RESENHAS/REVIEWS

Ubaldo PUPPI[1]

 

 

B1AG10N I, J. - A ontologia hermenêutica de H. C. Cadamer. Uberlândia, Un iversidade Federal de Uber lândia, 1983.

 

 

Com esse título, o autor se propõe, em sua pequena obra, apresentar "reflexões e perspectivas sobre a 3.3 parte de 'Verdade e Método"'. "Wahrheit und Methode" é talvez a principal obra de Hans-Georg Gadamer. Possui, do meu conhecimento, traduções em francês e italiano: "V érité et Méthode", Paris, Ed. du Seuil, 1 976; "Verità e Método ", Milano, Fratelli Fabbri Ed., 1 972. O alentado livro de H. G. Gadamer se compõe de três partes: 1. " Destaque da questão da verdade. A experiência da arte" ; 2. "Alargamento do problema da verdade. Compreensão nas ciências humanas" ; 3. "I nflexão ontológica na hermenêutica sob a conduta da linguagem".

A 3.3 parte, "Inflexão ontológica na hermenêutica sob a conduta da linguagem ", se constrói sobre pressupostos históricos e filosóficos. De fato, a hermenêutica clássica, entendida como o domínio dos critérios regionais da interpretação de texto, recebeu nos dois últimos séculos, primeiro, um alargamento de amplitude universal e, em segu ida, sua fundação ontológica. A universalização do critério hermenêutico se inicia com Schleiermacher, no séc. XVIII, a partir da filologia e da exegese, e prossegue com Dilthey, a partir de sua concepção da interpretação histórica. Assumida como tal e redirecionada por Heidegger, este lhe confere fundação filosófica em sua ontologia fundamental, com destaque, no caso, para certas estruturas do ser-no-mundo, particularmente a Verstehen e a Befindliehkeit, e para o circulo hermenêutico.

Essa temática, presente em "Sein und Zeit ", é retomada e desenvolvida por Gadamer na perspectiva da segunda filosofia de Heidegger, a qual, ao acentuar o poder de manifestação da linguagem, se impõe como divisor de águas que a separa de suas versões ditas existencialistas. Nesse particular, Gadamer é antípoda de Sartre e se aproxima de C. S. Peirce, a linguagem se constituindo no fulcro de sua hermenêutica geral ou ontologia hermenêutica. A mencionada 3.3 parte da "Wahrheit und Methode" é o loeus onde trata expressamente da linguagem como "meio (medium) da experiência hermenêutica ", e como "horizonte de uma ontologia hermenêutica". São subtítulos do capítulo. É de se notar a natureza inovadora e o alcance de uma ontologia de alto nível que faz da linguagem o meio e o horizonte do conhecimento. Precisando com mais detalhe, o primeiro subtítulo no elemento linguageiro (Spraehliehkeit) a determinação, não do "objeto hermenêutico", mas também da "operação ( Vollzug) hermenêutica ", enquanto o segundo subtítulo considera "a linguagem como experiência do mundo".

Essa deveria ser, portanto, em princípio, a temática global da brochura de J. Biagioni. A expec tativa e o interesse por sua leitura não poderiam deixar de ser grandes. Foi pelo menos com essa disposição que comecei sua leitura. Logo de saída somos informados de que a escolha do tema teve sua motivação em sala de aula, durante curso assistido em universidade t'uropéia. A antecipação,  própria do círculo hermenêutico, que Heidegger e Gadamer chamam, sem descartá-lo a priori, de preconceito,  nos assalta sob a forma de prevenção. O que fazer? Apelar para a censura hermenêutica, lembrada no mesmo contexto de "Ser e Tem po" (p. 1 5 3 da ed. alemã): nem toda an tecipação faz parte do círculo hermenêutico, mas tão-somente aquelas que são "segundo as coisas-mesmas", isto é, provocadas pelo que Gadamer chamará de a "coisa do texto"? Ao final da leitura de J. Biagioni, porém, a constatação que se tira é de fato a de um trabal ho de principiante, um apl icado exercício acadêmico que, em que pese o fato de ter sido diligentemente tratado, não ultrapassa o nível da motivação.  A esse nível o produto não é mau, nem desp rezível, mereceria nota para grad uar-se, mas é digno de ser publicado? O autor não deixa de ter qualidades, revela que pode continuar seus estudos filosóficos. Necess ita, porém, de muito trabalho antes de voltar a publicar. É o que é preciso, e muito, que am bição (vál ida) de ser autor não lhe falta: o livro que publicou é "o primeiro de muitos passos que pretendemos dar" (p. 14, circa medium).

O peq ueno livro se abre com "uma palavra ao leitor" (p. 13 ), onde quer dizer a que veio. parcialmente nos esclarece sobre seu proj eto ; em grau maior, ele se nos confunde. Deli neia-se a tese proposta, mas denunciando v é'.cilação ao tentar circunscreverlhe os contornos. Cito para conferição: "o que pretendemos estudar é o modo-de-ser do homem ser-no-mundo... " (p. 13 ); "nosso objetivo... foi o de... fixar-nos na filosofia da linguagem... de Gadamer... " (p. 1 5 ); "a nossa intenção... é tentar mostrar que a filoso fia de Gadamer desej a ser a ntese de dois movimentos que a precederam: passar das chamadas hermenêuticas regionais em direção (sic) à hermenêutica universal e extrapolar o problema da epistemologia das ciências do espírito para atingir a ontologia" (p. 14).

Apesar de serem formulações conexas, cada tema contido comporta enfoque e desdobramentos peculiares, tanto em sua natureza própria, como em seus precedentes históricos. A última formulação, aliás, foi pinçada, sem aspas, de Ricoeur, que a enuncia naqueles termos e a desenvolve de modo mais completo e crí tico (cf. Ricoeur, "Funções da hermenêutica ", in "Interp retação e Ideologias ", Rio de Janeiro, Franc. Alves Ed., 1 977, pp. 38, ss.).

A favor de J. Biagioni, pode ser levado em conta que há um momento em que as três formulações se integram numa proposta. É quando Gadamer estabelece o confronto entre a pertença e o distanciamento al ienante ( Verfremdung). Com efeito: a pertença se trad uz em termos de compreen são ; o distanciamento é problema próprio da linguagem ; é para superar o distanciamento que Gadamer salta da epistemologia das ciências humanas para a ontologia hermenêutica. Não, porém, sem deixar pistas para a retomada da epistemologia, agora à luz da ontologia que a funda. São as pistas, sej a dito de passagem, que Ricoeur persegue para elaborar com segurança e de modo exemplar a epistemologia das ciências do tex to: da semiótica à exegese. Ou, como diz ele mesmo: "da sem iologia à exegese " (cf. sobretudo esc ritos seus dos três últimos lustros).

Estranhamente, contudo, J. Biagioni não faz nenhuma referência explícita ao par de opostos: pertença e distanciamento alienante. Parece não estar ainda filosoficamente eq uipado para aquilo que Gadamer denomina "fusão de horizontes ". É preciso, antes, que seu horizonte filosófico cresça, para en tão poder aparecer. Não comparece, e ainda por cima dilui em seu escrito o de G aáamer. É o que ocorre, a título de ilustração, e de modo flagrante, quando tenta argumentar sobre o fato de trabalhar o pensamento de Gadamer em tradução (italiana, pelo que se depreende das citações). Recorre, sem cuidado e sem pesar conseqüências, às teorias de Gadamer sobre a tradução e a fusão de horizon tes. Tem-nas na conta de soluções de facilidade, que basta evocar e aplicar a si para torná-las eficazes, sem atinar para a árdua problemática que levan tam, e sem se dar conta do questionamento que suscitam ao serem levadas a sério (cf. pp. 3 1 e 32).

Mas é o livro no seu todo que revela insu ficiente mestria sobre a problemática e a obra do autor estudado, além de deficiente estru turação do próprio discurso. Sua construção se aproxima mais da reprodução de esquemas estereotipados do que de uma compreensão e elaboração personalizadas.  Contra tudo o que vem afirmado no livro sob o nome de hermenêutica, predomina o recurso ao esquematismo textual e ao pinçamento de citações. Em momento algum mostra a desen voltura do intérprete seguro e bem informado, capaz de levar alegria e proveito a quem o lê. É assim que toda uma constelação de conceitos heideggerianos e gadamerianos, cuj o significado inusual requer sejam expostos e bem trabalhados, permanece inexplicada. carência de definições funcionais e pobreza de aclaramentos intertextuais. A indagação que emerge então é: por que e para quem a obra foi escrita e publicada? Quem leu Heidegger e Gadamer dispensa o texto de J. Biagioni, por demasiado óbvio; quem não os leu, se depara, diante dele, com uma sinopse de difícil acesso: não por mérito, mas por deficiências do autor.

É  sintomática, a respeito, a fuga do compromisso e da responsabil idade pela produção do  texto.  São freq üentes as passagens deste jaez: "sobre o assunto, cfr. as obras de... " ou tros autores ; "precisaríamos (no condicional),aqui, abordar os temas "... tais e tais; "bastaria lembrar... apenas, que"... ; "aspectos que, aqui, deveriam (condicional) ser apro fundados, aos quais apenas acenamos de passagem " (cf. pp. 38, ss.). E, para dizer tudo numa frase, em vez daquilo que o autor fica devendo ao leitor, 'prossegue com depauperados resu mos e inevitáveis, desde então, retomadas redundantes.

Esta resenha é severa, porque o autor assim a merece. Se julgasse que não tem talento, não me ocuparia dele. Ju nto a vícios precoces, revela promissoras possi bilidades. E todos que produzimos textos de filoso fia precisamos ouvir os conselhos de Descartes: "evitar a precipitação "; de Heidegger: "deixar ser o ser" ; de Gerard Lebrun: cultivar a rum inante "paciência do conceito ". Não faltam exem plos desest im ulantes, bem o sabemos, mas o fato de terem audiência não deve servir de pretexto à facilidade. Também por essa razão a resenha é severa.



[1] Professor aposentado - Departa mento de Filosofia - Faculdade de Educação Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação - UNESP - 17500 - Marília - SP.