Cristina Diniz MENDONÇA[2]
RESUMO: Na conferéncia que pronunciou no Brasil, em Araraquara, Sartre, na linha direta de Questão de Método, retoma o tema - que a Resisténcia colocara na ordem do dia - das relaç6es entre a teoria e a prática. Ora, cabe perguntar por que o autor, no umbral dos anos 60, reativa, de maneira tão decisiva, uma problemática que privilegiara nos idos do pós-guerra. A resposta a esta questão deve ser buscada, a nosso ver, nos desdobramentos da célebre polémica dos anos 50 em torno dos ensaios de Sartre "Os Comunistas e a paz" e, portanto, no cenário polftico-filosófico da época.
UNlTERMOS: Existencialismo; marxismo; revolução; liberdade; engajamento; praxis; dialética.
Em 1 978, numa de suas últimas entrevistas, Sartre faz o seguinte balanço de sua trajetória intelectual: "Sim, escrevi duas obras de filosofia pura - O Ser e o Nada e Cf/lica da Razão Dialética -, mas é um pouco fora daquilo que gosto de fazer" (7, p. 95). Balanço à primeira vista curioso, sobretudo quando se tem em mente o tão caracterfstico gosto da tradição universitária francesa pela "filosofia pura".
Essa mise en perspective feita por Sartre de sua própria obra ganha luz nova com a rE;lcente publicação de uma conferência pronunciada pelo aUJor quase 20 anos antes (setembro de 1960) no Brasil, em Araraquara. Nela, Sartre leva adiante a tese polêmica já esboçada na Questão de Método e dispara bombasticamente: "Não pode mais haver filósofos neste momento". Nesta tese - que remete diretamente ao problema do estatuto da filosofia no nosso tempo, ou melhor, para usar uma expressão de Adorno, remete ao problema da "sobrevivência" da filosofia depois de Hegel e de Marx (Nota A) - encontra-se, um dos lados mais contundentes do pensamento sartriano. Renunciando explicitamente ao nome de filósofo, Sartre resgata o "projeto" original que acalentou aquele movimento de renovação filosófica que, sob o nome de "existencialismo" e animado pela palavra de ordem "rumo ao concreto", ocupou o primeiro plano do cenário intelectual francês do pós-guerra. Com efeito, não podemos nos esquecer que os "existencialistas", tendo descoberto a história, a polftica e o marxismo através da experiência da Guerra e da Resistência - experiência essa demolidora de antigos valores e de antigas certezas -, entraram em cena justamente para contestar o que Simone de Beauvoir chamou de "velho idealismo tradicional dos universitários franceses" (2, p. 269). A marca registrada desse "velho idealismo" é, segundo Sartre, o "horror à dialética" (3, p. 1 25). Ora, uma "filosofia concreta" (primeira denominação do existencialismo) não poderia mesmo ignorar a dialética e o marxismo - essa "filosofia insuperável de nosso tempo", como diz Sartre. O marxismo tornou-se, então, a pa,1ir do pós-guerra, o objeto privilegiado das reflexões dos "existencialistas". No entanto, o problema que se coloca é o seguinte: em que medida o existencialismo pode verdadeiramente aproximar-se do marxismo? Ou melhor, é possível essa aproximação? Em que consiste, afinal, a leitura "existencialista" de Marx?
Na Conferência de Araraquara - cujo tema principal é justamente a relação entre o existencialismo e o marxismo - Sartre, na linha direta da Questão de Método, apresenta sua teoria como um apêndice da teoria de Marx. Desenvolvendo-se à sombra do único verdadeiro "Saber" de nossa época - o marxismo -, o existencialismo preservaria, contudo, uma relativa autonomia a qual, aliás, justificaria sua própria razão de ser. Tal autonomia visaria preencher uma "falha", um "vazio" do pensamento marxista (Nota B). Mas qual seria, então, essa "falha"?
A Conferência de Araraquara pretende mostrar, ainda mais claramente do que a Questão de Método, que falta ao marxismo uma filosofia da existência (Nota C).
Ora, esse projeto de vincular existência e dialética, filosofias da existência, fenomenologia e marxismo, fora também, como se sabe, o projeto de Merleau-Ponty nos anos 40 (Nota D). Fiel herdeiro das análises de Kojeve, Merleau-Ponty procurava, naqueles idos do pós-guerra, reconcialiar Kierkegaard, Husserl e Heidegger com Hegel e Marx. Tal tentativa de reconciliação abriu uma porta para o diálogo do existencialismo com o marxismo. À época da Conferência de Araraquara o propósito sartriano era, justamente, juntar aquilo que Merleau-Ponty chamara de "as duas metades da posteridade hegeliana", ou seja, a filosofia da existência e o marxismo.
Procurando resgatar a importância do indivíduo e do particular, a interpretação "existencialista" do marxismo tem, sem dúvida, uma preocupação central: fazer a crítica de uma certa leitura economicista de Marx que, utilizando um esquema rudimentar de explicação causal, entende a teoria como reflexo, cópia da realidade econômica. Nessa luta contra o mecanicismo revela-se a grande importância da tarefa empreendida pelo existencialismo francês, qual seja, mostrar a necessidade de separar a teoria de Marx das interpretações que a desfiguram.
A Conferência de Araraquara, contudo, põe em evidência a ambigüidade dessa tarefa. Por um lado, Sartre pretende voltar áo marxismo original que foi descaracterizado por seus epígonos. Por outro lado, essa "volta" a Marx é feita a partir de categorias próprias às filosofias da existência e à fenomenologia, estranhas, portanto, ao marxismo. Trata-se, pois, de uma "tradução" do marxismo para a linguagem existencialista - tradução essa que resulta num alargamento, num ."inchaço", conforme expressão de Merleau-Ponty, das noções marxistas para nelas introduzir o ponto de vista da filosofia da existência.
A peculiaridade dessa leitura de Marx permite que Sartre tente incorporar ecleticamente (como, aliás, Merleau-Ponty também já o fizera) o cogito cartesiano ao marxismo. Dada a exigência de recuperar o particular, o indivíduo, a subjetividade e a existência, o autor julga necessária uma teoria que estabeleça um vínculo entre Descartes e o marxismo, privilegiando, assim, o papel da consciência na história. Embora a guerra, permitindo a descoberta de Marx, tenha também significado para aquela geração de intelectuais resistentes um abalo na filosofia cartesiana, isso não quer dizer que eles pretendam superar verdadeiramente o cartesianismo característico da tradição universitária francesa. Pelo contrário, tanto Sartre como MerleauPonty parecem acreditar que a superação da filosofia cartesiana traz consigo o risco do economicismo. O existencialismo visa, justamente, professar um marxismo que não exclua o cogito cartesiano. Nesse sentido, a Conferência de Araraquara é incisiva: "O cogito cartesiano é a única maneira, hoje, de conservar uma base para uma antropologia que queira realmente compreender o homem como um ser que é livre, que age, que não deve ser oprimido" (4, p. 87). O cogito tem, pois, um papel fundante: é a base, o fundamento, da "antropolo;a marxista" que Sartre se propõe a desenvolver. Lembremos ainda unia passagem da Conferência: "A noção de cogito me remete imediatamente para fora e para a dialética. O cogito aqui não é mais do que um momento. É o momento da partida. Se não se parte da idéia da liberdade, do cogito na sua formalidade, de sua certeza, de seu absoluto, teremos perdido o homem. ( ...) Desta maneira eu queria lhes mostrar que o procedimento filosófico a que penso se deva recorrer para fundamentar a Antropologia é a reintegração do cogito na dialética. ( ...) A liberdade e o cogito são uma única coisa; liberdade, cogito, é a fonte de todo valor ( ...) . Se a partir daí se compreende isto, então creio que se pode retornar a uma filosofia marxista muito mais livre ( . . . )" (4, p. 97, 99, 1 01 , 1 03).
Pretendendo, pois, ao mesmo tempo incorporar a teoria de Marx e preservar os fundamentos filosóficos do existencialismo, a análise sartriana termina por conduzir a uma metamorfose, ou melhor, a uma perda de identidade dos conceitos marxistas. Resulta daí um gênero híbrido o "marxismo fenomenológico" (Nota E) - que, exatamente por tentar vincular princípios teóricos diferentes, é perpassado por constante ambigüidade. Donde o caráter escorregadio, as oscilações e a tensão interna que dilaceram os textos do autor no momento em que ele pretende aderir ao marxismo (Nota F).
Como ficamos? Vê-se, pois, que o resultado dessa tentativa de amalgamar existencialismo e marxismo é problemático. Se, por um lado, esse amálgama encerra um aspecto progressista (a descoberta do marxismo e a luta contra o espiritualismo dos universitários franceses), por outro, encerra também um aspecto conservador. Ao propor essa mistura eclética de cogito e dialética, de Descartes e Marx, Sartre não faz senão conservar o ecletismo que é a marca registrada da tradição acadêmica francesa. Além disso, ao privilegiar o papel da consciência, o autor está sendo fiel ao espiritualismo universitário vigente. Nesse sentido, não há nenhuma ruptura radical com a tradição que se pretende justamente questionar. Trata-se, antes, de aclimatar essa velha tradição aos novos tempos, aos "tempos modernos"; trata-se de reorganizá-Ia a partir de seus próprios pressupostos, e não de romper com eles. Nessa perspectiva, poderíamos dizer a respeito do "marxismo existencial" o que o próprio Sartre disse sobre a crítica de Kierkegaard a Hegel: é um "protesto idealista contra o idealismo". Não obstante o projeto original do existencialismo tenha sido, como já indicamos, a crítica do "idealismo" da tradição filosófica francesa, Sartre, ao enredar nos meandros de uma filosofia da consciência, ao propor uma mistura eclética de marxismo e cartesianismo, termina pagando um tributo a essa tradição, ou melhor, sendo seu fiel herdeiro naquilo que ela encerra de espiritualismo e de ecletismo.
Contudo, o reconhecimento dessa filiação do existencialismo à tradição universitária francesa não nos permite eclipsar seu lado inovador. O progressismo desse movimento desencadeado pela geração herdeira da Resistência consistiu sobretudo em ter colocado a história e a política no centro da reflexão filosófica, renovando, assim, os meios universitários franceses e . mostrando, de maneira decisiva, que a filosofia não pode mais se afastar das grandes questões próprias à sua época. Essa vinculação íntima entre a filosofia e seu tempo permitiu, por sua vez, tirar o marxismo da indiferença a que os universitários franceses o haviam relegado. O existencialismo teve, pois, o mérito de reativar temas clássicos da história da filosofia à luz dos problemas teóricos de nosso tempo e das transformações do mundo contemporâneo (Nota G).
É nesse contexto que podemos compreender melhor a recusa sartriana da "filosofia pura" (Nota H): trata-se de uma recusa a toda filosofia que não seja uma reflexão sobre os problemas de sua época, em suma, que não seja práxis. Ora, visto que o marxismo é apresentado por Sartre como a única filosofia que dá conta dos problemas de nosso tempo (ele é insuperável porque as condições que o engendraram não foram ainda superadas), o existencialismo não poderia mesmo se definir como uma nova filosofia (que seria uma mera abstração). Donde a renúncia do autor ao nome de filósofo e sua definição do existencialismo como uma "ideologia", ou seja, um território encravado no interior da única "filosofia reinante" hoje - o marxismo. Nesse sentido, cabe lembrar mais uma passagem da Conferência de Araraquara: "De minha parte, chamo de ideologia simplesmente ao fato de que, no interior da filosofia reinante - no interior, pois, do marxismo -, outros trabalhadores surgem depois do desaparecimento dos primeiros grandes filósofos e estão obrigados a ir adaptando perpetuamente o pensamento às mudanças quotidianas, dando um balanço nos acontecimentos na medida mesma em que se processam. ( ... ) Na minha opinião, os assim chamados filósofos da existência deveriam,d e preferência, ser denominados ideólogos da existência." (4, p. 45). Procurando refletir sobre as "mudanças quotidianas", ou melhor, sobr a situação histórica presente, os "ideólogos da existência", sob a influência da Revolução Russa, da Guerra e da Resistência, tiveram o mérito de recolocar na ordem do dia o grande problema que a Revolução Francesa já colocara para Hegel: o problema das relações entre a teoria e a prática.
Nesse sentido, Sartre, na Conferência de Araraquara, apresenta a filosofia como "uma ação sobre o mundo, no sentido de que na9ce da ação e prepara a ação" (4, p. 25). Fazendo da idéia. (própria do jovem Marx) de "realização da filosofia" o centro de suas reflexões e, nessa medida, remetendo explicitamente ao problema das relações entre a filosofia e a revolução, a teoria e a prática, o autor retoma aqui, de maneira incisiva, o famoso tema do engajamento: "Este conhecimento prático da Filosofia faz do filósofo um homem que deve se comprometer até o fim, pura e simplesmente porque já está comprometido e deve, assim, responder, em cada caso, diante de todos por sua filosofia como por seus atos" (4, p. 27). Ora, esta passagem reencontra diretamente o propósito original da revista Les Temps Modernes de ser a expressão de sua época: "Visto que o escritor não tem nenhum meio de se evadir, queremos que ele abrace estreitamente sua época; ela é sua única chance: ela é feita para ele e ele é feito para ela" (5, p. 1 2). Donde o objetivo imediatamente político de Les Temps Modernes, anunciado por Sartre já na abertura de seu número inaugural: pôr o pensamento em contato com a prática e, nessa perspectiva, "concorrer para produzir certas mudanças na sociedade que nos rodeia" (5, p. 1 6).
Todavia, cabe perguntar por que Sartre, na COl]ferência de Araraquara, ou seja, no umbral dos anos 60, retoma de maneira tão decisiva esse tema - típico do pós-guerra - do "compromisso" do intelectual com o mundo. A resposta a esta questão deve ser buscada, a nosso ver, nos desdobramentos da famosa polêmica dos anos 50 em torno dos ensaios de Sartre "Os Comunistas e a Paz" e, portanto, no cenário político-filosófico daquele período. Senão, vejamos. Como se sabe, no início dos anos 50, o otimismo revolucionário que se seguiu à Libertação cede lugar a um período de tal desencanto político que leva Merleau-Ponty a falar em "história em crise". Referindo-se àquela época de refluxo revolucionário, Simone de Beauvoir escreve: "As esperanças socialistas de 44 estavam mortas" (Nota I; 1 , p. 237). É exatamente nesse momento - quando não 'é mais possível ter dúvidas sobre os descaminhos da Revolução Russa e quando o tão acalentado mito da Resistência, a união nacional, é desfeito - que ocorre a . ruptura política entre Sartre e Merleau-Ponty (Nota J).
É curioso o resultado da "decepção de 50", para usar a expressão de Sartre, sobre o pensamento político dos dois filósofos. Partindo das mesmas interrogações e partilhando da mesma perplexidade diante dos caminhos traçados pela história, Sartre e Merleau-Ponty chegam a respostas políticas diferentes. Se o primeiro opta pelo apoio ao Partido Comunista, o segundo propõe um "novo liberalismo", calcado em Weber. Nas Aventuras da Dialética, como se sabe,a condição da crítica merleau-pontyana à política comunista (ratificada em Humanismo e Terror) é a crítica à própria teoria de Marx.
A polêmica em torno dos ensaios "Os Comunistas e a Paz" - as críticas de Merleau-Ponty e de Lefort, a resposta de Sartre a Lefort e a defesa de Simone de Beauvoir - constitui um importante testemunho do clima de perplexidade política que reinava entre os intelectuais de Les Temps Modernes nos anos 50. Malgrado as diferenças que separam Sartre, Simone de Beauvoir, Merleau-Ponty e Lefort, todos eles partem de uma questão que, implícita ou explicitamente, norteia suas reflexões: o que fazer quando a possibilidade da revolução fugiu do horizonte? Curiosamente, ao longo da polêmica, todos se acusam mutuamente de releger a revólução à condição de mito e de aniquilar com o marxismo. A insistência em tais acusações prenuncia uma situação que, algum tempo deltois de encerradas essas querelas que tanto enriqueceram a vida intelectual francesa, Sartre define nos seguintes termos: "Na França, o marxismo paralisou" (6, p. 1 1 7).
Nesse sentido, a polêmica em torno de "Os Comunistas e a Paz" é o retrato de uma época que assistiu ao fim do otimismo revolucionário e o prenúncio do que será o grande tema recorrente na filosofia francesa sobretudo a partir dos anos 60: a "crise" do marxismo e da dialética (Nota K).
Ora, é exatamente contra esse declínio da tradição revolucionária na França que Sartre está lutando à época da Conferência de Araraquara. Tentando fazer frente à nova tendência de crítica ao marxismo que passa a predominar entre os intelectuais franceses, e, além disso, embalado pelo entusiasmo político nascido de sua recente visita a Cuba ("vimos uma revolução triunfante", relata Simone de Beauvoir), Sartre procura reativar, naquele início da década de €O, os temas - que a Resistência colocara na ordem do dia - da Revolução e do engajamento. Mais do que isto: ao denunciar, desde a Questão de Método, aquilo que chamou de "ideologia do recolhimento", nosso autor tem em mente, sobretudo, o desfecho melancólico da tentativa
merleau-pontyana de aproximação do marxismo. Ainda que de maneira sempre implícita, o principal alvo das críticas sartrianas é, a nosso ver, o "pensamento em retirada" do últime Merleau-Ponty (Nota L).
É justamente em nome do "engajamento" do escritor com o mundo· que Sartre denuncia o "repúdio à história" como a tendê'hcia dominante na França de então. Essa "tendência", representada principalmente pela nova voga estruturalista que já se faz sentir na cena intelectual francesa, constitui, segundo Sartre, uma tentativa de golpear mortalmente o marxismo e, com ele, a história e a dialética (Nota M). Não por acaso, grande parte da Conferência de Araraquara é dedicada a uma crítica do estruturalismo, particularmente o de Lévi-Strauss. Privilegiando a sincronia em detrimento da diacronia, a duração das estruturas em detrimento do processo histórico, a antropologia estrutural de Lévi-Strauss representa, para Sartre, "um assalto a fundo contra o tempo". O verdadeiro divisor de águas entre o pensamento sartriano e a corrente estruturalista é, sem dúvida, a teoria marxista da história e da revolução. Nessa nova onda intelectual francesa a revolução não tem papel de destaque; pelo contrário, é relegada à condição de mito - um mito romântico que se pretende desarraigar (Nota N).
Ora, o "engajamento" de Sartre, sua fascinação pela liberdade e pela revolução, o afasta radicalmente da voga estruturalista. O pensamento sartriano, forjado na luta contra o totalitarismo, erigiu definitivamente os ideais de liberdade da Resistência em seu princípio condutor. E, para Sartre, liberdade e revolução caminham juntas. Entendida justamente como um instante privilegiado de liberdade, a revolução, ou melhor, a insurreição revolucionária, é exaltada pelo autor como um momento raro de transparência e de revelação na história.
Essa obstinação pela liberdade e pela revolução faz de Sartre o grande cavaleiro-andante de nossa época. Sua tentativa - claramente apresentada na Conferência de Araraquara - de vincular o pensamento à prática política, de refletir sobre os problemas concretos de seu tempo, é extremamente oportuna e fala de perto à nossa sensibilidade filosófica neste final de século tão sombrio. Em face do pessimismo da razão, colocado na ordem do dia pelos descaminhos da história e que povoa a reflexão filosófica de nossos dias, valeria, talvez, relembrar o alerta de Sartre, na Conferência de Araraquara, para os riscos, no caso de um processo de revigoramento do capitalismo, de um "empobrecimento do marxismo" cujo resultado poderia ser o "pulular de filosofias retardatárias do tipo liberal" (4, p. 37). Nesse sentido, ainda nesta Conferência, o autor formula aquilo que poderíamos considerar uma espécie de resposta tardia às Aventuras da Dialética, de Merleau-Ponty (Nota O): "Da mesma forma que uma filosofia explode sem ter sido realizada ou superada - e ela explode quando o sistema econômico-social que.' a engendrou é destruído -mistificações, suas idéias, suas reivindicações, seus homens, aquela filosofia, nascida no moassim também, enquanto o sistema subsiste, produzindo ainda suas mento em que o sistema tomou consciência de si mesmo, permanece insuperável. Por outras palavras, a filosofia de Marx é hoje insuperável. ( ...) A insuperabilidade faz com que ,todo home!11 que pense contra esta corrente, que pense em uma direção que julga melhor, mais avançada, acaba recaindo aquém dela. Ou melhor, reencontra uma velha filosofia, uma filosofia morta, ao pretender ir mais longe. Isso ocorre sempre que se quer, em nome do liberalismo, encontrar uma doutrina nova do homem contra Marx: retorna-se imediatamente ao homem liberai ( ... )" (4, p. 33-35). As farpas atingem, como se vê, diretamente o Merleau-Ponty das Aventuas da Dialética que, ao tentar dar um passo para além do marxismo, termina por restaurar aquilo que ele próprio havia considerado outrora (em Humanismo e Terror) um pensamento aquém do marxismo - o liberalismo, ainda que intitulado "novo". Mas se as farpas lançadas por Sartre alcançam o último Merleau-Ponty, alcançam também, sem dúvida, a tendência anti-marxista ora em voga nos meios intelectuais, particularmente na França e no Brasil; donde a atualidade desse alerta sartriano, feito em Araraquara já naquele início da década de 60, para os perigos de se ultrapassar Marx muito depressa. Tal alerta se faz ainda sentir vivamente nesses nossos dias em que tão facilmente se identifica marxismo e stalinismo, correndo-se, assim, o risco de cristalizar a história do vencedor.
A - Como se sabe, o marxismo começa pela "negação" da filosofia. O jovem Marx anunciou a morte da filosofia através de sua realização histórica concreta - realização essa que o autor condicionou à revolução do proletariado.
B - É preciso ressaltar que as análises de Sartre são ambíguas a esse respeito: ora o autor apresenta essa "falha" como característica do marxismo contemporâneo, ora pretende apontá -Ia na teoria do próprio Marx.
C - Essa tentativa de vincular marxismo e existencialismo é explicitada, por exemplo, nesta passagem: "Consideramos válidas todas as estruturas do marxismo, consideramos todos os condicionamentos na base como válidos, mas, desde a origem, queremos neles recolocar o projeto, desde a partida, desde esse nível. E queremos fazê- lo precisamente porque nenhuma dialética é possível se não parte dessa liberdade funda
mentai e imediata que é o projeto". (4, p. 95).
D - A trajetória dos dois filósofos é curiosa: Sartre só se aproxima realmente do marxismo no momento em que Merleau-Ponty passa a recusá-lo. Nos anos 50, nosso autor, segundo seu próprio depoimento, tenta desenvolver as teses que Merleau-Ponty defendera nos anos 40 e abandonara posteriormente. Voltarei a esse assunto mais adiante.
E - Esta expressão foi usada por Habermas para designar a tentativa semelhante do jovem Marcuse ("o primeiro marxista heideggeriano") de juntar marxismo e fenomenologia.
F - A análise sartriana, por exemplo, desliza com facilidade da perspectiva da classe social para a perspectiva do indivíduo isolado, ou do homem, tomado genérica e abstratamente.
G - Donde a importância que Sartre e Merleau-Ponty outorgam ao tema da Revolução.
H - Ainda que o próprio Sartre, cedendo muitas vezes à compulsão especulativa característica do espiritualismo universitário francês, tennine, como vimos, por enredar também nos meandros da filosofia na sua acepção mais tradicional - justamente a "filosofia pura" que ele questiona.
I - Vale enumerar aqui alguns fatos políticos que contribuíram para instaurar um clima de perplexidade entre os intelectuais de Les Temps Modernes: a descoberta dos campos soviéticos (revelação do Código de trabalho corretivo da URSS), o macarthismo, o redespertar da direita (eclipsada no pós-guerra), jornais comunistas apreendidos, militantes presos, o impacto da Guerra da Coréia.
J - Recorde-se que, em 1 953, Merleau-Ponty abandona Les Temps Modernes e em 1 955 torna pública sua divergência com o diretor da revista no livro As Aventuras da Dialética. Recapitulemos rapidamente a trajetória do pensamento polrtico dos dois filósofos. Ern "Materialismo e Revolução" (1 946) Sartre faz uma crítica radicai do stalinismo. Todavia, ern "Os Comunistas e a Paz" (1 952-1 954), ele marca seu apoio à polica do Partido Comunista. Por sua vez, Merleau-Ponty, que em Humanismo e Terror (1 947) opõe o marxismo revolucionário de Marx ao marxismo mecanicista, afirma nas Aventuras da Dialética (1 955) que o genne da degenerescência da teoria e da prática marxistas já estaria contido na própria teria de Marx.
K Nesse sentido, As Aventuras da Dialética de Merleau-Ponty está na vanguarda do debate filosófico francês em torno da tão celebrada "crise" do marxismo. A nosso ver, a análise merleau-pontyana está na origem das interpretações mais recentes que pretendem colocar o Gulag nos textos de Marx. Nessa perspectiva, o stalinismo seria decorrência do bolchevismo que, por sua vez, seria decorrência da teoria de Marx.
L - Cabe recordar que Merleau-Ponty, após sua ruptura corn o rnarxisrno, procura se retirar da vida pomica retirada essa que se consuma no prefácio escrito ern 1 960 para Signes. Neste prefácio, o filósofo, despedindo-se solenemente da história e da política, recolhe-se nos dornínios da "filosofia pura".
M - Não podemos nos esquecer que Merleau-Ponty está, de certa rnaneira, à frente desse movimento estruturalista. Em sua obra inacabada, O Visrvel e o Invisrvel, esboçada por volta de 1 959, já está presente a idéia - central no estruturalismo - de um processo sem sujeito e a crica de uma antropologia marxista. Além disso, Lévi-Strauss, reconhecendo uma afinidade entre seu projeto intelectual e o de Merleau-Ponty, lhe dedica o livro Pensamento Selvagem.
N - Nas Aventuras da Dialética, Merleau-Ponty já havia dito que a revolução proletária é um "mito" e uma "ideologia" que precisamos abandonar. Lévi-Strauss, por sua vez, no últirno capulo de O Pensamento Selvagem ("História e Dialética"), dedicado, como se sabe, a um exame crnico do pensamento sartriano, também se refere ao "mito da revolução".
O - É interessante lernbrar que Sartre nunca respondeu diretamente às críticas que Merleau-Ponty lhe endereçou nas Aventuras da Dialética.
MENDONÇA, C. D. - Sartre: la conférence d'Araraquara. Trans/Form/Ação, São Paulo, 1 1 : 45-52, 1 988.
RESUMÉ: Dans sa Conférence prononcée au Brésil, à Araraquara, Sartre, dans la méme ligne de pensée de Question de Méthode, reprend le theme - que la Résistance avait mis à /'ordre du jour - des rapports entre la théorie et la pratique. Or, on pourrait se demander pourquoi /'auteur, au seuil des annees 60, reprend, d'une maniere si décisive, un sujet qu'il avait privilegié dans les années de /'apres-guerre. La réponse à cette question, à notre avis, doit étre cherchée dans les développements de la célebre polémique des années 50 autour des essais de Sartre "Les Communistes et la Paix" et, par conséquent, dans le cadre politique et philosophique de I'époque.
UNITERMES: Existentialisme; marxisme; révolution; liberté; engagement; praxis; dialectique.