CHARLES SANDERS PEIRCE: CIÊNCIA ENQUANTO SEMIÓTICA[1]

 

Lauro Frederico Barbosa da SILVEIRA[2]

 

RESUMO: O diagrama do siglUJ, quando aplicado IUJ enlendimenlo da ciência, lugar a uma correlação original enlre abdução, dedução e indução. A união da abdução e da dedução consiste numa Forma geral de possibilidade lógica. Enquanlo que a indução estabelece, IUJ decorrer da experiência, a razão de freqüência IUJ universo dos fatos das conseqüências previstas na represenlação geral. Como uma construção formal, a ciência enquanlo semiótica sustenla-se, mesmo tendo por objeto um univ8rsO do puro acaso. Todavia, no interior do conjUnlO total do sistema fúosófico de Peirce, a ciência adquire significado se corresponder à realidade da Natureza. A garanlia desta correspondência estatisticamenle relevanle seria o fato de o instinlo humaIUJ pertencer ao mesmo estágio de evolução do universo todo.

 

UNITERMOS : Ciência; semiótica; siglUJ; abdução; dedução; indução; pensamenlo; instinto; razão; natureza; Forma; índice; símbolo; ícone; diagrama; argumenlo; freqüência estatística; acaso; retrodução.

 

1.     SIGNO E PEN SAMENTO

 

Sob múltiplos aspectos, a abordagem que Charles Sanders Peirce (1 839- 1914) faz da ciência é digna de ser tratada. Que a ciência, desde textos como "Questions concerning certain faculties claimed for man" e "Some consequences of four incapacities" (6. 5.246- 263, 264-3 17) (Nota A), ambos de 1878, tenha sido considerada por Peirce como uma atividade irredutivelmente semiótica, constituída mediante o signo sem nunca recorrer à intuição para estabelecer seu fundamento, parece não causar polêmica mais grave entre os intérpretes.

No desdobramento das implicações do diagrama triádico do signo (na correlação do representamen, de objeto e de interpretante) (Nota B) no estatuto do pensamento científico, aparecem, contudo, as divergências de interpretação e pontos obscuros exigem esclarecimento. Não cabendo, no momento, recuperar o estado atual da discussão, tentar­ se-á uma breve apresentação de duas implicações que mais vêm atraindo a atenção dos estudiosos, precedida por algumas considerações capazes, quiçá, de facilitar sua compreensão no interior da filosofia peirceana e contribuir para o aprimoramento da discussão em curso.

O diagrama do signo é proPQsto por Peirce como referência básica para se entender o pensamento. Por outro lado, conferindo à ciência e ao adjetivo "científico" uma significação de grande abrangência, será considerada científica por Peirce, toda a inteligência capaz de aprender com a experiência (Cf. 6. 2.227). A tríade semiótica constitui-se, pois, na hipótese básica para a compreensão da atividade intelectual e, muito especialmente, quanto melhor forem cumpridos os pré-requisitos de rigor e generalidade do conhecimento científico.

Ao recortar-se com cuidado o objeto do "pragmaticismo", como doutrina filosófica onde se insere a teoria semiótica, mais clara fica a insistência de que é na produção do conceito que a investigação pretende se concentrar e que é que mais plenamente o conceito de signo se realiza. Assim, em "What Pragmatism is" (6. 5.428), respondendo ao objetante que se opunha ao fato do pragmaticismo não pretender voltar-se especialmente para o caráter sensual da experiência do mundo, Peirce reafirma que: "o pragmaticismo não pretende definir os equivalentes fenomenais das palavras e das idéias gerais, mas, ao contrário, eliminar seu elemento sensual, e se empenha em definir seu teor racional, encontrando-o no porte intencional (purposive bearing) da palavra ou da proposição em questão".

A tríplice relação constitutiva do signo peirceano, convém lembrar, não é dialética, ao menos na medida em que a mediação nela estabelecida não se constitui em supressão e superação. Desdobra-se, outrossim, em múltiplas correlações preponderantemente triádicas, conforme os aspectos do pensamento que interessam estudar (Nota C).

 

Sempre que a correlação triádica se apresenta, responde às relações de espontaneidade ou potencialidade: existência ou fatualidade; generalidade ou convencionalidade, sendo que a terceira relação implica a segunda que, por sua vez, implica a primeira. Não haverá,

pois, relação de generalidade, convencionalidade ou lei que não suponha um universo de existentes ou de fatos; como, também, as correlações não se estabelecerão se não houver potência significativa que lhes confua realidade.

Para o signo, poder significar precede colocar-se efetivamente no lugar do objeto, para então vir a determinar a representação da relação de significação. O representamen é primeiro, o objeto é segWldo e o interpretante é terceiro.

 

 

2.     CIÊN CIA E SIGNO

 

Quando a produção científica é vista à luz do diagrama semiótico destaca-se, em primeiro lugar, seu caráter de interação efetiva do sujeito com o mundo: a ciência do ponto de vista semiótico é a determinação conceitual da conduta racional futura diante de uma classe de objetos. O signo realiza-se num universo em transformação e pretende efetivar, embora de modo falível, os princípios da síntese do entendimento contemplados na Crítica da Razão Pura (8. A 158=B 197 - A235=B288).

O pensamento científico é a mais ampla realização de um signo potencial, atualizado pelo objeto e que mediatiza a conduta futura diante daquela mesma classe de objetos, através da produção do interpretante. Num universo do mesmo, que desconhecesse a evolução, o pensamento como mediação seria totalmente redundante e inútil: no universo do mesmo, onde o tempo fosse estritamente reversível, não haveria um futuro estruturado diferentemente do passado. Por outro lado, o pensamento experimentado como um processo contínuo e crescente de diversificação e organização sugere a presença de uma significativa, embora não homogêna, orientação temporal do universo.

A integração do mWldo no processo semiótico, muito especialmente sob a dimensão objeto, confere à ciência na concepção peirceana um realismo que, como bem mostra Ivo Assad Ihri (7), evita os impasses freqüentes entre discurso e realidade. O objeto atualiza o signo e este, por sua vez, introduz aquele na correlação semiótica como pólo tensor da conduta racional - é o amor do objeto que move e forma o pensamento. O objeto na semiose é palco de reações mas integra também o ideal de conduta, ocupando o lugar do summum bonum. (Cf. 6, 6. 195, 212; 1. 575-584, 591-615).

O interpretante é o lugar da contínua orientação da conduta no tempo para a consecução futura da interação do sujeito e do objeto. Como contínuo para o futuro, o interpretante é pensamento e encontra sua plena realização nas leis cósmicas, nas leis organizadoras do mundo: é o hábito de conduta do universo e, por conseqüência, dos sujeitos pensantes que o integram. O interpretante pode perfazer-se num único ato ou numa série fmita de atos que consuma, na particularidade, um objeto. Quando forem estes os casos, o interpretante perfazer-se-á degeneradamente, pois, por si, tende a ser geral e infinito. As ações não esgotam a lei mas concretizam, no particular, sua generalidade. Como também não é o ato do cientista que esgota o procedimento, mas corpo, verifica e testa uma representação geral, a qual não se esgota na individualidade de qualquer evento (Cf. 6, 5.425-427).

O representamem é o lugar da possibilidade positiva de algo estar no lugar de outro e, por conseqüência, de explicitar aspectos comuns a possíveis outros seres em objetos que, enquanto tais, são estranhos a tudo mais, fechados que são na individualidade. A individualidade sendo, para Peirce, negação; e a existência, confronto. (Cf. 6, 1.322-325, 456ss; 5.45-58).

Poder abrir a individualidade e estabelecer ou ressaltar aspectos de comunidade na alteridade constitutiva do objeto, é o que define o representamen como idéia e só é possível, na perspectiva de Peirce, por preceder, como possibilidade, à existência e à individualidade. A existência é uma concrcção de idéias c o representamen ressalta uma ou mais qual idades que, no existente, tomaram-sefatos concretos.

Peirce denomina ícone ao representamen que estabelece para com o objeto uma relação estritamente potencial. Nesse caso, só pode estar no lugar do objeto por uma mera qualidade comum a ambos, aí não implicando interação efetiva do representamen e do objeto e, muito menos, a interferência de qualquer mediação, seja esta da natureza da convenção, da lei ou do código. A prccedência da potencialidade relativamente à existência, esta última entendida como concreção de qualidades potenciais, e a capacidade da idéia ressaltar a potencialidade positiva fcchada nofato, permitem entender a exigência feita por Peirce de que todo signo seja um ícone, ou a ele contenha (Cf. 6, 2.278).

 

 

3.      COSMOGÊNESE DA CIÊNCIA

 

Da concepção semiótica da ciência tal como é elaborada por Peirce, conviria explicitar ao menos duas conseqüências que, embora problemáticas, são originais e desafiadoras: o âmbito ideal das relações mente e universo e a articulação, no processo do pensamento científico, das espécies de raciocínio ou classes de argumentos: a abdução ou retrodução, a dedução e a indução.

 

 

3.1.     LEI DO UNIVERSO E LEI DO PENSAMENTO

 

A correlação do representamen, do objeto e do interpretante corresponde à correlação da idéia, da alteridade e da representação. Imanência e alteridade não mais se opõem como domínios constituídos de per se, o mesmo acontecendo com a relação sujeito e objeto. Quando tais termos são supostamente colocados como antagônicos, o domínio do signo se dilacera e, com ele, o domínio da ciência. Na proposição peirceana, imanência e alteridade, idéia e fatual idade, sujeito e objeto, compartilham com a lei, com o hábito geral de conduta e com o conceito da semiose, como correlatos de uma unidade. São distintos mas inseparáveis.

Deste modo, lei do universo e hábito de conduta exercem funções interpretantes das relações entre idéias e coisas, qualidades e existentes, que por sua vez ocupam na tríade correlacional os lugares de representamen e de objeto.

Esta ampla concepção é possível, devido ao fato da semiótica peirceana situar-se ciosamente no âmbito da filosofIa como ciência geral, cuidando de não se permitir que introduz.am, entre suas proposições, pressupostos decorrentes de representações de domínios científicos especiais. Não interferem na constituição da semiótica, por exemplo, proposições da física ou da psicologia, onde as representações mentais e cosmológicas assumem freqüentemente dimensões de mútua exclusão ou de estranhamento.

O não reconhecimento desta inserção no domínio estrito da filosofia conduziu provavelmente as críticas de Charles Morris à extensão, a seu ver indevida, da semiótica peirceana ao cosmos. (Cf. lO, p. 338-339). O recurso à psicologia da percepção adotado por Norwood Russell Hanson (Cf. 5 p. 4-30) distancia sua lógica da descoberta da concepção peirceana da ciência como semiótica, apesar do uso comum a ambos os autores do argumento abdutivo ou retrodutivo para explicar a construção de hipótese e de Hanson colher em Peirce tal sugestão.

A semiose considerada como um processo de representação geral, pois determinante da conduta in futuro, também leva Peirce a atribuir dominância ao pensamento como princípio primordial para a compreensão não dos fenômenos do espírito, mas da totalidade do cosmos. A matéria seria, no interior de um Universo Intelig(vel, do Kosmos Noetos como propõe Ivo Assad Ibri (7),... "simplesmente espírito, que tendo hábitos de tal modo empedernidos é levado a agir com um grau particularmente elevado de regularidade mecânica ou rotina". (6, 6.227). Este monismo do pensamento, a que Peirce denomina Idealismo Objetivo, é a hipótese que lhe parece mais simples para fundamentar a inteligibilidade da Natureza e o realismo do conhecimento. (Cf. 6, 3.422).

A coragem de instaurar uma metafísica e, nesse nível, construir uma cosmologia distancia Pierce mais de uma perspectiva dualista, que ainda se encontra na opção de Karl Popper pelo paralelismo psicofísico (Cf. 11, p. 51-99), do que do materialismo dialético. Este, com efeito, constitui também a lógica de um processo histórico de produção, articulando a produção material e as formas de representação sem fazer apelo à dualidade originária de princípios explicativos e constituintes.

 

 

3.2.      AS TRÊS CLASSES DE ARGUMENTOS

 

A segunda conseqüência da concepção peirceana de ciência enquanto semiótica que parece conveniente ressaltar, é a presença de três espécies de raciocínio ou classes de argumento, no fazer científico.

Peirce reconhece em Aristóteles a proposição originária dessas três espécies de raciocínio e, num primeiro momento de seu trabalho, as formula como variações da dedução silogística. (Cf. 6, 2. 623) (Nota D).

Uma mudança significativa na concepção paradigmática de raciocínio vai, no entanto, ocorrer ao longo do tempo no pensamento de Peirce. Se o desenvolvimento da lógica dos relativos desempenhou papel decisivo nesta transformação, assim como na reformulação das categorias fundamentais de sua filosofia, a antiga concepção triádica de signo, presente desde as primeiras obras, pode no mínimo ser vista como instigadora deste profundo refazer.

Com efeito, o signo como correlação triádica e como matriz de todo pensamento encon tra nas categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade, ou seja, de potencialidade, fatualidade e generalidade, o quadro elementar que permite estender-se a todas as esferas da explicação do real e de unificação do sistema teórico. Não parece, pois, m uito ousado dizer que as categorias, que acabam colaborando na definição de signo em uma de suas formulações mais completas (Cf. 6, 2.274), são por esta antecedidas cronologicamente, nela encontrando um forte motivo para seu surgimento. (Nota E)

Em termos de espécies de raciocínio, a mudança se faz sentir quando abdução, dedução e indução passam a constituir as três classes principais de interpretantes lógicos, inseridas, portanto, no diagrama triádico do signo. A partir desse momento, por volta de 1896 (Cf. 9), as investigações lógicas de Peirce voltam-se para o estudo dos diagramas, com a construção dos grafos existenciais (Nota F). Com o modelo diagramático de construção de hipóteses e sua conseqüente dedução, Peirce, como bem acentua Anderson (Cf. 1, p. 150), transfere-se de uma lógica da prova para a qual as figuras silogísticas mostravam-se adequadas para, propriamente, uma lógica da investigação.

Para Peirce, o diagrama é aquela construção onde se investiga, como objeto, a forma de uma relação, sendo esta a própria forma da relação mantida entre duas partes correspondentes do diagrama. A construção diagramática será geométrica ou algébrica e, sendo algébrica, será capaz, desde Boole, de compreender toda a sintaxe (Cf. 6, 4. 530: 2.280).

Dado seu caráter construtivo c, por conseguinte, sintético e dada a semelhança mantida entre a Forma das relações de suas partes e as que mantêm entre si as partes do possível objeto, o diagrama é uma construção lógica de caráter eminentemente icônico. Todas as elaborações que segundo as regras de construção forem nele introduzidas, corresponderão a transformações possíveis ao nível do objeto que lhe é correlato. A iconicidade confere, pois, ao diagrama a capacidade de ampliar o conhecimento.

A hipótese, na concepção peirceana, é pois diagramática e icônica, constituindo um campo experimental onde se amplia o universo logicamente possível. O trabalho com os grafos é a construção privilegiada da lógica da investigação. As modificações das relações estabelecidas no grafo são asserções que, no dizer de Peirce,... "devem dizer respeito a um universo arbitrariamente hipotético, a uma criação da mente". (6, 4.430)

Construção concreta de um Wliverso de relações possíveis. o diagrama faz com que as experimentaçOes nele realizadas encontrem a prova experimental que as tornam conclusões apoditicamente necesas.

A escolha inicial do diagrama é o momento primeiro da proposição de uma hipótese e. portanto. corresponde ao argumento abdutivo ou retrodutivo. As construções que coerentemente nele são efetuadas consistem na dedução de propriedades relacionais 'permitidas pela construção inicial e conduzem à observação de conseqüências que se impõem à percepção. por via indutiva. Na matemática. onde o objeto da investigação t tão somente a construção de idéias. a diagramatização encer toda a atividade da ciência.

Quando as conseqüências reportam a fatos independentes das idéias. constituem-se. no diagrama. em lndices das class de fenômenos a que o diagrama se refere ou pode referir­ se. No caso. dir-se-ia que o diagrama constitui-se no simulacro do fenômeno. onde a razão pode       com segurança. por observação abstrativa, como diz o autor (Cf. 6, 2.227), sua interação futura com exemplares da classe dos objetos referidos e aumentar. por via do hábito, o auto-controle de sua conduta.

Icônico como simulaCfo e indiciai na medida em que torna presentes, ao nível da representação, os objetos referidos, o diagrama é também convencional, dotado da generalidade necessária para determinar um hábito geral e contínuo de conduta. Sob este aspecto, o diagrama é simbólico e perfaz todas as exigências da argumentação como interpretante lógico genuíno. (Cf. 6, 453 1; 2.96, 275-282).

Resta, embora brevemente, relacionar o pensamento diagramático à realidade. Instaurador de uma Forma logicamente possível. cujas relações são apoditicamente deduzidas, sua aplicabilidade ao mundo fenomênico - seu objeto - é para Peirce sempre aproximativa, integrante do universo da probabilidade.

Da aplicação do diagrama aos fatos resulta. quantitativa ou qualitativamente. Uma razão de freqüência. Uma hipótese não se torna falsa por não se verificar no experimento, somente aproxima de zero seu poder de previsão (Nota G). Assim também. a hipótese só fará jus à verdade de um modo provável. falível e assintótico, na medida em que a freqüência de sua verificação nos fatos se aproximar de um. ou de todos os fatos experimentados.

Mesmo que a Natureza não apresente qualquer regularidade. o trabalho científico considerado do ponto de vista formal, quando ainda não se leva em conta o fundamento de sua própria realidade - como sendo ele mesmo Natureza -, não se encontra impossibilitado. Caso ocorra tal ausência de regularidade. somente todas as hipóteses levantadas realizar-se-ão indutivamente, ao longo da experiência. numa freqüência tendencial para 0.5. Neste caso. todas as hipóteses tornar-se-ão equiprováveis.

Esta concepção probabilística da indução e da autonomia formal do conjunto constituído pela abdução e a dedução é que permite a Peirce excluir a necessidade da pressuposição de premissas ainda que ocultas, sobre a regularidade do Wliverso ou sobre a reversibilidade do tempo para dar consistência epistemológica ao recurso à experiência. (Cf. 6. 2. 102, 755n, 766-769).

Nem mesmo a matemática como ciência da observação e da medida, embora seu objeto seja o próprio diagrama construído pela razão, escapa da probabilidade indutiva Como construção, a matemática é sensivelmente experimentada já que a experiência interior, ao nível do imaginário, é para Peirce uma quase-exterioridade. (Cf. 6, 3.426, 528: 4.478ss).

A incomensurabilidade freqüentemente presente nas relaçOes matemáticas que impõe, para a efetuação do cálculo, a admissão da aproximação e a incorporação do erro e da inexatidão, exige que se admita a falibilidade intrínseca da ciência do cálculo. Mesmo as medidas exatas, que não implicam relações somente exprimíveis em números irracionais, não reteriam o privilégio da estrita necessidade e exatidão. Como Peirce reconhece na proposição de Gauss e na unanimidade da opinião dos matemáticos de sua época, tais medidas manteriam uma margem de variação em torno de uma certa grandeza menor do que qualquer expressão possível. Assim, diz o texto: "Podemos somente dizer que a soma de três ângulos de um triângulo dado não pode ser maior ou menor do que dois ângulos retos, mas seu valor exato é somente um entre um número infmito de outros, sendo cada um deles tão possível quanto os outros" (6, 1.401).

A estrita consideração da natureza lógica e epistemológica da semiose garante, por si só, a validade da ciência como pensamenl9. A obtenção de um resultado próximo da equiprobabilidade para toda iniciativa intelectual não invalidaria, lógica e epistemologicamente, a proposta peirceana.

 

 

3.3.      A ESCOLHA DA HIPÓTESE

 

A semiótica como lógica da conduta ultrapassa o nível do mero formalismo e não permite que se despreze a efetiva representação do mundo fenomênico e, sobretudo, o interesse de um real, embora falível, domínio do homem sobre o universo da experiência Jürgen Habermas, em Conhecimento e Interesse (Cf. 4, p. 113-141), percebeu claramente este aspecto do pensamento peirceano, quando reconhece seu alto grau de adequação para a abordagem filosófica das ciências estritamente emplricas. Neste sentido, num texto ainda de 1878, Peirce insiste em que uma natureza que somente permitisse hipóteses equiprováveis seria um puro caos, desarticularia qualquer tentativa de elaboração de leis e tornaria todo conhecimento humano ilusório e ireal. (Cf. 6, 2.684)..

É explícita a menção ao relativo sucesso das hipóteses sobre a Natureza em "How to make our ideas clear" (6, 5.409). Naquele artigo, com efeito, são inumerados vários avanços que a inteligência humana vinha fazendo no conhecimento do que, há bem pouco tempo, parecia-lhe inacessível. Tal sucesso é prova indutiva da correlação que o signo instaura entre o objeto que a ele se opõe e a mente que, ao interpretá-lo, adquire um hábito futuro de conduta. Decorrem desta correlação duas propostas. De um lado, diz Peirce A Natureza somente aparece inteligível enquanto aparece racional, isto é, na medida em que seus processos são vistos como sendo semelhantes aos processos do pensamento" (6, 3. 422; Cf. 2. 7.438). Elimina-se, assim, qualquer realismo ingênuo.

De outro, o contacto originário do sujeito e do objeto é tomado como instintivo e inferencial, cujas premissas seriam subliminares à consciência, s.arantindo o caráter indubitável do juízo perceptivo (Cf. 6, 1.80; 5.591; 2. 7.381 n. 19). O instinto, embora possa falhar, corresponderia a um momento da evolução do cosmos, comum ao sujeito e ao universo. Conduziria a razão a propor hipóteses que melhor a ele se conformassem. Aumentaria, então, a probabilidade de acerto das conjecturas lançadas pela razão (Cf. 6, 5. 59 1).

A tomada de consciência da conaturalidade da razão e da Natureza por intemédio do instinto, faz com que Peirce compreenda, em 1 908, que a escolha da hipótese mais simples, como fora aconselhada por Galileu, não corresponderia à adoção do critério da simplicidade lógica, a qual é válida ao nível dedutivo. Deveria, sim, ser entendida como a adoção da hipótese "... mais fácil e natural, aquela que o instinto sugere... " (6, 6.478). A correção desta interpretação sugeriria uma comunidade da Natureza que aproximaria o homem das vespas e dos passarinhos, conferindo-Ihe força divinat6ria pela qual confiaria em suas mais ousadas hipóteses. (Cf. 6, 6.478).

A concepção de ciência como semiótica distancia Peirce das questões do transcendentalismo e do positivismo lógico mas o aproxima daquelas formuladas pelos cientistas que se admiram com o poder preditivo de suas próprias hipóteses. Um exemplo eloqüente de tal posicionamento pode ser encontrado no depoimento de Mário Schenberg (14) sobre sua experiência de cientista e suas reflexões sobre as condições que possibilitaram as hipóteses de Sir lsac Newton.

O sucesso na elucidação do problema do colapso determinador das supemovas no domínio da astrofísica, quando o entrevistado era jovem bolsista em Washington, é por ele atribuído ao pouco convívio que até então mantinha com tal domínio da física. Sendo convidado a interessar-se pelo assunto, aproximou sem receio seus estudos com Pauli sobre a presença do neutrino nos fenômenos de radiação Beta e o interesse que Fermi lhe despertou sobre esta mesma partícula das questões levantadas pela Mecânica Estatística ao procurar solucionar o fenômeno das supemovas. Permitiu-se, assim, a aceitação de uma hipótese até então insuspeitada para a solução de um problema que embaraçava os especialistas, estudiosos, inclusive, do próprio neutrino. (Cf. 14, p. 10-12).

Seus estudos posteriores de Mecânica Estatística Clássica, levados a cabo em Bruxelas, localizados estritamente no âmbito das equações matemáticas, pareceram mais tarde capazes de explicar fenômenos parapsicológicos. Como na época, Schenberg ignorava totalmente tal classe de fenômenos, encontra razões para a formulação de tais hipóteses numa certa ingenuidade de visão e numa grande confiança em coisas 16gicas (sic) que sempre o caracterizaram. Assume, com efeito, a crença de Paul Dirac de que "... se certa coisa era lógica, então ela devia existir". (14, p. 13).

Acentua, finalmente, ao avançar da entrevista, a relevância da ftlOSOfUl hermética e da preocupação da magia do real que o melhor conhecimento dos manuscritos de Newton impõe que se reconheça na descoberta da segunda lei da mecânica e da lei da gravitação universal. A matematização da mecânica realizou-se anti-cartesianamente num contexto místico, religioso e platônico. (Cf. 14, p. 35-36).

Concluindo, pode-se dizer que a concepção de ciência enquanto semiótica recoloca questões que a filosofia perdera ou que pas a considerar ingênuas. A espontaneidade da produção das idéias e a afeição que estaria na origem de toda regularidade e de toda lei, das quais doreriam em última análise a realidade da ciência e a dinâmica da evolução do universo, teriam sido propostas por Peirce sob consciente inspiração do mundo de Platão e numa sutil discussão com Epicuro e Lucrecio, defendendo a presença da sensibilidade na totalidade do universo para aceitar também o acaso entre os átomos (Cf. 6, 6. 192- 195, 200-201). Aristóteles e, posteriormente, os escolásticos são reconhecidos como precursores das mais caras propostas semióticas, ao ponto de Peirce denominar-se igualmente um realista (Cf. 6, 1.422; 5.79 nl, 93- 101, 312, 423, 453, 470) e, como um homem de ciência, encontrar mais afinidade com os escolásticos do que com os filósofos modernos. Tanto quanto os escolásticos, embora nem sempre do mesmo modo que eles, o cientista respeita e está atento à autoridade dos sábios, exige rigor na escolha e no uso das palavras, evita as construções literariamente belas que agradem ao gosto e submetam a leitura às idiossincrasias do autor e exige que se ponham à prova suas proposições teóricas. (Cf 6, 1.28-34).

Aspectos como esses não se reduzem ao estilo ou à careira pessoal de Peirce, mas integram a concepção de ciência por ele elaborada. Esta concepção, no entanto, reatualiza tais questões e, ao fazê-lo, leva em consideração a história mais recente do pensamento, fornecendo-lhes um aparato crítico que respeita as condições impostas pelo signo, mediador constitutivo da razão.

 

NOTAS

 

A.  N as citações dos Collected Papers of Chmles S. Peirce, após o algarismo que remete à referência bibliográfica, seguem-se o número do volume e a numeração dos parágrafos. Nas citações dos New Elements of Mathematics by Charles S. Peirce, numeração em algarismos romanos corresponde ao volume, o número em arábico colocado entre parênteses - quando houver - corresponde à subdivisão do volume e o número precedido da letra p corresponde à página.

 

B.  As várias defInições de signo elaboradas por Peirce ressaltam sempre o caráter triádico de suas correlações constitutivas. Com:> exemplo, podem·se citar as seguintes enunciações:

"Um signo, ou representamen, é algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor desenvolvido. Ao signo, assim criado, denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Coloca-se no lugar desse objeto, nlo sob todos os aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que tenho, por vezes, denominado o fundami!nlo do representamen". (6. 2. 228).

 

"Um signo, ou Represenlaml!n, é um Primeiro que se põe numa relação triádica genuína tal para com um Segundo, chamado seu Objeto.. de modo a ser capaz de determinar um Terceiro, chamado seu Inlerpretanle, o qual se coloque em relação ao objeto na mesma relação triádica em que ele mesmo está, com relação a esse mesmo objeto. A relação triádica é genuína, isto é, seus três elementos estio por ela relaéionados de maneira tal que não consiste em qualquer complexo de relações diádicas."(6. 2.274)

 

C.  O caráter não dialético da tríade constitutiva do signo evidencia-se na leitura que Peirce faz de Hegel e de seus seguidores. Em primeiro lugar, Peirce recusa-se a aceitar a validade lógica de que de uma proposição verdadeira possa decorrer uma conclusão falsa, conside­ rando, pois, uma projeção meramente psicológica o processo inicial do movimento dialético (Cf. 6. 1.493ss., 4.69, 5.332; 3. m (1) p. 753). Em seguida, Peirce não aceita o aufheben hegeliano que, sob a. égide do conceito (Begrif!) desqualifica a potencialidade positiva (Primeiridade) e o existente como fato bruto (Secundidade), ambos iredutíveis à Razão (ferceiridade) (Cf. 6, 1.490, 524, 543 ; 5.44, 90-92, 368, 436; 6.305; 2. 8.41, 267). O caráter hipotético e experimental do pensamento como semiose, argumenta Peir­ ce, tem sua potencialidade restringida pela dialética do conceito e, em vez de se constituir num campo aberto à experimentação, donde podem decorrer múltiplas conclusões logica­ mente necessitadas mas não mutuamente excludentes, encaminha-se pela via da negação determinada para uma pretensa representação única da realidade (Cf. 6, 1.491, 2.216, 5. 90-92, 579, 6.3 13). Se a representação é um modo de ser, o ser para Peirce, ao contrário da concepção hegeliana, não se confunde com o ser representado, nem a ele se reduz (Cf. 3,

IV. p. 30; 6. 5.368). Peirce denuncia na proposição hegeliana, a presença do pensamento teológico, o qual vê a realidade como uma revelação do Espírito pela via exclusiva da consciência. Nesta perspectiva, denuncia em Hegel a submissão da lógica à metafísica e propõe que a metafísica, respeitando seu caráter estritamente filosófico, seja precedida da livre investigação lógica, já que esta última constitui-se na ciência formal produtora de mundos possíveis, somente submissa à matemática, ciência formal da pura e simples possibilidade (Cf. 6, 1.521 -524; 5.368, 385.; 2. 8.41).

D.  Para maiores informações sobre as relações entre Peirce e Aristóteles no que diz respeito às espécies de raciocínio e às mudanças operadas por Peirce no conceito de argumento abdutivo, conferir na literatura recente os artigos de Douglas R. Anderson (1) e de Robert J. Roth (13).

 

E.   Este enunciado da definição de signo encontra-se transcrito como segundo exemplo da Nota B deste artigo.

 

F.                   Para a exposição minuciosa e sistemática dos grafos existenciais propostos por Peirce, sugere-se a leitura das obras de Don D. Roberts (12) e de Piere Thibaud (15). Na primeira, prevalece a tentativa de sistematização dos grafos. Na segunda, expõe-se a gênese dos estudos efetuados por Peirce no domínio da lógica. Inicialmente prevalecia o modelo algébrico; posteriormente desenvolve-se a elaboração, continuamente aperfeiçoada, dos grafos como construções diagramáticas.

 

G.  Segundo informações colhidas junto ao professor Ivo Assad Ibri, em engenharia diz-se que uma hipótese, na forma de um modelo descritivo de certos fenômenos, quando não verificada faticamente tem apenas significado matemático, perdendo seu sentido físico. Como, nas hipóteses fisícas, a matemática contribui com o estabelecimento das relações

diagramáticas entre indicadores dos fenômenos ao nível abdutivo e ao nível dedutivo, seu significado é sobretudo formal e poderá se sustentar mesmo que o sentido físico seja prejudicado pela tendência a zero da verificação indutiva ao longo da experiência. A física,

com efeito, é uma ciência que supõe, ao menos implicitamente, o estabelecimento do estatuto de realidade das relações mantidas entre os fenômenos constituintes do universo físico. Na perspectiva peirceana, este pressuposto não é exigido para a constituição da matemática ou mesmo da semiótica, já que a primeira tem por objeto relações meramente ideais e a segunda, como lógica normativa da conduta, somente pressupõe o real enquanto aparece para uma inteligência capaz de aprender com a experiência.

 

 

SILVEIRA, L. F. B. da - CharIes Sanders Peirce: science as semiotics. Trans/Form/Ação, São Paulo, 12: 71 -84, 1989.

 

ABSTRACT: The diagram of sign when applied to the understanding of science gives place to an original correation correlation of abduction or retroduction, deduction and induction. The conjunction of abduction and deduction consists of a general Form of logical possibility. Induction in its turn, establishes, in the long run, the ratio of frequency of the accomplishment of expected consequences of general representations in the universe of facts. As a formal construction, science as semiotics sustains itself even if it has as its object an universe of pure chance. Nevertheless, within Peirce's philosophical system, science retains its meaning onIy if it corresponds to the reality of Nature. The warrant of this statistically relevant correspondance would be the fact that human instinct belonged to the same stage of evolution as the whole universe.

 

KEY-WORDS: Science; semiotics; sign; abduction; instinct retroduction; deduction; induction; thought; instinct; reason; Nature; Form; index; symbol; icon; diagram; argument; statiscalfrequence; chance.

 

 

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[1] Este texto constitui a versão aperfeiçoada da comunicação apresentada no simpósio sobre Filosofia e Sabedoria, presidido pela professora Maria Silvia de Carvalho Franco e realizado durante a 40' Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em São Paulo, 14 de julho de 1988. Para sua forma atual contou-se com a colaboração da mencionada professora, das questões levantadas pelo auditório e da leitura dos professores Lucrécia D'Alessio Ferrara, Lígia Fraga S ilveira e Ivo Assad Ibri, aos quais o autor apresenta seus agradecimentos.

[2][2] Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP - 17500 - Marnia - SP.