STENDHAL PENSADOR: O CONCEITO FEITO NARRATIVA
Raul FIKER[1]
RESUMO: Trata-se aqui de esboçar aspectos do pensamenJo - em seu sentido conceitual e sistemático - de Stendhal, seu discurso reflexivo, manifesto no estilo narrativo através do romanCe, sobretudo em Le Rouge et le Noir.
UNITERMOS: Narrativa; romance; discurso reflexivo; desejo: mediação.
"Ainsi, apres, trois heures de dialogue, Julien obtint ce qu' i I avait désiré avec tant de passion pendant les deux premieres. Un peu plus tôt arrivés, le retour aux sentiments tendres, l' éclipse des remords chez Madame de Rênal eussent été un bonheur divine; ainsi obtenus avec art, ce nefut plus qu'un plaisir" .
STENDHAL. Le rouge et le noir. Paris, Pléiade, 1947. p. 426.
Em Stendhal, a busca da felicidade - sua meta explícita - esbarra nos percursos próprios à razão, sofrendo desvios, se complicando. Os sentimentos da amante, na passagem acima, provocados a partir de um desempenho do herói, escapam da esfera da magia (ou do divino) e acabam fruídos como produto de uma eficácia, apenas com prazer. Mas este esbarão não é nunca casual, felicidade e razão compõem um mesmo processo: ser felíz é raciocinar justo sobre um mundo que se vê claramente. A felícidade é "une longue habitude de raisonerjuste. Tout malheur ne vient qued' erreur" (1, p. 21).
O pensamento de S tendhal se expressa sobretudo através de seus romances, ou melhor, em seus romances. Mas antes de chegar a esta forma, a uma quase perfeição neste gênero, Stendhal quis durante muito tempo ser autor dramático. Além disso, ele se dedicou à crítica, à reportagem documentária (pelos livros de viagem), à história, à biografia, à autobiografia.
2. MYTHOS x LOGOS
"Mito", na Poética de Aristóteles, significa o enredo, a estrutura narrativa, a "fábula". O seu antônimo e contraponto é o logos. O mito é narrativa, história, em oposição ao discurso dialético, à exposição; é também o irracional ou intuitivo contraposto ao sistematicamente filosófico; é a tragédia de Ésquilo contraposta à dialética de S ócrates (como em Nietzsche, em A Origem da Tragédia).
Na Grécia de entre os séculos VIII e IV a.C. , quando se delineia esta característica, o termo logos. por sua vez, deixa de significar apenas "palavra" assumindo valor de racionalidade demonstrativa, e passa assim a opor-se a mythos no que este termo implica certa magia da palavra, que confere aos diferentes gêneros de declamação - poesia, tragédia, retórica, sofística - um mesmo tipo de eficácia. Enquanto O mythos opera no nível da mimese e da participação emocional, o logos instaura um procedimento de pesquisa e exposição que apela somente para a inteligência crítica.
O mito serve de início para a transmissão de uma sabedoria e sua linguagem narrativa é substituída paulatinamente pela linguagem argum entativa própria do discurso científico, que já não visa à sabedoria mas ao conhecimento (8, p. 30-4). A ascensão histórica do discurso argumentativo tem portanto como contrapartida o desprestígio da seqüência narrativa nas diversas esferas (filosofia, teologia, etc.). À ciência - assim como era função do mito, e ainda o é em algumas culturas - cabe então explicar os fenômenos que ultrapassam a dimensão do cotidiano, tarefa que ela desempenha com os recursos argumentativos do comentário, da explicação ou da análise. Com a dissociação progressiva dos assuntos importantes e do estilo narrativo, o princípio mesmo da ciência nos obriga a falar do mito na linguagem argumentativa.
Em Stendhal, o discurso reflexivo percorre a trama narrativa, de certa forma constituindo-a (junto com as convenções literárias próprias ao romance).
"Un roman: c' est un miroir qu' on promene le long d'un chemin" (epígrafe do cap. 13, I, de Le rouge et le noir).
"Est-ce leur faute si des gens laids ont passé devant ce miroir? De quel part est un miroir?" (Armance , avant-propos, p. 26).
Stendhal abandonou sua ambição de ser um autor dramático pela ficcão em prosa, quando se convenceu de que o romance era o gênero capaz de maior penetração no público. Durante muito tempo Stendhal se perguntou a quem se dirigia. Ele n ão tinha diante de si o mundo aparentemente rígido e compartimentado do Antigo Regime, mas uma sociedade onde a luta de classes tomava-se cada vez mais aguda, fazendo com que públicos violentamente contrastados coexistissem no auditório do teatro. S tendhal é extremamente representativo dos conflitos ideológicos e estéticos de que nasce o romance como o gênero por excelência do século XIX. Sua obra se situa exatamente naquele momento da história literária em que o gênero "romance" vai afirmar-se em sua especificidade, concluindo sua separação da poesia.
Com Stendhal (e Balzac), o romance vai transformar-se num gênero totalizador, forma ambiciosa de auto-conhecimento e de conhecimento do mundo (agora concebido como mundo social), gênero que tende a englobar a poesia e, ao mesmo tempo, a ela se opor. O narrador romanesco se outorga um campo de observação mais vasto que o do poeta e um ponto de vista omnisciente e avaliador. Essa forma de conhecimento se opõe ao conhecimento poético justamente pelo que ela comporta como auto-oposição interna, como conflito: a poesia buscava a comunhão do indivíduo com o mundo, enquanto o romance vai colocar o antagonismo essencial, indivíduo versus sociedade. Como observa Lukács a propósito da "forma interior do romance" (4, p. 87): "Mundo contingente e indivíduo problemático são realidades que se condicionam uma à outra".
A obra de Stendhal "encarna" a transição do Antigo Regime à problemática República. S ua formação é racionalista, baseada em conceitos do século XVIII, suas aspirações são individualistas, românticas. A literatura realista de Stendhal brota do seu mal-estar no mundo p6s-napoleônico, assim como da consciência de não pertencer a ele e de não ter nele um lugar certo. O mal-estar no mundo dado e a incapacidade de se incorporar a ele são, evidentemente, elementos rousseauniano-românticos, e é provável que Stendhal já possuísse algo disto na sua juventude. Mas os motivos e as manifestações do seu isolamento e da sua posição problemática perante a sociedade são totalmente diferentes dos fenômenos correspondentes em Rousseau ou nos seus seguidores do primeiro romantismo.
Quanto à sua técnica narrativa, ela não segue parâmetros unicamente formais. Para Stendhal, toda bela,prosa é moral. O horror da ênfase, das frases empoladas, da sintaxe remoída, não é para ele um simples reflexo do bom gosto. "Ele detesta o supérfluo da forma porque ele é sempre o sinal de uma fraqueza da alma" (6, p. 37). O humor stendhaliano, que toma comumente a forma da ironia, é uma defesa-ataque contra o inautêntico e o faccioso manifestados pelo despotismo em política e pelo pathos em literatura. A técnica de Stendhal nasceu de uma reflexão sobre os efeitos da prosa sobre o leitor. Em 1805, ele escrevia em seu Diário: "lI y a une maniere d' émouvoir, qui est de montrer les faits, les choses, sans en dire l' effect, qui peut être employée par une âme sensible ( ... )" (6, p. 49).
Stendhal criou um estilo de descontinuidade. A narrativa stendhaliana justapõe nervosamente a narração de eventos vistos do exterior, os eventos internos de um ou vários protagonistas, a descrição (breve) dos lugares e dos objetos, o comentário do próprio escritor. O narrador, em Le rouge et le noir, por exemplo, é, em princípio, omnisciente e não-representado. Pouco a pouco, através da nartiva, o narrador começa a aparecer, numa gradação que vai desde o julgamento implícito na adjetivação referente às personagens e aos acontecimentos, até a intromissão declarada, como na advertência da página 373 (ed. Pléiade), ou quando, numa outra passagem, reclama da fraqueza de que Julien dá mostras num monólogo. E no monólogo interior - uma das grandes inovações romanescas de Stendhal - é praticamente impossível separar o que é enunciado pela personagem do que vem diretamente do nardor, a voz deslizando constantemente. Em Le rouge et le noir, são encontrados todos os tipos de narador previst.os pela técnica narativa do século XIX em disposições imprevistas.
Gérard Genette notou que o narrador stendhaliano é "inalcançável", pois emite constantes julgamentos mas não assume nenhum, nem atenua suas contradições. Para Antonio Candido (2, p. 144-6), "uma das chaves que abrem esse mundo complexo, onde ficções e imagens entremeiam o cotidiano, é a emoção - concebida como sistema de sensações, cujo papel na sua obra nunca é assaz lembrado. No meio dos românticos, todos mais ou menos espiritualistas (ainda que por atitude ou por metáfora), sobressai o seu fIrme, admirável materialismo, baseado em parte na convicção de que a vida psíquica se desenvolve a partir da sensação, culminando numa espécie de geometria moral. Em conseqüência, duas atitudes aparentemente contraditórias, mas na verdade contínuas: supervalorizar a dispersão do Eu pelo abandono às impressões e, ao mesmo tempo, a sua máxima concentração, pelo esforço de dirigir logicamente a vida, segundo um plano traçado a partir do desejo de ver claro no Eu e no mundo".
Stendhal recebe do século XVIII a imagem de um herói virgem e nu que só a experiência instruirá pouco a pouco. Homem da era napoleônica, discípulo de Maine de Biran, S tendhal aprendeu as virtudes do esforço e da atividade. Sua experiência começa pelo ardor, mas sua iniciativa mais lúcida consiste em circunscrever este ardor, em conhecê-lo. Além de sentir é preciso perceber.
4. ALGUNS ASPECTOS DO PENSAMENTO DE STENDHAL EM LE RO UGE ET LE NOIR
aJe [ais tous les efforts possibles pour être seco Je veux imposer silence à mon coueur qui croit avoir beaucoup à dire. Je tremble toujours de n 'avoir écrit qu' un soupir, quand je crois avoir noté une vérité!" (STENDHAL . De l'amour. v.l, p. 57).
"Na vida, assim como na arte, o que importa é o estilo, e não a sinceridade" (Oscar Wilde).
Uma boa abordagem de como Stendhal pensa no romance é a partir de como ele pensa o romance (no romance). O gênero é referido inúmeras vezes, explicitamente - às vezes mesmo em digressões à margem da narrativa propriamente dita - , e como elemento paradigmático nem sempre explícito, como vai ser visto em maior detalhe adiante. Um exame de como Stendhal vê o romance pode conduzir a certos aspectos básicos mais gerais da expressão de seu pensamento através da nartiva.
S tendhal, em Le rouge et le noir, partiu de um evento real, o processo Berthet (7, p. 715-30), um crime passional praticado por um jovem seminarista numa igreja, e teve que, por outro lado, de certa forma submetê-lo às convenções do gênero. Aqui não há contradição nem grandes obstáculos, pois a fIcção de Stendhal é o que se convencionou chamar de realista. Embora guarde alguns aspectos arquetípicos que ainda o aproximam da estória romanesca (as ilusões perdidas, a ascensão, degeneração e queda do herói, etc.), o realismo é a arte do símile implícito, isto é, o que está escrito é como o que se conhece. A diferença essencial entre o romance e a estória romanesca está no conceito de caracterização: enquanto o autor romanesco tenta criar fIguras estilizadas que se ampliam em arquétipos psicológicos, o romancista procura criar "gente real". Assim, por exemplo, a ambição de Julien Sorel - uma personagem que é constituída pelos acontecimentos tanto quanto os provoca ou a eles se confronta - é uma demonstração da complexidade psicológica das personagens stendhalianas. (Não é o dinheiro, ou uma situação reconhecida como gloriosa numa sociedade que ele despreza, o objeto de sua ambição. O seu projeto é de heroísmo, entretanto toda ambição de heroísmo se esgota nela mesma. como o heroísmo é ação pura. tendo por objetivo a própria ação mais do que aquilo que com ela se obtém. Com este tipo 4e objetivo, a história de heroísmo só pode ter dois fins: a morte gloriosa ou a queda melancólica. E, no entanto, não é uma coisa nem outra que ocorre com Julien. Ele é executado depois de ter mudado de projeto, de ter descoberto como verdadeiro o amor, que lhe é dado por Madame de Rênal).
Considerações explícitas sobre o romance surgem logo que começa a se delinear o amor entre Julien e Madame de Rênal, no cap.VII, "Les Affi nités Électives". Aqui, o nardor diz que, em Paris, a posição de Julien em relação a Madame de Rênal seria bem rapidamente simplificada, pois "em Paris o amor é filho do romance", e em três ou quatro romances lidos ainda no ginásio, ambos teriam os elementos para esclarecer sua posição (7, p. 752). Em seguida, o romance é definido como algo "feminino", ou para mulheres e rapazes sensíveis como Julien (o que é desenvolvido no apêndice, .p. 701 sgs.). Acontece que Madame de Rênal leu poucos romances, pois os romances modernos são liberais e ela é ultra (7, p. 708). Além disso, a relação não ocorre em Paris, mas na província, onde estamos diante de "une femme de trente ans sincerement sage, ocupée de ses enfants, et qui ne prend nullement dans les romans des exemples de conduite. Tout va lentement, tout se fait peu à peu dans les provinces, il y a plus de naturel" (7, p. 252).
Aqui, se por um lado Madame de Rênal não pertence à linhagem de Madame Bovary (e de D. Quixote), por outro, o romance tem inequivocamente a função de um modelo, ou mesmo de uma espécie de guia sentimental (seu caráter corruptor é mencionado por
Julien à p. 256). E, apesar das diferenças, como em Madame Bovary, também aqui o romance aparece como mediador. É a sua mediação que falta para ordenar a confusão dos sentimentos de Madame de Rênal. E o desejo de Julien é mediado pela leitura, de certa foma romanceada, do Memorial de Santa-Helena e dos Boletins da Grande Armada.
Quando vai servir os de Rênal, Julien empresta às Confissões de Rousseau o desejo de comer na mesa dos patrões e não na dos empregados. Quanto à Mathilde, é a história romanceada de seus ancestrais que faz a mediação de seu desejo por Julien, que ela identifica com seu heróico e remoto ancestral decapitado a quem ela presta verdadeiro culto. E quando Julien, num acesso de desespero - desses que rompem a couraça da estratégia e terminam por se revelar mais eficazes que esta - quase a decapita, por sua vez com uma antiga espada usada como decoração, Mathilde se deixa arrebatar: "(... ) mademoiselle de La Molle regardait étonnée. J'ai donc été sur le poim d'être tuée par mon amam! se disait-elle.
Stendhal insiste no papel da sugestão e da imitação na personalidade de seus heróis. E embora os aspectos exteriores da imitação sejam os mais gritantes, o que importa é que estas personagens imitam, ou acreditam imitar, os desejos de seus modelos. S urgem paixões que definem um desejo segundo o outro, uma forma de paixão cujo primeiro e típico exemplo de portador é D. Quixote. No caso Quixote/Amadis, o mediador é imaginário, mas a mediação não é. Isto se reencontra em Emma Bovary, que deseja através de heroínas de romances.
Este aspecto do romance como mediador, como ângulo paradigmático de um triângulo composto por ele, pelo herói stendhaliano e seu objeto, é examinado brilhantemente por René Girard, e, Mensonge romantique et vérilé romanesque(3), que o considera, no entanto, no contexto mais amplo daquilo que ele chama de "desejo triangular". Em tal contexto, Girard chama também a atenção para um comportamento fundamentado igualmente numa situação de desejo mediado em outras personagens de Le rouge et le noir, porque aqui o mediador é concreto, geralmente um rival. Um exemplo é Rênal, desde o início atribuída a Valenod a intenção de lhe arrebatar o preceptor, sendo que o desejo imaginário deste redobra o real daquele. Esta rivalidade entre mediador e sujeito desejante constitui uma diferença essencial com o desejo de D. Quixote ou de Emma Bovary. Amadis não pode disputar com D. Quixote. Na maioria dos desejos stendhalianos, o mediador deseja ou poderia desejar o objeto: e é este desejo, real ou presumido, que toma este objeto infinitamente desejável aos olhos do sujeito. A mediação engendra um segundo desejo perfeitamente idêntico ao do mediador. Há sempre dois desejos concorrentes. O mediador não pode desempenhar seu papel de modelo sem desempenhar, igualmente, ou parecer desempenhar, o de um obstáculo. E este, como nota Denis de Rougemont, em L'amour et l'ocident, pode se confundir com o próprio objeto do desejo: para Rougemont, toda paixão se alimenta dos obstáculos que lhe são opostos e morre de sua ausência; ele chega a defmir o desejo do obstáculo. Isto vale para Stendhal.
Em Cervantes, como observa G irard (3 , p. 16-7), o mediador está num céu inacessível e transmite a seu fiel um pouco de sua serenidade. Em S tendhal, o mediador desce à terra. Portanto, no triângulo, varia a distância que separa o mediador do sujeito desejante. Em Cervantes e Aaubert, o mediador permanece externo ao universo do herói; em Stendhal, ele está em seu interior.
Este elemento de mediação está intimamente ligado ao outro aspecto do pensamento de Stendhal que perpassa toda a narativa de Le rouge et le noir: o antagonismo, em diversos planos, entre paixão e vaidade. A paixão, para Stendhal, é sempre o contrário da vaidade. O apaixonado por excelência se distingue por sua autonomia sentimental, pela espontaneidade de seus desejos, pela sua indiferença absoluta à opinião dos outros. A força de seu desejo está situada nele mesmo e não em outro. Por vaidade, S tendhal entende todas aquelas formas de cópia, de imitação. O vaidoso, não tendo seu desejo próprio, toma-o emprestado. Para que um vaidoso deseje um objeto, basta-lhe convencer se de que este objeto já é desejado por um terceiro que tenha um certo prestígio. O prestígio do mediador se comunica ao objeto desejado e lhe transfigura.
Em Les mémoires d'un touriste, Stendhal previne os leitores contra o que ele chama de sentimentos modernos, frutos da vaidade universal: "l'envie, la jalousie et la haine impuissante" (3, p. 23). A fórmula stendhaliana associa estes três sentimentos à imperiosa necessidade de imitação da qual, para ele, o século XIX está totalmente possuído: "la vanité de I'Ancien Régime était gaie, insoucirmte etfrivole; la wmité du XIX e siecle est triste et soupçonneuse; elle craint atrocement le ridicu/e" (3, p. 1 26).
No âmbito deste antagonismo entre paixão e vaidade, há campo fértil sobretudo para a dissimulação, outro elemento importante no universo de Le rouge et le noir, que se situa no prisma estratégico de Stendhal, cujo pensamento é muito marcado pela matemática e pela estratégia militar (como se pode ver nos seus ''truques" para conquistar mulheres). A conquista amorosa expressa em termos bélicos, própria do século dezoito, aparece, por exemplo, à p. 543, quando, depois de dormir com Mathilde, Julien compara seu 'estado de espírito ao de um militar após uma promoção meteórica. A dissimulação, que Stendhal chama de hipocrisia, deriva de diversas situações. Por um lado, todo desejo que se mostra pode suscitar ou redobrar o desejo de uma rival. É preciso portanto dissimular O desejo para se apoderar do objeto. Mas no momento em que o herói stendhaliano se apodera do objeto desejado, este é desralizado pela posse e reduzido às suas propriedades objetivas, o que provoca a famosa exclamação stendhaliana: "Ce n'est que cela!" Por outro lado, a origem de um desejo pode ser não o espetáculo de um outro desejo, real ou ilusório, mas o de uma indiferença: a súbita indiferença de Mathilde que inflama o desejo de Julien, por exemplo. Ou a indiferença heroicamente simulada por Julien, que, mais do que o desejo rival de Mme. de Fervacques, desperta o desejo de Mathilde. Mostrar a uma mulher , vaidosa que se a deseja é revelar-se inferior, repete sempre Stendhal. É portanto se expor a desejar sempre, sem jamais provocar o desejo (Flaubert, semelhantemente, tinha por princípio absoluto que "jamais dois seres se amam ao mesmo tempo"). Estes princípios, expostos como um "sistema" de "uma civilização em que a vaidade se tomou a paixão", no apêndice de Le rouge et le noir (7, p. 703-4), são explicitados com alguma comicidade no episódio das "cartas russas", quando o príncipe russo aconselha Julien sobre a inconveniência de deixar aparecer certas emoções: "O grande princípio do século: aparentemos o contrário do que esperam de nós", etc. (7, p. 59 1).
Dada a importância da dissimulação, há na trama um tema recorrente: o oculto sob risco iminente de ser descoberto, elemento tradicional de suspense romanesco que está aqui organicamente integrado, assumindo inclusive um certo valor metafórico. Há o retrato de Napoleão oculto no colchão de Julien na casa de Rênal, o bilhete da mulher do café no seminário, o cuidado com as cartas de Mathilde, enviadas à guarda do amigo nas montanhas. No episódio da ornamentação da catedral de Besançon, há as palavras do padre: "Attention aux confessiounaux! C'est de lã que les espionnes des valeurs êpient!" - com esta obsessão do olhar que todas as personagens de S tendhal têm graus diversos. Julien, ele próprio, deve ocultar seus sentimentos. Tudo isto coincide com o convencionalismo dos salões da Restauração, onde "não se deve falar daquilo que interes a todo mundo" (1, p. 397).
É geralmente graças à mentira que as personagens stendhalianas chegam a seus fins, a não ser que se trate de um ser de paixão, mas estes são infinitamente raros no universo pós-revolucionário Julien muitas vezes obtém sucesso apenas porque não conseguiu realizar sua estratégia e ficou entregue à paixão, desprovido do cálculo. É a paixão que dá espírito à Madame de Rênal, quando, flrme e com clareza, ela supera a crise das cartas anônimas.
Vaidade e paixão, razão e emoção, real e imaginário. Na visão de mundo stendhaliana, estes equilíbrios resultam sempre de um compromisso: para se misturarem e se acomodarem uns aos outros, os elementos antagônicos devem sacriflcar algo de si mesmos. O melhor, é claro, seria encontrar uma maneira de não apenas equilibrar as duas forças rivais, mas de satisfazê-las uma pela outra, algo que para Stendhal poderia ser realizado pelo amor, fenômeno que, para um de seus autores preferidos (5, p. 107), é uma mania, que a partir de um objeto real constrói um mundo de fantasmas. Este mesmo fenômeno que Freud chegou a qualiflcar de surto psicótico.
FIKER, R.- Stendhal Penseur: Le concept comme narrative. Trans/FormlAção, S ão Paulo, 12: 37-46, 1989.
RÉSUMÉ: Il s'agit ici d'ébaucher quelques aspects de la pensée - dans son sens conceptuel et systématique - de Stendhal, son discours refléxive, expres dans l'style narrative à travers le roman, surtout dans "Le rauge et le Noir" .
UNITERMES: Narrative; roman; discours rejléxive; désir; médiation.
1 . AUERBACH, E. Mimesis. São Paulo, Perspectiva, 1971.
CANDIDO, A. Melodia impura. In: o Tese e antítese . S ão P aulo, Ed N acional, 197 1 .
3. GIRARD, R. Mensonge romantique et vérité romanesque. Paris, Grasset, 1961.
4. LUKÁCS, G. Teoria do romance. Lisboa, Presença, s.d.
5. RICHARD, I.P. Littérature et sensation. Paris, Seuil, 1954.
6. ROY, C. Stendhal par lui-même. Paris, S euil, 1962.
7. STENDHAL. Le rouge et le noir. Paris, Pléiade, 1947.
8. WEINRICH, H. S tructures naratives du mythe. Poétique, Paris, 1, 1969 .
[1] Departamento de Antropologia, Política e Filosofia - Faculdade de Ciências e Letras - UNESP - 14800 - Araraquara - SP.