O ESTRANHO TESTAMENTO DE UM VIG ÁRIO DE PROVÍNCIA: AS MEMÓRIA S DE JEAN MESLIER

 

Maria das Graças de Souza NASCIMENTO[1]

 

RESUMO: Em 1 762, Voltaire publica um pequeno livro intitulado Extraits des Sentiments de Jean Meslier.  Trata-se de uma espécie de resumo das Mémoires de Jean Meslier, das quais·várias cópias manuscritas circulavam entre a literatura clandestina da primeira metade do século. O interesse de Voltaire por estas Memórias é compreensível. Nelas Meslier denuncia toda forma de religião como impostura e falsidade, e anuncia uma filosofia de caráter materialista e ateísta. Qual o papel que Meslier, um obscuro vigário de província, teria exercido na constituição da filosofia da luzes?

 

UNITERMOS: Despotismo religioso; materialismo clandestino; ateísmo; deísmo.

 

As cartas escritas por Voltaire a seus pri ncipais correspondentes durante os primeiros meses do ano de 17 62 falam com freq üência de um livro, "muito raro", "um tesouro", de autoria de um "suiço" desconhecido. A obra à qual Voltaire se refere, e cuja leitura recomenda a seus amigos, enviando mesmo um exemplar a alguns deles, intitula-se Extraits des Sentiments de Jean Meslier,  publicada em fevereiro do mesmo ano. Ora, o "suiço" que escrevera o tal resumo era o próprio Voltaire. O fato de atribuir as próprias obras a outros au tores conhecidos ou imaginários era comum na época, e, entre seus contemporâneos, ninguém duv idava que o texto vinha da oficina de Ferney. Como toda obra escrita ou patrocinada pelo velho filósofo, o livro foi várias vezes reed itado nos anos segu intes e amplamente lido nos meios eruditos europeu s.

Quem foi Jean Meslier? Em relação à carreira gloriosa de Voltaire, sua vida foi absolutamente insign ificante. Foram os acontecimento que se seguiram à sua morte que despertaram um grande in teresse. Originário de uma família pobre, Meslier nasceu na vila de Marzeny em 1 678. Cedo seus pais o enviaram ao seminário, destinando-o à carreira eclesiástica. Durante seus estudos, nada o distinguiu especial mente de ou tros seminaristas. Ordenado padre, foi nomeado pároco da peq uena cidade de Etrepigny, na região francesa da Champagne. permaneceu até sua morte, em 17 29, tendo vivido da mesma maneira que seus colegas vigários do interior. Segundo o estado atual das pesq uisas, existem apenas dois fatos a serem assi nalados na sua rotina eclesiástica: uma viagem a Paris, durante a qual ele teria tido oportun idade de discutir com outros padres o tratado de apologética de Houteville, e uma desavença com o senhor da região, a respeito das honras que este último julgava merecer do vigário. Entre os poucos livros que deixou, foram encontrados a Bíblia, os Ensaios de Montaigne e o tratado de Fenelon sobre a existência de Deu s. Além dos livros, uma carta dirigida aos párocos da vizinhança, e uma espécie de testamento, do qual exatamente Voltaire fará um extrato em 1762. O interesse de Voltaire por este testamento é compreensível. As Memórias de Meslier denunciam toda forma de religião como im postura e falsidade, opõem aos fatos bíblicos a razão natural, criticam a violência e a desigualdade sociais estabelecidas a partir das representações de Deus, e, finalmente, anunciam uma filosofia de caráter nitidamente materialista. Quem poderia esperar tais propósi tos da parte de um pacato vigário que durante toda a sua vida pregou a obediência à Igrej a, em seus sermões demonicais?

Sabe-se que desde 17 30 várias cópias manuscri tas circu lavam nos meios eruditos através dos canais de literatura clandestina. Apesar da im portância das Memórias de Meslier no debate filosófico do século X V 11 I, elas foram praticamente esq uecidas durante o século XIX. muito recentemente a crí tica voltou a in teressar-se pelo texto, a partir da identi ficação, feita por Albert Soboul, Roland Desné e Jean Deprun, na Biblioteca Nacional de Paris, dos três manuscritos autografados por Meslier, e da publicação de uma edição completa de suas obras, que incluem as Memórias, uma Carta aos v igários, e um texto constituído de notas de leitura inti tulado Anti-Fene/on (1).

O discu rso ateu e materialista do século das luzes pertencente pri ncipalmente a um grupo de pen sadores de meio urbano, mais precisamente parisiense, grupo que a tradição crítica costu ma denominar a "coterie" do Barão de Holbach, e que, a partir sobretudo dos meados do século, produz e pu blica diversas obras contra a rel igião em geral, contra a filosofia deísta, fazendo profissão declarada ou não de ateí smo, através de escritos anônimos ou sob pseudônimos. Todavia, desde o início do século eram difundidos clandestinamente diversos tex tos, dentre os quais o de Meslier, da mesma natu reza daq ueles produzidos mais tarde pelo grupo do Barão (3). Ora, até o estado atual das pesq uisas, não indícios que nos permitam saber se Meslier estaria a par do movimento de di fusão de idéias anti-cristãs do início do século. O próprio Voltaire parece reconhecer o caráter solitário da produção das Memórias, ao chamar Meslier de "o mais singular fenômeno que se viu dentre os meteoros funestos à religião cristã" (2,  p. 1 207). O surgimento de uma certa crítica dos dogmas da religião cristã no próprio interior dos quadros da Igreja por si não constitui um fato incomum no século XV1 11. Supreendente é fato de que Meslier, isolado ao que parece das idéias anti- cristãs que floresciam na capital, ten ha vindo ao encontro delas através deste testamento tão inusitado. Não pretendemos in vestigar as cond ições de prod ução ou as fontes do pensamento de Meslier presente nas Memórias.  Nós nos limitaremos a apresentar as principais idéias contidas nas chamadas "provas" de Meslier e ind icar alguns caminhos de reflexões sugeridos pelo tex to.

As Memórias dos pensamentos e sentimentos de Jean Meslier começam com  uma acusação que é ao mesmo tempo uma auto-acusação: o acusador também se situa a si mesmo entre os réu s. O vigário inicia pedindo perdão a seus paroq uianos por ter, durante toda a sua vida, pregado idéias in úteis e falsas. "Tudo o que eles (os padres) nos contam com tanta gravidade... são no fundo apenas ilusões e erros, mentiras, ficções, imposturas, inventadas primeiramente para fins e artifícios políticos, contin uadas por sed utores e im postores, em seguida recebidas e acredi tadas cegamente pelos povos ignorantes e grosseiros, e depois, finalmente, mant idas pela autoridade dos grandes e soberanos da terra" (1, I, p. 20). Trata-se, para Meslier, não apenas de provar que "os mistérios da religião são mistérios da iniqüidade", mas também de denunciar a falsidade do próprio princípio da religião, ou seja, a idéia de Deus. O método que ele utiliza faz lembrar o de Descartes - se provarmos a falsidade originária de uma religião, estaremos provando a falsidade de todas elas. Na sua demonstração, a religião cristã é colocada no mesmo nível que todas as outras. "Efetivamente, diz Meslier, ela não é menos falsa que nenhuma outra, e eu poderia mesmo dizer que em certo sentido ela é talvez ainda mais falsa e mais do que as outras" (1, I, p. 41).

Após esta espécie de prefácio no qual revela seus propósitos, explicando ao mesmo tempo aos leitores, seus paroquianos, que era sem pre com um profundo mal estar e com uma grande repugnância que subia ao púlpito para lhes fazer sermões mentirosos, Meslier passa então ao que. ele chama de "provas". A pri meira pretende demon strar que todas as religiões são invenções humanas. Filiando-se à antiga in terpretação materialista das mitologias, cons idera os deuses pagãos como fruto da imaginação dos homens, que costumavam considerar os im peradores e chefes como deuses, ou tran sformá-los em deuses após a sua morte. A paixão do povo pelos prodígios, aliada aos artifícios das autoridades fizeram com que estas ilusões durassem. Portanto, as religiões antigas são falsas. Mas também o são todas as outras. Todos os chefes rel igiosos, inclusive Jesus Cristo e Maomé, inventaram cada qual o seu modelo divino. Nenhuma religião foi ou é capaz de produzir provas claras e convincentes de sua instituição divina. O que elas apresentam como provas? Prod ígios, mi lagres e a idéia de revelação. Ora, estes elementos estão presentes em todas as religiões. Se uma delas é falsa, todas o serão tam bém, na medida em que todas, sendo diferentes e exclusivas, reivindicam a mesma espécie de fundamento. Assim, o Deus de Abrãao, de Isac e de Jacó não é mais verdadeiro do que os deuses dos gregos e romanos.

Toda religião exige a fé. Mas o que é exatamente a fé? É este o obj eto da segunda prova de Meslier. Em primeiro lugar, a é cega, sem fundamentos claros e segu ros. Ter fé é crer sem raciocinar, sem buscar provas. É por isto que a crença religiosa é uma ilusão. U ma acei tação de principios que dispensa provas e excl ui a razão sem pre será motivo de disputas. Por esta razão é que a rel igião sempre dividiu os homens, provocou lutas sangrentas, perseguições e violências.

Nas provas que se seguem, terceira e quarta, Meslier faz a crítica do Antigo e de Novo Testamento, recusando as in terpretações sticas e alegóricas da Escritura. Para ele, somente a loucura dos homens pode atri buir a um Deus a insti tuição de sacri fícios e fazê-los acred itar em profecias que nu nca se realizaram. Nas margens de suas páginas de crítica bíblica Meslier escreve, por várias vezes a expressão "puerilla sunt haec et vana et risu digna".

A quinta prova trata da demon stração da falsidade da doutrina e da moral cristãs_ O primeiro erro doutrinário do cristianismo é o dogma da Trindade. O segu ndo diz respeito à idéia da encarnação divina. A lin guagem de Meslier ao se referir a Jesus Cristo, supostamente Deus feito homem, é de uma violência inesperada. Segundo as palavras do vigário, Jesus não passou de um louco, um fanático, um visionário _ Sua pregação foi ambígua, enganadora, extravagante. "Ele não passou de um homem de nada, um homem vil e desprezí vel, sem espírito, sem talento, sem ciência_.. " (I, I, p. 41 4). Não se trata apenas, para Meslier, de destruir a idéia da divindade de Jesus Cristo, mas de, para além disto, desmisti ficar a sua pregação, que foi apenas fruto de uma imaginação desregrada, e com a qual o gênero humano não tem nada a aprender. O terceiro erro da doutrina cristã se refere ao sacramento da Eucaristia. Tal dogma origem a um culto tão primitivo quanto o culto dedicado aos deu ses de barro e de madeira dos pagãos_ A adoração de um deus " feito de m assa de farinha" não deixa de ser uma forma de idolatria. A estes três erros, os cri stãos acrescentam outros, como o da criação e do pecado original. Ainda nesta prova, Mesl ier assinala os três erros fundamentais da moral cristã, que consistem, em primeiro lugar, na afirmação de que a virtude consi ste no amor ao sofrimento, em segu ndo lugar, na cond enação das paixões naturais do homem como vícios, e, por último, o que é mais grave, na acei tação e mesmo na recomendação de práticas que destroem a justiça e a igualdade naturais. A moral cristã é contrária à natu reza.

A Igreja cristã sempre autorizou e praticou abusos, injustiças, violências. Os homens são iguais por natureza e o cristianismo legitimou a desigualdade de condições. Em seu próprio seio a Igrej a sustenta um clero ocioso, opulento, cujas atividades não têm nenhuma serventia a não ser a de esmagar e arruinar os povos. É na sexta prova que Meslier desenvolve este veio social de suas Memórias. Ele propõe a substitu ição da sociedade estabelecida a partir dos princípios opressores da religião cristã por uma outra, fundada na propriedade coletiva dos bens. É a propriedade que está na base de toda ti ran ia, e esta é sempre su stentada pela cumplicidade que se estabeleceu entre os soberanos e o clero.

Sucintamente podemos dizer que as cinco primeiras provas são constituídas pela crítica da religião, e que a sexta introduz as propostas sociais que decorrem necessariamente desta crítica. As duas últimas provas, sétima e oitava, podem ser consideradas como a parte mais filosófica das Memórias. Na sétima, que se compõe de argumentos contra a existência de Deus, o principal alvq das crí ticas são as demons trações da existência de Deus de Fenelon. Uma vez negada a existência de um ser divino e a idéia da criação do mundo, resta que "o ser, ou a matéria, que são uma e mesma coisa, pode possuir sua existência e seu movimento por si mesmo" (1, 11, p. 237 ). É esta proposição fundamental do material ismo de Meslier, que ele opõe às proposições de todos aqueles que denomina "deícolas " e "cristícolas". As partes da matéria, juntando-se, unindose diversamente umas às outras, compõem por si mesmas todos os corpos. "O ser material é o ún ico e verdadeiro ser" (1, 11, p. 430).

Eliminada a dualidade Deus/mundo, resta elimi nar também a dualidade corpo/alma. Meslier faz consistir sua oitava e última prova na refu tação da tese da existência e da imortalidade da alma. Para ele, recorrer à idéia de uma alma espiri tual para explicar o homem é tão inútil quanto recorrer à idéia de Deus para explicar o mundo. "Nós sentimos, diz Meslier, interiormente e exteriormente por nós mesmos, que somos apenas matéria, e que nossos pensamentos mais espirituais são apenas matéria em nosso cérebro, e que eles dependem da constituição material deste cérebro." (1, 11 I, p. 1 1 8- 1 1 9). Aquilo que chamamos de alma é constituído por uma espécie de matéria mais maleável e mais sutil. A alma não é portanto nem espiritual nem imortal. Ao contrário, ela é de natureza estritamente física, como os outros corpos da natu reza.

Meslier encerra suas Memórias com um apelo que ressoa familiarménte aos ouvidos do século XX: "Uni-vos, pois, povos, se sois sábios, uni-vos todos... para vos li bertar de todas as misérias comuns" ( I, 111, p. 1 47).

O conteúdo das Memórias é realmente audacioso. De um lado, os apologistas cristãos do século XIII não encontraram grandes di ficuldades para refutá-las, do ponto de vista teórico, na medida em que o texto de Meslier é muito mais sedutor do que rigoroso. Mas, de outro lado, do ponto de vi sta social e político, as Memórias possuem um caráter revolucionário que não será encontrado nos textos da "coterie" holbachiana.

Para Meslier, por trás das signi ficações sobrenaturais da história, é preciso buscar a mistificação política. A im postura providencialista en tretém a tirania monárquica e clerical. A ordem da natureza revela o movimento da matéria. O ser necessário não se confunde com o ser perfei to. Meslier recusa a noção de uma "sagesse" divina que conduziria o mundo. Recusa também a justi ficação do mal, negando seu efeito purificador, e a ilusão compen satória de uma felicidade futura. Os povos são chamados a se tornarem a sua própria providência. A verdadeira redenção é a libertação da escravidão, da idolatria, da superstição, da tirania. É preciso li bertar o homem de uma culpabilidade opressora. preciso tirar os povos do engano, e libertá-los da dominação tirânica dos ricos, dos no bres e dos grandes da terra, assim como dos erros e das vãs superstições das religiões " (l, IIl, p. 1 8 ). A libertação do erro é também a libertação da opressão em geral. O proj eto revolucionário de Meslier toma sentido na perspectiva da emancipação de todos os povos. Para ele, doravante, tempo de pôr fim à tiran ia" O, IIl, p. 19 3). Os povos têm necessidade de uma libertação real, mais real do que aquela que foi oferecida por Jesus Cristo. O verdadeiro pecado original é a pobreza, e a única redenção possível é a li bertação da si tuação de miséria em que os povos se encontram. Ora, a libertação da miséria ocorrerá com a libertação do engano e da ignorância na qual a religião mantém os povos.

A leitura das Memórias de Meslier, ao mesmo tempo tão próxima dos ideais do iluminismo e tão distante deles pelas condições de sua produção, nos induz à colocação de certas questões sobre a próp ria história do materialismo. A primeira delas diz respeito à estrutura interna do texto e suas relações com o discurso religioso ao qual as Memórias pretendem se opor. Ao analisarmos o discurso de Meslier, temos a impressão de estarmos diante de um discurso religioso às avessas. Tomemos, por exemplo, a sua concepção de povo. In icialmente, o conceito aparece no interior da oposição "povo/grandes da terra ", que situa a noção numa dual idade de termos antagônicos. De outro lado, o conceito é sempre associado a outros que evocam opres são, miséria, ignorância. O povo, segundo Meslier, "geme, diariamente, sob o jugo insuportável da tirania e das vãs superstições " (l, IIl, p. 1 87). Tal como o povo de Moisés, ele aguarda o momento da libertação. Todavia, a libertação não será conq uistada se não houver chefes, guias que possam convencer os povos da cond ição de suj eição na qual vivem, e que ignoram. A quem cabe esta tarefa de li bertador? " Cabe, diz Meslier, aos sábios a tarefa de dar aos outros as regras e as instruções da verdadeira sabedoria, que deve igualmente afastar todos os erros e todas as superstições, assim como de todos os vícios e maldades, e a de ensinar aos homens a fazer bom uso de todas as coisas " (1, 1/1, p. 1 90). Curiosamente, Meslier acredita que é exatamente dentre os homens do clero que se deve procurar estes sábios. Não dentre os ricos e nobres, nem dentre os prelados e bispos, mas dentre os padres como aqueles aos quais se dirige em sua carta, e que, como ele mesmo, presenciam em sua vida diária a miserável cond ição dos povos. "Sendo necessário, diz Meslier, aos vigários aos quais se dirige em sua carta, que em todas as repúblicas e em todas as comunidades bem regradas, haja pessoas sábias e esclarecidas para instruir os outros nas ciências naturais e nos bons costumes, sereis muito próprios para esse trabalho... " (l, II I, p. 1 92). E o autor não hesita em reprod uzir imagens b: blicas ao dizer que os padres, como pessoas instruídas, têm o dever de proteger os povos do erro e da iniq üidade, como o pastor protege as suas ovelhas (l, 1 1 /, p. 1 94).

Foi sobretudo ao refletirmos sobre esses aspectos do discurso do vigário que ju lgamos encontrar nele traços típicos do discurso religioso, empregados evidentemente como num espelho. O primeiro deles reside na consideração de que há uma verdade a ser revelada, o segundo na afirmação de que alguns escolhidos aos quais foi conced ido perceber tal verdade, e que a partir daí têm como missão transmiti-la aos outros. Mas outros componen tes religiosos neste discurso anti-religioso. Por exem plo, Meslier usa citações bíblicas para demonstrar seus argumentos. O Evangelho de São Mateus afirma que "se um cego conduz outro cego, os dois cairão no abismo". Esta frase do Evangelho é habilmente utilizada por Meslier no interior de sua argumen tação contra o conceito de fé. Ter fé é crer cegamente. Assim, quem se orienta pela fé não pode dirigir ninguém (1, 111, p. 1 8 5). Proced imentos desta natureza são abundantes no decorrer das Memórias.

Há ainda um outro traço extremamente curioso quanto à questão das relações das Mem órias com o universo religioso que o texto quer exorcizar. Ao criar a sua utopia comun itária, as fontes de Meslier são, de um lado, a comunidade cristã primitiva e, de outro, a comunidade monacal tal como existia ainda em mosteiros da província. O que o atrai nessas duas comunidades é a maneira de viver em comum, que, segu ndo ele, é a melhor e a mais conveniente para os homen s. Purificada da mentira que lhes serve de fundamento, a comunidade cristã prim itiva e as comunidades monacais devem servir de modelo para a construção das comunidades humanas em geral. Trata-se de manter a forma, invertendo o conteúdo do fundamento. Para os cristãos, o fundamento é Deus, um falso fundamento, segundo Meslier. O verdadeiro fundamento para ele é a matéria, "o grande todo ", "único e verdadeiro ser". Mas a natureza da relação que se estabelece com o fundamento é religiosa, absoluta.

Para finalizar, uma reflexão sobre as relações do discu rso de Meslier com o discurso materialista das l.uzes. A divu lgação das Mem órias não se fez a partir dos originais, mas através de compilações. Naigeon pub licou textos escolhidos do origi nal. Holbach, em 17 72, publicou uma compi lação denominada Le bon sens puisé dans la nature, suivi du testament de Jean Meslier, e, mais tardiamente, em 17 89, Sylvain Marec hal escreveu um Catéchisme du curé Meslier. A característica principal dessas publ icações é a de ter conservado o ateí smo manifesto das Memórias, deixando porém de lado toda a crítica social. Mas o grande veículo de divu lgação de Meslier foi o Extrait de Voltaire. Ora, sabe-se que o texto publicado por Voltaire constituiu-se como um trabalho red utor que alterou seriamente o texto original. O extrato de 17 62 conserva tudo o que se refere à crítica do cristianismo, mas elimina as provas que tratam das conseqüências sociais do despotismo rel igioso, da falsidade das demon strações da existência de Deus 'e da falsidade das demonstrações da existência de uma alma espiritual, e, finalmente, contra toda fidelidade ao texto original, inclui uma prece final na qual Meslier pede a Deus (ao de Voltaire, certamente), que reconduza os homens aos caminhos da religião natural, transformando Meslier num deísta voltaireano. Se o iluminismo conheceu Meslier a partir do resumo de Voltaire, resta saber qual o lugar que o verdadeiro Meslier teria ocupado na filosofia das luzes. Será que o Meslier original in teressaria apenas a nós, críticos atuai s, que entramos tardiamente em cena, e não aos reais atores da filosofia das luzes, que, por sua vez, estariam sempre lidando com o Meslier de Voltaire?

 

NASCIMENTO, M. das G. de S. - L'étrange testament d'un curé de province: Les Mémoires de Jean Meslier. Trans/Forml Ação, São Paulo, 8:7 1 -77, 1985.

 

RESUMÉ: En / 762,  Voltaire publie un pe/i/ livre in/i/ulé Extraits des sen timents de Jean Meslier. /I s 'agi/ d 'um abregé des Mémoires de Jean Meslier qui circulaien/ comme lilléra/ure clandes/ine dans la premiére moi/ié du X VII/e. siéc/e, sous forme de copies manuscri/es. L 'in/erê/ de Vol/aire pour ces Mémoires es/ compréhensible. Elles dén oncenl loule religion comme imposlure el fausselé el annoncenl une philosophie malérialisle e/ alhéis/e. Quel rôle ce/ obscur vicaire de province aura exercé dans la cons/ilulion de la philosophie des lumiéres?

 

UNITERMES: Malérialisme c/andes/in; alhéisme, déisme; despo lisme religieux.

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

I. MESLlER, J. - Oeu vres. Edição apresen tada por Jean Deprun, Roland Desné e Albert Soboul. Paris, Anthropos, 1970. 3 v.

2.     VOLTAIRE, J. M. A. de - Exlrails des senlimenls de Jean Meslier, Mélanges. Paris, Gallimard, 1965.

3.     WADE, J. O. - The c/andes/ine organisalion and diffusion of lhe philosophic ideas in Francefrom / 700- / 750. Princeton, Princeton U niv. Press, 1 938.



[1] Departamento de Filosofia - Faculdade de Ed uca,ao, Filosofia, Ciências Sociais e da Documen ta,ao -  UNESP - 17. 500 - Marília - sP.