NÃO HÁ DENTE DE COELHO NO PROBLEMA DA TRADUÇÃO RADICAL
RESUMO: O trabalho consiste em uma tentativa de refutação do princfpio quineano da indeterminação da tradução radical. A estrutura do argumento é a seguinte. A demonstração do princfpio no texto de Ouine assentase sobre certa concepção do processo de tradução radical. Esta concepção só se sustenta se são adotadas certas pressuposições a respeito da natureza da linguagem e dos falantes. Entretanto, se estas pressuposições são adotadas, não há razão para não se aceitarem também outras pressuposições - as quais invalidam a demonstração de Ouine.
UNI TERMOS: Tradução radical; Ouine; Wo rd and object; behaviorismo; mentalismo; modelo desejo-crença.
A tese, em resumo, é a seguinte. A demonstração do princípio no texto de Ouine assenta-se em certa concepção do processo de tradução radical. Esta concepção só se sustenta se são adotadas certas pressuposições a respeito da natureza da linguagem e dos falantes. Entretanto, se estas pressuposições são adotadas, não há razão para não se aceitarem também outras pressuposições - as quais invalidam a demonstração de Ouine. O objetivo do primeiro trecho de nosso percurso é trazer à luz as pressuposições implícitas na argumentação de Ouine; pretendemos alcançá-lo por vias indiretas, começando por uma análise da relação que existe entre o problema da tradução radical e o problema da previsão do comportamento verbal.
O que estava nos inte ressa ndo, entreta nto, era a relação entre este problema e o da tradução radical. Am bos podem, natu ra lmente, ser analisados em certo nú mero de su bproblem as; isto faz com que seja possível enu nciarmos nossa tese a respeito da relação entre os dois problemas da seg ui nte ma neira: o su bpro blema crucial de ca da um deles é o mesmo, assi m, quem tiver ca pacidade de reso lver um ta m bém terá, em pri ncípio, a ca paci dade de reso lve r o outro.
Va mos to rnar plau sível esta tese reco rrendo em primei ro lugar a uma co ncepção mentalista do co mpo rtame nto verba l. O objetivo desta demonstração é mais la nça r luz sobre os problemas em pauta do que se rvi r como elemento da tentativa de refutação de Quine: dada a orientação behavio rista de sua fi losofi a, não é razoável pretender que ele aceite as conclusões de uma análise declaradamente mentalista. A tese, entreta nto, é relevante pa ra nossos pro pósitos, po r isso apresenta remos posteriormente outra dem onstração, esta fo rmulada em termos pu rame nte behavio ristas.
A concepção mentalista de que vamos la nça r mão é o modelo desejo-crença pa ra a explicação da ação. De acordo com este modelo, uma ação - por exem plo, a ação de uma pessoa ao beber um copo d'ág ua - deve se r ex plicada como o resu ltado de atuação co nju nta de UITl desejo - no exem plo, o desejo de sacia r a sede - e de uma crença - a crença de que be bendo a água a sede fica rá saciada. Pode-se obse rva r desde já que uma ação não determina un ivoca mente o desejo e a crença que a teriam produzido: na med ida em que não se deve supor que a crença seja necessa riamente verdadei ra, a ação do exemplo poderia se r alternativa me nte atri buída a um desejo de saciar a fome, acoplado a uma crença de que a água sacia a fo me.
A pro posta, então, é aplica r este modelo desejo-crença ao com porta mento verba l. Mas no caso de um com po rta mento verba l, de uma elocução - qual seria o desejo e qual seria a crença? O desejo é o desejo de dizer algo , de co mu nicar um significado. A crença é a crença de que proferindo certas ex pressões conseg ue-se satisfazer o desejo, isto é, conseg ue-se transmiti r ao interlocuto r (ou aos interlocutores) aquilo que se qu eria dizer. Esta expressão deve natu ra l mente pertencer a uma determi nada língua, de tal modo que a crença envolvida em cada ato de fa la é uma crença a respeito de uma lín gua determinada. A respeito de qualquer pessoa que domine uma língua, pode-se dizer que suas crenças a respeito dela são ve rdadei ras, isto é, que a pessoa tem conhecimento da língua.
Na aplicação do modelo desejo- crença ao com po rta mento ve rbal diremos então que o elem ento correspondente à crença é o conhecimento lingüístico . Quanto ao desejo, vamos chamá-lo de desejo comunicativo, só pa ra faci lita r a exposição.
E interessa nte pensa r nos com po rta mentos ve rbais co mo exempl ificação da identidade "desejo co municativo + conhecimento lingüístico = co mporta mento verbal". Dependendo de quais elementos desta identidade sejam co nsiderados incógn itas ou parâmetros, teremos um ou outro ti po de situaçã o. No caso normal de co mun icação entre membros de uma mesma com unidade ling üística, o con heci me nto ling üístico e o compo rta mento verbal são os parâmetros, os dados do problema, enquanto o desejo comun icativo é a incóg nita. Podemos dizer então que o rece pto r de uma elocução tem que reso lver uma equ ação com uma incóg n ita e dois pa râmetros con hecidos; o sucesso na reso lução co rresponde ao entendimento da mensagem, ou seja, à determinação correta do desejo com un icativo do inte rlocutor.
Consideremos agora o problema da previsão do co mpo rta me nto verbal, de novo entre mem bros de uma mesma com unidade lingüística. Neste caso, a incóg n ita é natu ra lme nte o comporta me nto verba l. Dos dois parâmetros, entreta nto, somente um deles - o con heci mento ling üístico - pode agora se r considerado como dado do problema; para resolver a equação é necessário determinar independentemente o desejo com un icativo, e é preci samente aí que reside a dificu ldade. Pode-se dizer então que a determinação do desejo com un icativo é o sub-problema crucial do problema da previsão do com po rta me nto verba l.
Passa ndo agora ao problema da tradução radical, é fáci l perce ber que ta mbém pa ra este o "x" da questão é a determinação do desejo co mu nicativo. Para constata r isso, basta nota r que, em relação ao problema da previsão, o que ocorre é uma muda nça de estatuto entre os elementos da identidade: o com po rta me nto passa de incógnita a parâmetro co nhecido, enquanto o conhecimento lingüístico (que é o que se deseja desco brir no contexto da tradução radical) sofre a tra nsformação i nversa .
Consideramos então demo nstrada, numa perspectiva menta l ista, a tese enu nciada acima acerca da relação entre os problemas da tradução radica l e da previsão do compo rta mento verba l. Para fazer o mesmo em te rmos behavio ristas, o mais conve niente é reco rrer à própria exposição de Gu ine do processo de tradução radical. Reco rdemos a clássica ce na inicial: um coelho passa co rrendo, o nativo diz "Gavagai", o lingü ista anota a co njetu ra de que "Gava gai" quer dizer "Coel ho" (adaptando, natu ra lmente, a descrição qui nea na do inglês pa ra o portu guês). Gual é o critério? Por que o lin güista não adota tentativa mente, diga mos, "Vaca" em vez de "Coel ho" como trad ução pa ra "Gavagai"? Resposta : porque "Coel ho" é (su posta me nte) o que o lingü ista diria se estivesse na posição do nativo, ou, de outro modo, o que o nativo diria se fa lasse o português.
Há uma passa gem em que Guine é basta nte ex plícito a respeito; ela se refe re a um estágio posterior do processo de tradução radical, um estágio no qual o lingü ista já co nsiderou esta belecidas as expressões na língua nativa corresponde ntes ao "si m" e " não" do português. Diz Gu ine:
"A lei geral pa ra a qual ele [o lingü ista] co leta casos particulares é mais ou menos a de que o nativo co ncordará com "Gavagai"? sob as mesmas estimulações sob as quais nós, sendo inquiridos, conco rda ríamos com "Coelho"?, e correspo ndentemente para o desacordo". ( 1, p. 30 )
o critério é, po rta nto, "o que o lingü ista di ria"; logo, pa ra leva r adia nte o processo de tradução, o lingüista tem de sa ber o que um fa la nte genérico de sua língua diria numa dada situação, ou seja, ele tem de ser ca paz de fazer previsões de comporta mento verba l.
Co nsideremos então demonstrada, pa ra todos os efeitos, a tese de que os problemas da tradução radical e da previsão do compo rtame nto verbal mantêm entre si uma relação ta l que, a ca pacidade de resolver um implica, em pri ncípio, a capacidade de reso lver ta mbém o outro. Pa rece agora que nosso percu rso nos conduziu a um beco. Tín hamos afirmado anteriormente que o problema da previsão é, em geral, insol úvel; acoplando esta proposição com a tese aci ma, somos levados a concl uir, natu ralme nte, que o problema da tradução radical ta mbém é insol úvel. Por quem se propu nha a refuta r o princípio quinea no da indeterminação, é cla ro que não pode ser bem recebida a co nclusão de que a trad ução radical é, na verdade, im possível.
É chegada a hora, entreta nto, de menciona rmos a ressa lva necessá ria à proposição da im possi bilidade da previsão do co m po rtame nto verba l.,O fato é que, em ce rtas situações especiais , é possível fazerem -se previsões acerta das acerca de co mpo rta me ntos verbais.
Por exem plo, se pergunta rmos pela hora a uma pessoa que sabemos eq uipada com um relógio de pu lso acu rado, poderemos preve r, corh razoável seg urança, qual va i se r a resposta . O g rau de seg u rança dependerá, natu ra lm ente, das pressu posições que fo rem
feitas.
É fáci l perceber, mesmo no relato de Gu ine que o processo de tradução ra dical depende fu nda mentalmente da ide ntificação destas situ ações especiais nas quais é possível a previsão do compo rta mento verbal, ou - ta mbém podería mos dizer - nas quais é possível a determinação do desejo co mun icativo. Gu ine ex plora basta nte duas destas situações: aquela em que algo interessa nte oco rre no am biente, alguma coisa - co mo um coelho passa ndo - que chame a atenção, tanto do lingüista, qua nto do nativo, e aquela em que se faz uma pergu nta ao nativo, acompanh ada de ce rto gesto. Na ve rdade, um estu do da trad ução radica l, mais sistem ático do que aquele em que Gu ine se propõe a fazer, não poderia dispensa r um leva ntamento metódico destes ti pos de situação.
Voltemos agora ao objetivo colocado inicial mente, o de refuta r o pri ncípio qu inea no da in determi nação. E sta refutação te ria, co mo um de se us elementos, o fato de que, ao co nceber o processo da tradução radical, Gu ine fa ria pressu posições de certa natu reza . E sta mos agora em co nd ições de ex pl ica r que pressu posições são estas. O que oco rre, e é fácil de ser constata do, é que, mesmo nas situ ações especiais de que esta mos fa lando, as previsões de comporta mentos ve rbais só podem ser feitas se ce rtas possibil idades forem excluídas. No exemplo da pessoa a quem se pe rg u nta pela hora, a possi bil idade de que ela esteja de mau humor e se recuse a responder, a possibil idade de que queira nos en ganar, etc. Uma análise cuidadosa do processo de tradução, ta l como descrito por Gu ine, revela ria um nú mero mu ito g rande de pressu posições impl icita mente adotadas em co rrespo ndência com a exclusão de possi bilidades. Na verdade, o processo descrito po r Gu ine só pa rece plau s íve l se se su põe - e esta é, ce rta mente, uma su posição bastante su bsta ncial - que os nativos com preendem o o bjetivo do lin güista de elaborar um manual de tradução, que se dispõem a cola bora r com o lingü ista na rea lização desta ta refa, que possuem as ca pacidades cogn itivas necessárias pa ra uma colaboração efetiva, etc.
Um dos po ntos de apoio pa ra a demonstração desenvolvida po r Gu ine pa ra o princípio de indeterminação da tradução é a alegação de que - tomando como exem plo a cena inicial - qua ndo o nativo diz "Gava gai" ele tanto pode esta r se referindo ao coelho que passa como a uma de suas pa rtes, ou a um breve estágio temporal do coel ho, ou à fusão de todos os coelhos - e há ainda outras possi bilidades. Há uma su posiçã o - mencionada pelo próprio Gu ine - que bloquea ria esta fonte da indetermi nação, a sa ber, a su posição de que a linguagem natu ral tem um termo geral breve pa ra coelho e nenhum para pa rtes, estágios ou fusões de coel hos (Cf. 1, p. 40, 52 ). A pergu nta então é: se Gu ine adota impl icita mente ta ntas pressu posições pa ra via bil iza r a tradução radical, por que não adota r ta m bém esta última - a qual, natu ra lmente, invalidaria sua prova do pri ncípio de indetermi nação?
E sta é, em resumo, a refutação do pri ncípio de indetermi nação da trad ução que desejávamos ex po r. Uma apresentação completa demanda ria discussões mais cuida dosas de mu itos po ntos, bem co mo de possíveis contra -argum entos da pa rte de Gu ine. O pta mos entreta nto po r deixa r de lado estas discussões, julgando que elas pode riam tornar pesa do o prese nte trabal ho, além de fazer com que apa recesse menos nitidamente a estrutu ra de nossa a rgume ntação - que é o que rea lm ente impo rta.
OLIVEIR A, M. B. de - A solution to the problem of radica l translation. Trans/Form/Ação, São Pa ulo, 9/10 : 9- 12, 1 986/87.
ABSTRACT: This paper consists in an attempt to refute Ouine's principie of the indeterminacy of radical translation. The structure of the argument is as fo/lows. The demonstration of the principie in Ouine 's work rests on certain conception of the process of radical translation. This conception can be maintained only if certain presuppositions are made concerning the nature of language and its speakers. However, if those presuppositions are adopted, there is no reason for not accepting also other presuppositions, which would invalidate Ouine's demonstration.
KEYWORDS: Radical translation; Ouine; Word and object; beha viorism; mentalism; desire-beliefmodel.
REFERÊ NCIA BIBLIOGRÁFICA
1. GUINE, W. V. O. - Word and object. Cam bridge, The MIT Press, 1960.
[1] Departamento de Filosofia - Facu ldade de Educação, Filosofi a, Ciências Sociais e da Docu mentação - UNESP - 17500 - Marília - SP.