MARXISMO E FILOSOFIA: ALGUMAS CONS I DERAÇÕES SOBRE OS TEXTOS POLÍTICOS MERLEAU- PONTYANOS DO PÓS-GUERRA[1]
Cristina Diniz MENDONÇA[2]
RESUMO: A tentativa merleau-pontyana de aproximação do marxismo, empreendida nos idos do pós-guerra, é perpassada por constante ambigüidade. Não obstante o propósito do filósofo de se filiar à teoria de Marx, suas análises polfticas revelam-se distantes de suas intenções. Concebendo a história como uma "aventura " que escapa a qualquer esquema racional, Merleau-Ponty questiona, desde seus primeiros escritos, a dialética marxista entre lógica e contingência na história. A tensão interna que dilacera os textos do autor nos anos 40, anunciando (e preparando) a recusa da teoria da revolução estampada mais tarde nas Aventu ras da Di al ética, permite indagar se esse desfecho dos anos 50 não teria sido, ao invés de um corte no interior da obra, o resultado necessário dessa tentativa problemática de aproximação do marxismo a partir de categorias que lhe são estranhas (próprias às filosofias da existência e à fenomenologia).
UNITERMOS: Marxismo; existencialismo; attentisme marxiste; teoria da história; lógica e contingência na história; revolução; "liberalismo heróico" weberiano.
Com um passado fi losófico que remo nta ao pré-gue rra, enraizado na fenomenologia alemã e herdei ro da leitu ra kojevea na de Hegel, Merleau- Po nty inicia a seg unda metade dos anos 40 seu diá logo com o marxismo. Pa rtindo de uma interp retação " existe ncialista" de Marx, o fi l ósofo se la nça, naq ueles idos do pós-gue rra, numa tentativa de pensa r a histó ria e a po lítica vincula ndo-as às a rticulações da existê ncia. Sugestiva mente, o texto de abertu ra de Sens et Non-Sens - livro onde o auto r reú ne, entre outras, algu mas de suas reflexões sobre a história e a po l ítica - é uma meditação sobre C éza nne. A a rte apa rece sempre co mo o pano de fu ndo do pensa mento merleau- pontya no sobre a histó ria. Para além das tra nsfo rmações ocorridas na trajetória do fi l ósofo, permanece consta nte em seus textos a idéia de que cada momento histórico, co mo uma obra de a rte encerra em si uma existência si ngula r e, nessa medida, precisa ser compreendido na sua pa rticu la ridade e não à luz de uma su posta lóg ica iman ente ao cu rso da Histó ria. O problema das relações entre o pa rticu lar e o universa l, a conti ngência e a necessidade históricas, co nstitu iu, desde seus primeiros textos, o centro das desco nfia nças de MerleauPo nty a respeito do marxismo.
Os ca min hos da Revol ução Russa e a não internacionalização do processo revolucionário sig nifica ra m, pa ra nosso autor, o questi onamento das linhas mestras traçadas pela teoria ma rxista da histó ria. Conforme afirma em Sens et Non-Sens, a conti ng ência "bara lhou '! a lóg ica da histó ria co ncebida pelo ma rxismo. Após a experiência de 1917, Merleau- Ponty acred ita que não é mais possível aposta r na raciona lidade da história. Ao invés da rea lização da razão, o que ocorreu foi o advento de uma crise histó rica ou, na expressão do fi l ósofo, o "desca rri lamento" trágico da história e da dialética.
Quais as lições dessa crise? Desde a é poca de Sens et Non-Sens e Humanisme et Terreur - período em que mais procu rou se aproximar do marxismo - até os seus ú ltimos escri tos, a resposta de Merleau- Ponty, nesse particular, não mudou si gnificativa mente: é preciso co mpreender que a conti ngência e a ambigü idade estão no coração da histó ri a. Às vezes nas entrelin has, outras vezes clara mente tematizada, a idéia de uma história am bígua, caprichosa, dissi mu lada e não transpa rente à razão perpassa toda a obra merleaupontya na. A história é sempre apresenta da pelo fi l ósofo como o lugar do mistério e do equ ívoco - ela só se torna verdadeiramente inteligível em alguns ra ros momentos privi legiados. A experiência dos últimos anos exige, seg undo Merleau- Ponty, uma reflexão sobre a presença do não-senso na histó ria. Os rumos da revolução to rna ram evidente que o não-senso é pa rte co nstitutiva do processo histó rico e mostra ram, de ma neira decisiva, o aspecto absu rdo da histó ria.
Concebida como "fulgu ração da existência", a histó ria si gnifica pa ra Merleau -Ponty o domínio da indetermi nação: é uma "aventu ra" que esca pa a qualquer esquema racio nal. Procu rando col oca r o indivíduo, a liberdade e a consciência no centro da histó ria, o objetivo do autor é fazer a crítica das noções de necessi dade e de fi nal idade históricas. Se a existência humana é indeterminada - e a histó ria é a ilu stração da ex istência - como sustenta r que a revo lução está inscrita, ai nda que como possi bilidade, no cu rso do processo histórico? Embora de maneira implícita, esta questão atravessa toda a obra de Merleau- Ponty, no rtea ndo suas reflexões sobre a história. O que o fi l ósofo põe em dúvi da, desde o início, é a teoria que visl um bra a revol ução no fi m do ca minho perco rrido. Da í sua constante rese rva frente ao ma rxismo.
Nos anos que se seg uiram à Libe rtação - e mesmo nos textos considerados mais tarde po r Merleau-P on ty como a exp ressão de um momento de espe rança (Nota a) - já está presente no pensamento merleau- pontya no uma visão pessimista do processo histórico que, em fi ligrana, va i tecendo uma atitude cética a respeito da teo ria ma rxista da história e da revol ução.
É assim que no ensaio "Autour du Ma rxisme" (agosto de 1 945) encontramos Merleau Po nty profu ndamente hesitante face à teo ria de Marx. O objetivo do texto, no entanto, é fazer a defesa do ma rxismo contra as críticas que Thierry Mauln ier lhe ende reça ra (Nota b) - "Havia mu ita inj ustiça - esc reve o fi l ósofo - na censu ra que Thie rry Maul nier dirigia ao ma rxismo entendido co mo um materialismo abstrato". A crítica de certas fó rmulas ma rxistas que perm item "equ ívocos meca nicistas", acrescenta o autor, "não nos autoriza a transcender ou 'u ltrapassa r' a aná lise econôm ica, nem a abandonar o fio co nduto r da luta de classes" (6, p. 190). Esta afi rmação, entreta nto, será inteira mente desfeita no inte rior do p róprio texto de Merleau- Ponty.
Ao longo do ensaio, a análise merlea u- pontya na osci la: ora p rocu ra co loca r o marxismo a salvo das cr íticas a ele endereçadas, ora reconhece que essas críticas têm razão de ser. O cu rioso é que ta l osci lação va i sendo reso lvida (em bora não chegue a se reso lve rcompletam ente) co nforme Merleau-Ponty va i fazendo suas as rese rva s de Maulnier a respeito do marxismo. Nesse senti do, o fi lósofo escreve: "Não há, pois, qualquer fundamento pa ra as hesitações de Thie rry Maul nier dia nte do marxismo? Pelo co ntrá rio; pen sàmos que, desem ba raçadas de seu s motivos I Ireacioná rios", tais hesitações têm uma sign ificação p rofu nda e fo rm ulamos a crítica precedente justam ente para destaca r o que cha maremos de: o problema ma rxista em sua pu reza" (6, p. 209 ). Merleau-P onty critica a veemência das acusações de Maul nier à teo ria ma rxista, mas, ao mesmo tempo, i n'Co rpora suas hesitações dia nte desta teo ria.
Oual seria, então, esse "problema" ine rente ao marxismo que, seg un do MerleauPo nty, justificaria as desco nfianças de Maulni er? A anál ise merleau- po ntya na procu ra mostrar que o ma rxismo encerra uma "dificu ldade inte rna": a dialética entre lógica e conting ência na história. O mérito do livro de Maul nier esta ria, nessa medida, em te r aponta do um problema rea l capaz de qu estiona r a teo ria de Marx.
Me rleau- Po nty co nside ra que a presença da co nti ngência na história denu ncia a fragilidade do ma rxismo. "A conti ngência, escreve o fi l ósofo, sig nifica que a dia lética da história pode enterra r-se ou desviar-se em aventu ras, sem reso lver os problemas que pôs a nu" (6, p. 213). O ponto de vista de nosso autor co incide, agora, com o de Mau lnier: "Parece- nos que, para além de seus preconce itos, a ve rdade de seu livro reside na percepção cla ra de que há na histó ria, co mo diz Jean Hyppolite, " fatos dia léticos", embora não co nsiga aderi r à idéia de uma dialética ún ica da história" (6, p. 21 0-21 1 ). MerleauPonty ta m bém não pode aderi r a tal idéia - donde a impo rtânc ia que outorga às análises de Maulnier.
Indicando a necessidade de abandona r a "idéia teológ ica de um fu ndo racional do mu ndo", Merleau- Po nty fo rmula a hi pótese de que o processo histórico não se ria se não uma "série de dive rsões", um "mu ndo de acidentes" sem garantia de um desenvo lvimento lógico (6, p. 21 3). Nessa perspectiva, "a história não seria mais um discu rso com uma seq üência determinada e cujo acaba mento poderia ser esperado com seg urança. Não mais um discu rso onde cada frase teria seu lugar necessário, mas, como pa lavras de. um bêbado, discu rso que ind icaria uma idéia que logo se apaga ria pa ra reapa rece r em seg uida e volta r a desa pa recer ainda uma vez, sem chegar necessa ria mente à sua expres são plena" (6, p. 213- 21 4). Compreen dida seg undo analogia com a ling uagem, a história é pois aprese nta da po r Merleau- Po nty como um di scu rso. E mais: trata r-se- ia, co nforme a hi pótese do fi l ósofo, de um discu rso tru nca do - "palavras de um bêbado". A história não seria porta nto um "raciocínio seq üente", como afirmará Merleau- Po nty, mais ta rde, co mentan do Weber (Nota c). Ao invés de uma determi nação constante, haveria na história cla rões de inteligibil idade, momentos de lam pejos que fazem sentido. Momentos efêmeros, é verdade, que iluminariam ra pidam ente a cena e logo se apagariam nova mente - fu lgu rações na escu ridão da histó ri a. Nessa medida, o processo histó rico não seria intel igível na sua total idade. Haveria, pois, uma opacidade da histó ria da mesma fo rma que o fi l ósofo afi rma haver uma "o pacidade da linguagem" (9, p. 333 ). "Em vez de um mu ndo inteligível" - esc reve Merleau- Po nty no prefácio de Sens et Non-Sens, de maneira, agora, muito mais afi rm ativa - " existem nú cleos irradia ntes se pa rados por nesgas de noites (pans de nuits )" (6, p. 8). Compreendemos então que, de acordo com essa concepção merleau- pontya na, a histó ria, como uma tela de Céza nne, permite- nos ca pta r insta ntes, flashes do mu ndo, mas, misteriosa, não se reve la tota lmente à razão (Nota d).
À medida que, no diálogo com Maul rner, Me rleau- Po nty deli neia suas reflexões sobre a histó ria, sua defesa do ma rxismo vai -se revelando mais e mais frág il, acanhada quase. Pensa ndo a histó ria como um conju nto de acide ntes, o fi lósofo prete nde mostra r a impossi bilidade de um co nhecimento rea l de seus ca mi nhos e de seus resu ltados. A experiência da Revol ução Russa, "em ba ra lhando os esquemas do marxismo" (6, p. 21 5), mostrou, seg undo Merleau- Po nty, que a co nti ngência prepondera sobre a lógica na histó ria. Em vez da dialética entre necessidade e co nti ngência históricas, nosso auto r prefere fa lar num "jogo" dos aconteci me ntos na história (6, p. 21 2). Dada a presença da conti ngência no processo hi Stó rico, "acaba r-se-á concl uindo", escreve Merleau- Po nty, "que a lóg ica e a história se divo rciam de so rte que a história empírica nu nca rea liza aquilo que nos pa rece ser a seq üê ncia da história" (6, 21 2). Se a histó ria é o domínio das incertezas, é preciso então questionar a noção de fi nal idade histórica: "A história compo rta veto res", afirma ainda o autor, mas isso não sign ifica que "nela as coisas se disponham em vista de um fi m" (6, p. 1 84). O co ro lário dessas reflexões deco rre, pois, necessa riamente: "ora, perdendo o ca ráte r de um porvir necessá rio, a revol ução não cessa de ser a dim ensão fundamental da histó ria? E, co m relação à história efetiva, que no fi nal das contas é a úni ca que impo rta, aquele que julga todas as coisas pelo ângulo da luta de classes não opera com uma perspectiva arbitrária?" (6, p. 21 2). Ao invés da pretendida defesa do ma rxismo, encontramos aqui, po rta nto, o questi onam ento da teo ria ma rx ista da histó ria e da revolução.
Merleau- Ponty p rocu ra reso lver a am bigüidade que pe rpassa sua aná lise tenta ndo, em algumas passa gens, aproxima r a teo ria ma rxista do ponto de vista de uma "teo ria existencia l da histó ria" (Nota e). "Reconduzido ao essencial", afi rma o autor, "o marxismo não é uma filosofia otim ista - é some nte a idéia de que uma outra histó ria é possível, que não há desti no e que a existência do homem é aberta. E a tentativa resoluta por esse futu ro que ninguém no mu ndo, nem fo ra do mu ndo, sabe se será ou não se rá" (6, p. 209 ). Nessa pe rspectiva, o ma rxismo poderia se r a teo ria capaz de inscrever a conti ngên cia no centro da história. Donde o esfo rço que Merleau- Ponty em preende no senti do de vincu lar a noção de lógica da história à idéia de drama. Descrevendo a histó ria como um drama onde os aco nteci mentos têm uma "si gn ificação humana", a anál ise do fi l ósofo aos poucos vai dilui ndo, justamente, a idéia de uma necessidade ima nente ao cu rso do processo hi stórico. Se não há um "fu ndo raci onal do mu ndo", escreve Merlea u- Po nty, "a lógica da histó ria torna -se apenas uma possi bi lidade entre outras" (6, p. 21 3). Já está p resente nas entrelinhas das reflexões do auto r a recusa - ex pl icitada mais ta rde - da idéia de que a dialética é a fo rma de um processo o bjetivo.
N ão obsta nte Merleau- Po nty pretenda sa lva r a teo ria de Marx das críticas que Mau lnier lhe di rigi ra, o problema da dia lética entre a necessi dade e a conti ngência na histó ria evid encia, a cada mom ento, a dificu ldade da relação do fil ósofo com aquela teo ria. Fina lme nte, o p roblema é rea berto de tal manei ra que não pode mais ser co nto rnado: "Se qu isermos apl ica r a análise ma rxista aos aconteci mentos que preenchem nosso tem po, tal anál ise se perde nos fenômenos tra nsversais, nas reações inesperadas, co rrendo atrás dos acontecimentos sem conseguir alcançá- los, e, em todo caso, sem nu nca antecedêlos. Um ma rxista lúcido, vendo como o esq uema da luta de classes se diversifica e mati za, acaba se perg untando se, de diversão em diversão, a história se rá, fi nalmente, a histó ria da luta de classes e se não está sonhando de olhos abe rtos" (6, p. 21 7). A afi rmação in icial de que não se pode "abandonar o fio condutor da luta de classes" foi, po rta nto, desmo ntada ao fongo das refl exões de Merleau- Ponty. Embora o fil ósofo ainda não dê uma resposta cla ra pa ra as qu estões que fo rmula sobre a verdade da teo ria marxista da histó ria, ele tam pouco pode sustentar uma defesa do ma rxismo. O tom de seu ensaio é sobretudo interrogativo. Essas inte rrogações, no enta nto, prepa ram as resposta s que encontra remos, mais ta rde, em Les A ventures de la Dialectique. Por enqua nto,ainda em dúvida se a concepção ma rxista da hi stória será validada pela própria histó ri a, MerleauPo nty fo rm ula aquilo que denominará posteriormente de "atitude de tem porização marxista" (attentisme marxiste ) (Nota f): "Se amanhã, co mo é possível, e mesmo provável após uma guerra, a luta de classes rea pa rece r e acusa r-se em todos os países do mu ndo, de novo as grandes lin has ma rxistas da história apa rece rão" (6, p. 21 7). Em com passo de espe ra, nosso autor coloca a teo ria ma rxista da histó ria entre pa rênteses.
Em meio às dúvidas e interrog ações daquele mo mento, uma certeza, no entanto, pe rmeia o ensaio "Autour du Marxisme": atualm ente, a luta de cl asses não é mais o motor da história. Pode volta r a sê- lo, mas, de fato, hoje ela não se faz presente. Mesmo afi rmando, co ntra Maul nier, que não se pode deixa r de lado a perspectiva da luta de classes, a análise merleau- pontya na não se direciona po r essa perspectiva. El a su rge no i nte rior do texto do fil ósofo como algo que ai nda pode, talvez, suscita r esperanças de transfo rmação socia l, mas não é co nstitutiva de sua anál ise. Pelo co ntrário, em nome da co nti ngência e das situações histó ricas pa rticu l ares, Merleau- Ponty vai mesmo qu estionar a idéia de luta de classes co mo "princípio ge ra l da história": "Contudo, perg unta mos se a po lítica eficaz pa ra um dado país não co nsisti ria em tenta r, bem ou mal, dar a si próprio um lugar neste mundo de acidentes ta l como é, em vez de ordenar toda sua co nduta pela relação que deve ma nter com a luta de classes, princípio geral da histó ria. Não há mais senti do em trata r a luta de classes como um fato essencial se 'não estive rmos segu ros de que a histó ria efetiva pe rmanece fi el à sua "essência", e de que os acidentes não tecem sua trama du rante longo tempo ou, mesmo, para sempre" (6, p. 213, Nota g). Embora nesse momento o fi l ósofo ai nda co nsidere a possi bilidade de um "reapa reci me nto" da luta de classes que a confi rme co mo um "fato essencial" da história, o pren ú ncio de seu ro mpim ento defi nitivo com o marxismo já pode ser aqui percebido.
No fi nal do texto, encontra mos a segui nte hi pótese: "O pro leta riado un ive rsa l, pesa ndo em todas as pa rtes do aparelho capitalista, destruindo-o pa ra su bstitu í-lo por uma ci vi lização socia lista, não se ria um fato, mas um voto, não uma fo rça existente sobre a qual poderemos nos apoiar, mas uma fo rça a ser criada, visto que, de fato, os pro leta riados nacionais podem ser seduzidos pelas "diversões" da história" (6, p. 21 4). Considerando que as "dive rsões" da histó ria questionaram o esquema ma rxista original, MerleauPonty já indica a necessi dade de "prolongar e renova r" certas anál ises de Ma rx (6, p. 207 ). Não por acaso, na ú lti ma nota do ensaio, o fi lósofo refere-se à impo rtância de · "prolongar no plano teórico as concl u sões práticas" adotadas por Le nin: "Poder-se-ia reti ra r uma teo ria da co nti ng ência da história de sua "percepção" ma rxista das situ ações" (6, p. 217). Se num primeiro momento Merleau-P onty tentou encontra r no marxismo essa "teoria da conti ngência da histó ria", mais ta rde, no enta nto, acred ita mos que vai buscá -Ia em Weber, recusa ndo defi nitiva mente a pers pectiva ma rxista da dial ética entre necessidade e conti ngência histó ricas.
O espírito do período de attentisme marxiste pode ser si ntetizado numa passagem de Merlea u- Ponty em "Pou r la Vérité" (novembro de 1 945) que co nfi rma as idéias centra is do texto ante rior: "Não afi rmamos que a luta de cla sses não desempen hará nu nca mais um papel essencia l na história mu ndial. Não sa bemos nada a esse respeito (... ). Afirmamos apenas que, no momento, ela está mascarada e latente (... )" (6, p. 302 ). A perpl exi dade face aos ca min hos traçados pela histó ria suspe nde as ce rtezas e leva Merleau- Ponty a reite rar, de certa manei ra, a tese já aprese ntada na Phénoménologie de la Perception: a ambigü idade da histó ria to rna o con heci mento histó rico ta mbém ambíguo (10, p. 201 ). Em "Pour la Vérité" o argu mento é fu ndamental mente o mesmo de "Autour du Marxisme": a histó ria, contra ria ndo a pe rspectiva ma rxista, não respo ndeu ao apelo da razão, ensina ndo que suas vias "são insondáveis" e que o ca minho por ela pe rco rrido é sem ga ra ntia. O fi l ósofo procu ra reafirmar a idéia de que a conti ngência e a ambigüidade estão inscritas no cu rso da históri a ini nterru pta mente.
O momento histó rico presente, acentua Merleau-Po nty, é eq u ívoco e nele não podemos reconhece r· o eixo centra l do esquema ma rx ista cl ássico. A luta de classes, ta l como foi descrita po r Marx, não tem lugar: está pa ra lisada. O que se evidencia hoje, contrariamente à inte rnacionalização do processo revol ucionário, é uma situação de refl uxo expressa pelo enfraquecimento histó rico do proleta riado. Embora essa constataçã o se faça na linha di reta de "Autou r du Marxisme", o fi l ósofo já ava nça agora algu mas co ncl u sões. Visto que os acasos sobrepuja ra m os fato res considerados esse nciais do desenvo lvi mento histórico, afi rma o autor, esta mos hoje mais próximos do advento da barbá rie do que do advento da huma nidade. Um si ntoma di sso pode ser detectado: "O proleta riado como cl asse está demasiadamente enfraquecido para pe rma necer no presente um fato r autônomo da história" (6, p. 288). Daí o diagnóstico de um "desca rrilamento da histó ria" que põe o marxismo em questão: "Os fato res naciona is, geog ráficos e psicológicos que se cruzam com a luta de classes emba ral ham as g randes linh as ma rxistas da histó ria" (6, p. 288, Nota h).
Me rleau-Ponty procu ra mostra r que a indeterminação do processo histórico, a opaci dade da prática social, enfim, o "eq u ívoco perpétuo da histó ria" (6, p. 292 ), colocam dificu ldades não reso lvidas pelo ma rxismo e justificam a necessi dade de uma "leitu ra do presente" (6, p. 299 ). Parti ndo de cada situação pa rticu lar, e não do esq uema geral da luta de classes, essa "leitu ra do p resente" deve leva r em conta o senso e o não -senso na história e, sob retu do, refleti r sobre a atualidade da co ncepção ma rxista da história. O fi lósofo já está co nsidera ndo a possi bilidade de se apagarem defi nitiva mente as lin has mestras da história ta is como o marxismo as traçou. Nessa medida, ainda que como hi pótese, a recu sa do marxismo co mo teo ria da histó ria e da revol ução está po rta nto esboçada nas reflexões merleau- po ntya nas do pós-guerra. No fi nal de "Pou r la Vérité" encontra mos ex pl icita da a questão que, em bora não respo ndida naquele momento, di recionou o ensa io: "Podemos saber se há ainda uma dialética e se a história, fi nalmente, será racional?" (6, p. 303 ). Alguns anos mais ta rde, no a rtigo "La Politique Parano'iaq ue" (ju lho de 1 948 ), Merleau- Ponty, atendo-se ainda às interrogações, delim ita melhor a questão: o momento da explosão revol ucionária de 1917 teria, naquele insta nte, confirmado a lóg ica da história descrita pelo marxismo ou, pelo contrário, te ria sido um "caso privileg iado excepcionalmente favorável à conce pção ma rxista da histó ria"? (8, p. 327 ).
É, sem dúvida, em Humanisme et Terreur (Nota i) que as ince rtezas e inte rrog ações próprias ao período de attentisme marxiste tra nspa recem de ma neira decisiva. Expressão maior do pensa mento político do fil ósofo nos anos 40, este livro nos perm ite acompanhar mais de perto os meand ros do diálogo merleau- po ntya no com o marxismo, suas oscilações e ambigü idades. Retoma ndo e leva ndo adia nte as anál ises de Sens et NonSens, Merleau-Ponty pretende ago ra, a pa rtir de um a reflexão sobre o roma nce de Arth ur Koestler, Darkness at Noon, dar co nta de uma situação histó rica concreta: os proces sos de Mosco u.
. Afi rmando que o livro de Koestler "coloca o problema de nosso tempo mas não o faz como deve" (7, p. 84 ), Merleau- Po nty procu ra mostra r que o autor "é estra nho ao marxismo", ou mel hor, trata -se de um "marxista medíocre". E, exata mente por não entender o verdadei ro senti do do marxismo, Koestler tam pouco pode entender o verdadeiro sen tido dos processos de Moscou. Ao longo de Humanisme et Terreur vamos percebendo po rq ue "há bem po uco marxismo em Le Zero et /'Infini": Koestler não te ria compreendido a "idéia de um a histó ria dialética", esta ndo, pois, di stante da "lógica viva da histó ria descrita po r Marx" (7, p. 97, 99, 1 04 e 1 08). O alvo das críticas de nosso auto r é a deg radação a que o "cientificism o socio lóg ico" - do qual Koestl er é legítimo representante - co ndenou a teo ria de Marx e cujo resu ltado é uma dialectique brisée (7, p. 254). Co ntra tal de gradação, o fi l ósofo pretende recu pera r o "bom método marxista" (7, p. 1 34) para poder desvenda r o "seg redo" dos processos de Moscou. E ju stamente essa te6tativa de recu peração do marxismo e da dialética que, co nforme acred ita mos, determina a ambigüidade que atravessa Humanisme et Terreur. Merleau-Ponty se pro põe a fa lar em nome da teoria ma rxista, mas sua anál ise, no entanto, revela -se distante de suas intenções.
O objetivo do livro é perfeita mente definido na res posta que Merleau-Ponty endereça àqueles que o critica ra m: "... retoma mos a qu estão da violência com unista que Le Zéro et /'infinit de Koestler punha na ordem do dia. Não a veriguamos se Boukharin dirigia verdadeiramente uma oposição organizada, nem se a execução dos velhos bolchevistas era verdadeiramente indispensável à ordem e à defesa nacional da U. R. S. S. Nosso propósito não era refazer os processos de 1 937. Era compreender Boukharin como Koestler procura compreender Roubachof, pois o caso Boukharin põe em evidência a teo ria e a prática da violência no co mu nismo, na medida em que ele a exe rce sobre si mesmo e motiva sua própria condenação. P rocu ra mos reencontra r, sob as convenções de linguagem, o que Bukharin verdadeiramente pensava. A expl icação de Koestler pa receu- nos insuficie nte" (7, p. 41 -42; os grifos são nossos). Esta passa gem expõe as linhas gerais da aná lise merleaupontya na dos processos de Moscou: trata -se de "compreender Bukharin" co mo Koestler procu rou compreender o pe rso nagem de seu ro mance, ou seja, tenta ndo decifra r seu ve rdadeiro pensam ento "sob as convenções de ling uagem". Deixa ndo de lado a história social e po l ítica da qual Buk harin fazia pa rte, Merleau- Po nty se propõe a examinar seu discurso tal co mo fo i tra nscrito em L 'Acte d'Accusation, Compte rendu sténographique des Débats. O leitor de Humanisme et Terreur pode perceber então, desde o iníci o, a grande dificu ldade do pro pósito merleau- pontya no: embora pretenda fazer uma an álise ma rxista dos processos de Moscou, Merleau- Ponty apaga, justa mente, co mo bem observou Lefo rt, seu "contexto sócio -h istórico" (Nota j).
Com efeito, em Humanisme et Terreur os processos de Moscou são descritos, na exp ressão do próprio Merleau- Po nty, como uma "ceri mônia de li nguagem" (7, p. 11 3 ). Limita ndo -se ao exame do de bate entre Buk harin e Vichynski, Merleau -P onty defi ne os processos co mo sendo "de fo rma e de estilo revol ucio nários" (7, p. 11 4). O conteúdo dos processos - os fatos histó ricos que determinaram a aniqui lação pura e sim ples de qu ase toda a geração de 1917 - não é jamais co nsiderado. Busca ndo o se ntido que se ocu lta sob a li nguagem man ifesta dos de bates, a anál ise me rleau- po ntya na procu ra ressa lta r o aspecto su bjetivo dos processos de Moscou: trata -se de mostra r o drama do homem dilacerado entre suas intenções e o resu ltados de seus atos - "o drama da responsabil idade histó rica" (7, p. 1 67). Nessa medida, o auto r pode afirma r que "os processos pe rmanecem no su bjetivo" (7, p. 11 4) e só podem se r co mpreendidos "entre homens co nvencidos de fazer a história" (7, p. 11 5-1 16 ).
O objetivo do livro é ainda uma vez ex pl icitado: "não pretendemos polemizar: limita mo- nos a enu ncia r o que pod iam ser os processos de Mosco u nas con dições em que estava m co nstitu ídos" (7, p. 11 3 ). Quais co ndições? Ao procu rarmos a resposta nas páginas de Humanisme et Terreur encontraremos, su rpreend enteme nte, em vez de uma análise da situação histó rica co ncreta da sociedade soviética, uma longa refl exão sobre a história recente da F rança: a Guerra, a Ocu pação e a Resistência. A experiência da Resistê ncia e os processos dos co la boradores são rememo rados pa ra iluminar os processos de Moscou. Nas pa lavras de Merleau- Ponty: "A experiência da gue rra pode nos ajudar a com preender os dilemas de Rou bachof e os processos de Moscou" (7, p. 1 33). Ou então: "Procu ra mos com preender Bou kha rin (... ) tra nspo rtando- nos à nossa recente experiência" ( 7, p. 43 ). E ainda: "Como os processos dos co laboradores desinteressa dos, os processos de Moscou se riam o d rama da honesti dade su bjetiva e da traição o bjetiva" (7, p. 1 33). Tomando, pois, a Guerra e a Resistência como pa no de fu ndo histórico de suas reflexões, Merleau- Po nty coloca o p roblema das relações entre su bjetividade e objetividade na história.
Não podemos nos esq uecer que a Resistência significou para Merleau-Ponty um momento privi legiado no qual a história se to rnou intel ig ível, ou melhor, as rel ações entre o ind ivíduo e a história se to rnaram tra nspa rentes. Tratava -se de um momento em que a história fo i posta "em suspenso", exig indo do homem "decisões fu ndam entais" (7, p. 43 ). Já em "La Guerre a eu lieu" (1 945 ) nosso auto r exa lta ra a Resistência co mo uma ação histórica que era ta mbém pessoal e determinada quase que excl usiva mente pelos "elementos psicológicos e mo rais da política" (6, p. 266 ). Naquela situação histó rica lim ite, afi rma Merleau-Ponty, naquele momento de pu ra neg ação, o in divíduo ocu pou o centro da histó ria e a pol ítica era uma "relação de consciência a consciência", de "homem a homem". O resistente co loco u na ordem do dia a busca da li berdade e das "rel ações transpa rentes entre os hom ens". A Resistência, acresce nta o auto r, foi a experiência da "fel ici dade em meio ao perigo" (6, p. 266, 267 e 268). O fi l ósofo procu ra, pois, descrevê- Ia co mo uma "aventu ra" ao mesmo tempo individual e histó rica - uma espécie de heroísmo da consci ência num mom ento po l ítico decisivo. Com efeito, podemos encontra r nas análises merleau- pontya nas o resistente vi nculado à figura do herói: "Os resistentes não são loucos nem sábios, são heróis" (7, p. 1 30, Nota k). Neste ponto, a analogia com os processos de Moscou torna-se mais cl ara: Bukharin, co mo o resistente, é o herói chamado a uma "decisão fu ndamental" (Nota I).
Através de Humanisme et Terreur pode -se pe rceber que o "trágico" da pol ítica su rge justa mente qua ndo, no momento opo rtuno, é preciso decidir qual é a melhor escolha. "Quem leu melhor a história?" (7, p. 1 60) - pergu nta Merleau-Ponty. Ou então: "Forçados a esco lher entre o respeito das consciências e a ação, (... ) nossa escolha não é sempre boa e sem pre má?" (7, p. 68-69). Nessa medida, o homem político vive "o pesadelo de uma responsa bilid ade invo lu ntá ria e de uma cu lpabil idade em si que su stentava já o mito de É dipo: É dipo não quis esposa r sua mãe nem mata r seu pa i, mas ele o fez e o fato vale como cri me (. •. ). A con sciência desse confl ito da história humana está no seu mais al to ponto na sociologia de Marx Weber" (7, p. 69 -70 ). Este é o ún ico momento do livro em que o autor, uti liza ndo-se do estudo de Raymond Aron, La Sociologie Allemande Contemporaine, faz referência explícita a Weber. E ntreta nto, é possível reco nhecer traços das anál ises de Weber na própria interpretação merleau - pontyana dos processos de Moscou co mo o "drama da honesti dade su bjetiva e da traição objetiva". Nesse se ntido, ca beria lembrar aqui apenas uma passagem de Aron (cujo livro é justa mente a fo nte da leitu ra de Weber feita por Merleau- Po nty): "O caso do protesta ntismo é privilegiado (por Weber) po rq ue perm ite apreende r o ca ráte r dram áti co da história: o pa radoxo das conseq üências que co ntrad izem a intenção dos homens" (1, p. 116 ). Mas não é esse, exata mente, o eixo da análise dos processos de Moscou fe ita por Merleau- Po nty? Em Les A ventures de la Dialectique o pensa me nto weberiano será apresentado como um "liberalismo sofredor, he róico" (1 1, p. 42 ). No ensaio "Autour du Ma rxisme", o autor afi rmava que o verdadei ro marxismo admite uma "moral he róica que prescreve aos homens pôr em jogo suas próprias vidas" (6, p. 1 89). Agora, em Humanisme et Terreur, o homem político é o herói que, devido a uma "esco lha fu nda mental", desafia as "forças exte rio res" - ele é um personagem do "drama da responsabilidade histórica".
O livro de Koestl er re p resenta para Merleau- Ponty justa me nte a oportu nidade de reto mar esse problema - já colocado na ordem do dia pela Resistência - das relações entre o indivíduo e a política. É assi m que podemos ler em Humanisme et Terreur: "Os próprios erros de Koestler na sua fo rmu lação dos problemas nos co nd uzem às segui ntes questões: Há d e, fato uma altern ativa da eficácia e do hu mano, da ação histó rica e da moralidade? (... ) E verdade, conforme a fa mosa frase de Na poleão, que a política é a moderna tragédia onde se enfrenta m a verdade do indivíduo e as exigências da generalidade, como, na tragédia antiga, a vontade do herói e o desti no fixa do pelos deuses?" (7, p. 1 08- 1 09, Nota m). A resposta pa ra essas questões não é fo rmulada expl icita mente, mas é indicada na própria inte rpretação merleau- pontya na dos processos: "Há pois um drama dos processos de Mosco u, mas do qual Koestler está longe de dar a verdadei ra fó rmula. (... ) A tragédia com eça quando o mesmo homem co mpreendeu ao mesmo tempo que ele não poderia rte gar a fi gura objetiva de suas ações, que ele é o qu e é pa ra os outros no contexto da história e que, entreta nto, o motivo de sua ação conti nua sendo o va lor do homem ta l qual ele o sente imediatam ente" (7, p. 1 55-156). Colocando solenem ente o confl ito no coração do homem (tomado genericamente), Merleau -P onty, que pretendera justa mente fa lar em nome das situações histó ricas pa rticu lares, põe de lado a especifici dade dos processos de Moscou, desca racteriza ndo -os: "Toda a trag éd ia grega su bentende esta idéia de um acaso fu ndamenta l que nos faz todos cu lpados e todos inocentes porque não sa bemos o que faze mos. Hegel exprimiu admiravelmente a imparcia lidade do herói que vê que os seus adversá rios não são necessa riam ente "maus", que em um sentido todo o mu ndo tem razão e cum pre a sua ta refa sem espe ra r ser aprovado por todos nem intei ra mente por si pró prio" (7, p. 69 -70). Na "tra gédia" do homem que se vê co nsta ntemente "às voltas co m as fo rças exte riores das quais ele é secreta mente cúmplice", o auto r si ntetiza, fi nalm ente, sua inte rpretação dos p rocessos de Moscou: "A divisão não é mais entre o homem e o mu ndo, mas entre o homem e ele próprio. Eis todo o seg redo das confissões de Mosco u" (7, p. 1 60). "Seg redo" que, co mo assi nala mos, o fi lósofo procu rou desvelar atendo-se à "ceri mônia de linguagem" dos debates e a pa rti r da ex pe ri ência histó rica da Resistência.
No enta nto, isso não encerra senão uma meia-verdade sobre a anál ise merleau- po ntyana dos processos de Moscou. In si nuando-se nas refl exões do fil ósofo e determinando sua di reção, ree ncontra mos em Humanisme et Terreur o problema centra l dos ensaios de Sens et Non-Sens: a relação entre a lóg ica e a conti ng ência na história. É assi m que ao longo do pa ra lelo esta belecido pelo autor entre a Resistência e os processos de Moscou, podemos ler o seg ui nte: "A glória dos resistentes assi m co mo a indignidade dos colaboradores su põe, ao mesmo tempo, a co nti ngência da história, sem a qual não há cul pados em pol ítica, e a raciona lidade da histó ria, se m a qual só existem loucos" (7, p. 1 30). Merleau -Ponty designa co mo "pa radoxo da história" (7, p. 1 32) o fato dela se r ao mesmo tempo necessá ria e conti ng ente. Todavia, a aná lise merleau - pontya na sugere que o eq uilíbrio entre esses dois aspectos da histó ria é instáve l e que a conti ngência aca ba preva lece ndo sobre a necessidade histó rica. E é aqui que resi de o sentido profu ndo do drama dos processos de Moscou: "No processo de 1 938, o patético pessoal se apaga e se vê transparecer um drama que está ligado às estrutu ras mais gerais da ação humana, um trág ico verdadei ro que é o da co nti ngência histórica" (7, p. 1 57).
Nessa medida, a idéia que no rteou as reflexões do fi lósofo em Sens et Non-Sens é reafi rmada em Humanisme et Terreur, fu ndam enta ndo sua interpretação dos processos de Mosco u: a conti ngência é o fator essencia l da história. Mais uma vez, a noção de necessidade histó rica vai se ndo dilu ída ao longo da análise merleau- pontya na até ser ide ntifica da co m "linhas de fatos que se trata de prolongar pa ra o futu ro" (7, p. 1 59). Enco ntra mos agora ex plicitada uma idéia que não era senão su gerida nos ensaios anterio res e que será mais ta rde desenvo lvida: "a histó ria é terro r porq ue há uma conti ng ência" (7, p. 1 90). Le mbremos mais uma passagem do livro: "A história é terror porque preci sa mos avança r não seg undo uma linha reta, sempre fácil de traça r, mas nos reerg uendo a cada momento sobre um a situação geral que muda, co mo um viaja nte que prog red iria numa paisagem instável e modificada por seus próprios passos, onde o que era obstácu lo pode to rna r-se passagem e onde o ca minho reto pode to rna r-se sinuoso" (7, p. 1 94, Nota n). Os "jogos da história", seus "rodeios", - desig nados em "Autour du Marxisme" co mo "dive rsões" - to rna m o processo histórico o lugar das "cru elda des", "iron ias" e "enigmas". "Há na história", escreve Merleau-Ponty, "uma espécie de malefício: ela solicita os hom ens, tenta -os, eles crêem ca minhar no se ntido dela, e sú bito, ela se fu rta, o aco ntecim ento mu da, demonstra com fatos que outra co isa era possível. Os homens que ela abandona e que não pensava m ser se não seus cú mpl ices encontram-se, súbito, os insti gadores do cri me que ela lhes inspirou" (7, p. 1 29, nota o). Cap richosa, "dia ból ica" mesmo, co nforme expressão do autor, a histó ria possui dentro de si um "gênio malig no" ca paz de "transforma r a oposição em traição" (7, p. 1 63, Nota p). É essa concepção da histó ria como terro r que está su bjacente à aná lise merleau- po ntya na do "mistério" das confissões de Moscou.
Nesse sentido, nosso autor co nsidera insuficientes as inte rpretações dos processos fe itas tanto por Vichynski co mo por Trotsky, pois elas apagariam a "am biva lência da histó ri a" (7, p. 1 68). No pri meiro caso, escreve o fi lósofo, "os acusados são pu ra e si mplesme nte cul pados"; no seg undo, "pu ra e simplesme nte inocentes" (7, p. 1 67). Am bos deixa riam de lado justamente o eixo centra l da análise de Merleau-Ponty: a am bigüidade da história faz dos homens po l íticos perso nagens de um drama. Podemos com preender mel hor agora o recu rso me rleau- po ntya no à fi gura do he rói pa ra ex plicar determi nadas situações históricas: o homem po lítico se ria aquele que decide enfrenta r o "gênio maligno" de uma histó ria "dia bólica". Seus co nfl itos, ou sua tra gédia, se riam o outro aspecto da am big ü idade da história que se encontra, ela própria, tragicamente di lacerada entre suas "dive rsões" e suas "lin has de fo rças". Da mesma fo rma que em Sens et Non-Sens, nas anál ises de Humanisme et Terreur a dialética entre a lógica e a co nti ngência históricas transforma -se em "jogos" no inte rior de uma história am bígua. O erro de Trotsky, afi rma Merleau-Ponty, fo i justa mente ter acreditado demais na ra cional idade do processo histó rico ( donde o títu lo do ca pítu lo - " Le ratio nal isme de Trotsky " ), perdendo, assim, a dimensão am bígua da histó ria confirmada pelo exe mplo do caso Bukharin (donde o título do capítulo - "A ambig üidade da história seg un do Bukharin"). A análise trotskista não te ria com preendido verdadei ra mente as co nfissões de Mosco u porque, expulsando a ambig üidade do processo histórico, não conseg uiria dar conta dos momentos em que a história "deixa de.?er racional". Trotsky, na tentativa de preserva r os " postulados raci onal istas" da teo ria da revo lução pe rmanente - a idéia de uma "h istória transpa rente ou sem espessu ra" -, acà baria, mu itas vezes, negando o - pa pel da co nti ngência e do pa rticular na história (7, p. 171, 177 e 178). Da í sua im possi bil idade de com preender a situação histó rica particu lar da sociedade soviética à época dos processos de Moscou.
Exemplo privilegiado das ambigü ida des que ca racte riza m os textos merleau- po ntya nos do pós-g ue rra, a aná lise dos processos de Moscou feita por Humanisme et Terreur nos desco ncerta à primei ra vista. Percebe- se ao longo de todo o livro osci l ações e dificu ldades que não se reso lvem. No próprio fato de Merlea u- Po nty critica r Trotsky porque este não teria dado co nta da particu la ridade da situação da U. R. S. S. em 1 938 já se pode ter um indício dessa s dificu lda des. Como procu ramos assi nalar, é justa me nte a particu laridade daquele período histórico que se perde na análise do fi lósofo. Sem col oca r qua lquer problema relativo à conju ntu ra soviética, nosso auto r destitu i os processos de Moscou de seu conteúdo o bjetivo, tra nsformando -os, pa ra usarmos uma expressão com a qual Sartre desi gnara a Resistência, numa "batalha ceri mon iosa" (14, p. 662 ) - "cerimônia de linguagem" no caso da interpretação merleau- po ntya na (Nota q). Em que medida, então, Merleau-Ponty pode critica r Trotsky em nome da pa rticu laridade da situação histórica em que ocorrem os processos de Moscou?
Todavia, as dificu ldades que atravessa m o livro são ainda maiores. E nco ntra mos em Humanisme et Terreur afirmações que discrepam intei ram ente do eixo di reto r da aná lise do fi lósofo. "O marxismo - escreve por exem plo o autor - é, no essenci al, essa idéia de que a história tem um senti do, - em outros term os, que ela é intel ig ível e orientada (... )" (7, p. 236 -237, Nota r). Ora, co mo já pudemos observa r, é exata mente esse tipo de visão da história que Merlea u- Ponty - ainda que pretendendo reco rrer ao "bom método marxista" - questiona em todas as suas análises.
Il ustração da concepçã o me rleau- pontya na da história e da pol ítica, o exa me dos processos de Moscou feito pelo fi l ósofo revela - nos, diferentemente da dial ética ma rx ista entre necessi dade e conti ngência históricas, a idéia de uma histó ria que é sobretudo indeterm inação. Não obsta nte suas críticas poste rio res a Sartre, Merleau-Ponty, ainda que de uma ma neira esco rregadia, desloca para o âm bito da histó ria as indeterminações e ambigü idades da co nsci ência. Lem bremos ainda uma pa ssagem de Humanisme et Terreur: "Vichynski se coloca nas coisas onde não há indeterminado. Queria apagar esse lugar de indetermi nação, a consciência de Bou kha rin, onde havia coisas não sabidas, zonas de vazio, deixar ver as coisas que fez ou deixou de fazer" (7, p. 1 45, Nota s). A história na concepção merleau- po ntya na, é am bígua exata mente por abrigar em seu centro os co nfl itos da co nsciência. Embora o fi lósofo tenha afirmado num dos ensaios de Sens et Non-Sens que "a po l ítica é im possível na perspectiva da co nsci ência" (6, p. 256 ), sua interpretação dos processos de Moscou não os esta ria red uzindo, justa mente, conforme ex pressão contida naqu eles ensa ios, a um "duelo de co nsciências"? Ou seja, esta ríamos, nesse caso, dia nte de uma reflexão desenca rnada na qual a história, sem conteúdo objetivo, to rna-se o lugar onde se desenvolve a tragédia de heróis - perso nagem, ela própria, do drama da existência. Se em "Autour du Marxisme" o auto r apresento u a história como um discu rso, em Humanisme et Terreur esse discu rso assu me características mais defi nidas: é a narrativa da aventu ra de heróis. O cu rioso é que essa reflexão, dista nte de uma anál ise histórica concreta, oco rra exata mente no momento em que Merleau- Ponty pretendeu fi liar-se ao marxismo - que não é, segu ndo o próprio auto r, um "sistema de idéias", mas "uma leitu ra da histó ria efetiva" (7, p. 1 44, Nota t). Convertendo os processos de Moscou num drama da consci ência filosófica, ou, co mo tão bem afirmou Lefo rt, transformando os im passes do opositor em "tragédia intelectual" (Nota u), a análise merleau - pontya na não esta ria, nesse momento, co rrendo o risco de co nve rte r a própria história em ato filosófico?
Podemos pois dizer que Humanisme et Terreur co nfi rma e contradiz ao mesmo tempo as teses dos ensaios de Sens et Non-Sens. Se o auto r pretende, ta mbém nesse livro, fa lar em nome da co nti ngência e do pa rticu lar na história, sua inte rpretação dos processos de Moscou an ula, co mo vim os, justamente a pa rticu laridade daquela situação histórica. Nessa medida, acredita mos haver nas análises merleau- pontya nas do pós-g uerra uma te nsão inte rna consta nte entre seus pro pósitos e seus resu ltados. Donde as ambigü idades e oscilações presentes nos textos do período.
O se nti do profu ndo de tais ambigü idades nós o encontramos no privilégio teó rico que nosso autor pretende co nceder ao marxismo, mas que su as anál ises, co ntudo, term inam por relativiza r. Se o o bjetivo ex pl ícito de Merleau-Ponty é fazer a defesa da teo ria de Marx, suas próprias reflexões su gerem que ta l teo ria co nstitu i, no enta nto, sobretu do um problema pa ra o fi lósofo. Em Humanisme et Terreur, ainda mais si gnificativamente que em Sens et Non-Sens, a osci lação entre fascínio e reserva dia nte do marxismo é co nstitu tiva do pensa me nto do autor. Embora as anál ises de Merleau -Ponty term inem po r destituir a histó ria de toda objetividade, a idéia da síntese entre su bjetividade e objetividade no processo histórico perpassa Humanisme et Terreur como um so nho que o fi l ósofo acalenta e cuja rea lização lhe pa rece possível através da teo riq de Marx. Como co nciliar, então, esse sonho com a perspectiva da "teo ria existenci al da história"? "O marxismo", escreve o autor, "não é nem a negação da su bjetividade e da atividade humana, nem o mate rialismo cie ntificista de onde Rou bachof pa rti u, - ele é sobretudo uma teo ria da su bjeti vidade co ncreta e da ativi qade co ncreta, isto é, com prometidas na situação histórica" (7, p. 1 07, Nota v). Essa "teo ria da su bjetividade co ncreta", no enta nto, é entendida por Merleau-Ponty co mo uma percepção da história que faz apa rece r a cada momento as linhas de fo rça e os veto res do presente" (7, p. 1 98). Na aná lise merleau- pontya na a "dia lética do su bjetivo e do objetivo" - ex p ressão de "nosso en raiza m ento na verdade" - é descrita co mo "comprometi mento de cada co nsci ência co m as outras numa história comum" (7, p. 1 96). Percebe-se, pois, o deslizamento do senti do: da idéia de "dialética do su bjetivo e do objetivo" passa mos, sem disti nção, à idéia, presente desde o com eço do livro, de "dialética da intersu bjetividade concreta", ou, mais precisame nte, "dia lética" das "relações entre o eu e o outro" {7, p. 1 23).
É bem verdade que Humanisme et Terreur procura apresenta r o marxismo co mo uma teoria da revo lução do proleta riado. É através da "cond ição proletá ria", afirma MerleauPonty, que "o marxismo quer destru ir a alte rn ativa da po l ítica su bjetiva e da pol ítica objetiva" {7, p. 21 5). A análise merleau- pontyana pa rece, pois, recu pera r aqui o po nto de vista da teo ria ma rxista cl ássica. Esta teoria, escreve ainda o fi lósofo, "o uto rga ao proleta riado uma missão, mas não provi dencial, histórica, e isso quer dizer que o proleta riado, co nsidera ndo o seu papel na co nstel ação histó rica dada, vai em di reção a um reco nheci mento do homem pelo homem" (7, p. 21 6). Nessa medida, "a teo ria do pro leta riado não é no marxismo um anexo ou um apênd ice. É verdadeiramente o centro da doutri na" (7, p. 217). É por esta razão que, "se qu isermos compreender a violência ma rxista e fazer o bala nço do comu nismo de hoje, precisa mos volta r à teo ria do proleta riado" (7, p. 21 8). Merleau-P onty, repo rta ndo-se a Marx e a Len in, faz, então, uma exposição detal hada so bre o ca ráter histo rica mente revo lucioná rio da classe operária.
Ao longo dessa exposição percebe -se que o objetivo do fil ósofo é contra po r a perspectiva ma rxista clássica às esq uem atizações presentes no co mu nismo atual. No enta nto, percebe-se ta mbém que a anál ise merleau- pontya na não aponta pa ra a pretendida "volta à teo ria do proleta riado". Se o marxismo clássico é contra posto ao atual é, sem dúvida, pa ra la menta r o que se perdeu, mas não para tenta r recu perá -l o. Pelo co ntrário, embora procu re descreve r, co nfo rme Marx, a teo ria da revo lução do proleta riado, Merleau-Ponty vai qu estioná-Ia em seg uida. Ou melhor, na própria apresentação desta teo ria já se esbo ça m as desco nfia nças de nosso auto r pa ra co m ela.
É assi m que no deco rrer da exposição, cujo objetivo é fazer o elogio da teo ria do proleta riado, deparamo- nos com a seg ui nte questão aprese ntada numa nota: "a qu estão é sa ber se (... ) temos ai nda a menor razão pa ra acred ita r numa lógica da história no momento em que ela rejeita o reg ulador da dialética: o proleta riado mu ndial" (7, p. 229). A qu estão, ai nda que colocada em nota, não é marginal ao texto: em bora de ma nei ra quase se mpre implícita, ela norteia as reflexões do autor ao longo do livro e prepa ra as hi póte ses pessi mistas so bre a teo ria da revo lução que encontramos fo rm ul adas no fi nal. Ora, se o fi lósofo afi rma que a teo ria do proleta riado é o essencial do ma rx ismo e se, hoje, a histó ria "rejeita" o proleta riado, não é o marxismo na sua totalidade que está posto em qu estão? Donde o diag nóstico, apresentado no Prefácio, de uma "crise da dia lética marxista" (7, p. 60 ). Me rleau -Ponty considera que a história não tril hou o ca minh o previsto pelo marxismo e, nessa medida, adverte: "A dia lética é do rava nte ilegível" (7, p. 253). Procu ra ndo "olhar rea listica mente" seu tempo, "e não através de lem branças e son hos", o fi l ósofo constata e lamenta a degenerescê ncia do marxismo: "Ta lvez haja ainda uma dialética, mas do ponto de vista de um Deus que con hece ria a Histó ria Un iversa l" (7, p. 254). Porém, im ediatam ente, prenu nciando Les A ventures de la Dialectique, escreve que a "revisão" do marxismo clássico ta lvez te nha sido "inevitável" (7, p. 254).
Com preende-se melhor agora porque Merleau- Ponty afi rma que o livro de Koestl er "coloca o problema de nosso tempo". Assim como oco rrera no diá logo com Maul nier em "Autour du Marxisme", as reservas de Koestl er a respeito do marxismo são ta mbém co mparti lh adas por nosso auto r. Embora o fi l ósofo se empenhe em critica r o meca nicismo de Koestler, ressa lta, por outro lado, que sua crítica ao marxismo esba rra em pro blemas rea is. Mais uma vez, a análise merleau- po ntya na osci la: se, contra Koestler, Merleau-P onty procu ra mostra r que a histó ria - por se r ao mesmo tem po conti ngente e necessá ria - é pa radoxal, esse paradoxo, no enta nto, é mu itas vezes deslocado pa ra o inte rio r da teo ria ma rxista. Ou seja, a dificu ldade - como já most rava m os primei ros escritos do auto r - esta ria na teo ria que pensa a histó ria como conti nge nte e necessá ria ao mesmo tem po. Daí a necessidade (apenas sugerida ) de repensa r o esq uema ma rxista clássico.
Visto que a revol ução não se deu conforme fo ra conce bida pela teo ria da revo lução, pondera Merleau-Ponty, é preciso então reco nhecer que o marxismo fo i "i ncapaz de dar fo rma à história mundial" (7, p. 266 ). As qu estões fo rmu ladas na seg un da pa rte de Humanisme et Terreur evi denciam as dificulda des encontradas pelo auto r em sua pretendida fi liação ao marxismo: "com o decl ín io da ideologia e da prática proletárias apa rece o verdadeiro problema, em torno do qual Koestler gira sem o fo rm ular jam ais: a Revo lução pode sa ir do terror? Há uma missão histórica do proleta riado, ao mesmo tempo fo rça motriz da soci edade nova e portadora dos valores da human idade? Ou, ao co ntrário, a Revol ução é inevitavel mente um empree ndimento vo lu ntário, co nduzido por chefes e po r uma categ oria dirigente, sofrido pelos outros? (7, p. 261 ). O ceticismo a respeito da revo lução que transpa rece na última pa rte do livro é, ao mesmo tempo, um ceti cismo a res peito da teo ria da revo lução. Ainda que não intei ra m ente expl icita da, é possíve l entreve r a hi pótese que direciona as refl exões fi nais do fi l ósofo: ta lvez a teo ria que co ncebeu a histó ria co mo o ca minho da revo lução faça pa rte, ela ta mbém, das ilusões pa ra se mpre perdidas ju nto com o espírito de 19 17. Donde a necessidade de se "fixa r um prazo pa ra a prova histó rica do marxismo": "Não se pode recu ar indefinidamente o momento em que se deverá decidir se a fi l osofia proletá ria da história é ou não aceita pela história. O mundo em que vivemos é a esse respeito am bíguo" (7, p. 262 ). A "h istó ria em suspenso", conforme a já mencionada exp ressão do autor no início do livro, põe ta mbém em suspenso o marxismo como teo ria da revo lução.
Merleau-Ponty vai busca r em Trotsky a justificativa pa ra a fixação de um prazo pa ra que a histó ria decida sobre a verdade do marxismo. Até um revolucionário de 17 da qualidade de Trotsky, afirma o fi l ósofo, "preso à fi l osofia proletária de Marx a po nto de deduzi r dela di reta mente sua tática, L.. ) admitiu entreta nto nos seus últimos anos qu e, (... ) se o marxismo é verdadei ro, ele deve no fi nal de contas apa rece r no aconteci mento" (7, p. 263 ). Recu pera ndo as qu estões pessi mistas que Trotsky fo rmulou so bre os ru mos da histó ria, e afasta ndo-se do oti mismo co m que procu rou respo nder a tais questões - "nos anos da reação mun dial devemos pa rti r das possi bili dades que o pro leta riado ru sso revelou em 191 7" - (Nota w), Merleau- Po nty já co nsidera a possi bilidade de um fracasso defi nitivo da revo lução do pro leta riado e da teo ria desta revol ução. Nesse senti do, via Trotsky, Humanisme et Terreur apresenta a hi pótese que Les Aventures.de la Dialectique pretende confirmar: se o pro leta riado foi incapaz de cu mprir sua missã o histó rica, a teo ria da revol ução terá sido, afinal, uma "utopia" (7, p. 263 -264). Em al gu mas passa gens, a interrogação já é qu ase afi rmação: "Ta lvez nenhum proleta riado ve nha a exercer a função histórica que o esquema ma rxista reco nhece ao proleta ri ado. Ta lvez a cla sse un iversa l não se revele jamais..." (7, p. 269 ). Em bora possa mos visl um brar aqui o fi m do attentisme marxiste, o fascínio do fi l ósofo pelo marxismo faz com que ele procure ainda neu tralizar as rese rvas que transpa recem em suas aná lises, rea brin do, assi m, o problema: "Uma coisa é reco nh ece r que a histó ria não to mou a fo rma previ sta pelo marxismo, e outra é declará-lo ultrapassado e procu ra r a so lução do problema hu mano através de ca min hos que ele pe rfeita mente mostrou que reco nd uzem aos confl itos ete rnos" (7, p. 259). Ou então: "O decl ínio do humanismo proletá rio não é uma experiência crucial que anula o marxismo intei ro" (7, p. 265 -266). Essa certeza, no enta nto, as próprias reflexões do autor se enca rregam de desfazer.
Percebe-se, pois, nos textos de Merleau- Po nty do pós-guerra uma espécie de círculo vicioso que se re pete sem pre e do qual o fi l ósofo não conseg ue sa ir: seu pro pósito de fa zer a defesa do ma rxismo é co nsta ntemente negado por suas aná lises. Qu esti onado de ponta a ponta pelas refl exões do auto r, o marxismo é resg atado, todavi a, numa ou nou tra passagem, qu ase co mo uma profissão de fé: "O marxismo não é uma fil osofi a da histó ria, é a fi l osofi a da hi stória, e re nu nciar a ele é fazer uma cruz sobre a Razão históri ca. Após o qu e, não há senão fa ntasias ou aventu ras" (7, p. 266 ). Ora, toda a análise de Merleau -P onty, co mo procu ramos mostrar, questiona ndo a idéia de uma razão histórica, apresenta a histó ria justa mente co mo uma aventu ra. Co ntra dições que atravessam os textos daquele período? Acred ita mos que tais osci lações e ambigüi dades constituem, so bretu do, a ex pressão do difíci l diálogo do fi l ósofo com uma teo ria que, naquele momento, ele não pretende ultrapa ssa r, mas à qual tam pouco pode se fi liar inteirame nte. "O dilema da co nsciência e da po l ítica, escreveu Merleau - Po nty no prefácio de Humanisme et Terreur, - aderir ou re negar, se r fi el ou ser lúcido -, impõe uma dessas escolhas la nci na ntes (... )" (7, p. 60 ). É exata mente ta l esco lha que o próprio autor se recusa a fazer. O confl ito está, portanto, insta urado no coração de uma fi l osofia que procu ra, sem aderir mas ta mbém sem re negar, aproxi mar-se do marxismo até onde seus pressu postos teóricos perm item. Na impossi bilidade de reso lver os im passes deco rrentes dessa tentativa de aproximação - e na espera (e espera nça ) de que "uma nova movi mentaçã o da história" possa, ta lvez, respo nder às qu estões fo rmu ladas -, o fi l ósofo la nça pa ra a história a deci são sobre a ve rdade do marxismo (Nota x).
Du ra nte a espera, e na dúvida se a teo ria da revo lução se rá, fi nalm ente, confi rmada pelo processo histórico, Merleau - Po nty encontra uma solução provisória. Mesmo se o marxismo fo r defi nitiva mente desme ntido co mo teo ria da revo lução, afirma o fi lósofo, é preciso salvá -lo como "crítica do mundo existente e dos outros huma nism os" (7, p. 266 ). Mais ta rde, fazendo um bala nço crítico do período de attentisme marxiste, o próprio autor procu ra definir sua relação co m o marxismo naquela época: tratava-se de "da r-lhe razão naquilo que ele nega e de considerá -lo errado naquilo que afirma" (1 1, p. 338 ). Donde a grande dificuldade da tentativa merleau- pontya na de aproxim ação da teo ria de Marx: o marxismo foi aceito pelo fi l ósofo como crítica da desu man ização do capitalismo, como "crítica moral", mas questionado em sua conce pçã o da histó ria e da revolução. Essa dificuldade - e as am big üidades deco rrentes dela - só se desfaz quando Merleau-P onty, à época de Les A ventures de la Dialectique, passa a recu sa r o marxismo na sua tota lidade.
Esse desfecho dos anos 50, no entanto, já se anu nciava na própria preca riedade da solu ção encontrada pelo fil ósofo no pós-g ue rra. O eq uilíbrio frágil que tentou ma nter entre as duas perspectivas antagôn icas presentes em seus textos - "aderi r ou renegar" e a te nsão inte rna que daí resu lta leva m o pensamento merleau- po ntya no a ca minhar rumo a uma tentativa de reso lução das osci lações que o dilacera m. Va lidar o marxismo como denú ncia do ca pital ismo e pôr em suspenso sua teo ria da revol ução era uma sol ução po r demais precária para ser mantida. Como sepa ra r a teo ria da revolução da teoria do proleta ri ado - o "centro" do marxismo, segu ndo Merleau- Ponty - se m quebrar a unidade esta belecida po r Marx entre a teo ria e a prática ? No entanto, a concepção merleaupontya na da histó ria como o lugar da ambigü idade e da indetermi nação col oca dificu ldades intran sponíveis na tentativa de concil iação com uma teo ria que procu rou, justamente, descrever a necessidade histó rica do surgimento da "sociedade nova", "gerada nas en tranhas da velh a" (5, p. 639 ). A própria visão que Merleau- Ponty tem do processo históri co já in dica portanto qu e, desfeito o eq uilíbrio provisó rio esta beleci do em suas anál ises do pós-g uerra, é a recusa do marxismo que deve preva lecer sobre a tentativa de adesão.
Nas pá ginas fi nais de Humanisme et Terreur, retomando, de ce rta maneira, a idéia prese nte no in ício do livro de que "o reino de uma razão un iversa l é problem ático", pois o homem, "para fa lar co mo Sartre, (... ) está la nçado numa aventura da qual a saída fe liz não tem garantia", (7, p. 73), Merleau- Po nty recu pera ex pl icita mente a perspectiva da fi losofia "existencialista" e ind ica que o marxismo não dá conta das questões colocadas pela situação histórica presente. Os "desvios do presente são ta is" (7, p. 245 ) que o marxismo clássico não pode mais descrevê -l o: "Assim, os principais papéis da histó ria são desempen hados po r pe rso nagens nos quais difici lmente se reco nhece ria o "ca pita lismo" e o "proleta riado" da descriçã o clássica, e cuja ação histó rica pe rmanece am bígua" (7, p. 298, Nota V). A análise merleau- pontya na fi na liza descreve ndo o "mu ndo hu ma no" como um "sistema aberto ou inacabado" (7, p. 309 ) e já deixa entreve r a idéia de que ele não pode ser red uzido a um único sentido pois tem várias "faces" (Nota z). Mais do que isso: a histó ria - escreve Merleau- Ponty sem, co ntudo, desenvolver a hi pótese - talvez seja "irracio nal" (7, p. 305). Em bora te nha apresentado o marxismo como um "ensaio de so lução do problema hu mano" (7, p. 295 ), o fi lósofo sug ere na co nclusão do livro que a história, dife renteme nte dos "pro blemas de geometria onde há descon hecido, mas não indetermin ado", não é um problema que com po rte "uma sol ução" (7, p. 306, 307 ). Mas aqui é a própria perspectiva de Humanisme et Terreur que já foge do horizo nte, cedendo lugar à pers pectiva das A ventures de la Dialectique onde, fazendo suas as reflexões de Weber, Merleau-Ponty escreve justam ente o seg ui nte: "Uma solução histórica do problema humano, um fi m da histó ri a, só seria concebível se a huma nidade fosse uma coisa a ser con heci da, se nela o co nhecime nto esgotasse o ser, se pu desse chegar a um estado que contivesse rea lmente tu do que ela fo i e tudo que poderá ser" (1 1, p. 37 ).
Esboça ndo, pois, as idéias centra is que vão determ inar poste riorm ente a recusa defi nitiva dos fu ndam entos da teo ria da revol ução, Humanisme et Terreur nos aj uda a compreender o sentido do itinerário fi losófico de Merleau- Po nty. Justa mente por ter represe ntado o momento maior da te ntativa merleau- po ntya na de aprox imação do marxismo, este livro põe a nu os lim ites desta aproximação. Seu fi nal, indicando que a teoria marxista não dá conta da situação histó rica presente, já prepa ra o fi m do attentisme marxiste. "É verdade que um poder revolucionário nega o indivíduo, seus julgamentos, suas inte nções, suas honras e até sua honra revolucionária?" (7, p. 1 09) - pergu nta ra MerleauPo nty refleti ndo sobre o livro de Koestler. Se em Humanisme et Terreur ainda não é possível encontra r uma resposta clara para esta qu estão, mais tarde, resolvidas as osci l ações, percebe -se que os fu ndamentos da resposta afinal expl icita da já estavam presentes naquele período. Qu estionando a idéia de uma lóg ica imanente ao movi me nto histó rico e a luta de classes como "pri ncípio geral da história", acentu ando o aspecto am bíguo e dramático da história e a im portâ ncia que nela exercem os acide ntes e a livre escolha dos hom ens, as anál ises merleau- pontya nas do pós-guerra já perm item co mpreender po rque conforme acred ita mos, o fi lósofo vai busca r poste riorm ente no "liberalismo heróico" de Weber uma alternativa para a su peração do marxismo. Nessa medida, as próprias interrogações de Merleau -Ponty naquele período de attentisme marxiste, sugeri ndo as res postas que aos poucos se delineiam, são sinais ind ica do res de que o ca minho po r ele pe rco rrido encerra um sentido e talvez ten ha sido necessário.
NOTAS
a) No prefácio de Sens et Non-Sens (1 948), Merleau-Ponty afi rma que os ensa ios "Autour du Marxisme" e "Pour la Vérité" exprimem a es pera nça que no dia seg ui nte à gu erra ainda era possíve l de posita r na "política marxista " e nos rumos do processo histó rico (cf. 6, p. 9- 1 0).
b) Merleau- Po nty anal isa particularmente os seg ui ntes li vros de T. Maulnier: Violence et Conscience
e Au-delà du Nationalisme.
c) Nesse senti do, lem bremos uma passa gem do ca pítu lo sobre Weber ("La crise de I'ente ndem ent") de Les Aventures de la Oialectique: "A hi stó ria co mpo rta fatos dialéticos, significações es boçadas não é um raci ocín io seq üente. Como um interlocutor desatento, deixa desviar o debate, esq uece pelo ca minho os dados do problema." (11, p. 40)
d) Cabe ressa ltar que a Revolução Francesa, a Revo lução R ussa e a Resistê ncia sign ificam pa ra Merleau- Ponty momentos privi legiad os - momentos de lam pejo - em que a hi stória se to rnou inteligíve l.
e) A ex pressão enco ntra -se na Phénoménologie de la Perception (cf. 10, p. 20 1). A pa rti r dos an os 50, Sartre vai procurar desenvo lver algu mas teses que Merleau- Po nty defen dera no pós- guerra e aban donara posteriormente. Nesse sentido, na Questão de Método, o fi l ósofo afi rma que o ex istencialismo está em desacordo apenas com um certo "determ inismo mecan icista " e não co m a teo ria marxista da história. Como o marxismo, escreve o auto r, ta mb ém o existe nci al ismo tenta um "decifra me nto dialético da história". No enta nto, ele o faz "a pa rtir da ex istência". Seu propósito é "rei ntroduzi r a i nsu pe ráve l si ngu la ri dade da ave ntu ra hu ma na". Posto de lado o "determ in ismo mecanicista", Sa rtre considera que esse pro pósito pode perfeita mente ser conci liado co m o marxismo, ou melhor, pode ser desenvolvido "no seio do próprio marxismo" (17, p. 1 94- 1 95). A trajetó ria dos dois fi lósofos é curiosa: Sartre procu ra se aprox imar da teo ria de Marx justa mente no mom ento em que Merleau -Ponty ro mpe defi nitivamente co m ela.
f) No Ep ílogo das A ventures de la Oialectique (11, p. 333) Merleau- Po nty escreve: "Nous avions essayé au lendema in de la gu erre de fo rm uler une attitu de d' atte ntisme marxiste". Na trad ução de textos de Merleau- Po nty feita por Marilena Chauí para a Co leção Os Pensadores (que mu ito nos auxili ou e que util izamos com freq üência) a ex pressão attentisme marxiste fo i traduzida como "co ntemporização marxista" (Pensadores, Abril, 1 975, p. 255). Preferimos, no entanto, traduzir a expressão por "temporização marxista", pois ju lga mos fu ndamenta l enfatiza r a idéia de espera. Acred itamos que contemporizar passa mais o se ntido de transigir do que de adiar. Existe, é cl aro, uma atitu de de transigência de Merleau - Po nty a respeito do marxism o. Todavia, trata -se sobretu do de adiar uma decisão.
g) Apenas chamamos atenção aqui para a ex pressão "pol ítica efi caz" utilizada por Merleau -Ponty na passa gem que aca bamos de mencionar. A idéia de eficácia é fu ndamenta l para entender a justificativa merlea u- po ntya na do stali nismo (a qual não podemos examinar nos lim ites deste a rtigo).
h) Em Les A ventures de la Dialectique, Merleau-Ponty vai fa lar num "descarri lamento da dialética " (11, p. 1 29).
j) A maior pa rte dos ca p ítu los que co mpõem Humanisme et Terreur (cuja primeira edição data de novem bro de 1947) já fo ra publ icada em Les Temps Modernes no fi nal de 1 946 e início de 1 947.
j) Lefo rt escreve o seg ui nte: "L.. ) ta nto na ficção de Le Zéro et l'lnfinit co mo na inte rpretação de Huma- nisme et Terreur, o contexto sócio -histórico é apagado no cu rso do exa me dos processos" (3, p.
1 53). É interessa nte observa r que Lefo rt critica Humanisme et Terreur em nome das A ventures de la Dialectique. O fato de Merleau-Ponty ter deixado de lado o "co ntexto sócio-histó rico" dos processos de Mosco u não co nstitu i (salvo nas passa gens de Un Homme en Trop onde aborda o assu nto) o eixo principal da crítica que Lefo rt endereça a Humanisme et Terreur. Ta nto em Sur une Colonne Absente co mo na " I ntroduction" a Humanisme et Terreur, suas restrições ao livro coincidem com as do próprio Merleau- Po nty (nas A ventures de la Dialectique) e podem ser assi m resu mi das: a atitu de de transigência do autor a respe ito da teo ria marxista o im pede de critica r ra dical mente a "est ra nhas conseq üê ncias" (a expressão é de Lefo rt) desta teo ria.
k) O te ma do heroísmo perco rre to da a obra merlea u- pontya na. A esse res peito ver pa rt icu larmente o último ca p ítu lo da Phénornénologie de la Perception (1 0) e os ensaios " La Gu erre a eu lieu" e "Le herós, I' hom me" ( 6).
I) Ao longo de todo o li vro podemos perceber essa analogia entre a situ ação so viética (embora n ã.o haja análise daquela conju ntu ra) e a situação da Fra nça du rante a ocu pação. O momento histórico vivido por Bukharin é ta mbém co mpreendido por Merleau-P onty co mo uma situação limite (a história "em suspenso") que põe o homem diante de uma "decisão fu ndamental". Nesse aspecto, julgamos co rreta a crítica que Lu kács endereça aos "existencia listas" quando chama atenção pa ra os perigos (o surgi mento de "m itos") de uma "general ização teórica" dessa "nostalgia da sim plicidade poética do tempo da Resistência" (4, p. 62). Em bora apo nte problemas rea is, o livro de Lu kács, no afã de fazer a defesa da o rtodoxia soviética (" Merleau-Ponty evoca os processos de Mosco u; ora, o que fo ra m esses processos, em suma, senão a reve lação da essê ncia mesma do trotskismo, da tra ição em re lação à revo lução, uma tra ição que ia até a esp ionagem?" - p. 201), term ina por esq uematizar o pensam ento dos "existencial istas" fra nceses.
m) No prefácio de Signes, Merleau-POnty - de maneira, ag ora, não mais interro gafiva - escreve: "A pol ítica é a moderna tragédia" (8, p. 11).
n) Caberia lembrar aq ui uma passa gem de V. Desco mbes: "Kojêve lega a seus ouvi ntes uma co ncepção te rro rista da hi stó ria. Reencontra -se esse te ma do terro r em to dos os de bates que se sucedem até nossos di as: no títu lo do li vro que escreve Merl eau- Po nty em 1947 (Humanisme et Terreur): (... ) 1 nas anál ises consagradas por Sa rtre à revo lução fra ncesa em sua Critique de la Raison Dialectique (tema da "fratern idade- terro r" ), assi m co mo em suas apolog ias da violência." ( 2, p. 27).
o) É interessa nte reco rd ar aqui uma afi rmação de Merleau -Ponty nos Résumes de Cours: "Weber faz da histó ria uma es pécie de malefício" (1 2, p. 48). Nosso autor escreve ta mbém o seg ui nte: "Max Weber privi legia a co nti ngência ra dical e a infin itu de do fato histórico" (1 2, p. 47). Lem bremos uma passa gem do próprio Weber desca rta ndo a idéia de necessidade histó rica: "Devemos evidenteme nte li berta r- nos da idéia de que é possível inte rpreta r a Refo rma como "conseq üência histórica necessá ria" de certas muda nças econôm icas"( 18, p. 61 ).
p) No prefácio de Signes, retomando e desenvo lvendo essa concepção trágica da histó ria, MerleauPo nty escreve que o "fluxo da hi stória" é uma "maré de ang ústia" (8, p. 38).
q) É uma co nsta nte nos textos po l íticos merleau-pontya nos esse tipo de inte rpretação dos aco ntecime ntos sociais que term ina por despoj á- los de to da objetividade. O soci al aparece nas anál ises do fi l ósofo como rapports des consciences. Em Sa rtre, to rna -se ainda mais acentu ada a au sência de uma anál ise concreta dos aco ntecim entos sociais exami nados pelo auto r. Nesse senti do, no a rtigo "Paris so us l'Occupation", Sa rtre afi rma que não é suficiente determ inar 'Taire soci ale de la co llaboration", é preciso fazer uma psico log ia do Colaborador (1 5, p. 50). A análi se sa rtrea na se detém nos senti mentos que a ocu pação provoco u nos fra nceses, el iminan do, assim, to do o co nte údo po lítico da Colaboração e da Resistência. Em nenhum mo me nto do texto o au to r procura examinar a co nju ntu ra soci al e pol ítica da França naquela situação histó rica d eterm inada. É interessa nte pensa r até que po nto os "existeocial ista s" fra nceses, embora faze ndo a crítica daquilo que Simon e de Beauvoir chamou de "velho ideal ismo tradici onal dos un iversitá rios fra nceses (um deles escrevia a res pe ito da gu erra de 1914 que ela era "a luta de D esca rtes co ntra Ka nt")", não te riam pago um tri b uto a essa tradição. (S imone de Beauvoir, "Merleau- Po nty et le PseudoSa rtrisme", Privileges, Galli mard, 1955, p. 269).
r) O fi l ósofo escreve ta mbém o seg ui nte: "A revo lu ção ma rxista não é irrac io nal: é o prolongam ento e a co ncl usão lóg ica do presente" (7, p. 124). Se Merleau-Ponty pretende fa lar em nome do marxismo, em que med ida, então, é possível conci liar essa idéia da revo lução como "o prolongame nto e a co nclusão lóg ica do prese nte" com a idéia de que a hi stó ria é o lugar do "eq u ívoco perpétu o" e da am bigü idade?
s) Nas A ventures de la Dialectique Merleau -Ponty critica Marx porque este teria co locado a dialética nas "co isas", ou seja, nas condições objetivas. Se a história é o domínio da in determ inação, seu motor não pode esta r nas "coisas", pois nelas "não há in determ inado". No enta nto, é ainda nas páginas de Les A ventures de la Dialectique que enco ntra mos a seg ui nte crítica a Sa rtre: "É o co ntato teórico e prático co m a histó ria que ele recusa, decidindo não mais buscar nela sen ão a iluminu ra de um drama cujos perso nagens - O Eu e o Outro - são defi ni dos a priori pela via da reflexão" (11, p. 284). Nesse senti do, poderíamos di zer que as anál ises merleau-pontya nas acabariam muitas vezes aproxim� rodo -se daq uilo que seu próprio autor critica em Sa rtre.
t) Mais ta rde, so bretu do no Prefácio de Signes, o fi l ósofo passa a co nsid erar o marxismo justa mente como um "sistema de idéias".
u) Lefo rt escreve o seg ui nte: "Ta nto para Koestler como pa ra Merleau-Ponty, o víncu lo do opositor ao Parti do procede da re p resentação deste último como peça mestra da teo ria. Em suma, o oposito r não pode se opor verdadeiramente porque sacrifica ria, assu mi ndo o risco de sua excl usão, a idéia de que o Pa rti do dirige o processo revo lucion ário. Ta l é, pois, sua tragédia: intel ectu al" (3, p. 1 53 - 1 54).
v) O so nho co m uma síntese entre su bjetividade e objetividade na histó ria aparece ta mbém clarame nte no texto de Sa rtre "Faux Sava nts ou Fa ux Li evres?" (Prefácio escrito em 1950 para o li vro de Lo uis Dalmas, Le Communisme Yougoslave depuis la rupture avec Moscou). Retomando expl icitamente as reflexões de Merleau- Po nty em Humanisme et Terreur, Sa rtre exa lta o soci al ismo iu goslavo co mo uma experi ência que introduziu a su bjetividade na histó ria: "O titi smo tem para nós uma im portâ ncia excepciona l porque ence rra em si a su bjeti vidade" (1 6, p. 1 9). Nesse sentido, a questão que no rte ia o texto é a seg uinte: co mo pensa r a hi stó ria sem privi legiar a objetividade em detri mento da su bjetividade? Sa rtre enco ntra na experiência iu goslava elementos pa ra suas refl exões sobre a hi stó ri a. No enta nto, ta l como oco rre com a anál ise merleau- po ntya na dos processos de Moscou, a situação histó rica da Yu goslávia, destitu ída de toda objeti vidade, aparece somente co mo pano de fu ndo das refl exões do autor so bre o papel da liberdade e da su bjetivi dade no processo histó rico. A síntese entre o objetivo e o subjetivo na história to rna -se, nessa medida, apenas uma idéia exterior à anál ise de Sa rtre.
w) Trotsky, L., "The USSR in wa r", a rtigo citado por Merleau -Ponty (cf. 8, p. 326).
x) Mais ta rde (no prefácio de Signes ) esse recu rso ao julg am ento da histó ria será posto de lado.
y) Em " Faux Sava nts ou Fa ux Li êvres", Sartre ta mbém procu ra mostra r que o marxismo cl ássico não dá co nta da situação histórica presente (no caso, a experiência do social ismo iu goslavo) e, nessa med ida, ind ica a necessidade de re pensar a teoria marxista: " A pressão das circunstâ ncias objetivas e as co ntrad ições do próprio objeti vismo leva ram- nos, co ntra a vontade, a reva lorizar a su bjetividade; mas, por sua vez, esta reva lorização ex ige uma mod ificação teó rica; é necessá rio refl etir de novo sobre o marxismo, é necessário refleti r de novo sobre o homem" (1 6, p. 45).
z) Nas A ventures de la Dialectique, Merleau-Ponty consid era um dos mais corretos ensinam entos de Weber a idéia de que "a histó ria tem não um se nti do como o rio, mas senti do" (11, p. 46). No Éloge de la Philosophie já se pode senti r essa influ ência we beriana: "A histó ria não tem sentido se seu senti do é com preendido como o de um rio que co rre sob a ação de causas poderosas em direção a um ocea no onde desa pa rece" (1 3, p. 61).
MENDONÇA, C. D. - Marxism and phi loso phy: so me considerations on Merleau -Pontya n post-wa r pol itica l texts. Trans/Form/ Ação, São Pa ul o, 9/ 10: 21- 39, 1 986/87.
ABSTRACT: Merleau-Ponty's attempt to approach Marxism, undertaken in the post-war years, is passed through by continuous ambiguity. Notwithstanding the philosopher's purpose ofjoining the Marxist theory, his political analysis are far from his intentions. Conceiving history as an "adventure " which escapes any rational scheme, Merleau-Ponty questions, since his first writings, Marxist dialectics between logic and contingency in history. The inner tension that lacerates the author's texts during the 40's, procJaiming (and preparing) the refusal of the theory of revolution, which would later appear in The Adventu res of the Dialectics, permits us to inquire wheter the dénouement of the 50's would not have been - instead of a cutting in the heart of the work - the necessary result of this problematic attempt to approach Marxism, departing from categories which are alien to it (suitable to philosophies of existence and to phenomenology).
KEY-WORDS: Marxism; existentialism; atte ntisme marxiste; theory of history; logic and contingency in history; revolution; Weberian "heroic JiberaJism".
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[1] Este texto contitui parte do segundo cap ítulo de nossa dissertação de Mestrado - Merleau-Ponty: Marxismo e Filosofia - apresentada ao Departamento de Filosofia da Facu ldade de Fil osofi a, Letras e Ci ências Hu manas da Un iversi dade de São Pa ul o.
[2] Departam ento de Fil osofia - Facu ldade de Educação, Fil osofi a, Ci ências Sociais e da Docu mentação - UN ESP - 17500 - Maríl ia - SP.