ROSA LUXEMBURG: REVOLUÇÃO E DEMOCRACIA[1]

 

Isabel Maria LOUREIRO[2]

 

RESUMO: Revolução e Terror andaram sempre de braços dados? Uma parcela significativa do que foi outrora a esquerda acredita que sim e prop6e o fortalecimento da democracia como alternativa à revolução, vista como fonte do totalitarismo. Este artigo procura contribuir para esse debate, mostrando a alternativa revolucionária e democrática apresentada por Rosa Luxemburg. Para ela, a democracia não é um valor universal abstrato, mas

justamente o resultado de um processo revolucionário em que as massas proletárias, atuando com irrestrita liberdade, lançam os fundamentos de uma "nova época". Entretanto, a revolução alemã, em que Rosa Luxemburg e

Karl Liebknecht tiveram um papel central, fracassa e ambos são assassinados. Derrota que traça, de certa forma, o destino da Alemanha contemporânea.

 

UNIT ERMOS: Revolução; democracia; olitico; bolchevismo; spartakismo.

Em 1 984, Francisco Weffort escreveu um livro simples e sugestivo: Por que democracia? Nele procura, sem o menor sectarismo e com uma franqueza que lhe é peculiar, contribuir para uma discussão vital entre nós que continuamos a atravessar um processo de transição lenta, gradual e oliti.

No final do livro, Weffort olitico com aqueles que do desencanto com os regimes autoritários vindos a seguir às revoluções, passam ao “desencanto com a olitic revolução” (5, p. 108). Lembra, com muita pertinência, que as revoluções são sempre fenômenos democráticos e que o autoritarismo posterior dos regimes não é inerente à olitic revolução mas liga-se à tarefa ‘de corístruir o novo Estado. Ou seja, o seu livro não trata nem de denegrir a revolução como fenômeno empírico, nem mesmo a olitic idéia de revolução, procedimento muito em voga em meios que abandonaram suas autodenominadas “ilusões de juventude”.

A preocupação de Weffort é outra: como preservar a democracia, com ou sem revolução. Uma autora por ele mobilizada, porque insuspeita aos olhos da esquerda, para sustentar a idéia de democracia como um valor universal a ser preservado em qualquer regime é Rosa Luxemburgo Várias citações são feitas para mostrar como ela está longe de defender um olitico autoritário. Correto, mas parcial. Não olitic esquecer que, ao mesmo tempo, Rosa procura energicamente distinguir-se dos defensores da democracia tout court, marxistas à la Kautsky que, nas suas palavras, querem a “democracia, sem o olitico” (3, p. 208). Ê o que procurarei mostrar neste artigo. Mas antes abordarei rapidamente a conjuntura alemã do fim de 1918, na olitico de captar como Rosa Luxemburg entende a idéia de revolução.

Estamos todos submetidos ao destino cego; a única coisa que me consola é o pensamento amargo de que talvez também eu seja logo mandada para o outro mundo por uma bala da contra-revolução que nos espreita de todos os lados (Rosa Luxemburg, carta aos Geck, 1 8.1 1 .1 91 8).

Rosa Luxemburg teme que o desfecho da sua vida seja violento. Algumas cartas, das últimas que escreveu, transmitem-nos o clima de insegurança em que vivia naquele momento. A morte paira no ar. Ela, porém, permanece em Berlim, recusando-se a olitico as massas insurretas (Nota A). Todo o trágico deste desfecho estampa-se à nossa frente: afinal, Rosa não aprovara a insurreição de olitic, que se orientava para a tomada do poder. Por que, então, duvidando do sucesso da empresa revolucionária, não recua, não vai embora, parecendo estar à espera de que o seu “destino cego” se cumpra?

Para responder a esta pergunta, precisamos ter em mente o clima político na Alemanha, particularmente em Berlim, e a situação da Liga Spartakus a partir de fins de outubro de 1918, momento em que surgem por todo lado conselhos de operários e soldados.

A 9 de novembro - dia em que Rosa sai da prisão -, explode na cidade uma greve geral.

O imperador renuncia e Ebert, presidente do SPD, assume a chefia do governo. A república é então proclamada e o poder passa a ser exercido por uma coalizão dos partidos operários, SPD e USPD (Nota B).

Na oposição, a Liga Spartakus, por ser um grupo muito pequeno e sem a menor chance de chegar ao poder, tinha como objetivo, através da propaganda, aumentar o número dos que o apoiavam, fazer crescer sua influência junta às massas e desenvolver sobre elas uma tática de ação. Por razões conjunturais que não cabe analisar aqui, a Liga fica isolada no interior da esquerda, adotando uma atitude francamente oposicionista e salientando a propaganda como o aspecto mais importante do seu trabalho político. Na medida em que o grupo era pequeno (Nota C), esse constituía para ele o único meio de ação. A posição da Liga - ênfase nas ações de massa -, que Rosa defendeu calorosamente durante os meses de novembro e dezembro nos seus artigos na Rote Fahne, vinha ao encontro do que ela mesma pensava e correspondia, si­

multaneamente, a uma necessidade prática visto que, como já foi dito, o grupo não tinha mais que algumas centenas de militantes em toda a Alemanha.

Aliás, o destaque dado à propaganda como meio de ação sobre as massas e o desprezo pela organização pareciam justificados, na prática, pelo levante de novembro, que se dera espontaneamente, sem direção de nenhum partido organizado. "Essa alegre exaltação, esse entusiasmo pelo movimento de massa, o apelo constante à ação e à clarificação - tudo isso contribuiu para criar a atmosfera propícia ao levante desesperado de janeiro, no qual Liebknecht e Rosa Luxemburg foram mortos" (4, p. 71 1 ). Para os jovens operários, membros da Liga Spartakus, ação e mais ação representava o único meio de romper radicalmente com a velha sociedade.

Entretanto, Rosa Luxemburg, no congresso de fundação do KPD (31 .12 a 1 .1 .1 919) defende uma posição política mais moderada: participação nas eleições para a Assembléia Nacional, proposta derrotada por 72 votos a 23. No seu discurso aos delegados, declara:

"Camaradas, vós acreditais a tarefa fácil demais, com o vosso extremismo. Vosso élan impetuoso não deve fazer-nos esquecer a seriedade e a reflexão a sangue frio. O exemplo da Rússia não pode ser citado aqui contra a participação nas eleições. Lá, quando a Assembléia Nacional foi dispersada, os camaradas russos já tinham um governo Trotsky-Lenin. Nós estamos ainda em Ebert-Scheidemann" (4, p. 736; Nota D).

Os acontecimentos precipitavam-se. As multidões não paravam de desfilar pelas ruas da cidade. Manifestações, incidentes pequenos ou importantes ocorriam a todo momento. A 4 de janeiro, finalmente, o governo decidiu afastar o chefe de polícia, Emil Eichhorn, um independente (USPD) hostil ao SPD, e substituí-lo por um social-democrata de direita, Eugen Ernst, em quem o partido confiava. Eichhorn negou-se a deixar o posto, alegando ser responsável unicamente perante o comitê executivo de Berlim dos conselhos de operários e soldados. Contra a demissão ocorrem enormes manifestações, que ultrapassam de longe as expectativas das direções. Dirigentes dos partidos operários organizam então um comitê revolucionário com o objetivo de derrubar o governo. A direção do KPD, entretanto, declara-se contra a insurreição por ver que esta não tinha a menor chance de êxito (Nota E).

As massas na rua, o que fazer? Rosa Luxemburg e o KPD, "com um espírito cavalheiresco digno de D. Quixote" "correram em socorro de uma empresa revolucionária que não haviam começado e cujos objetivos não aprovavam, mas que não podiam deixar fracassar" (4, p. 744, 745). É impossível retraçar aqui as idas e vindas da insurreição, as alianças, dúvidas e recuos dos dirigentes. O resultado, conhecido, é o malogro.

A contra ofensiva do governo, Noske à cabeça liderando os Freikorps, não se faz esperar. Os spartakistas são, aos olhos da opinião pública, os responsáveis pela insurreição e, por isso, os mais expostos à vingança. São acusados de querer derramar sangue, de desejar implantar na Alemanha a ditadura do proletariado e o terror, acusados inclusive por aqueles que não hesitaram durante quatro anos em aprovar os créditos de guerra. Em grandes cartazes podia-se ler: "Matai Liebknecht e Luxemburg, se quereis ter a paz do trabalho e do pão!" (Nota F). Rosa, como disse, nem pensa em fugir e um dia antes de sua morte escreve o artigo "A ordem reina em Berlim".

Nesse artigo, comovido e comovedor, escrito num tom de viva exaltação, ela nos dá, em alguns parágrafos, algumas das idéias políticas a que chegara durante a guerra. A idéia mestra é a de que a revolução não passa de uma velha toupeira ardilosa que prossegue necessária e infatigavelmente o seu caminho, independentemente das vitórias e derrotas momentâneas. Aliás, as derrotas são necessárias para a vitória final: "Onde estaríamos hoje sem todas essas "derrotas" das quais retiramos nossa experiência, conhecimento, força e idealismo que nos animam?" (3, p. 290). Convenhamos que pode parecer magro consolo a idéia da necessidade da derrota para a conscientização da classe. Não seria então a luta parlamentar menos penosa e mais eficaz? Contra essa suposição, Rosa lembra que, emboça no plano parlamentar parecesse que na Alemanha se voava de vitória em vitória, o resultado da "grande prova histórica" do 4 de agosto de 1914 foi, na realidade, "uma derrota moral e política esmagadora, um desmoronamento inaudito, uma bancarrota sem igual. As revoluções, em contrapartida, não nos trouxeram até aqui senão derrotas, mas essas derrotas inevitáveis são precisamente a garantia reiterada da vitória final" (3, p. 291 ).

E a derrota de janeiro não se deveu à falta de energia revolucionária das massas mas a falhas das direções (Nota G). "As massas estiveram à altura da sua tarefa. Fizeram desta "derrota" um elo na série das derrotas históricas, as quais constituem o orgulho e a força do socialismo internacional. Eis porque a vitória florescerá sobre o solo desta derrota" (3, p. 292). O artigo conclui com a imagem da revolução reerguendo-se da derrota, clamando: "Eu fui, eu sou, eu serei!"

Haveria idéia mais otimista que a da revolução seguindo seu caminho necessário, lógico, utilizando as derrotas para delas renascer, revivificada? Não encontraríamos aqui um eco hegeliano? Sabemos que para Hegel o que existiu no mundo de mais nobre e belo foi sacrificado no altar da história. Caminhamos por entre ruínas. Contudo, como o símbolo da fênix que renasce das próprias cinzas, das ruínas surge o novo, purificado e transformado. Assim como, para Hegel, sem a dor, a paciência e o trabalho do negativo não se atinge a desalienação da consciência, também para Rosa o proletariado precisa passar pelo calvário da derrota para se libertar. O mergulho nas trevas é um momento necessário da ascensão para a luz.

Entretanto, no artigo em questão, ela exprime um otimismo mitigado. Parece que uma sombra de dúvida paira no horizonte. Explico. Rosa escreve derrota entre aspas para que fique evidente que a considera apenas um fracasso contingente, uma sombra no caminho luminoso da revolução. Mas a palavra aparece também sem aspas. Afinal, a partir do profundo abalo que o proletariado acabara de sofrer, ela não pode ter apenas uma visão otimista da história. É curioso no texto esse entrelaçamento dos dois significados da derrota, o que talvez revele que Rosa não está assim tão certa da inexorabilidade da vitória final (Nota H).

Mas naquele momento, apesar das possíveis dúvidas, ela não pode recuar e cumpre o seu destino. A revolução, vista como implacável, arrasta-a no seu caudal e Rosa, por coerência com toda uma vida em defesa dessa idéia, permanece em Berlim, ao lado dos coinpanhéiros de sorte. Ela que havia nascido, nas suas próprias palavras, para "cuidar dos gansos", fora arrastada "no redemoinho da história do mundo". Perante a história e a revolução o indivíduo não conta.

Contudo, não é dessa idéia que quero me ocupar aqui, mas sim daquela outra que constitui, a meu ver, o núcleo de toda a sua obra, tanto teórica quanto prática, e que também aparece no artigo citado: a crença inabalável na energia revolucionária das massas. É justamente a essa confiança sem limites na ação criadora das massas proletárias que se liga a sua idéia de democracia indissoluvelmente unida à revolução. Em outras palavras, a democracia real implica em igualdade social, possível apenas se o proletariado tomar o poder. Nas suas palavras: "Não há democracia quando o escravo assalariado se senta ao lado do capitalista, o proletário agrícola ao lado do Junker numa igualdade falaciosa, para debaterem concertadamente, parlamentarmente, os seus problemas vitais" (3, p. 274). Por outro lado, a revolução proletária, tal como a concebe, ou é realizada num clima de inteira liberdade que permita a autonomia das massas, ou reproduzir-se-á novamente a dominação da maioria pela minoria. Esta idéia é exposta com a maior clareza nas notas redigidas na prisão, no verão de 1 91 8, conhecidas sob o título de A Revolução Russa.

Rosa, nesse texto, procura criticar e, ao mesmo tempo, compreender a polftica autoritária dos bolcheviques. Explica que Lenin e Trotsky viram-se forçados pelas circunstâncias - o avanço da contra-revolução - a adotar duras medidas repressivas que acabam por atingir a população como um todo. O isolamento a que se viram condenados obriga-os a uma determinada política, desnecessária caso a revolução alemã viesse em seu socorro. Entretanto, apesar de reconhecer que, de maneira geral, os bolcheviques não tinham alternativa, ela não aceita que façam da necessidade virtude, o que ocorre quando recomendam a sua tática política a todos os partidos revolucionários.

Medidas autoritárias, terror, não são para ela solução para o aviltamento da sociedade, decorrente da dissolução da ordem burguesa. Entende que o terror é uma espada de dois gumes ou mesmo uma espada sem fio: a mais draconiana justiça militar não só é impotente contra explosões lumpenproletárias da sociedade, como acaba sufocando a própria energia revolucionária. "Todo regime de estado de sítio que se prolonga leva inevitavelmente ao arbítrio e todo arbítrio tem um efeito deprimente sobre a sociedade" (3, p. 237). Numa palavra, o terror é impotente ou perigoso para a revolução.

Mas, afinal, onde se encontraria a origem dessa política autúritária que Rosa Luxemburg condena? Na dissolução da Assembléia Nacional Constituinte. O episódio é conhecido: os bolcheviques argumentavam que a Constituinte havia sido eleita sob Kerenski, na época da coalizão com a burguesia, portanto antes da Revolução de Outubro e que a sua composição não mais refletia a constelação de forças presente. Pois bem, diz ela, só restava então aos bolche viques convocarem uma nova Assembléia Constituinte saída da Rússia revolucionária e não suprimirem toda e qualquer Assembléia!

Rosa argumenta que é justamente em tempo de revolução que instituições representativas como a Assembléia Constituinte fazem sentido. Em momentos assim deixam de ser meros mecanismos burocratizados, mortos, para se transformarem em representantes dos anseios populares. "Quando a revolta ruge nas fábricas, oficinas e ruas" os representantes do povo não têm outro remédio senão ouvi-Ia. "Por sua efervescência e seu ardor, a revolução cria justamente essa atmosfera política leve, vibrante, receptiva, na qual as vagas do estado de espírito popular, as batidas do coração da vida do povo vêm agir instantaneamente, de maneira maravilhosa, sobre os organismos representativos" (3, p. 229). Numa palavra, "o movimento vivo da massa" (3, p. 230) pressionando incessantemente os organismos democráticos, vivifica-os. Ela reconhece que, como toda instituição humana, as instituições democráticas têm seus "limites e lacunas". Contudo, eliminar a democracia, solU9ão a que recorreram Lenin e Trotsky, é pior que a doença que procuraram curar. Tal remédio "obstrui, com efeito, a única fonte viva a partir da qual podiam ser corrigidas as insuficiências congênitas das instituições sociais: a vida política enérgica, sem entraves, ativa, das mais largas massas populares" (3, p. 230).

Dito de outra maneira: as "largas massas populares" só podem efetivamente dominar caso haja liberdades democráticas: imprensa livre, direito de associação e reunião. Apenas no interior de uma vida política inteiramente livre, "toda a massa do povo" pode educar-se, formar-se.

Nesse sentido, Rosa critica o que denomina de concepção "simplista" de Lenin a respeito do Estado, qual seja: assim como o Estado burguês não serve senão para oprimir a classe operária, o Estado socialista seria também apenas um instrumento de coerção sobre a burguesia. Contra essa concepção, Rosa lembra, com muita pertinência, que enquanto a dominação da burguesia não requer a educação política da massa, "para a ditadura do proletariado esta educação é o elemento vital, o ar sem o qual não pode existir" (3, p. 234).

Contrariamente aos bolcheviques Rosa Luxemburg identifica democracia e ditadura do proletariado. Esta, no seu entender, "reside na maneira de aplicar a democracia" (3, p. 240) e não em suprimi-Ia. Ou seja, é a democracia sem limites que permite à classe intervir energicamente, questionando os direitos adquiridos e as relações econômicas da sociedade burguesa, condição prévia para a transformação socialista. Em outras palavras, a ditadura só pode ser "obra da classe e não de uma minoria que dirige em nome da classe" (id.). Já os bolcheviques, ao separarem (aliás, como Kautsky) ditadura e democracia, acabam-na convertendo na ditadura de "um punhado de homens políticos, isto é, uma ditadura no sentido puramente burguês, no sentido da dominação jacobina" (3, p. 238).

Essa comparação entre os bolcheviques e os jacobinos já fora feita por ela num texto de 1 904, intitulado Questões de organização da social-democracia russa. Contestando o paralelo traçado por Lenin entre o revolucionário social-democrata e o jacobino (Cf. 2, p. 21 5), Rosa mostra as diferenças radicais que separam as organizações blanquistas e as socialistas. Aquelas, inteiramente desligadas da vida quotidiana das massas, ficavam encerradas num "conspirativismo excessivamente centralizador", ao passo que as organizações socialistas estão intrinsecamente ligadas à ação dos trabalhadores. Enquanto a organização de tipo jacobino, vanguardista, leva de fora a consciência à classe, a social-democracia, tal como Rosa a entende, não é externa à classe, mas "o próprio movimento da classe operária".

Contra o partido vanguarda, separado das massas, a defesa do partido classe. Contra medidas políticas repressivas, a justificação das liberdades democráticas. Entretanto, Rosa toma cuidado para se distinguir tanto dos bolcheviques quanto dos liberais no que toca à questão da democracia. Embora concorde com Trotsky quando este afirma que "como marxistas nunca fomos idólatras da democracia formal", Rosa, herdeira fiel de Marx, esclarece que sentido dá à formulação: não ser idólatra da democracia formal significa saber distinguir, na democracia burguesa, sob a igualdade e a liberdade formais, a desigualdade e a exploração sociais. O que não implica em rejeitar a liberdade e a igualdade mas em "incitar vivamente a classe operária a não se contentar com a pele, mas a conquistar, ao contrário, o poder polrtico para encher a casca com um novo conteúdo social" (3, p. 240). Em suma, significa substituir a democracia burguesa pela democracia socialista e não rejeitar toda democracia. Essa democracia começa hoje, com a tomada do poder pelo partido socialista e não num longínquo futuro radioso, após ter sido criada a infra-estrutura econômica socialista.

Rosa Luxemburg está portanto muito longe de ser defensora da democracia como um valor universal ou como consenso da maioria. Embora para ela a revolução só possa ser vitoriosa se apqiada pela maioria do proletariado, esta maioria não é previamente dada, mas conquistada como resultado da ação polrtica e sindical. E justamente porque "não é a tentativa desesperada de uma minoria para modelar o mundo à força, segundo o seu ideal", a revolução proletária, diferentemente das revoluções burguesas, não precisa recorrer ao terror, ao derramamento de sangue, ao crime político (Cf. 3, p. 272).

Entretanto, embora condenando o terror, Rosa não descarta, de forma alguma, a necessidade de medidas coercitivas no combate aos inimigos da revolução (Cf. 3, p. 232). A partir da constatação óbvia - agora referindo-se à Alemanha - de que os capitalistas não se curvarão sem resistência a medidas socialistas tomadas por um Parlamento ou por uma Assembléia Nacional qualquer, de que não renunciarão jamais de bom grado aos seus privilégios, ela mostra que são indispensáveis meios de pressão para que a vitória da revolução seja possível.

Porém, o tema que me interessa e que, a meu ver, constitui o fio condutor da reflexão política de Rosa Luxemburg é outro e pOderia ser sintetizado assim defesa, em qualquer circunstância, da iniciativa criadora das massas populares. São elas o verdadeiro sujeito da história. Assim como "Thalatta, o mar eterno", escreve ela numa carta, as massas "contêm em si todas as possibilidades latentes: mortal calmaria e enfurecida tempestade, baixa covardia e selvagem heroísmo. A massa é sempre aquilo que precisa ser, de acordo com as circunstâncias, e está sempre pronta a tornar-se totalmente outra do que aquilo que parece." Tal como o mar que, de . acordo com o tempo, revela gamas de cores inesperadas, assim as massas, guardando em si potencialidades insuspeitas, desenvolvem-nas conforme o clima político em que vivem. E a atmosfera propícia para a efetivação do que de melhor elas contêm é oferecida pela revolução e "seu princípio inovador, a vida intelectual que suscita, a atividade e auto-responsabilidade, . portanto a mais ampla liberdade." Estas "são o único sol que cura e purifica" (3, p. 237).

 

NOTAS

A  - Segundo Badia (1, p. 387), ela teria podido fugir, como outros dirigentes, mas nem pensa nisso.

B   - Os membros do Partido Social Democrata (SPD) contrários à guerra realizam uma conferência nacional em janeiro de 1 9 1 7 e são expulsos do partido. Formam então o Partido Social Democrata Independente (USPD). A Liga Spartakus constitui uma tendência dentro do USPD até 30 de dezembro de 1918 quando, fundindo-se com outros grupos, passa a contituir o Partido Comunista Alemão (KPD).

c - Para se ter uma idéia do seu tamanho, basta saber que quando a revolução começou a Liga Spartakus não tinha em Berlim mais de 50 homens (4, p. 725).

D        Badia classifica de contraditório o comportamento polrtico de Rosa Luxemburg. Enquanto no congresso de fundação do KPD ela tem uma apreciação mais justa das relações de força (daf sua posição moderada), nos artigos na Rote Fahne exalta as ações das massas e exorta-as a continuar por esse caminho.

E        - Liebknecht assinara uma proclamação esclarecendo que "o comitê revolucionário (que ele dirigia com Ledebour e Paul Scholze, delegados revolucionários. Estes eram um organismo nascido pouco antes da revolução nas fábricas de Berlim.) assumia provisoriamente as funções governamentais." Quando, a 1 4 de janeiro, Rosa Luxemburg leu este texto no Vorwarts (órgão central do SPD), teria ficado aterrada e dito a Kiebknecht "Mas Karl, e o nosso programa?" (1, p. 383 e 4, p. 728). Rosa não concorda com Liebknecht, mas também não tem coragem de desaprovar o homem mais popular junto às massas de Berlim.

F        - É bom lembrar que o Vorwarts tamber!) entra na campanha anti-spartakista.

G        - Rosa escreve, criticando o USPD: "A direção não cumpriu seu papel". Para Badia, a crftica valeria também para a própria Rosa.

H       - Comentadores como Lõwy e Geras, por exemplo, criticam a leitura de Rosa como fatalista na medida em que a palavra de ordem Socialismo ou Bartiárie, que ela passa a utilizar após o advento da guerra, mostraria que o socialismo é apenas uma possibilidade. Por seu lado, Badia critica uma certa interpretação que vê nela uma herofna antiga, marcada pelo Fatum, voltada a uma morte trágica e sabendo-o. Para ele, Rosa está sempre cheia de otimismo e de confiança no futuro, no que seria uma autêntica humanista (Cf. 1 , p. 388).

 

LOUREIRO, I. M. - Rosa Luxemburg: revolution et democratie. Trans/Form/Ação, São Paulo. 1 1 : 61 -67, 1 988.

RESUM: Y aurait-il un /ien indissoluble entre révolution et terreur? De nos jours, une partie de ce qui a été autrefois la gauche y croit Gontre f'idée de révolution, saisie come la source du totalitarisme, on propose le renforcement de la démocratie. Get article a f'intention de contribuer à ce débat en montrant f'alternative révolutionnaire et démocratique présentée par Rosa Luxemburg. Pour elle la démocratie n'est pas une valeur universelle abstraite mais justement le résultat d'un processus révolutionnaire ou les masses prolétariennes, agissant dans la plus large /iberté, lancent les fondements d'une "nouvelle époque". Néanmoins la révolution allemande ou Rosa Luxemburg et Karl Liebknecht ont eu un róle de premier plan avorte et ils sont assassinés. Gette défaite trace, d'une certaine maniere, le destin de f'Allemagne contemporaine.

UNITERMES: Révolution; démocratie; socia/isme; bolchevisme; spartakisme.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 . BADIA, G. - Rosa Luxemburg, journaliste, polémiste, révolutionnaire. Paris, Editions Sociales, 1 975.

2.    LENIN, W. I. U. - Un paso adelante, dos pasos atraso Ediciones en Lenguas Extranjeras. Moscou, s/d.

3.    LUXEMBURG, R. - Textes. Paris, Editions Sociales, 1 982.

4.    NETTL, J. P. - La vie et f'oeuvre de Rosa Luxemburg. Paris, Maspero, 1 972.

5.                 WEFFORT, F. C. - Por que democracia ? São Paulo, Brasiliense, 1 984.



[1] Comunicação apresentada no Colóquio 1 789 - Sombras e Luzes, promovido pela ANPOF no "campus" da USP em outubro de 1 987 .

[2] Departamento de Filosofia - Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação UNESP - 1 7500 - Marnia - SP.