DIABO E CULTURA POPULAR[1]

 

Sílvia Maria AZEVEDO[2]

 

RESUMO: O presente trabalho focaliza a figura do diabo participando de duas expressões da chamada cultura popular medieval. Por meio de espetáculos como o Carnaval, a Festa dos Loucos, a Festa do Asno, procurei aprender, através da figura demoníaca, o intercâmbio entre duas formas de cultura - uma, séria, religiosa, feudal - relacionada com o mundo das instituições medievais - outra, cômica, irre verente, profana - ligada ao mundo medie val não institucionalizado.

 

UNITERMOS: Idade Média; literatura; teatro; antropologia; filosofia; carnaval; cultura popular; festas populares; diabo.

 

Na pesquisa de Paoli Toschi acerca das máscaras demoníacas do Carnaval, o autor observa que as máscaras de Carnaval são a representação de seres do mundo do inferno, de demônios, de almas dos mortos, de feiticeiras, isto porque "Carnavale e una festa propiziatoria della fertilità delle terra, dell' abóndanza delle messi. Ora, per generare la nuova spiga o la nuova pianta, il seme deve transcorrere un periodo piu o meno lungo sotto terra. nel buio delle plaghe inferne, stanno le potenze della generaziio-' ne, le divinità sotterranee, i demoni, le anima degli avi che nella giornata fatidica dei ricominciamellto dell 'anno, dell' eterno ritorno dei ciclo produttivo, evocati da appositi riti, compaiono sulla terra, e vi esercitano la loro forza". (6, p. 227 )

O estudo de Paoli Toschi engloba a pesquisa sobre a presença de máscaras demoníacas no Carnaval em várias regiões da Itália, e as transformações das máscaras diabólicas carnavalescas em outras personificações demoníacas como Arlequim, Zanni e Polichinelo que, provenientes da tradição popular italiana, como as máscaras que as representam, serão incorporadas à "commedia dell'arte", conservando seu caráter original.

O diabo ou, mais propriamente, as máscaras demoníacas, não figuram apenas no Carnaval, como ainda observa aquele autor, mas são encontradas também numa série de ritos propiciatórios primaveris e em outras festas de signi ficado equivalente, como a Páscoa. Mas, enq uanto no Carnaval o caráter pagão da presença demoníaca é evidente, na Páscoa, por exemplo, é difícil distingüir o elemento demoníaco pré-cristão, uma vez que nesta festa a máscara diabólica assume a con figuração do demônio segundo a concepção cristã. (6, p. 17 7)

A importância desta colocação está relacionada com o intercâmbio, na Idade dia, entre cultura oficial e cultura popular, e com espaço e o desempenho do diabo no teatro religioso nos quadros da comicidade. E aqui talvez sej a importante, para o estudo do cômico via diabo, no teatro religioso, acompanhar mais um pouco Paoli Toschi sobre a origem de Arlequim. Observando que a origem daquela figura demoníaca deve ser procurada na Europa centro-ociden tal ou setentrional, o autor aponta a Divina Comédia, de Dante, (In ferno, cantos XXI e XXII) como o primeiro relato, na Itália, onde Arlequim aparece, sob o nome de A lichino, e, segundo os traços originais, como diabo cômico. A fonte da representação de A lichino, ou Arlequim, na Divina Comédia, como diabo cômico, Dante provavelmente encontrou, como sugere Paoli Toschi, nas figuras demoníacas que figuravam nas festas das estações. A prova, o autor encontra-a na crônica de Giovanni Villani (livro VIII, cap o LXX), que informa acerca de uma famosa ' 'diablerie " ocorrida em Firenze, em 1 304, a I. o de maio, data que corresponde ao início do ciclo da primavera. (6, p. 205 )

A fusão do demoníaco e do cômico na mesma personagem é traço constante não do diabo das máscaras carnavalescas, como também das suas posteriores configurações como Arlequim, Zanni e Polichinelo. Enq uanto essas figuras demoníacas do Carnaval - e que se constituirão nas "diableries ", profusas sobretudo nos dramas franceses - serviram de inspiração à demonologia de Dante, os diabos da Divina Comédia, ou, "Ia fiéra compagnia dei diavoli della quinta bolgia", serão ao mesmo tempo personagens que assustam e fazem rir.

No entanto, se é certo que o diabo enquanto personagem da cultura medieval, como nos dramas sacros, foi moldado sobretudo como adversário do Bem, o que significa que os autores das representações sagradas basearam-se principalmente nos textos canônicos, não é possível isolar a interferência da comicidade de essência popular também na con figuração da figura demoníaca no teatro religioso da Idade Média.

A força da cultura cômica popular tem no Carnaval uma das expressões de maior penetração nos quadros amplos do cotidiano medieval. Mas o Carnaval é apenas uma das inúmeras manifestações daquela cultura; ao seu lado estão as obras cômicas representadas nas praças públicas (p. ex., a Festa dos Bobos e a Festa do Asno), as obras micas verbais (inclusive as paródias) de diversos tipos: orais e escritas, em latim ou em língua vulgar, as diversas formas e tipos do Vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos, temas populares etc.) - todas manifestações estreitamente relacionadas, enquanto partes e zonas únicas e indivisíveis, da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca. ( I, p. 1 O)

A fora os rituais e espetáculos de caráter predominantemente cômico-popular, também as festas religiosas, como as festas do tempo, as representações dos mistérios medievais, das festas agrícolas, como a da vendima, e quase todas as cerimônias e ritos civis da vida cotidiana transcorriam num clima carnavalesco. Assim, mesmo durante o desenrolar de um cerimonial sério, ao lado, a paródia dos bufões e tontos funcionava como contraponto imediato.

De tal forma são freqüentes na Idade Média as interferências entre festa religiosa e festa popular, que se torna difícil determinar a própria essência da festa popular: se estaria no seu aspecto litúrgico, se na sua dimensão não cristã.[3] A proximidade e as interferências são perfeitamente compreen síveis quando se sabe que, no principio,[4] a liturgia cristã preencheu o seu calendário festivo incorporando os elementos populares, cômicos, anim istas, iniciáticos, das antigas festas pagãs, de forma a fazer coincidir a celebração das duas festas.

É bem verdade que, mais tarde, a Igrej a lançará mão de éditos e concílios para expulsar os elementos cômico-populares que integrou na sua própria festa. De qualq uer forma, tanto a história da festa litúrgica cristã comprova a presença do cômico popular, como os ritos carnavalescos estão impregnados pelos modelos da liturgia cristã.

Desse intercâmbio de tensão* entre o rito carnavalesco, de essência cósmica, e o rito litúrgico, o resultado mais su rpreendente e, talvez, à revelia da Igrej a (a partir do momento em que "perde o controle da si tuação"), foi a integração do riso e da comicidade popular à liturgia. Daí que os grandes ritos côm ico-litúrgicos, o R isus paschalis, provocado pelos sermões do padre quando no final da Quaresma, e o R isus nalalis, baseado nas canções dos bu fões cantadas na Igreja, provoquem o riso da festa.

A Festa dos Loucos, como ritual que também nasceu no interior da igreja, comprova o ambiente de tensão que se instaurou entre Igrej a e cultura popular, a partir do momento em que aquela festa, como paródia do culto oficial, ultrapassa os quadros de permissividade instituídos pelas autoridades eclesiásticas, e se transforma numa ritual ização debochada da liturgia estabelecida.

Situando-se a comemoração da Festa dos Loucos entre o Natal e o Carnaval, isto é, entre duas festas que se configuram, respectivamente, como expressão máxima de recolhimento e liberalidade, aquela anti-liturgia atingia o paroxismo nos dias 26, 27 e 28 de dezem bro (5, p. 191), quando as con frarias dos padres, diáconos e coroinhas celebram seus patronos, São João, os santos inocentes, entre outros, em meio a gritos, mascaradas, danças obscenas. Uma vez que era o próprio ritual sério que lhe servia de base, a Festa dos Loucos, protótipo das anti-liturgias medievais, se con figurava pela transgressão à hierarquia ou, mais propriamente, con figurava-se como seu contrário: ao invés de incenso, maus odores, ao invés de abençoar, amaldiçoar, ao invés de recolhimento, 'a alegria e a loucura desen freada; ao invés da reverência aos santos consagrados, a ho'menagem aos marginais do sistema.

Se logo os Padres da Igrej a acordam para o perigo que representava a Festa dos Loucos como anti-liturgia, os nove séculos de resistência[5]; o que signi ficou três etapas da vida-legalidade, semi-legalidade e inteira ilegalidade - comprovam a força das li­turgias populares, de essência cômico-carnavalesca.

A resistência de rituais como a Festa dos Loucos explica-se porque configura-se como reduto e refúgio das crianças, dos inocentes, dos loucos. Por outro lado, a resistência foi provocada pela própria Igrej a porque é ela que impõe as bases da possível transgressão e, consequentemente, da instauração da paródia.

A partir do momento em que se restabelece o regime de classes e de Estado no mundo feudal, os ritos e espetáculos organizados de maneira cômica passam a se opor às formas do culto e de cerimônias oficiais sérias da Igrej a e do Estado e assumem caráter não-oficial., Uma vez que era impossível outorgar direitos iguais aos cultos sérios e cômico, os espetáculos cômico-populares, enquanto paródias dos cultos oficiais, instituemse como transgressões possíveis e toleradas. ( 1, p. 1 1 ).

Enquanto os ritos religiosos têm compromisso com os dogmas instituídos pela Igreja, as festas côm ico-populares estruturam-se pela oposição ao dogmatismo rel igioso ou eclesiástico, ao misticismo, à piedade, ao caráter mágico e encantatório mani festo na liturgia cristã.

Outro aspecto que define os rituais carnavalescos é a sua relação com as formas do espetác ulo teatral, exatamente pelo seu caráter concreto, sensível e lúdico. Por sua vez, as formas do espetáculo teatral na Idade Média se assemelham aos carnavais popula-' res, dos quais fazem parte de certa forma.

Como o Carnaval, também os rituais cômico-populares ignoram toda distinção entre atores e espectadores, como ignoram a cena, inclusive a cena em sua forma embrionária, porque esta destruiria o Carnaval.

Uma vez que os rituais carnavalescos são espetáculos lúdicos, os bu fões e os palhaços são as personagens características da cultura cômica da Idade Média e, de certa forma, os veículos permanen tes e consagrados do princípio carnavalesco na vida cotidiana (aquela que se desenvolve fora do Carnaval).

Exatamente porque o Carnaval está na base das festividades populares, esta, como o Carnaval, oferecem a possibil idade de fuga provisória dos moldes da vida cotidiana, isto é, aqueles oferecidos pelo mundo oficial. Se é certo que os festej os de tipo carnavalesco encarnam a idéia básica do Carnaval, ou sej a, a idéia de renovação universal, so; mente aquele conseguiu expressar com plenitude a pu reza daquela idéia. Mesmo que a idéia de renovação universal se constitua, nos quadros da Idade Média, numa fila provisória dos moldes da vida cotidiana, o Carnaval, não sendo uma forma puramente artística, configura-se como forma concreta da própria vida que não era simplesmente representada dentro de um cenário, mas vivida durante o Carnaval.

Essa v'ida que era inteiramente vivida no espaço propiciado pelas festas, ou esse  tempo em que o jogo se transformava em realidade, se constituia na segunda vida do povo, a sua vida festiva. Durante o tempo festivo, o homem med ieval podia encarar, sob a ótica da com icidade, a resolução dos problemas da vida e da morte.

É, portanto, a festa popular e pública, cujos aspectos essenciais são a morte e a ressu rreição, o traço fundamental de todos os ritos e espetáculos cômicos da Idade Média.

Enquanto possibilidade de liberação transitória e provisória das relações hierárq uicas, dos privilégios, das regras e tabus, as festas populares e públicas opunham-se às festas oficiais (tanto as da Igrej a como as do Estado feudal) que contribuíam para consagrar, sancionar e forti ficar o regime vigente.

A praça pública, espaço privilegiado para a eliminação provisória das relações institucionalizadas e hierarquizadas, cria as condições para que a liberação se traduza numa língua própria de grande riqueza, capaz de expressar as formas e sím bolos do Carnaval. Enquanto transgressão possível e tolerada, as formas e símbolos da língua carnavalesca se caracterizam pela lógica do mundo às avessas, isto é, pelas perm utações constantes do alto e do baixo, da frente e de trás, pelas inversões, degradações, profanações, coroamentos.

A festa popular, ao institucionalizar a lógica do contrário, escarnece dos próprios burladores, isto é, do povo, que não se exclui do mundo em evolução. Também ele se sente incompleto, também ele renasce e se renova com a morte. Falar do Carnaval na Idade Média, através das suas mais variadas mani festações, signi fica falar também (ou ao mesmo tempo), do riso popular, que é a sua essêncía. Como foi observado, do intercâmbio de tensão entre os ritos carnavalescos, de essência cósmica, e os ritos litúrgicos, encarnação da seriedade da cultura oficial, o resultado mais surpreendente foi a integração do riso popular às mani festações da cultura oficial.

A cultura oficial, ao apartar o riso do culto religioso, do cerimonial feudal e estatal, da etiq ueta social e da ideologia elevada, elege a seriedade como tom de expressão dos conteúdos daquela ideologia, isto é, asceti smo, crença na divina providência, categorias como o pecado, a redenção, o sofrimento, o que signi fica garantir o mantenimento das formas opressivas e intim idatórias do regime feudal.

o riso era identi ficado como coisa do diabo, e está porque o cristianismo primitivo condena os espetáculos antigos de inspiração cristã. No entanto, era preciso legalizar o riso no exterior da igrej a, isto é, fora do culto oficial. Assim, pelo menos no princípio, a cultura medieval compreende formas côm icas puras ao lado de manifestações canônicas.

Logo, porém, o riso ingressa nas formas do culto religioso, sintoma da tática de tolerância da Igreja em relação aos ritos especi ficamente cômicos.

A função do riso nesses ritos não era somente de zombar do ritual e da hierarquia rel igiosa, mas o riso estava profundamente associado à alegria da renovação e do renascimento material e corporal, a natureza "segu nda" do homem, que não tinha na cosmovisão dos cultos oficiais.

Exemplo da celeb ração do aspecto "inferior ", corporal e material da vida humana eram os banquetes em homenagem aos protetores e doadores enterrados nas igrejas* cuj o centro de atração, a comida e a bebida, mesclavam-se à imagem da morte e do nascimento. Ao riso festivo assossiava-se ainda a liberação da sex ualidade hu mana, fortemente reprimida nas festas da cultura oficial.

O aspecto corporal e material da vida humana, traduzido em manifestações não sublimadas, passam a primeiro plano nos rituais de essência carnavalesca, exatamente porque o riso festivo está associado ao tempo das estações, à morte, e à renovação da vegetação, indício da faceta não oficial, cômica e popular do riso festivo.

Além da relação com o "inferior" material e corporal, degradações, inversões, imitações burlescas, com o tempo e as mudanças sociais e históricas, a festa popular, ou, o riso popular, pressupunha outros elementos ind ispensávei s: o disfarce, através da renovação das roupas e da personalidade social, e a permutação aas hierarq uias.

A permutação das hierarq uias - a proclámação do bu fão ao invés do rei, a eleição de abades, bispos e arcebispos na Festa dos Loucos, e de papas do riso nas festas da igreja, submetidas à autoridade direta do papa, - seguia o princípio da lógica topográfica que presidia a idéia de pôr a roupa ao contrário: a frente virada para trás, o avesso pelo direito, calças na cabeça - símbolo da inversão da ordem instituída.

Assim, o riso festivo cria um mundo próprio, uma igreja própria, um estado próprio, regidos pelos princípios da comicidade popular medieval: universalidade, liberdade (ainda que relativa e efêmera), cosmovisão não-oficial, ou seja, a eleição do risó como forma de olhar e compreender o mundo fora dos parâmetros do medo moral e social.

Na verdade, esses dois medos signi ficavam para o homem medieval as duas faces de uma mesma moeda, uma vez que o medo social, símbolo do poder estatal e o medo moral, símbolo do poder da Igrej a, interagiam reciprocamente. O riso popular conseguia superá- los, criando espaço para a liberdade efêmera e provisória, por meio de imagens cômicas que esvaziavam os símbolos de poder e violência, tornando-os ínofensivos e ridículos. A tática era transformar o temível em ridículo pela queima de um modelo grotesco denominado ' 'inferno", PMtica usual no Carnaval. (1, p. 87)

Esse mesmo espírito de transformação do temível em ridículo emprega os mistérios medievais onde as "diableries " provavelmente funcionavam, junto ao espectador, para lhe despertar o sentimento de dominar o mal, pelo menos durante o tempo da representação.

A presença freqüente das "diableries " nos mistérios medievais, o que transforma o diabo numa " figura familiar aos homens dessa época" (2, p. 369), se pode ser interpretada enquanto expediente cômico - como forma de esvaziar o conteúdo do mal, de temível tornado grotesco, é também uma tática, de certa forma, prevista e permitida pel.o sistema, o que signi fica o mantenimento do poder da Igrej a e do Estado feudal. Sob qualquer representação que aparecesse - como dragão, como ser semi-humano, ou ainda como uma espécie de espírito maligno, de diabrete negro (2, p. 369), o diabo é uma figura cujas manhas tornam-se por demais conhecidas para infundir medo, mesmo porque, como querem os textos canônicos, ele é sempre vencido. Assim, "o diabo entrou realmente numa ordem necessária do mundo" (2, p. 369).

No entanto, o riso festivo, que é a essência dessas mani festações, é um riso ambíguo, isto é, a figura tornada ridícula, exatamente porque sob o disfarce do ridículo pode ser porta-voz de mensagens que talvez escapem às malhas do previsível. É nesse aspecto que a comicidade medieval, ao brincar com os medos mais profundos do homem medieval, desvenda ousadamente as artimanhas do poder.

 

É assim também que, em certo sentido, a atuação ridícula e grotesca do diabo se aproxima da atuação do bufão: o primeiro, quando porta-voz da sátira dirigida à sociedade, o segundo, como porta-voz de uma cosmovisão que se opõe à concepção feudal e oficial, o que é também uma forma de sáti ra.

A possibilidade de escapar ao cerco da legalização instituída - como acabam por se transformar as manifestações e rituais da cultura popular - está exatamente no riso popular, ambíguo e festivo - veículo de liberação da censura externa, mas tam bém, e sobretudo, da censura interna, ou sej a, o medo ao sagrado e ao poder, arraigados milhares de anos no espírito humano.

Como cartas marcadas de um baralho, o diabo e o bufão podem ser agentes dessa liberação uma vez que o diabo é o "criado de cena" nas representações dramáticas da Idade Média e o bufão vive como tal em todas as circunstâncias da vida, ou antes, vive na zona intermediária entre a vida e a arte.

A atuação das figuras do bufão e do diabo enquanto veículos de mensagens ambíguas em relação aos papéis a eles prescritos e codificados pela cultura oficial torna-se possível porque o universo de atuação de ambos - o diabo, nos dramas religiosos (está claro que a atuação dessa figura não se limita a participar somente dessas manifestações), o bufão, em qualquer festa de espírito carnavalesco (embora também na es fera mais ampla da vida) - constituem-se em espaços impregnados pelo espírito da "communitas"[6] do Carnaval, instaurador de um momento ou duma fase chamada " fase liminar"[7]

O Carnaval, enquanto instauração de um ambiente, cuj o princípio básico de funcionamento é a inversão, já que "comunitas" opõe-se a estrutura, torna-se o espaço privilegiado que abriga o que se poderia chamar os marginais do sistema.

Enquanto os santos, profetas e outras entidades positivas são banidas do Carnaval, os demônios são seres do Carnaval. Rompida a polaridade inicial (entre Deus e os anjos e entre Deus e o homem) foram criados os seres intermediários: profetas e sacerdotes - mediadores positivos -, mortos-vivos, caveiras, diabos menores, bruxas - mediadores negativos -, não mais entre os homens e Deus, mas entre os homens e o Mal.

O Carnaval, período anômalo, esprimido entre o nascimento e a morte de Cristo, é o espaço ideal para os diabos que, como seres ambíguos, escondidos e banidos da estrutura social, somente encontram lugar. O Carnaval é uma "comunitas" que, regida pelo princípio da inversão, vive sob o domínio do diabo, símbolo, na tradição de rebeldia, desobediência, desordem, ou seja, do Mal.

Exatamente por isso o Carnaval acolhe os tipos cujas relações com a estrutura[8] são problemáticas e ambíguas, como é o caso do diabo, naquele espaço, funcionando como figura liminar. No entanto, se o Carnaval é o lugar privilegiado de entidades como o diabo, o riso festivo, o componente básico do ritual carnavalesco, transforma a figura demoníaca num ser ridículo e grotesco, o que é uma forma, senão de exorcizar o Mal, pelo menos de encará-lo sob ótica menos terrificante.

Daí o Carnaval, ao invés de celeb ração de algum santo, ser uma homenagem ao diabo. É ele qUe comanda o Carnaval, como eram os loucos a comandar a Festa dos Loucos. É o diabo que impõe as "regras " da festa carnavalesca no sentido de propor um espetáculo que signi fica o retorno às origens míticas da sociedade, destituída de ordens, regras, proibições, medos.

Além do sentido puramente agrário, o Carnaval, ao descrever os grupos, ao exprimir a festa urbana ou coletiva, passa a expressar também os con flitos sociais, o que não signi fica dissociação daquele sentido; na verdade, os dois termos são inseparáveis. Daí que, enquanto expressão de conflitos sociais, a sátira sej a um dos elementos recorrentes do Carnaval. [9]

Nesse aspecto, a Idade Média criou uma série de tipos desencadeadores da sátira, como parvos, alcoviteiras, diabos, bruxas, frades. Mas a sátira medieval, pelo menos quando aparecia no Carnaval e nos rituais de origem carnavalesca, quase sempre vinha acompanhada do cômico. Se a comicidade é aspecto inerente dos rituais carnavalescos, resultado do riso festivo, aliá-la à sátira, veiculada por tipos como bruxas, alcoviteiras e diabos, talvez signifique manter a sátira na zona intermediária da ambigüidade, que os seus veiculadores eram estigmatizados pelo sistema.

A sátira, na Idade Média, não pressupõe necessariamente contestações, e mesmo que esse fosse um dos seus propósitos latentes, o riso festivo diluía ou camu flava o aspecto contestatório. Por outro lado, se durante os rituais festivos, graças ao princípio da inversão, aconteciam mudanças, não se pode esquecer que a própria inversão, o que possibilitava mudanças, acontecia num espaço e num tempo limitados. Passado o período festivo, a volta ao fluxo normal do resto do ano. [10]

Daí que festas como o Carnaval, ao permitirem o aparecimento aberto de comportamentos e figuras sancionadas pelo sistema, acabe por provocar a confiança na ordem. (4, p. 1 60) A sátira, na Idade Média, tem, portanto, caráter tópico, assim como as figuras que a veiculam também foram tipificadas pela tradição.

Descontados esses aspectos, porém, o momento de inversão, ou momento liminar[11], existe, durante o qual o tempo é cronometrado por um relógio cujos ponteiros giram para trás. Graças à inversão, o diabo pode imperar livremente durante o Carnaval, e a sátira, que por ventura veicule, permanecer na zona intermediária entre o sério e o cômico.

Se no Carnaval e em outras mani festações, o Diabo funciona como entidade liminar, o bobo da corte se investe do que Turner chama de "poderes dos fracos ", ou seja, "atributos permanentes ou transitoriamente sagrados, relativos a um 'status' ou posição baixa". (7, p. 1 3 3). Nas sociedades onde aparece (ou apareceu), como a medieval, "o bobo da corte operava como árbitro privilegiado dos costumes, dada a permissão que tinhá de zombar de reis e cortesãos, ou do senhor do solar... Em um sistema onde era difícil para os outros censu rar o chefe de uma unidade política, podíamos ter aqui um trocista institucionalizado, atuando no ponto mais alto da unidade... Um galhofeiro capaz de expressar os sentimentos da moralidade ofendida ". (7,p. 1 34).

Trocistas institucionalizados, o diabo compartilha com o bobo da corte de privilégios que advêm da con figuração ambígua de ambos - figuras ao mesmo tempo necessárias e estigmatizadas pelo sistema.

 

 

AZEVE DO, S.M. - Diable et culture populaire. Trans/Form/ Ação, São Paulo, 8:61 -70, 1985.

 

,RES UMÉ: Ce travail présente / image du diable qui jouait un rôle important dans la culture populaire du Moyen Âge. Des fêtes comme le Carnaval, la Fête des Fous, la Fête de I 'Âne, m 'ont permis voir, a' travers le symbole du diable, I 'interaction de deux formes de culture: la premiere, sérieuse, réliJ!,ieuse, feodale - ayant un rapport avec le monde des institutions du Moyen Âge; I 'au tre, comique, irréverencieuse, profane liée au monde médiéval en dehor des institutions.

 

UNITERMES: Moyen âge; !ittérature; théâtre; anthropologie; philosophie; carnaval; culture populaire; fêtes populaires; diable.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

I. BAK HTINE, M. - La cultura popular en la Edad Media y el Renacimiento. EI contexto de François Rabelais. Barcelona, BarraI, 197 1.

2.       FRANCASTEL, P. - Encenação e consciência: o diabo na rua no fim da Idade Média. In:  A  realidade  figurativa. São Paulo, Perspectiva, 1973.

3.     LAU DERIE, E. Le R. - Le carnaval de ro mans. Paris, Gallimard, 1 979.

4.                       . MATTA, R. da -  O carnaval como rito de passagem. Ensaios de Antropologia Estrut ural. Petrópolis, Vozes, 1973.

5.      SIM ON, A. - L es signes et les songes. Essai sur le théâtre et la fête. Paris, Sevill, 1 976.

6.      TOSCHI, P. - Le origine dei teatro italiano. Torino, Einaudi, 1 955.

7.       TURNER, V. - O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis, Vozes, 1974.



[1] Este texto originalmente fazia parte de uma Dissertação de Mestrado. onde foi est udado o papel do diabo no contexto mais especí fico do teatro religioso medieva l.

[2] Departamento de Filosofia - Facu ldade de Ed ucação, Filosofia. Estudos Sociais e da Documen tação - UNESP - 1 7 500 - Marilia - SP

[3] Ies feles el les légendes chrétien nes de la période carnavalesque (du 17 janvier, jour de la Saint Antoine, ao 22 février, chaire de saint Picrre), tendraint à prouver que la fête populaire constitue cn elle-même une liturgie qui. par-de-Ià les éléments To rneins ou même ccltes, s'cnracinent dans I'animisme primitif" (5, p. 1 89- 1 90)

[4] Entre le V lI e. el le IXc. siecle. Ia jeune chrétienté féodale cherche a forti fier une cult ure religieuse encore mal implantée cn uti lisant la culture populaire, quei est forte. à récu pérer les trad itians des Satu rnales encare vi vaces, à faire coincider las fêtes chrétinnes et les fêtes paiennes ". (5, p. 191)

[5] Como observa Alfred Simon. a peregrinação é. na Idade Média. uma das manifestaçOes da tensão entre cultura popular e Igreja. e "même si la rencontre avec I' image est un fait individueI, I'acte pélerin tend à constituer une société de pélerinage unitaire. égalitaire. que I' Eglise s'efforce de contôler". (5. p. 191)

[6] "É como se houvesse dois modelos principais de correlacionamento hu mano, justapostos e allernanles. O primeiro é o da sociedade tomada como um sistema, estruturado, diferenciado e freq üentemente hierárquico de posições político·j uríd ico· econômicas, com muitos tipos de aval iação. separando os homens de acordo com as noções de "mais" ou de "menos". O segundo, que su rge de maneira evidente no período liminar, é o da sociedade considerada como um "comi tatus" não­estruturado, ou rudimen tarmente estruturado e relativamente indiferenciado, uma com unidade, ou mesmo comunhão, de individ uas iguais que se submetem em conj unto à autoridade geral dos anciãos rituais" (7, p. 1 1 8 ).

[7] " a limi naridade freq üentemente é comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualida- de, às regiões selvagens e a um eclipse do sol ou da lua". (7, p. 1 19 )

[8] "Na estrutura (... ) localizam-se, entre outros, os aspectos da permanência, da au toridade, da posição definida, da nãoespontaneidade social e ideológica, das distinções de s/a/us e riqueza, da secularidade e da obediência, da hierarq uia e do conhecimento técnico."

[9] "Des que le Carnaval cesse d'être purement agraire. des qu'il veut décrire les groupes, exprimer la fête urbaine ou dumoins collective, iI implique inévitablement des conflits sociau x. À la limite, on peut aboutir à J'organisation de deux Carna­

vaIs séparés, ou même deux arbres de mai, dans la même comune: celui des pauvres (ceux qui n'onl pas un rotin) el celui des riches. L 'arbre de gauche, el I' arbre de droite." (3, p. 346)

[10] Esse modelo alternativo - tempo cícl ico anual, enquanto acontecimento, e tempo li near, orientado para o futuro - correspondente a concepção de tempo pendular de Van Gennep.

[11] * A partir do modelo de Leach. o Carnaval supõe "un premier mament (A) "pre-l im inaire". qui marque la séparation avec le temps de la vie normale, ou de I'année passée, un second mament (B), "liminaire"; iI correspond au franchissemenr du seuil; transition ou marginalité... c'est le rapide retour du pendule, I'intervalle oú le temps reflue, coule à I' envers; la phase de " inversion propement dite. Enfin un troisieme mament" (C), "post-l iminaire" eSl celui de la re-in tegration ou réincorporation au temps quotidien: il du rera jusqu'à la prochaine "alternalion". et ainsi de suite...... O,p. 338).