de fixação e estabilização em formas rígidas. Por isso o homem permanece, para Nietzsche, apesar de toda eticidade do costume "... mais enfermo, mais alterável, mais inseguro, mais indeterminado que qualquer outro animal, disso não há dúvida, ele é o animal enfermo: de onde provém isso? É verdade também que ele ousou, inovou, desafiou, afrontou o destino mais que todos os demais animais em conjunto: ele, o grande experimentador consigo mesmo, o insatisfeito, o insaciado, o que disputa o supremo domínio com os animais, a natureza e os deuses" (11, m, 13). Apesar de todo esforço de domesticação e de ostentar o homem moderno a dócil aparência de que nele enfim se conciliaram definitivamente o lado sombrio da besta darwiniana com a pálida delicadeza moral, que "não morde mais" (l I, Pref. VII), o perigo espreita sempre nos subterrâneos da cultura, pois esta não é senão uma "tenra pelinha de maçã sobre um caos incandescente"*. Na instabilidade do "grande experimentador consigo mesmo" reside o supremo perigo para as instituições da cultura, a constante ameaça de sua destruição, o que, para retomarmos por um momento o paralelo com Gehlen, o faz atribuir paradoxal mente à cultura a característica da "improbabilidade": "Daí termos dito que a cultura é ' improvável', ainda que ela pertença à essência do homem, pois ele próprio é o ser im provável, ariscado. É muito lentamente, ao longo de séculos e milênios que... formas inibitórias como o direito, a propriedade, a família monogâmica, a divisão especializada do trabalho moldaram, cultivaram nossas pulsôes e disposições na direção das elevadas, exclusivas e seletivas prerrogativas que podem ser denominadas cultura" (5, p. 1 05).
Para ascender da primitiva anarquia pulsional em direção a elevadas, exclusivas e seletivas prerrogativas da cultura, o animal-homem necessitou estabilizar-se, formar-se, por intermédio de instituições. Desse ponto de vista, os costumes devem ser entendidos como modos e condições de conservação de níveis de vida adquiridos no curso de expe riências milenares. A prodigiosa tarefa da eticidade do costume se determina, para Nietzs che, nos começos sombrios, pré-históricos, da aventura de autoformação da humanidade; é por meio dela que, pela primeira vez, se empreende a tentativa de estabilizar o ser humano, inculcar-lhe algumas das mais elementares exigências da vida em comunidade. "Como se faz no animal-homem uma memória? Como se imprime algo a esse em parte embotado, em parte estouvado entendimento-de-instante, a essa viva aptidão de esqueci mento, de modo que permaneça presente?" (1 1, lI, 3; 19, p. 31 2). A dificuldade extrema da tarefa da eticidade dos costumes se determina em função de ser a aptidão de esquecimento uma /orça ativa no an imal-homem, e não somente uma simples vis inertiae. A aptidão de esquecimento é pensada por Nietzsche como uma faculdade de inibição "ativa, positiva, no sentido mais rigoroso do termo{ (1 1, 11, 1). Contra esta força ativa de esque cimento, que condena o animal-homem a ser nada mais que um embotado entendimento de-instante, do mesmo modo que contra as mais vigorosas correntes instintivas, é que tem que lutar a eticidade do costume. De onde resulta que quanto mais rebelde e poderosa é a energia instintiva que deve ser conformada e ligada, tanto mais cruel e brutal há que ser a força conformadora que sobre ela se emprega. Por esta razão, escreve Nietzsche, o supremo mandamento da civilização é aquele segundo o qual "qualquer costume é melhor do que nenhum costume" (15, Af. 16). Esta é também a razão pela qual, explica Nietzs che, há entre povos primitivos uma modalidade singular de costume, cuja função consiste em "manter de modo permanente na consciência a proximidade ininterrupta do costume, a coerção permanente à prática do costume" (15, Af. 1 6). Que haja entre povos primitivos costumes cujo conteúdo se confunda com a própria eticidade, isto indica, para Nietzsche, que é por meio desta que se instituem e consolidam as mais elementares exigências das sociedades primitivas. Nietzsche obtém, desse modo, uma estrita complementariedade en tre eticidade e sociabilidade: a primeira se determina como obediência devida ao conjunto de nonnas de conduta cuja observância é exigida no interior de uma determinada coletividade, a cuja autoridade e comando não se chegou por meios propriamente dóceis e delicados, nem por intermédio do consenso racional, mas do início ao fim exclusivamente por meio do exercício da violência (Cf. 11, 11, 1 7). Desse modo, a eticidade do costume se determina como o desdobramento pertinaz e meticuloso do gesto de violência inicial com que se institui toda primitiva fonna de vida em comum. No trabalho de modelagem e estabilização que caracteriza a eticidade do costume, pena e castigo desempenham papel fundamental; eles são, para Nietzsche, instrumentos e condições de que a eticidade retira sua eficácia formativa. Por meio deles é que se consegue, enfim, ao longo de um processo lento, criar no animal-homem - à contra corrente de sua faculdade ativa de esquecimento - a faculdade da memória da vontade, pela qual se conserva permanentemente a lembrança da palavra empenhada, pressuposto indeclinável de todo e qualquer sentimento de obrigação. "Imprime-se algo a fogo, para que pennaneça na memória: somente o que não cessa de fazer mal permanece na memória - eis uma proposição mestra das mais antigas (infelizmente também da mais prolongada) de todas as psicologias sobre a terra... Nunca se passou sem sangue, martírio, sacrifício, quando o homem achou necessário se fazer uma memória" (11, lI, 3; 19, p. 31 2). A dor é, portanto, segundo Nietzsche, o mais poderoso meio auxiliar com o qual se inculca a fogo na superfície originariamente embotada da memória a lembrança de uma obrigação; desse modo, as penas corporais primitivas são entendidas por ele como bastiões e cidadelas pelas quais as fonnas mais rudimentares e incipientes de coletividade se protegiam contra as recaídas possíveis do animal-homem nos seus "antigos instintos da liberdade" e garantiam a regularidade do processo de aquisição de costumes. "Aqueles terríveis baluartes com que a organização estatal se protegia contra os velhos instintos da liberdade - os castigos fazem parte, antes de tudo, desses baluartes - acarretaram que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre, errante, se voltassem para trás, contra o homem mesmo" (11, 11, 16: 19, p. 31 8). Uma vez que a eticidade dos costumes e a segurança das condições adquiridas de vida em comum se condicionam reciprocamente, toda rebeldia contra os costumes é experimentada como crime de lesa majestade, crime que abala a esfera de poder da coletividade em seu conjunto e demanda, por conseguinte, expiação coletiva. "Por toda parte, onde há uma comunidade e conseqüentemente uma eticidade do costume, domina também o pensamento de que o castigo por lesar o costume recai antes de tudo sobre a comunidade: aquele castigo sobrenatural, cuja manifestação e limite são tão difíceis de conceber e são sondados com tão supersticioso temor. A comunidade pode compelir o indivíduo a reparar os danos mais próximos que seu ato teve como conseqüência... mas no entanto sente a culpa do indivíduo como sua culpa e leva o castigo como seu castigo: - 'os costumes se tomaram frouxos' - este é o lamento da alma de cada um - ' se tais atos são possíveis'" (15, Af. 9; 19, p. 168). Por esta razão, para Nietzsche, a punição do indivíduo isolado é, nos tempos primitivos da eticidade do costume, relativamente secundária. O efeito punitivo exemplar do castigo primitivo se exerce, sobretudo, em relação à totalidade da comunidade, tão estreita é a correlação entre a eticidade dos costumes e a preservação das condições sociais de existência. Uma vez rompido o equilíbrio das forças SOCiaiS, a Ulllca reparação possível consiste na demonstração visível, tremenda, do poder da coletividade na integridade de seu vigor, com o que se acoberta a incipiente consolidação dos vínculos em que se baseia a coletividade. É por isso que, para Nietzsche, é ingênua e superficial a hipótese corrente dos teóricos do direito e genealogistas da moral, que tomam a consciência do ilícito como pressuposto indispensável da imputação penal. Esta hipótese representa, para Nietzsche, uma inversão dos termos em relação, tal como estes devem ter-se apresentado nas origens da sociabilidade humana. Aí, com efeito, a consciência ou representação mental do ilícito não pode ter constituído base ou ponto de partida para a imposição de penalidades; é, pelo contrário, precisamente por meio da imposição de penalidades e castigos arbitrários e tremendos que se obteve, como resultado tardio, a consciência ou a representação interior de um dever. A consciência do dever em geral se apresenta propriamente como resultado histórico do trabalho formativo levado a efeito pela eticidade do costume; é à barbárie e à violência deste esforço que a cultura superior deve suas figuras mais sublimes, como a consciência do dever e o respeito voluntário pela lei. Quando se considera este processo do ponto de vista de seu objetivo e do seu resultado, en tão se extrai daí o consolo e a justificativa de toda estupidez e barbárie por ele ensejadas. "Situemo-nos... no final do ingente processo, ali onde a árvore faz por fim amadurecer seus frutos, ali onde a sociedade e a eticidade do costume trazem à luz por fim aquilo para o qual elas eram somente meio: encontraremos como o fruto mais maduro de sua árvore o indivíduo soberano, indivíduo igual tão somente a si mesmo, indivíduo que voltou a libertar-se do costume, autônomo, situado acima da eticidade (pois 'autônomo' e 'ético' se excluem)" (1 1, lI, 2). Liberdade e autonomia da vontade se apresentam, portanto, como meta e resultado do esforço titânico da eticidade dos costumes, do trabalho prodigioso de Gesittung (aquisição de costumes), cujo fruto maduro e tardio é a corporificação da liberdade na figura do indivíduo soberano, que apenas na liberdade reconhece a lei da própria vontade. Esta figura luminosa da liberdade conquistada realiza, no entender de Nietzsche, a superação (Aufhebung) da servidão da tirania inerentes à primitiva eticidade dos costumes; transfigurada em liberdade e autonomia, a eticidade do costume termina por cumprir o destino de todas as boas coisas que existiram sobre a terra: auto-suprimir-se (1 1, 11, 10).
4. CONCLUSÃO
Grande parte do esforço realizado neste trabalho consistiu na tentativa de explicitar a noção de "Sittlichkeit der Sitte" na obra de Nietzsche. É certo que, ao longo do trallalho, determinadas comparações com pensadores que cuidaram do mesmo tema se fizeram inevitáveis, mas esta tentativa se determina, essencialmente, como um exercício de interpretação que permanece imanente aos textos de Nietzsche. Talvez fosse agora permitido, entretanto, à guisa de conclusão, perguntar se e em que medida tal noção ainda nos conceme hoje. Existiria alguma relevância na tentativa de explicitação do conteúdo da noção nietzscheana de eticidade do costwne, relevância que não se limitasse ao simples interesse inerente ao dever de ofício de quem se ocupa com a prática da filosofia enquanto disciplina universitária?
Não há dúvida de que o nosso seja um tempo de extrema fluidez e instabilidade dos valores éticos. Tempo em que uma inominável "barbárie civilizada" "faz do ' ser homem' um conjunto de proposições que pode ser modificado ao bel-prazer dos dirigentes políticos mediante o uso da violência" (21, p. 17). Daí porque não se pode negligenciar a pertinência e a lucidez do diagnóstico do nosso tempo presente nos Escritos de Filosofia 11 de Lima Vaz: "As sociedades políticas contemporâneas encontram no âmago da sua crise a questão mais decisiva que lhes é lançada, qual seja a da significação ética do ato político ou a da relação entre Ética e Direito. Na verdade, trata-se de uma questão decisiva entre todas, pois da resposta que para ela for encontrada irá depender o destino dessas sociedades como sociedades políticas, no sentido original do termo, vem a ser, sociedades justas" (22, p. 180).
Daí, da radical idade e incontornabilidade de tal questão provém o interesse e a oportunidade de se retornar a Nietzsche. Seu pessimismo trágico desarma a superficialidade pacificadora que anima uma forma disfarçada de otimismo, consistente em considerar o caos demoníaco das pulsões apenas como o lado obscuro e contingente da natureza humana, cuja irrupção indômita arrisca derrogar o ideal regulativo da totalidade ética, que caracteriza o ser do homem como projeto universal de racionalidade realizada ou a realizar. Este projeto, Nietzsche o enraíza na contingência absoluta e no acaso inquietante do destino das pulsões. Os riscos fatais da aventura humana não são, para Nietzsche, episódicos acidentes de percurso no processo de realização da comunidade ética universal; eles estão presentes a todo momento, de pleno direito, no limiar de surgimento de cada uma das figuras que o homem se dá a si mesmo. Este pessimismo trágico não o impele porém, à amargura e à resignação; não o impede, tampouco, de aceitar os desafios dessa aventura, e, com toda radicalidade, pensar o projeto gratuito e incontrolável de tornar-se homem como inscrevendo-se na clareira insondável das possibilidades imponderáveis. "Criar um animal ao qual seja lícito fazer promessas - não é isto precisamente aquela tarefa paradoxal que a natureza se propôs com respeito ao homem? Não é este o autêntico problema do homem?... " (1 1, 11, 1).
A. Não havendo expressa indicação em contrário, todas as traduções de originais em língua alemã foram feitas pelo autor deste trabalho. Relativamente às obras de Nietzsche, os algarismos arábicos se reportam, em primeiros lugar, à referência bibliográfica e, em seguida, a números de aforismos; algarismos romanos se referem a divisões por capítulos, livros ou dissertações. Os fragmentos póstumos são numerados segundo a edição crítica das obras completas de Nietzsche, indicada na referência bibliográfica
B. A propósito da extrema dificuldade de tradução da fórmula nietzschenana "Sittlchkeit der Siue", escreve Rubens R. Torres Filho: Eticidade ou moralidade, duas palavras que perderam a referência ao signific ado original de costume, que têm por base (ethos em grego, mos em latim). O texto alemão, ao dizer 'Sittlichkeit der Sitte', o evoca muito mais diretamente - é que a língua não perdeu totalmente a memória dessa ligação, tanto que Ética se diz Sittlenehfe (doutrina dos costumes) e já Kant reservava a fundamentação da moral para uma 'Metafísica dos Costumes' (19, p. 167).
C. No § -18 dà segunda dissertação da obra Para a Genealogia da Moral, Nietzsche atribui explicitamente à vontade de poder uma natureza conformadora (jormbildende Natur). Posi ção semelhante à que foi aqui desenvolvida encontra-se em KAULBACH, F. Nietzsches Idu einer Experiment alphilosophie. Kõhn/Wien, 1980. Capo I, n. 2 e 3.
D. Especialmente interessante é a aproximação efetuada por W. Kaufmann entre os conceitos de Aujhebung em Hegel e de Sublimierung em Nietzsche. Cf. KAUFMANN, W. Nietzsche Philosoph - Psychologe; Antichrist. Darmstadt, 1982. Cap 8.
E. Entre os juristas brasileiros clássicos e contemporâneos, cf., por exemplo, BEVlLAQUA, C.: "O campo da ação moral e do direito é o mesmo: - a liberdade humana. O fim a que se destinam, o para que social de sua existência é o mesmo : - sujeitar os indivíduos à finalidade do organismo social. Entretanto estes dois sistemas de normas não se confundem, suas órbitas não coincidem. A moral vive e se desenvolve na sociedade independentemente do Estado. Seus preceitos... não têm uma execução materialmente obrigatória, não são acompanha de coaç ão mecânica. O direito vive no estado, é um dos seus elementos constitutivos e não pode subsistir sem ele. Seus preceitos são assegurados coativamente pelo poder público" (1, p. 55). Cf. também CHAVES, A.: "Constitui preocupação primordial, logo no primeiro ponto, estabelecemos distinção entre as três normas fundamentais do comportamento humano: religião, moral e direito. Desnecessário insistir em que são três ordens de mandamento que somente ao homem se dirigem. As normas de direito são em geral acompanhadas de sanções para prevenir sua desobediência. E a sanção só pode subsistir tendo como pressuposto a responsabilidade, conceito que não podemos relacionar senão com o de pessoa" (2, p. 28).
F. Para facilitar a compreensão terminológica, recorro uma vez mais à preciosa lição de Rubens R. Torres Filho: É esencial para o entendimento do texto assinalar que em alemão esta palavra Schuld significa indiferentemente 'culpa' e 'dívida' - e não por acaso, dirá o filólogo. Schuldner é o 'devedor' e o texto mantém constantemente o duplo sentido, com base no que está dito em seu § 4: 'será que esses genealogistas da moral até agora não sonharam sequer de longe que, por exemplo, aquele conceito moral capital de 'culpa' (Schuld) tirou sua origem do conceito muito material de 'ter uma dívida' (Schulden)? (1 9, p. 31 3).
G. "A cultura necessita oferecer todas as condições para inibir o impulso agressivo do homem, para subjugar suas manifestações por meio de formações psíquicas reativas. Daí advém, portanto, a prescrição de métodos que conduzem os homens a identificações e a relações amorosas cuja meta original foi inibida; daí advêm as restrições da vida sexual e também o mandamento ideal: Amar o próximo como a si mesmo', o qual efetivamente se justifica por nada haver que contrarie mais a natureza original do homem" (4, p. 47 1)...... O que se pergunta aqui é como se deve erradicar o maior obstáculo da cultura, a propensão constitucional do homem para a agressão mútua, e precisamente por causa disso se toma interessante para nós o mais jovem de todos os m andamentos do super-ego (Über-Ich Gebote), o mandamento: ama o teu próximo como a ti mesmo" (4, p. 503).
GIACOIA JUNIOR, O. - Le grand expériment: sur l' opposition entre ethicilé (Sitllichkeit) et 1'autonomie chez Nietzsche. Trans/Form /Ação, S ão P aulo, 12: 97- 132, 1979.
RÉSUMÉ: Ayant comme but la notion nietzscheénne de "moralité des moeurs" (Sittlichkeit der Sitte), ce travail a /' intention de mettre en évidence la notion stratégique de la réflexion sur /'origine des valeurs morales dans la critique que Nietzsche [ait à la métaphysique traditionnelle ainsi que le caractere spécifique de la contribution de ce philosophe pour le débat de ce theme.
UNrrERMES: Éthique; moral; droit, liberté de la volonté; conscience-morale.
1. BEVILAQUA, C. - Obra filosófica. São Paulo, Grijalbo/Edusp, 1976. v. 12.
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4. FREUO, S. - Das Unbehagen in der Kultur. In: --o Gesammelte Werke. London, Imago, 1948. v. 14..
5. . GEHLEN, A. - Urmensch und Spiitkultur. 3. ed. Frankfurt/M., Athenaion, 1975.
6. HEGEL, G. W. F. - Grundlinien der Philosophie des Rechtes. 2. ed. Stuttgart, Glockner, 1928, v. 7.
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9. NIETZSCHE, F. - Oie Fronliche Wissenschafl. In: --o SiimmJliche Werke.München, Gruyter, 1980. v.3.
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11. . NIETZSCHE, F. - Zur Genea10gie der Moral. In: -- o Siimmtliche Werke. München, Gruyter, 1980. v. 5..
1 2. NIETZSCHE, F. - Gotzendammerung. In: -- o Siimmtliche Werke. Munchen, Gruyter, 1980. v.6.
13. NIETZSCHE, F. - Jenscils von Gul und Bose. In: -- o Siimmtliche Werke. München, Gruyler, 1980. v. 5
14. NIETZSCHE, F. - Menschliches, Allzumenschliches. In: --.Siimmtliche Werke. München, Gruyter, 1980. v2.
15. . NIETZSCHE, F. - Morgenrõte. In: --o Siimmtliche Werke. München, Gruyter, 1980. v. 2.
1 6. NIETZSCHE, F: - Nachgelassene Fragmente; 18 82/84. In: --o Siimmtliche Werke. München, Gruyter, 1980. v. lO.
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1 8. NIETZSCHE, F. - Nachgelassene Fragmente; 18 87/89. In: -- o Siimmtliche Werke. München, Gruyter, 1980. v. 13.
19. NIETZSCHE, F. - Obra incompleta. Trad. Rubens R. Torres Filho. S ão Paulo, Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores).
20. RIEHL, A. - Pr. Nietzsche; der Künstler und der Denker. Stuttgart, s. n., 1897.
21. . ROSENFIELD, D. L. - Do mal. Porto Alegre, L&PM, 1988.
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