TRAGÉDIA: UMA ALEG ORIA DA ALIENAÇÃO[1]
Mário Fernando BOLOONESI[2]
RESUMO: A primeira peça de Vladímir Maiakóvski, Vladímir M aiak6viski: uma tragédia, de 1913 , é composta sob o signo da abstração. A metáfora das personagens, a poesia meton{mica e o deslocamento do foc o de ação do sujeito para o objeto contribuem para a construção de imagens cênicas abstratas da alienação. O principal procedimento poético do autor é o aleg6rico.
UNITERMOS: Abstração; alegoria; alienação; teatro e hist6ria; parábola.
1. Vladímir Maiakóvski: uma tragédia: é a primeira obra dramatúrgica de Vladímir Maiakóvski (1893- 1930), composta em 19 13. As primeiras denominações da peça foram A estrada de ferro e A revolta dos objetos (7, p. 45). O segundo título deixa entrever o tema abordado; o primeiro, remete, alusivamente, ao ambiente sócio-econômico russo, evocando o Plano de Industrialização czarista. Contudo, o título com o qual a obra ficou conhecida é resultado de uma confusão com a Censura, que deu permissão para a representação da peça Tragédia Vladímir Maiakóvski, tal como inscrito na primeira página do original (7, p. 46).
A Tragédia· é composta de dois Atos, um Prólogo e um Epílogo. Não é fácil descrever sucintamente o seu enredo. Ele gira em tomo de uma revolta que se manifesta sob dois aspectos: em primeiro lugar, próximo ao fatual, há alusão de uma rebelião dos párias contra os gordos burgueses; logo em seguida, a rebelião anterior, de cunho histórico, transforma-se na luta abstrata dos objetos contra os homens.
Com exceção do Poeta Maiakóvski, as demais personagens se apresentam como imagens de uma mutilação. São elas: Uma Mulher Enorme, amiga do Poeta; Velho com Gatos Negros e Magros; Homem Zarolho e Perneta; Homem com Uma Orelha; Homem sem Cabeça; Homem de Cara Longa e Macilenta; Homem com Dois Beijos; Jovem Convencional; Mulher com Lagrimazinha; Mulher com Uma Lágrima; Mulher com Uma Lagrimazona; Garotos Vendedores de Jornal (Beijos Infantis).
Na naração do Prólogo, o Poeta pergunta ao espectador se este sabe a razão pela qual, em meio à tormenta, ele entrega sua alma para um banquete do futuro. Após este questionamento, ele enumera fatos que configuram os tempos tempestuosos: o tédio, enforcado, sobre as alamedas de pedras; pontes retorcendo-se; o céu aos prantos; uma nuvem de boca torta; um servo morto a beijos; um mulher grávida, a quem Deus dá um imbecil zarolho, etc. Terminadas as imagens que compõem o quadro de desordem, o Poeta convoca a todos para que se juntem a ele e partilhem de uma revelação advinda através de sua poesia. Desta revelação, resultará o encontro do homem consigo mesmo, quando seus lábios estarão prontos para imensos beijos. Finalmente, o homem encontrará harmonia com a máquina e uma roda de trem poderá abraçar o pescoço do Poeta.
No Primeiro Ato, o Poeta convoca e incita os mutilados para se rebelarem contra os burgueses. Deste incitamento, o Velho com Gatos Negros e Magros chama a atenção para a outra revolta, a dos objetos. A partir de então, todo o Primeiro Ato transcorre em tomo da discussão sobre a natureza dos objetos, se estes possuem, ou não, uma alma. Ao final deste Ato, o Homem Zarolho e Perneta vem anunciar a revolta das coisas, que está tomando conta da cidade.
No Segundo Ato, passada a rebelião, o Poeta está coroado em seu trono quando três mulheres vêm trazer-lhes suas lágrimas. Ele não quer recebê-las; não sabe o que fazer com tantas dores. Diante deste dilema, aprecia o relato de um homem que recebe dois beijos de presente e não vê utilidade neles. Ao final, recolhe as lágrimas das mulheres para entregá-las ao Deus das Tormentas.
No Epílogo, o Poeta retoma à cena, dirigindo-se ao público, para afirmar que Deus é um ladrão. Por outro lado, interroga sobre o responsável pela desumanidade das idéias, Termina sua narração voltando-se sobre si memo, vendo-se ora um galo holandês, ora como rei de uma república. Contudo, há momentos em que aprecia exclusivamente o seu próprio nome: Vladímir Maiakóvski.
2. Provavelmente, deste Epílogo tenha derivado o título final da peça. Ela não faz referência explícita ao complexo significado da obra; antes, deixa transparecer um possível eixo de discussão, aquele que se acerca de uma única personagem , o próprio Poeta. Se o Poeta é, efetivamente, a única personagem, sendo as demais apenas expressões esquemáticas que servem de apoio a um aparente diálogo (7, p. 47), então termina-se por admitir o centralismo significante desta personagem . Mas isto, por si SÓ, não corresponde à significação em seu conjunto, uma vez que, frutos de uma abstração do autor, as outras personagens são suportes da configuração desumana das idéias polemizadas em cena. Estas personagens esquemáticas compõem um único e vasto Coro, que vem a ser o autêntico protagonista da peça.
A fábula apresenta uma certa unidade. Ela inicia-se sob o signo da tormenta. Desenvolve-se, no Primeiro Ato, em tomo da mutilação das personagens, problematizando a si, ao mundo e às coisas, em meio a uma rebelião exterior que, aos poucos, toma conta de toda a cidade. No Segundo Ato, passada a revolta, o Poeta defronta-se, mais uma vez, com as dores humanas, expressas nas lágrimas das três Mulheres. A dúvida toma conta da cena. Ao final da parábola do Homem com Dois Beijos, o Poeta resolve entregar o sofrimento ao Deus provocador das tormentas. Assim, o principal motivo do enredo retoma à sua origem, após ter se cristalizado nas personagens mutiladas, em meio a uma rebelião total das coisas. Não há, nesta trajetória, uma solução unívoca para tantas desgraças que se abatem sobre as personagens.
Os principais momentos da Tragédia são narvos. As narões, como de resto todo o texto poético, não obedecem a critérios de veracidade. Elas se erguem sobre imagens poéticas, diversificando um mesmo estado de coisas: o caos e a desordem.
Prólogo e Epílogo destacam-se pela imediatez com o público. Os Atos têm sentido próprio e, em concordância com o todo, se justapõem, de forma que a rebelião dos objetos assume lugar de destaque, como marco divisório e como índice simbólico de temporalidade.
Não há, na Tragédia, uma ação teatral propriamente dita. Quando participa da obra, ela não acontece em cena: é apenas relatada. Qualquer esboço de ação é resposta a uma movimentação de maior vulto que acontece exteriormente. Este fator imprime uma peculiaridade à peça: a de reportar-se constantemente para fora de si. Uma ligação estreita se estabelece entre a ação externa e o tom predominantemente nartivo que toma conta das cenas. Não há um desenrolar autônomo do enredo. Ele está conjugado com o transcorrer externo de alguns fenômenos, vindo a ser uma reflexão sobre eles.
3. As personagens concebidas por Maiak:óvski são fragmentos de homens. Apresentam-se mutiladas, transformadas, como se fossem coisas. Para cada uma falta-lhe uma determinada parte. A mutilação apresenta-se sob dois aspectos: um primeiro, de ordem física, no qual se realça a ausência de membros e outros órgãos do corpo, como perna, olho, cabeça e orelha; o segundo se dá pela manifestação hiperbólica da principal característica da personagem . Assim, o Homem com Dois Beijos, por exemplo, realça sua mutilação emocional e afetiva através dos beijos. O Velho milenar, representante do tempo e da história, carega gatos negros esquálidos, pois estes, segundo as mitologias egípcia e grega, ao serem acariciados, proporcionam a faísca elétrica· (7, p. 23).
Com exceção do Poeta, todas as outras personagens compõem um vasto coro, caracterizado pela mutilação. O Poeta, no Primeiro Ato, cumpre o papel decisivo de principal antagonista do Coro dos Mutilados, que tem como Corifeu o Velho com Gatos Negros e Magros. No segundo Ato, entretanto, o Poeta deixa esta função, integrando-se ao Coro e à sua problemática.
O protagonista da Tragédia, o Coro dos Mutilados, é composto de várias silhuetas, imagens de um mesmo fenômeno: a alienação. Porta-se. Nesse aspecto, como uma metáfora de uma situação caracterizada essencialmente pela coisificação dos homens. Sob a forma de personagens-imagens, esta metáfora sintetiza a fragmentação do sujeito. Ao Coro resta uma única unidade: a unidade na mutilação, tanto corporal como da consciência.
O texto poético é o suporte máximo de sustentação das personagens e da obra como um todo. Ele se constrói, basicamente, sobre imagens hiperbólicas, nas quais se valorizam as características incomuns dos objetos. As coisas abandonam o seu lugar e uso cotidianos, e ganham existência humana. Ao se tornarem autônomas, elas traduzem conteúdos e propriedades dos homens. Neste caminho, o texto apresenta a humanização dos objetos, uma expressão poética da coisificação dos homens. Os recursos formais que possibilitam este ato são, ao nível do texto, a metonímia e o deslocamento do foco de imagem, do sujeito para o objeto.
Quando a metáfora e a metonímia se encontram e vêm aplicadas juntamente ao deslocamento do foco de imagem, do sujeito para o objeto, o enredo ganha complexidade. Além da rebelião dos mutilados contra seus opressores, o tema da revolta passa a ser visto também ao nível dos objetos. Estes ganham existência autônoma, embora fruto do mesmo processo de mutilação que der origem às personagens. O resultado é a cristalização de um universo imagético abstrato, que faz da peça um confronto conceitual sobre a alienação, no seio das relações de trabalho.
Assim, pode-se detectar três níveis distintos de composição. São distintos apenas para efeito de compreensão, pois atuam conjuntamente no transcorrer do enredo. São eles: a) imagem da mutilação das personagens; b) no âmbito da poesia, imagem deslocada do sujeito para o objeto; c) imagem abstrata da mutilação: presença convergente da metáfora ciência e da metonímia, ao nível poético.
A constante intersecção destes níveis permite a exploração da complexidade do fenômeno da alienação. Assim, através da metáfora das personagens-imagens, do recurso metonímico, próprio do texto poético, e do deslocamento do foco de ação do sujeito para o objeto, é possível abordar o tema sob vários ângulos: a) o do trabalhador em relação à máquina (que resulta na metáfora da mutilação, própria das personagens); b) o do trabalhador com os objetos, quando a metonímia da poesia é posta sob o foco do deslocamento da ação, alcançando, assim, a humanização do objeto; c) por fim, o dos objetos que se revoltam contra tudo (momento final de abstração da cena, no qual se desenrola a dialética do trabalho sob a coisificação/humanização do objeto, do homem e da máquina).
4. A mutilação das personagens e a personificação das coisas têm sua plenitude poética no relato do Homem com Dois Beijos. O Homem com Dois Beijos é uma personagem que faz o relato de um homem que recebe dois beijos de presente. Ele apresenta-se como um tipo encantador e não sabe o que fazer com os beijos recebidos. Escolhe o maior e calça-o feito galocha, para rebater o frio que vem pelos buracos da sola de seus sapatos. Vendo a inutilidade dos beijos, joga-os fora. Em um deles crescem orelhas e logo o beijo começa a chorar. O homem, então, recolhe-o em alguns trapos, levando-o para casa. Uma vez lá, o beijo cresce despropositadamente, querendo atacá-lo. Desesperado, o homem se enforca.
O Homem com Dois Beijos é uma personagem que volta-se sobre si mesma. Através do recurso narrativo a personagem mantém-se distanciada de seu próprio relato, construindo, assim, uma imagem de si. Seu relato é bastante complexo e deixa entrever uma espécie de parábola da industrialização e da alienação na sociedade capitalista, narda do ponto de vista dos mutilados, realçando os frutos inatingíveis da produção e a perda das essências dos homens.
Uma parábola se caracteriza por evocar outras realidades, como uma representação de um pensamento por meio de um outro diferente, geralmente utilizando-se de metáforas, através de um procedimento alegórico (2, p.193). Com freqüência, a parábola se manifesta em voz narrativa e evoca conteúdos religiosos. No caso do Homem com Dois Beijos, sua naração não recorre a realidades sobrenaturais. Sua parábola se reporta a uma abstração, qual seja, à alienação. Ela se dirige, poeticamente, através de algumas imagens, à aparente contradição entre a coisa personifícada e a pessoa coisificada. Ademais, subjazem nela conceitos próprios da análise de Marx sobre a Economia Política, quais sejam, os de valor de uso e de troca, valores sobre os quais se erguem a mercadoria e o seu fetichismo.
Ao receber dois beijos de presente o homem não sabe o que fazer com eles, o que quer dizer, não vê utilidade nos beijos. O beijo é tomado como expressão poética materializada de conteúdos próprios do homem, como, por exemplo, afeto, sensibilidade e amor. Neste ponto, se manifestam, na imagem dos beijos recebidos, a personificação do objeto e a reificação do homem. O homem quer inserir os beijos no cotidiano utilitário dos bens materiais (expressão primeira da produção de mercadorias - o valor de uso é o primeiro atributo da mercadoria; não é, em todo caso, para o Capitalismo, o essencial).
Ao se comparar com a descrição da cidade e das pessoas em festa, a personagem objeto do relato se coloca como um tipo qualquer, um pária, um ser marginalizado do processo social. Enquanto as outras pessoas saem bem vestidas, o homem sente um frio enonne e tem os sapatos furados. Escolhe um dos beijos e calça-o. Ou seja, tenta, mais uma vez, emprestar ao beijo algum valor de uso. Como o beijo não se presta a isso, o homem joga-o fora. O ato de se desfazer do beijo dá a dimensão da perda do homem, da sua alienação, ou seja, do distanciamento humano em relação aos seus próprios conteúdos, ao seu afeto, ao seu amor.
O beijo, porém, por trazer características humanas, não é um objeto qualquer, inanimado, passivo e estático. Ele manifesta sua vitalidade e gera uma orelha Isto é, gera uma vida, característica que os objetos, em si mesmos, não possuem. Porém, quando se admitem os objetos, as mercadorias, como integrantes de um complexo processo de produção, como frutos do trabalho alienado, nota-se que são produtos que expressam as relações sociais entre os homens. Ou, inversamente, percebe-se que as mercadorias sintetizam a vida humana E, na peça de Maiakóvski, uma das imagens desta síntese na mercadoria está no beijo infantil, jogado fora, no qual cresceram orelhas, que engatinhou e chamou pela sua mãe.
O homem, então, recolhe o beijo com uma orelha e, em um gesto de piedade, leva-o para casa. Esse recolhimento, contudo, se caracteriza por um novo sentido de utilidade, expresso no intuito de fazer deste beijo um objeto de adoração: ele será posto em uma moldura azulada, tal qual um oratório. Isto evidencia que o homem já está prestes a tomá lo como um fetiche e, portanto, em processo de dar à moldura (e ao beijo) um valor de mercado, um valor de troca, com o qual ele possa identificar qualidades espirituais e religiosas. Se isso acontecesse, o beijo estaria cristalizado em um objeto, que manifestaria o seu valor através do fetichismo que se sobrepõe ao objeto enquanto tal.
Mas isto não acontece. Enquanto o homem procura a moldura no fundo do baú, o beijo cresce e, deitado em um sofá, primeiro está risonho; depois, furioso. Ou seja, alcança, definitivamente, propriedades humanas através da manifestação de estados psíquicos. O fato de estar furioso lembra a rebeldia dos valores dos homens aprisionados aos objetos; em outras palavras, remete ao aniquilamento a que estão sujeitos os homens no processo material e objetivo da produção. Esta revolta se dá com as coisas e com os homens. O beijo se rebela contra este seu estado e também com a relação social capitalista de produção que o coisifica. Ele externaliza, portanto, o seu anseio de revolta, querendo que a personagem da parábola encontre a essência alienada de si, representada na peça pela humanização do objeto, neste caso, do beijo com orelhas.
Em face desta sublevação, o homem sente-se cansado, desorientado diante da perda de sua identidade, com a coisificação de seus conteúdos íntimos, aniquilado pelo processo material da vida na sociedade capitalista. Vendo suas qualificações e valores se rebelando contra si, o homem se enforca. Na parábola, esta imagem é a expressão privilegiada da alienação. Ao ser enforcado, evidencia-se a consideração objetual do homem, um simples meio, um objeto sem expressão ou vontade próprias, lIue caminha ao sabor das necessidades sociais de produção, única e exclusivamente. Em todo caso, esse homem objeto é ainda inferior ao objeto-homem (beijo), pois este manifesta a sua rebeldia, enquanto que o primeiro tomba diante da situação aparentemente insolúvel em que se encontta. Este grau de inferioridade, contudo, não possui conseqüências qualitativas mais sérias, pois a rebeldia do objeto é tão somente uma expressão poética da ausência da rebeldia do homem. Delineia-se, pois, uma aparente contradição que, em realidade, manifesta apenas o grau de ttansferência de conteúdo, do homem para o objeto. Tem-se, aqui, um caso típico de deslocamento do foco de imagem. A ttansferência de conteúdo não deixa de ser, em último caso, um recurso formal que torna evidente a ttansformação do homem em mercadoria
Para tornar ainda mais evidente a alienação, a parábola termina por colocar mulheres como fábricas sem chaminés, produzindo milhões de outros beijos, no ritmo alucinante das indústrias.
5. O relato do Homem com Dois Beijos (uma parábola da insdustrialização, nos aspectos pertinentes à condição alienada do homem, na qual os beijos são a essência de sua mutilação) manifesta a síntese de um procedimento poético que perpassa toda a peça de Maiakóvski, qual seja, o alegórico. Ele singulariza a função poética da Tragédia.
Sabe-se que a alegoria recebeu considerável desprestígio em comparação ao símbolo, na Poética clássica alemã. Johann Wolfgang Goethe (1 749- 1 832) considerou-a antiartística, como uma técnica que ttansforma o fenômeno em um conceito, a este em uma imagem,
"/.. ./ porém de tal modo que o conceito tenha de ser sempre conservado e recebido limitado e completo na imagem e nela expresso" (3 , p. 62).
A alegoria foi desprestigiada porque é o terreno do arbitrário, no sentido de que, attavés dela, o autor decide segundo a sua consciência, por intermédio de uma construção intelectual, como ttadução sensível de um conceito. Um conceito está limitado a uma representação do pensamento, com base em uma classe definida de objetos. Por este aspecto ele se distingue da idéia, pois esta expressa uma síntese de uma totalidade, conforme a noção de Kant (4, p. 169).
A partir dessa distinção entre conceito e idéia, para Goethe, o símbolo desponta como reduto da totalidade, depositário da clareza, da harmonia e da ordem. Para Goethe,
"A representação simbólica transforma o fenômeno em idéia, a idéia numa imagem, e de tal modo que a idéia permanece sempre infinitamente eficaz e inatingível na imagem, e, mesmo que expressa em todas as línguas, permanece porém inexprimível" (3, p. 62).
Em outras palavras, no símbolo o particular, o fenômeno, é o representante do universal, enquanto que na alegoria o particular significa apenas a universalidade de um conceito.
A distinção que se esboça, para GoeLhe, reside em um caráter ontológico do símbolo, segundo o qual, antes de significar, ele é. Já a alegoria remete ao exterior: ela expressa um conceito e, portanto, apenas significa.
A distinção clássica entre símbolo e alegoria e a conseqüente soberania do primeiro sobre a segunda são questionadas, no século XX, por Walter Benjamin (1892- 1940), em sua obra Origem do Drama Barroco Alemão, de 1 925. O desenvolvimento do capitalismo e a realidade do sofrimento, da fragmentação e da ruína desfiguram aquela totalidade do símbolo e a harmonia do mundo. O sujeito clássico, no século XX, está morto. Na época contemporânea, objeto e homem sofrem um processo de desintegração. O capitalismo provoca uma cisão no homem, dividindo-o em classes. Uma vez cindida a unidade filosófica do sujeito, resta, aos homens, uma união fetichizada na mercadoria. Se há , no Capitalismo, uma relação intersubjetiva, ela passa a se expressar através da produção, do trabalho alienado, da propriedade privada e, substancialmente, do valor de troca que se aloja na mercadoria, nas relações de mercado. Enquanto produto primeiro da dialética existente entre trabalho e capital, a mercadoria acaba sendo a expressão última da relação entre os homens (6, p. 71 ).
Uma vez destruída a ordem clássica, em face da realidade coisificada, Benjamim redimensiona as noções de símbolo e alegoria. Diante de tamanha fragmentação, não há como perpetuar a transparência de sentido do símbolo. Este deixa, portanto, de ser um procedimento adequado ao século XX. A atenção se volta, então, para a alegoria, e Benjamin vai sedimentar sua teorização de alegórico tendo como base o Barroco, exatamente aquele período das artes duramente rejeitado nos tempos de GoeLhe.
O principal ponto sobre o qual se apóia a alegoria benjaminiana é exatamente o estreito vínculo que esta mantém com a história (no Baroco, com a concepção baroca da história). Segundo Benjamin,
"Nisto consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio. Quanto maior a significação, tanto maior a sujeição à morte, porque é a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação" (1, p. 1 88).
Diante da ruína e da transitoriedade históricas, a alegoria é uma tentativa de restaurar alguma conexão em meio ao desconexo. Esta tentativa não tem diante de si um mundo em equilíbrio. Trabalha, portanto, com os resquícios de uma pseudo-unidade, como um momento singular que procura, por intermédio de um esforço de abstração, sedimentar um sentido que não está dado de antemão. O sentido sucumbiu frente à morte, frente à história e a sua barbárie. Daí a necessidade do alegorista de colocar-se entre os escombros, em busca de elementos que, arrancados do contexto inicial de sua criação, possam ganhar significação.
A ação violenta do proceder alegórico quer buscar aqueles componentes característicos e inalteráveis da transitoriedade. A alegoria possui essa característica: uma vontade de trazer para a eternidade aqueles momentos e situações que se perderiam no desenrolar histórico.
A atenção do alegorista volta-se para as coisas, para as ruínas, para aquilo que sobra do dilúvio histórico. Mas, volta-se sobre as coisas porque também vê escamoteadas nelas as relações entre os homens. Essa dialética entre coisa e homem recebe uma importância determinante na representação do caos. Nela persiste o ato de caracterizar o objeto enquanto pessoa.
" À. personiflcação a\eg6rica obscureceu o iam de que sua \.are�a não era a de personificar o mundo das coisas, e sim a de dar a essas coisas uma forma mais imponente, caracterizando-as como pessoas" (1, p. 209)
Contudo, à alegoria resta o imperativo do exterior, do outro, da caracterização da mercadoria como pessoa. Ela não encontra o seu sentido em si mesma: recorre ao universo histórico e conceitual de sua origem. A alegoria procura tomar sensível, em uma imagem, wn conceito que originalmente se ergue para fixar elementos constitutivos de wna realidade objetiva.
6. Na peça de Maiakóvski, o procedimento alegórico está presente nos dois principais níveis significantes: personagens e texto poético.
As personagens, decepadas e desqualificadas, são imagens metafóricas da alienação, em um período histórico preciso, que vai de 1905 à 19 17. Elas se multiplicam em mutilações diversas, como a formar um panteão no qual estão depositados os restos mortais do homem. Neste panteão não se vê estampado o culto de grandes fei tos heróicos: nele se vê a imagem da barbárie cotidiana, que no dia a dia termina despercebida. Esta imagem é cruel em sua configuração, porque devolve ao homem o fulcro de sua condição fragmentária. Ela comporta a contradição prioritária, essencialmente histórica, como um estandarte cristalizador do sofrimento. Esta imagem se diversifica em dores múltiplas, em um vasto coro que carrega, esquematicamente, a componente imagética de uma alegoria da alienação contemporânea.
Enquanto expressão imagética de uma alegoria, contudo, o Coro dos Mutilados necessita de uma complementação verbal, no caso em forma de poesia, que venha conferir a precisão de seu conteúdo. Este complemento se dá por intermédio de versos hiperbólicos, metonímicos, cubo-futuristas em sua raiz, que não se contentam em ser uma simples exemplificação: os versos emprestam às personagens-imagens a circunscrição poética do sentido do conflito do Coro.
A linguagem poética se prende à materialidade da metáfora das personagens, vindo a formar um quadro complexo, no qual uma contradição de caráter histórico está representada. Palavras, sílabas e sons são os complementos necessários ao Coro. Formando um só conjunto, personagens e texto poético se emancipam de seu contexto de origem e desfilam livremente como coisas, em meio à coisificação total, como uma alegoria transitando em liberdade pelo universo poético e imaginário, mas que, a todo instante, se volta para a história em busca de sua comprensão.
Formando-se como uma imagem autônoma, a alegoria, na Tragédia, tem tão somente o desejo de resgatar o caráter transitório do fetichismo e da alienação: ela quer salvar para a eternidade a barbárie da fragmentação do proletário, da mutilação do seu corpo e do estilhaçamento da sua consciência. Ela, portanto, não encontra em si mesma o seu sentido; como coisa, dirige-se à coisificação exterior para sedimentar o seu sentido e a sua própria explicação. A sua autonomia, então, revela-se ilusória. A comprensão da alegoria remete ao seu próprio conflito, que, de resto, é a contradição movente do enredo: a alienação histórica. Assim, a alienação não é apenas significado, mas é material significante que pode ser expresso em imagens diversificadas (porém, únicas em sua característica) da mutilação. O conflito da peça é, concomitantemente, o conflito do procedimento alegórico.
O relato do Homem com Dois Beijos é o principal momento de manifestação alegórica. Ele é uma parábola da alienação e, nesse sentido, porta-se como uma síntese do enredo e do procedimento do autor.
O beijo da parábola, em sua característica dupla de coisa e homem, é a imagem primordial da mutilação, que carega um conflito só resolvido quando remetido ao seu verdadeiro lugar: a história. O beijo é expressão da perda dos valores do homem, é a imagem de sua fragm entação: é, portanto, sua morte. Ele não se adapta àquela personagem que perdeu a dimensão de si. Quando visualiza a extensão de seu conflito, a personagem do relato do Homem com Dois Beijos se enforca, dando o resultado terminal, no enredo, da mutilação; de outro lado, o enforcamento coloca a real natureza do conflito da peça, como uma morte alegórica que remete à compreensão do sentido trágico da Tragédia. O Homem com Dois Beijos e sua parábola são a expressão da morte do homem, uma alegoria que repõe à consciência a dimensão trágica da alienação do proletário.
7. A Tragédia transcorre em um ambiente de caos e desordem. Mutilados, mendigos e a barbárie são os quadros constantes da peça. Só a custo da centralização das imagens de horror em torno do Poeta é que o enredo apresenta uma unidade interna Contudo, não é uma unidade que se molda ao sabor da reconstrução poética de um mundo em ruína, que perdeu o sentido do todo. É uma unidade apenas formal, que tem na personagem Poeta um eixo privilegiado de condução da nartiva Ou seja, é um recurso monodmmático que se apresenta como organizador de uma desordem reinante. Nesse aspecto, a obra não se configura como uma tentativa de apresentar uma harmonia e um equilíbrio que não se encontram no exterior. A unidade é fictícia Girando em tomo do Poeta, o autor penetra o terreno da transcendência e constrói imagens cênicas abstratas, essencialmente alegóricas, para descrever a catástrofe do capitalismo russo. Em meio a um imenso conflito social, em um momento no qual a contradição primordial do processo de industrialização da Rússia afIora abertamente e toma conta das ruas, gerando uma profunda instabilidade, a
Tragédia se apresenta como uma tentativa de racionalização do caos.
As imagens abstratas das contradições sociais que a Tragédia compõe aselham-se a certos quadros do flamengo Pieter Brueghel (1525-307 - 1569); particularmente o Dulle Grite (A louca Meg, ou Margarida, a louca). Nesta pintura, em meio à efervescência caótica, uma personagem avança Traz consigo uma espada apontada para a frente, dois cestos com vários utensílios (frigideira, pratos, etc.), e um pequeno baú debaixo do mesmo braço que carga os cestos, uma trouxa e um cântaro pendurado. Ao seu redor, figuras monstruosas: homens decepados; uma imensa cabeça assustadora, que tem em sua boca figuras diabólicas; um peixe com patas; uma ave com uma perna humana e outra de pau, que mostra as vísceras; sapos cargando gaiolas; uma barrica com rosto, chapéu e pernas; um grupo de soldados com lanças; uma multidão de flagelados que se auto-ataca e uma infmidade de figuras aberrantes e desproporcionais.
Assim como na peça de Maiak:óvski, uma única personagem consegue manter,. aparentemente, alguma integridade. No quadro de Brueghel, caregando pertences mínimos para sua subsistência e uma espada, a figura central (de acordo com o título, uma louca) avança desbravadoramente. Já o Poeta, na obra de Maiak:óvski, não carega nada. Sua única arma é a palavra, a poesia. Mas, a poesia, para Maiak:óvski,
"é carícia
slogan
açoite
baioneta" (5, p. 122)
Portanto, assim como no quadro, a personagem principal da Tragédia também está armada. O Poeta, com sua armas - a palavra, a poesia -, leva as lágrimas das outras personagens, em sua alma seca, para um banquete do futuro. Neste banquete, as máquinas e as coisas virão, com ternura, acariciar os homens.
Estas são a promessa e a crença última de Maiak:óvski, expressas ao final do Prólogo. O banquete não acontece na peça: ele é um guia para nortear o futuro. E, com ele, a descoisificação da vida e da consciência: um momento, enfim, de emancipação e recuperação humanas, no qual as orelhas, pernas, olhos e demais membros deixam as coisas e retomam ao seu verdadeiro lugar: o homem. Mas este momento é exterior à peça. Ele participa de forma subliminar, como um fio de esperança em meio às monstruosidades da industrialização. A situação insuportável do proletariado é o verdadeiro enredo da Tragédia. Ela não está descrita de modo natural. Mas palpita nas personagens e na poesia, sedimentando a alegoria da alienação.
As personagens não existem em si mesmas, ou seja, não possuem um sentido imanente. O seu sentido é dado pela história. Elas não são consciências em conflito. Se possuem rasgos psicológicos, estes se regem pelo esfacelamento do corpo e do espírito e não formam, portanto, unidades psíquicas. O psiquismo das personagens é a patologia do mundo do trabalho alienado.
O significado da peça se constrói na história concreta da Rússia. Ao nascer da história, a Tragédia não se porta como um reflexo dela, mas antes como uma reflexão. É uma reflexão em fragmentos, através de imagens abstratas, sem imanência alguma. Contudo, mesmo sendo reflexão, ela se direciona para uma açãO: a revolta dos mutilados contra os dominadores, que na peça recebe a leitura abstrata da rebelião dos objetos. E, neste ponto, a aforma e o conteúdo se encontram em uma única temática: a mutilação; em wn só procedimento: o alegórico.
Para tomar sensível a abstração da história, o recurso adotado por Maiakóvski em sua Tragédia é o da alegoria, através de imagens abstratas que evidenciam a mutilação de wn imenso Coro. A alegoria da alienação resgata aquilo que há de essencial no processo de coisificação do operário russo, no período anterior à Revolução de 19 17.
Contudo, além de ser o conteúdo da peça, a história é também o campo de atuação da alegoria. Enquanto abstração, a peça de Maiakóvski é uma tentativa de radicalização da contradição histórica, convertida em imagens alegóricas que evidenciam um conflito que não pode se resolver no interior do enredo. A alegoria não é apenas a base de compreensão do conflito. Ela possibilita a unidade da forma como o conteúdo, uma unidade, entretanto, fictícia, pois é regida pela fragmentação. Tanto o conteúdo como a forma mostram-se frutos de uma barbárie, resgatados das ruínas pela ação da alegoria, como um fragmento no qual está inscrito (ainda que aos pedaços, pois esta inscrição é obscura, enigmática e complexa) a essência de um todo.
BOLOGNESI, M. E - Tragedy: An allegory of alienation. Trans/FormlAção, São Paulo, 12: 23 -36, 1989.
ABSTRACt: Vladímir Maia/Wvski's ftrst theater play, called Yladímir Maiak6vsky: a tragedy, written in 1913, was elaborated by using an abstract symbolism. The metaphor 01 the characters, the metonymy in the poetry and the displacement 01 the main loc us 01 the play Irom the subject's action towards the object contributed to the productíon 01 scenic images 01 alienatíon. The main procedure used by the author is allegory.
KEY-WORDS: Abstraction; allegory; alienation; theater and history; parable.
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