A ARMADILHA CONTRATUAL (DURKHEIM)[1]

 

Maria Valderez de Colletes NEGREIR OS[2]

 

RESUMO: Neste artigo desenvolvemos a interpretação durkheimeana da divisão do trabalho social como solidariedade orgânica e contratual. Examinamos alguns aspectos que essa análise nos apresenta,de um lado, pela caracterização de um tipo de sociedade industrial que enaltece a solidariedade das funções no trabalho coletivo e não nos modos de produção; e, de outro, pela pressuposição de um Estado como elemento catalizador das corporações e que não deixa de antever uma noção de contrato.

 

UNITERMOS: Contrato; solidariedade; Estado; sociedade industrial; divisão do trabalho social.

 

Uma outréJ ordem de problem áticas e de especu lações se faz prese nte quando afi rmamos que Emile Du rkheim não poderia se desvenci lhar da noção de co ntrato. Nossa anál ise tem co mo objetivo ave riguar a natu reza do contrato. Pa ra isso vamos reco rrer à idéia da divisão do trabalho social.

Partimos do pressuposto: de que modo o princípio da divisão do trabalho soci al pode ser conci liável com uma noção contratualista ? Se o contrato to rna -se um dos eleme ntos constitutivos para compreender a divisão do tra bal ho, então sua via bil idade acentua -se no ca ráte r ju rídico dessa divisão. Desse modo, qua ndo nos referimos ao contrato propriamente dito, temos, de imediato, as "obrigações co ntratu ais" entre as pa rtes co ntra ta ntes. Na esfe ra do trabalho estas "obrigações" situam -se na pa rticu la ridade da fu nção do traba lhador e do objeto que ele executa. A fi nalidade do co ntrato é: poder ligar, impor uma cooperação aos efeitos da divisão do trabalho resu lta ntes da sim bo lização das troca s. Como nos diz D'u rkheim: "Ie contrat est, par excelle nce, I'expressi on juridique de la coopération" (1, p. 93 ). O pe rcu rso du rkhei meano nesta argumentação nos demonstra que o ato de prod uzir não se apl ica aos meios de produção ca pital istas. Não se trata de considerar o ca pita l, a propriedade privada, a mais-val ia, a mercadoria, o va lor e etc... co mo noções de interesses especulativos, mas de avaliar de que fo rma esse ato im plicaria numa determ inada solida riedade. O desl oca mento ana lítico su põe necessa riamente o contrato. Este outro viés pa ra rep resenta r a sociedade industrial que elimina a idéia de ca pita l e, po r co n seqü ência, o fato r eco nôm ico, su pôe o social e o po lítico como fu ndamento. O ato de produzir im pulsiona o apa reci mento de novas rep rese ntações coletivas que irão manipular a prática social. Porque o ato em si exi ge uma solida riedade entre os in divíduos nas suas fu nções ocasionando uma cooperação na produção. Du rkhei m não questiona a solida riedade de forma problemática no âm bito da sociedade industria l. Ela constitu i um fato social na medida em que possu i uma relação di reta com as coisas sociais. A idéia de tra balho coope rativo, que permeia a estrutu ra social, fixa co mo objetivo uma orga n ização coletiva e coerente da produção.

O prog resso da divisão do traba lho origem à passagem da solidariedade mecâ n ica pa ra a solida riedade orgânica. Ou seja, o problema da passagem al ude à idéia da origem ima nente no conceito de progresso. Nas sociedades onde predomina a solida riedade mecân ica, a averig uação da noção de contrato não se verifica. As relações soci ais institu ídas nesta solida riedade têm sua estrutura nas crenças com uns, nas práticas un ifo rm es, nos fi ns comu ns. As similitudes no modo de agir, de pensa r dos indivíd uos fazem com que obedeça m "sob a ameaça de medidas repressivas". O di reito repressivo lim ita as ações dos membros da comu nidade pela codificação das "si militudes das consci ências". Em outros termos, "Ia si militude des consciences donne naissance à des reg les ju ridiq ues qui... im posent à tout le monde des croya nces et des pratiques unifo rm es" (1, p.205 -6). O predomínio das si militudes determina a coesão social não impondo à divisão do traba lho medidas repa radoras. Pois, quanto mais a similitude "est prononcée, plus la vie sociale se co nfond complement avec la vie rel igieuse, plus les in stitutions économiques sont voisi nes du co mmunisme" (1, p. 206 ).

Na so lidariedade orgânica onde a divisão tra ba lho social co nstitu i-se de ma neira tra nspa rente, a diferenciação, a especial ização e os anta gonismos são ma ntidos no interior da sociedade. A solida riedade, po r outro lado, consiste em rep resenta r a coesão socia l. No enta nto, a existência desta coesão, desta un ião é marcada po r uma diferença que contém sua equ ivalência numa solida riedade exte rior à co nsci ência coletiva. Du rkheim nos fa la que:..... dans les soci étés supérieu rs, elle n'en est qu'une pa rtie tres restrei nte. Les fonctions judiciai res, gouvernementa les, scientifiques, industrielles, en un mot toutes les fo nctions spéciales sont d'ord re psychique, pu isq u'el les co nsistent en des systemes de représentations et d'actions: cependant el les sont évidem ment en dehors de la co nscience co mmune" (1, p. 46).

Portanto, as ci rcu nstâncias que dão o apa reci mento do contrato são: 1) o enfraqueci mento da co nsci ência co letiva e das crenças comuns man ifestadas nas simil itudes, nos costumes e nos bitos que ocorrera m na solida riedade mecâ nica; 2) a medida em que o prog resso da divisão do trabalho desenvo lveu -se de fo rma mais intensa "em volume e densi dade" (1, p. 244), a diferenciação im põem -se como fu nda mento dessa divisão. A importância que su blinha mos na idéia de dife renciação, permite- nos indica r o ponto básico da ex pl icação du rkhei mea na apoiada na metáfo ra organ icista e introd uzida na sua análise da "solida riedade orgânica e solida riedade contratu al ". Os te rmos "orgânica" e "contra tual" revelam uma eq u iva lência. De in ício temos a anál ise fu ncional da divisão do trabalho e as co nseq üências que ela engendra, po r exem plo, de não proporcionar a desintegração dos indivíduos no âm bito da sociedade industrial. Um dos problemas que verifi ca mos tratava das desigua lda des sociais e econõm icas ca racterizadas neste ti po de solida riedade como normais e integ ra ntes de um todo orgânico. Depois, temos o aspecto contratu al da divisão do tra balho soci al que não buscou apenas traduzir uma solida rieda de, uma reg ulamentação, mas ta mbém manter e dar um valor ju ríd ico e moral às especia lizações;

Afinal, o que su põe o contrato? As relações co ntratu ais originá rias da divisão do tra ba lho su põem um estatuto ju rídico nas trocas efetuadas. Em outros te rmos, o co ntrato pa ra ser formalizado necessita do "consentimento dos serviços trocados", os quais devempressenti rum"va lor socialeq uiva lente".Co nforme o di reito restitutivo, a troca efetuada é o resu lta do do "equilíbrio das vontades" que o contrato produz e man ifesta. Na relação ju rídica que se interpõe entre o objeto e o indivíduo, su rge apenas a necessidade de uma equ ivalência se a "regra dos contratos" fo r esti pulada entre os contrata ntes "nas cond ições exterio res igua is" (1, p. 376 -377 ). Em vista disto, uma co nci l iação entre o princípio da divisão do trabalho socia l e a noçã o do co ntrato procede. A adequ ação uma vez esta belecida, explica -se: de um lado, o contrato tem seu fu ndamento na natu reza ju rídica do di reito co rpo rativo; de outro, a sanção testitutiva e a solida riedade ex primem a divisão do tra bal ho.

De que fo rma os laços de solida riedade evita m a anomia cresce nte? Evita m na medida em que "Ia division du trava il... ne peut pas se passe r de réglementatio n" (1, p. 370 ). N ão devemos basea r- nosnuma coerção quando p rocuramos resta belecer a regulamentação como condição fu ndamental pa ra anular o estado de anom ia. Mas devem os considera r que ela possui seu su bstrato nos costu mes (moeurs ) pa ra constitu ir -se em di reito. Por outro lado, ca be ao di reito exprimir os costumes, pois a institu ição destes em reg ras ju dicas e apl icadas em sa nções restitutivas faz- nos cre r que a divisão do tra balho deriva de uma regulamentação oriunda da experiência.

No enta nto, por que o retorno às corpo rações? "Coopérer, en effect, c'est se pa rtager, une tâche commune" (1, p. 93). Nesta afi rmação de Du rkheim uma indagação to rna -se perti nente: de que ma nei ra a relevâ ncia dada às corpo rações numa sociedade ca pitalista e industrial do sécu lo XIX pode se r co nsiderada como mera especulação, sem pe rmanecermos num pa radoxo?

Du rkhei m, quando reco rre à noção corpo rativista, está critica ndo di retamente uma so ciedade industrial e individual ista que, entre outras coisas, baseava -se no liberalismo. São os ideais da antropologia liberal que produzem "I'état d'a nomie ju ri dique et morale ousetrouveactuel lementlavieéconomique"(1,p.11).Podemos ex plicita rmel hor este idea l libera l util iza ndo- nos das palavras de Gérard Lebru n. "Curiosam ente, e, às vezes, com vergonha, somos leva dos a descobrir que o liberalismo do sécu lo XIX dava mostras, em última anal ise, de maior lucidez que ci nismo, ao deduzir sem peias as li berdades individuais da liberdade do proprietá rio e do empresário" (2, p. 41 -42 ). A apa rente convergência destas colocações em to rno do liberalismo nos mostra a sutileza inte rpretativa dos dois auto res.

O caráter anômico e mesm o anormal do sistema econôm ico provocou a desi nteg ração social e po l ítica. A solução para subtrair o im passe criado pelas qu estões econômicas, resume -se na reso luçã o que elas irão bu sca r na necessidade de sua regulamentação. O rea pa reci mento das corpo rações torna-se necessá rio pelas funções que elas preci sam cu mpri r: rea liza r a integ ração do in divíduo ao grupo como fo rma de dissi pa r as indivi dual idades. O inte resse com um, sendo manifestado co mo prioridade po r ca da grupo profissional, recu peraria o valor moral e ju rídico do tra ba lho. A divisão do tra balho emoldurada dentro de ca da profissão específica permitiria, ao agrupar os trabal hadores, que eles ex p ressasse m as opin iões comu ns, os interesses gerais e os mesmos fi ns.

A possi bilidade das co rpo rações existi rem de fato e serem representativas na sociedade ind ustrial do sécu lo XIX é submetê-Ias ao órgão centra l. Qua nto mais intensa a soli da riedade proveniente da divisão do trabalho ta nto mais sign ificativo to rna -se o papel do E stado. É dele que emana uma regulamentação que irá conter a anomia, as mutações e os confl itos sociais. O poder regulador do E stado tende a ram ifica r-se numa difusão consta nte e crescente por toda a exte nsão da vida social. Num primeiro mom ento, percebemos a projeção de um poder disciplinador que impõe seus limites através dos códigos, das reg ras ju rídicas, das institu ições. Num seg undo momento, temos um outro tipo de poder que, pa ra Du rkhei m, represe nta o instru m ento rea l do m eca nismo da sociedade ·industrial que é a "tutela". "... cette tutelle di recte ne pouvait donc manquer de devenir co mpressive. Elle fut à peu p res impossi ble à partir du mom ent ou la g rande industrie eut atteint un ce rta in deg de développement et de dive rsité" (1, p. XXVI -XXVI I). O exercíci o da "tutela" materializa uma intenção do E stado a qual será rea lizada na medida em que a instâ ncia da domi nação reve rter a sujeição das práticas efetivas das corpo rações em "compreensivas".

Enfi m, o iti nerário percorrido foi uma tentativa para escla rece r a te mática pro posta. Entreta nto, algu mas co nsiderações ainda se fazem perti ne ntes co m vistas às argumentações fo rmul adas do pensamento du rkhei mea no. De onde p rovém o ato de governar qua ndo devemos introduzir os bens, as riq uezas, os inte resses individ uais, a propriedade no inte rior do E sta do? Como gerir no Estado a economia no contexto geral do exe rcício político? O problema, que envolve nossa discussão com relação a estas qu estões, está em articu la r dois pla nos: primei ro, o político, que trata do ato de governa r; segu ndo, o eco nômico, que trata de esta belece r a economia co mo poder rea l do E sta do.

A re presentação política ro mpe com a tradição do pensa mento po lítico clássico da fi gura do rei, pa ra repor aquela de "um g ru po de profissi clnais sui generis. E ste desloca me nto da re presentação coloca em evidência uma apa rente divisão do pode r pela repa rtição das decisões. Não sabemos de onde, de quem elas emanam. É deste " grupo sui generis " que provêm as deli berações que contornam de modo mediato todas as entra nhas do o rganismo social. A problem ática que esta anál ise suscita refere-se à auto nomia política. Como busca r um eq uilíbrio no autorita rismo? Pa ra ca racteriza r esta autonomia pol ítica exami nemos as fu nções das co rpo rações dentro deste quadro. Elas co rrespondem e fo rmam as socieda des políticas, legiti mando as várias tendências expressa s atra vés da diversidade dos inte resses socia is e po líticos. Por outro lado, o E stado não detém a autonomia política das corpo rações. Pois, a autoridade necessita do eq uil íbrio co mo mediação para justifica r desse modo a viabil idade da autonomia po l ítica. A co ntrovérsi a está em compreen der a razão da un idade política que Du rkheim situa no Estado. O pa ra doxo o é co ntornado. A unidade pol ítica tam mpe rtence à admin istração damáquina estata l assim co mo a educação, a assistência pú bl ica, a riqueza, os bens, a propriedade. Apenas to rna-se "compreensível" às interferências do órgão central.

Durkheim o esclarece demodo nítido a introdução da economia no nível da admi nistração do E stado. Ele nos diz que: "... l' État est peu fa it pour ces tâches économiques, trop spécia les pou r lui. 1I n'y a donc que le g roupe professionel qui pu isse s'en acqu itte r utilem ent. 11 répond, en effet, aux deux conditions nécessa ires: il est intéressé de lro p p res à la vie économique pour n'en pas senti r tous les besoins, en même tem ps qu'il a une péren ité au moins égale à cel le de la fa mi lle" (1, p. XXXV I). Nesta argumentação convém ressa lta r o pa pel que irá desem pen har este g rupo profissio nal enca rregado de zelar pela economia. A ação do grupo é a mesma do pai de fa mília que tutela seus bens num co ntrole consta nte. O agir atento e vigilante do grupo iguala-se a um poder mediano e sem supremacia. Pois ele procu ra geri r some nte os inte resses e as necessidades inte rmediárias e parciais da vida social. De aco rdo co m o que dizíamos, Du rkheim não fo rmalizou uma teo ria ou um modelo econô mico se entendermos o termo economia stricto sensu.

Sua intenção é outra. A noção do cont rato é nova mente pensa da.

Como vimos, o contrato pressu põe a existência de um Estado. De que fo rma? Um outro aspecto deve ser considerado: a economia co mo poder rea l do E stado. A averiguação desta coexistência reto ma a questão da divisão do trabalho na sociedade industrial por um outro prisma. O ato de prod uzir é eco nôm ico por excel ência, mas ao Estado ca be exercer um poder sobre ele. A co nd ição efetiva e rea l deste poder é po r meio do co ntrato. Porta nto, o contrato pa ra su bsistir em sua plenitude não poderá ter uma reg ulamentação independ ente. Isto quer dizer que as di retrizes da regulamentação co ntratu al dependem excl usiva mente do Estado para fo rmaliza rem-se. A armadilha foi traçada e Durkheim não pode esq uivar-se de uma teo ria contratual ista, pois quis buscar a todo custo uma reg ulam entação à divisão do trabalho orgân ica.

 

NEGREIROS, M. V. de C. - The contractual tra p (Durkheim). Trans/Form/Ação,SãoPaulo, 9/1 0:13-16, 1 986/87.

 

ABSTRACT: The present article develops a durkheimean interpretation of the division of social work as organic and contractual solidarity. This interpretation will be examined, on one hand, while it characterizes a kind of industrial society that exalts the solidarity of roles in the collective work but not in the rnodes of production; on the other hand, while it presupposes a State playing the role of catalyst of the corporations and does not let foresee a notion of contract.

 

KEYWORDS: Contract; solidarity; State; industrial society; social work division.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.  DURKHEIM, E. - De la division du travail social. 9. ed. Paris, PUF, 1973.

2.   LE BRUN, G. - Passeios ao léu. São Paulo, B rasi liense, 1983.



[1] Texto aprese nta do no I Enco ntro Nacional de Fi losofi a, promovido pela ANPOF em Diamanti na(MGl,de 30/07 a30/08/ 1 984.

[2] Departam ento de Antropologia, Política e Fil osofia - Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação - UNESP - 14800 - Araraq uara - SP.