FISIOLOGIA, CONCEPÇÕES MÉ DICAS E O ESTATUTO DA ME D ICINA EM DESCARTES[1]
Lígia FRAGA-SIL VEIRA[2]
RESUMO: Nossa intenção é mostrar como as concepções médicas de Descartes, disseminadas em suas obras e correspondência, se constituíram a partir de duas questões básicas colocadas pelo filósofo: I. o como funciona nosso organismo; 2. o qual a natureza do corpo animal e por extenção do corpo humano.
UNI TERMOS: Co nservação da vida; prolongamento da vida; teleologia da vida; auto-restaurar; autopreservar; natureza do corpo humano; mecanismo; criação contínua.
Refletir sobre o estatuto da Medicina no interior do processo de reforma do pensamento em Descartes é mu ito mais do que buscar uma resposta através dos fracassos e dos sucessos em suas tentativas de constituir uma ciência méd ica. Se permanecermos neste nível, é inevitável chegarmos à conclusão que nosso autor fracassou, sej a pelos limites de sua concepção de ciência, sej a pela dificuldade de realizar experiências por falta de recursos econôm icos. Teríamos somente acesso a um conj unto de concepções médicas nem sempre coerentes e, con seq üentemente, à efetivação de um ideal sempre protelado. Consideramos, ao contrário, que é através das concepções médicas dissemi nadas em suas obras e em sua correspondência que podemos recon stituir, se não o estatuto de uma medicina como ciência prática, ao menos o papel desempenhado por ela na efetivação de um ideal de reforma no qual Descartes se empenhou.
A medicina como ciência prática envolve necessariamente uma patologia e uma terapêu tica. Não basta ter em mãos uma anatomia e uma fisiologia das funções corporais, apesar deste estudo prel im inar ser a base sobre a qual devam se proj etar uma prática e uma ciência médicas. Nesse sentido, temos um cam inho a percorrer nas tentativas de Descartes em passar de sua explicação mecânica das funções corporais, ou sej a, de sua anatomia e fisiologia, a uma patologia e terapia. Esta passagem não é simples e vai lhe trazer dificuldades que nosso autor progressivamente terá que enfren tar.
Quanto às suas preocupações por uma anatomia, uma fisiologia e uma medicina, elas existem desde 1 629 e o acompanham até praticamente sua morte. Houve momentos precisos em que estas reflexões se fizeram, tomando direções bastante in teressantes para compreender a própria evolução de seu pensamento.
Se tomarmos suas afirmações a Mersenne em 1 639, poderemos ter uma pequena retomada de como Descartes vê os trabalhos que até en tão real izou, ou seja, de 1 628 a 1 639:
"A mu ltidão e a ordem dos nervos, das veias, dos ossos e das outras partes de um animal, não mostram que a natureza não sej a su ficiente para formá-los, contanto que se suponha que esta natureza aj a em tudo segundo as leis exatas das mecânicas e que sej a Deus quem lhe impôs estas leis. Com efeito, considerei tanto o que Vezalius e outros escreveram sobre anatomia, como várias coisas bem mais particulares do que aq uelas que os mesmos escreveram as quais observei fazendo eu próprio a dissecação de diversos animais. Trata-se de um exercício no qual me ocupei com freq üência há onze anos e creio que não existe médico que o tenha praticado tanto quanto eu. Mas não encon trei coisa alguma que não pense poder explicar, em particular a formação pelas causas naturais, da mesma maneira como expliquei em meus Meteoros um grão ·de sal ou uma pequena estrela de neve. E, se tivesse que recomeçar meu Mundo, onde supus o corpo de um animal in teiramente formado e contentei-me em mostrar as funções, empreenderia também colocar as causas de sua formação e de seu nascimento. Mas não sei ainda o suficiente para tanto, que possa simplesmente cu rar uma febre. Pois penso conhecer o animal em geral, o qual não é de modo algum sujeito e menos ainda o homem em particular, o qual é sujeito.. (3, p. 1 050).
Trata-se de um trecho bastan te complexo que merece uma análise mais detalhada, a fím de que possamos compreender como o autor vê o que já realizou.
Em primeiro lugar observamos que Descartes apresenta algo que não desenvolveu em seu Traité de I 'homm e, ou seja, a formação e nascimento do corpo animal. Neste, Descartes parte do corpo inteiramente formado, supondo que "... o corpo não é outra coisa que uma estátua ou máquina de terra, que Deus forma expressamente para tornála o mais semelhante que possível a nós... " (2. A.T., XI, p. 1 20, 1. 4- 7). No entanto, Descartes desde 1 629 já refletia sobre a geração e formação do corpo. Segundo Charles Adam, dissertando sobre a datação de Primae Cogitationes circa generationem Animalium afirma que:
"As primeiras reflexões de Descartes sobre a geração não datam certamente de 1 648. Se percorremos a correspondência do filósofo, vemos que esta questão o preocupava desde o final de 1 629, também em 1 630, em Amsterdã, depois em 1 632 e 1 633... " (2. A.T., XI,.p. 503). O que nos leva a perguntar por que Descartes não apresentou algo no Traité de I 'homme, que foi red igido en tre 1 632- 33. Ele próprio responde quando dá a conhecer, em 1 637, na 5. a parte do Discours de la Méthode, o que naquele momento tinha em mãos: "Da descrição dos corpos inanimados e das plantas, passei àq uela dos animais e particularmente à dos homems. Mas porque não tinha ainda bastante conhecimento para falar no mesmo estilo que falei do resto, isto é, demonstrando os efeitos pelas causas e fazendo ver de quais sementes e de que maneira a natureza deve produzi-los, contentei-me em supor que Deus formou o corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos... " (2, A.T., VI, p. 45, 1. 23-p. 46, 1. 1).
Se Descartes confessa, em 1 637, que no momento da redação de seu Monde não tinha conhecimento suficiente para falar sobre a geração dos animais, em 1 639, afirma que se tivesse que recomeçá-lo, colocaria também as causas da formação e nascimento do corpo animal. Isso significa que nosso autor dá uma im portância considerável ao problema da geração. Tal apreciação da parte de Descartes merece algumas considerações.
Há autores que chegam a afirmar que a questão da form ação e nascimento do corpo, ou sej a, a embriologia de Descartes, é a chave de suas concepções médicas. É o caso, por exem plo, de Francesco Trevisani que, dissertando sobre Descartes e a medicina face à filosofia (7, p. 4-9), comenta alguns in térpretes e faz consid erações in teressan tes que merecem nossa atenção.
Ao comentar em particular Dreyfus-Le Foyer, retoma deste a afirmação de que Descartes, na impossibil idade de submeter a cu rva evolutiva das doenças humanas à un idade de uma lei matemática, não pôde efetivar seu proj eto original de constituir uma ciência médica. No entanto, suas concepções médicas se desenvolveram e a embriologia tem um papel determinante nesse processo. O importante é que Descartes concebeu a fisiologia como uma em briologia prolongada. Tal possibil idade está sedimen tada na recusa em explicar as funções a partir dos órgãos, mas, ao contrário, na preocupação de dar conta da existência destes a partir da função. É o que perm ite compreender melhor como pode conceber a terapia como sendo o efeito de um desvendamento progressivo da emb riologia e, sucessivamente, da fisiologia e da patologia.
Em suma, como textualmente afirma: "Não se trata mais, como o era no Tratado do Homem de simular uma máquina cujas funções e movimentos im itam de uma maneira a mais per feita possível os de um verdadeiro homem (X I, 202), mas a de explicar pelas leis do movimento sej a a ontogênese do corpo animal, sej a a circulação do sangue (esta sendo devedora daquela), b) de levar em consideração as funções especí ficas do corpo humano em vista de uma patologia e de uma terapia humanas" (7, p. 4-5 ).
Sabemos que na obra de 1 648, Description du Corps Humain, Descartes desenvolve nas duas últimas partes (2, A.T., XI, p. 25 6-286) essa embriologia que, desde 1 629-30, estava entre suas preocupações. Mas, uma patologia e uma terapia hu manas continuam ainda como proj eto e este homem "suj eito" que pretende atingir não é desenvolvido. Se alguma coisa aparece como preocupação, cremos que está formu lada quando inicia a primeira parte desta obra:
"Nada há em que se possa ocupar com mais frutos do que procu rar conhecer a si próprio. A utilidade a ser esperada deste conhecimento, não diz respeito somente à Moral como parece de início para muitos, mas de uma maneira particular também à Medicina na qual creio que poder-se-ia encontrar muitos preceitos bastante seguros, tanto para curar as doenças quanto para preveni-Ias e, mesmo para retardar o curso da velhice se houvesse bastante empenho em conhecer a natureza de nosso corpo e que não se atribuí sse à alma as funções que só dependem dele e da disposição de seus órgãos." (2, A.T., XI, p. 223, 1. I - p. 224, 1. 5)
Ou seja, con hecer a si mesmo é do que devemos nos ocupar e tal conhecimento não diz respeito somente à Moral, mas igualmente à Medicina. Se sua in tenção é descrever as funções do corpo humano, tanto aquelas que dependem só do corpo, quanto aquelas que dependem do corpo e da alma, é lógico que Descartes critique aqueles que desen
volvem uma Moral independente de uma Medicina, assim como aqueles que pensam esta última pressupondo o homem exclusivamente enquanto corpo. O que está sendo proposto é uma diferença do corpo humano em relação ao corpo animal, pois este é explicável única e exclusivamente em termos de uma estrutura que depende da disposição dos órgãos e dos movimentos deles decorrentes; no homem, enquanto corpo e alma, deve estar suposto que haja tanto esses movimentos quanto aq ueles que dependem da união. É o que afirma na seqüência da primeira parte deste tratado:
"... a alma não pode excitar nenhum movimento no corpo, a não ser que todos os órgãos corporais, requeridos para este movimento, estej am bem dispostos ; mas que, ao contrário, quando o corpo tem todos os seus órgãos dispostos para algum movimento, ele n:1o tem necessidade da alma para prod uzi-lo; e, conseqüentemente, todos os movimentos que não experimentamos depender de nosso pensamento, não devem ser atribuídos à alma, mas unicamente à di sposição dos órgãos; e que mesmo os movimentos que se nomeiam voluntários, procedem principalmente desta disposição dos órgãos, pois não podem ser excitados sem ela, qualquer vontade que ten hamos, ainda que sej a a alma que os determ ine. " (2, A.T., XI, p. 22�, I. 1 2 -25 ).
Podemos notar que, no Traité de I 'Homme. Descartes também está consciente de que o homem é essa un ião corpo-esp írito, afirmando, inclusive, através da glândula pineal, (2, A. T., p. 1 29, I. I I ) a in serção da alma no corpo, no entanto, continua no interior de uma posição bastante delimitada, tratando o corpo humano como um corpo animal. Em 1 648, contudo, não só desenvolve sua em briologia, como também dà ênfase ao corpo humano, quando afirma que mesmo os movimentos chamados voluntários, que são determ inados pela alma, também dependem da disposição dos órgãos, pois sem ela não podem ser provocados. Nesse sentido é natu ral que Descartes já anuncie que uma moral não pode ser vista sem uma medicina, enquanto no Traité de I 'Homme e na 5. a parte do Discours de la Méthode, a questão de uma moral nem ' mesmo é levantada.
Mas, se tudo o que envolve uma medicina e uma moral do homem enquanto corpo e espírito tem espaço e im portância na filoso fia de Descartes, isso não excl ui que o autor desenvolva ao nível da distinção corpo/espírito concepções méd icas sui generis que merecem nossa atenção. São concepções consideradas muitas vezes marginais ou, ainda, reveladoras da impossibilidade de construir uma patologia e uma terapia a partir de sua fisiologia. No entanto, apresentam-se com constância em sua correspondência e merecem uma atenção especial de nossa parte.
Até o momento, abordamos o corpo hum ano no interior de uma explicação mecânica tanto das funções quanto das disposições dos órgãos, dando ên fase a essa evolução de sua fisiologia ao incorporar uma embriologia. Em outros termos, tínhamos uma explicação que dava conta do funcionamento do organismo, da formação do embrião e da nu trição. No entanto, não basta permanecermos ao ní vel do funcionamento quando se trata de um organismo vivo, pois este coloca uma questão que lhe é própria, ou sej a, sua auto-preservação e sua autorestau ração. Tal vez falte a Descartes uma concepção da natu reza do corpo animal e, por extensão, do corpo humano, que venha responder ao problema que inevitavelmente sua explicação mecânica teria que en fren tar.
Em 1 648, Descartes, ao responder às obj eções de Burman a respeito de um trecho do Discours de la Méthode: "... talvez do en fraquecimento da velhice... " (2, A. T., V I,
I. 62, p. 28-29), nos dá uma excelente oportun idade para reflet ir sobre essa questão quando afirma:
"Se e como o homem foi imortal antes da queda, não é uma questão para o filósofo ; é necessário deixá-Ia para os teólogos. Assim tam bém, como os homens antes do dilúvio puderam atingir uma idade também avançada, isso ul trapassa o filósofo, e que talvez Deus pudesse fazer isso por mi lagre, por causas extraord inárias, sem recurso às causas naturai s; pode ser também que a constitu ição da natureza tenha sido diferente antes do dilúvio e que se tenha tornado pior após este acontecimento. O filósofo considera a natureza do homem tal qual é hoje e não vai buscar suas causas mais longe, pois isso o ul trapassa. Agora que a vida humana pôde ser prolongada pelo conhecimento da arte da medicina é do que não se pode duvidar; pois se podemos desenvolver e prolongar a vida das plantas etc. conhecendo a arte da cultura, porque não seria do mesmo modo com o homem? Mas a melhor maneira de prolongar a vida e o método a seguir para guardar um bom regime é viver como os animais e entre outras coisas comer aquilo que nos agrada, deleitar nosso paladar e somente enq uanto isso nos agradar ". (3, p. 1. 40 1 - 1. 402).
Trata-se do tema, caro a Descartes, do prolongamento da vida. Inicia seu raciocínio afastando questões teológicas e que não dizem respeito à filosofia: se o homem antes do pecado foi imortal e se antes do d ilúvio pôde atingir uma idade mais avançada. Responde que talvez Deus possa ter feito isso, recorrendo a causas extraordinárias, ou ainda que a constitu ição da natureza talvez tivesse sido diferente antes do dilúvio e se tivesse tornado pior após este acontecimento.
Ao filósofo cabe considerar a natu reza dos homens tais quais esses são hoje e portanto não lhe compete buscar causas além das naturais. O que o filósofo não pode ignorar é que, no momento, a arte da medicina está perm itindo que a vida humana sej a prolongada.
Mas indica a segu ir aquilo que considera a melhor maneira de prolongar a vida e o método para guardar um bom regime: viver como os animais e, entre outras coisas, comer o que nos agrade e somente enquanto nos agradar. Ou seja, Descartes está propondo que prolongar a vida é seguir a nossa natu reza, como fazem os animais.
No entanto, seu interlocutor faz uma objeção:
"Isso daria bons resultados nos corpos bem dispostos e sãos, cujo apetite é regulado e útil ao corpo, mas não nos corpos doen tes "
À qual Descartes responde, afirmando:
"Não é de nenhuma maneira verdadei ro; mesmo se estamos doentes, a natureza permanece a mesma, ela que parece justamente jogar o homem nas doenças para poder se livrar melhor do embaraço e que parece zombar dos obstáculos, contanto que lhe obedeçamos. Talvez, se os médicos permitissem aos homens as iguarias e as bebidas que freq üentemente desej am quando estão doentes, os tornariam bem melhores quanto à saúde do que por meio de seus medicamentos repugnantes, como prova a própria experiência; com efeito, em tais casos, a própria natureza persegue sua restau ração e se compreende bem melhor, sendo perfeitamente consciente de si mesma do que um médico exterior ". (3, p. 1. 402)
Diante da obj eção que seguir a natureza vale apenas para os corpos sãos, Descartes prossegue seu raciocínio, afirmando: 1. °) mesmo que estejamos doentes, a natu reza permanece a mesma; 2. 0 ) a natu reza lança o homem nas doenças justamente para superar os obstáculos que no momento enfrenta, decorrendo daí que devemos obedecêla; 3.° ) nesse sentido, a natu reza tem nela mesma o poder de se restaurar, pois é consciente de si mesma e, portanto, pode se sair bem melhor que um médico exterior.
O raciocínio se completa face à pergunta final de seu interlocutor:
"Objeção. Mas há iguarias, etc. em número infinito. Que escolha fazer? Em que ordem tomá-las?
Resposta_ A própria experiência nos ensina; pois sempre sabemos se um alimento nos foi proveitoso ou não, e assim sempre podemos aprender para o futuro se devemos usá-lo novamente, da mesma maneira e na mesma ordem, ou se é necessário nos abster ; se bem que, segundo a palavra de Tibério (a menos que não sej a de Catão), o homem com a idade de trinta anos não deve mais ter necessidade de médico, pois com esta idade pode saber o su ficiente para si próprio, por experiência, aquilo que lhe é útil ou nocivo e ser assim seu próprio médico." (3, p. 1. 402).
Vemos que aquilo que determina sua proposta a respeito da temática do prolongamento da vida, ou melhor, do retardamento da velhice, é uma concepção da natureza de um organismo vivo, em particular do animal e por extensão do homem. Se, por um lado, nosso autor ressalta o avanço da medicina de seu tempo, que possibilita que a vida humana sej a prolongada, por outro, propõe uma medicina que poderíamos chamar de natural, pois segue as vias desej adas pela natureza. Descartes, neste momento, de fato, retoma a proposta terapêutica da escola hipocrática, cuj o aspecto essencial e prioritário é a dietética, a qual considera o alimento um medicamento e o medicamento um alimento_ A razão de ser desta proposta terapêutica está embasada numa concepção de natu reza que basta a si mesma, sabendo tudo o que lhe é necessário e que, agindo espontaneamente, atrai para si o que lhe é útil e repele do organismo o que lhe é nocivo. Em suma, para os hipocráticos, as forças automed icadoras do organismo não deviam ser perturbadas por nenhuma medida violenta ou intromissão desnecessária (4, p. 7. 422). É o que possibilita, em última análise, Descartes afirmar que, melhor que um médico exterior, cada um possa ser seu próprio médico se seguir sua própria natureza.
Em outros termos, estamos diante de uma concepção da natu reza animal onde está suposta uma fina/idade interna de autopreservação. Se Descartes foi capaz de ligar sua fisiologia à sua emb riologia é porque refletiu durante muito tempo sobre a circulação do sangu e. Tendo já no plano cientí fico alcançado uma expl icação plausí vel sobre a nu trição, ligada a um princípio de regulação interna de nosso organ ismo, ou seja, na própria ci rculação do sangue (7, p. 5-6), faltava- lhe, contudo, uma concepção da natureza animal que desse uma complementação final à sua concepção do organ ismo. Para conferir à natu reza uma finalidade interna de autopreservação, propõe-se apresentá-la como força medicadora que age espontaneamente.
Mas não é somente com sua fisiologia que podemos compreender a incorporação por Descartes dessa concepção de natureza. Sua metafísica dá igualmente esta oportunidade através da doutrina da criação contínua.
Se Deus criador conserva na existência, sem que isso signifique um deus dem iúrgico que interfere para manter os seres na existência (5, p. 1 63- 1 65), temos que assu mir uma natu reza criada com uma capacidade interna para se manter. De tal capacidade é dotado o corpo animal, por seu próprio funcionamento, como Descartes nos faz ver através de sua fisiologia e ao necessitar assumir uma concepção de natu reza animal, que tenha nela mesma uma finalidade interna de autopreservação. Conservação da saúde, prolongamen to da vida, retardamento da velhice são temas que encontram aí sua signi ficação e passam a ter um peso no interior de suas concepções médicas.
Sob este aspecto, é um pouco difícil aceitar as in terpretações que, lim itadas na impossi bilidade sentida por Descartes de constituir uma medicina infalível, queiram afirmar o fracasso de suas tentativas. Sua medicina toma significado no in terior de sua filosofia e é nesta, na complexidade de que é dotada, que nosso autor pode, em 1 648, chegar a esse complemento para finalizar aquilo que era exigido por sua ciência e pela metafísica.
Nesse contexto, uma retrospectiva da evolução das concepções médicas elaboradas pelo autor toma uma di reção bastante signi ficativa. Convém-nos, portanto, refazê-la, mesmo que sucintamente, dada a importância da questão.
Logo após a publ icação do Discours de la Méthode, em 1638, numa carta a Huy- gens afirma:
"N unca tive tanto cuidado em me conservar do que agora e em lugar de pensar, como outrora, que a morte pudesse me retirar trinta ou mesmo quarenta anos, não poderia entretanto me su rpreender e me retirar a esperança de um século; pois vej o de uma maneira bastante evidente que se nos guardássemos diante de certas faltas que temos costume de cometer a respeito de um regime de vida, poderíamos, sem outras invenções, chegar a uma velhice bem mais longa e mais fel iz do que temos; mas porque tenho necessidade de muito tempo e de experiências a fim de exam inar tudo o que serve a respeito deste assunto, trabalho no momento a fim de compor um compêndio de medicina, que tiro em parte dos livros e em parte de meus raciocínios, do qual espero poder me servir por provisão para obter um prazo da natu reza e assim prossegu ir melhor logo após em meu objetivo." (2, A.T., I, p. 507)
Descartes deixa bastante claro que chegar a uma velhice mais longa e mais feliz é possí vel, sem ou tras invenções, segu indo um regime de vida. Considera tão im portante tal assunto que afirma ter necessidade de muito tempo e experiência para levar adiante essa sua proposta.
Um ano após, expl icita a Mersenne que tanto a vida pacata que leva, quanto certos conheci mentos que adquiriu de Medicina, fazem com que no momento goze de uma boa saúde e se sinta longe da morte. É com entusiasmo que afasta as preocupações de seu interlocutor a respeito de sua saúde:
"". há trinta anos que não tive, graças a Deus, nenhum mal que merecesse ser chamado mal. Porque a idade me retirou este calor do fígado que me fez outrora amar as armas, e que não faço mais pro fissão de pusilanim idade e também porque adquiri um pouco de conhecimento de medicina e que me sinto viver e me tateio com tanto cuidado como um rico apreciador, parece-me quase que estou agora mais longe da morte do que estava em minha juventude. " (3, p. 1. 04 1).
Ao mesmo tempo que progride em sua ciência, segu ndo sua afirmação, vemos também a constância com que Descartes nesses dois momentos se refere a um regime de vida, ligado ao tema da saúde e prolongamento da vida. Está igualmente presente e decorrendo desta mesma terapia que propõe a prática de cada um ser seu próprio médico. Podemos, desta maneira, compreender porque mais tarde, em 1 645, de uma maneira clara e inequ ívoca, afirma ao marquês de Newcastle que:
"A conservação da saúde sempre foi a pri ncipal finalidade de meus estudos e não duvido que eu não ten ha meios de adquirir mu itos conhecimentos a respeito da medicina que foram ignorados até o presente. Mas o tratado dos animais que medito e que não pude ainda acabar, sendo uma entrada para chegar a esses con hecimentos, não me reservo em vangloriar-me de tê-los ; e tudo o que posso dizer no presente é que sou da opinião de Tibério, o qual desej ava que aqueles que tiyessem atingido a idade de trinta anos, tivessem bastante experiências das coisas que lhes pudessem prej udicar ou ser proveitoso, para ser eles próprios seus médicos. Com efei to, parece-me que ninguém que não tenha um pouco de espírito não possa observar o que é útil a sua saúde, contanto que tome um pouco de cuidado a respeito e que os mais sábios doutores não lhe poderiam ensinar". (3, p. 1. 219 - 1. 220).
É o que vai repet ir em 1 648 no Entretien avec Burman, como anteriormente analisamos, e que reforça a permanência da temática da conservação da saúde, do prolongamento da vida, ou ainda, do retardamento da velhice. Se esta temática está ligada a uma terapêutica, esta última não está orientada para a patologia, mas antes para a preservação e mesmo uma restau ração da saúde. Seu ponto de partida é uma concepção de natu reza que, consciente de si mesma, é dotada de uma finalidade interna de autopreservação. Desta maneira, como já tínhamos visto, prevalece que cada um pode ser seu próprio médico, contanto que mantenha um regime de vida, além de conhecimentos especí ficos de medicina.
Descartes progressivamente nos faz reencontrar sua preocupação pela conduta da vida (5, p. 17 5-1 80) e que, no momento, se manifesta sob a forma de um regime de vida.
Estamos diante de uma Sabedoria prática nunca abandonada por ele que reaparece através da temática da preservação da saúde e prolongamento da vida. Esta sabedoria traduz-se num regi me de vida porque pressupõe uma natureza que tem nela mesma o poder de se auto-regu lar. Não temer a morte e sentir a vida, são sentimentos que decor-. rem dessa mesma sabedoria.
Se a con servação da saúde sempre foi tida por Descartes como o fim principal de seus estudos e se nela está pressuposto o que acabamos de expor, podemos afirmar que a util ização da ciência pressupõe em seu pensamento essa sabedoria prática.
A razão considerada por Descartes como uma força ativa que tem nela mesma um poder porque depositária das sementes de ciência, cabendo aos estudos ou ao método o desenvol vimento dessas semen tes, (5, p. 150- 1 59) encontra aq ui ao nível do corporal também uma natu reza que, concebida como força medicadora, age espontaneamente, cabendo a um método, ou o regime de vida, a preservação da saúde e o prolongamento da vida. Bom senso e regime de vida são dois componentes com os quais esta sabedoria encontra e aprofunda a concepção de razão, a necessidade de um método e o ideal de ciência.
Em vez de vermos suas concepções médicas como índice das di ficuldades de aplicação prática da ciência *, vejamo-Ias como algo que, conj untamente com o desenvolvimento da fisiologia, promoveu seu ideal de um saber voltado para o corporal. Descartes quando pensa uma medicina, vê a necessidade de mais tempo e de experiências futuras que englobem sua fisiologia, assim como de pensar um regime de vida orientado para a preservação da saúde e o prolongamento da vida, em basado numa concepção de natu reza que tem nela mesma seu princípio auto- regenerador. A terapia surge nesse contexto com a conseqüente afirmação de que cada um pode ser seu próprio médico.
. Concluindo, podemos afirmar que, antes mesmo de pensar o homem como un ião corpo/espírito, temos em Descartes uma concepção da natu reza corporal, sej a do homem ou do animal, que dá um sentido às suas concepções médicas. Como afirmamos, a concepção de uma natureza que tenha um princípio de preservação interno é tanto um complemento para a em briologia e a fisiologia da circu lação do sangue e da nutrição, quanto uma necessidade inerente à metafísica. O aprofundamento de sua explicação mecânica da circu lação do sangue através de uma embriologia toma sentido no interior do que sej a o funcionamento de uma máquina especial, isto é, do corpo animal ; a mesma concepção mecânica exige também uma concepção da natureza animal dotada de uma finalidade interna. Em outros termos, todo mecanismo pressupõe que respondamos a duas questões: o funcionamen to do organismo pensado como máquina e o construtor dessa mesma máquina. Se esse construtor é Deus criador e se Descartes assume em sua metafísica a doutrina da criação contínua, deve necessariamente afirmar, no caso do organismo animal, uma finalidade interna para se compreender que Deus, sem ser um demiurgo, conserve esses seres na existência.
Para manter a coerência de seu raciocínio metafísico, nada melhor do que atribuir a esse organ ismo animal uma natu reza que se auto-regule ou se autopreserve e, portanto, a possibilidade de se auto-restau rar. Não basta para Descartes pensar a preservação do organismo somente ao nível de seu funcionamento, enquanto, como um autômato, tem nele mesmo a potencialidade de transformação da energia. Exige-se, com efei to, quando se trata de um organismo vivo, a afirmação de um poder autopreservativo e mesmo auto-restaurador. Enq uanto a máquina necessita que haja uma intervenção e uma vigilância exterior para que uma regulação ou uma restau ração se processe, o organ ismo vivo tem nele mesmo esse poder.
Convenhamos que, se no campo de sua física não há ainda espaço para se estabelecer uma lei da conservação da energia, pois seu mecanismo atenta tão-somente à questão da transformação da energia - ilustrada pela constante metáfora da máquina -, Descartes não pôde se furtar a requerer uma metafísica que dê conta da con servação das criatu ras na existência_ Nesse sentido, a explicação mecânica das funções corporais não impede, ao mesmo tempo que não supre por uma outra ex igência que, no campo da vida biológica, é essencial, ou seja, sua autoconservação e auto-restauração _ Tratase de uma exigência metafísica que Descartes impreterivelmente teria que en frentar neste domínio, fazendo interferir uma teleologia da vida. Os temas do prolongamento da vida, de vencer a morte, de retardar a velhice etc. tomam sentido se aceitamos que Descartes não aboliu essa teleologia da vida e, portanto, a necessidade de uma concepção da natureza do corpo animal como tendo nela mesma o poder de se autopreservar e de se auto-restaurar.
Se afirmamos que esta teleologia não foi abolida quando da necessidade em explicar um corpo que em sua organização deveria responder, tanto ao nível de seu funcionamento quanto ao nível de sua natureza, a uma preservação que lhe é especí fica, queremos dizer que Descartes não só progrediu em sua explicação mecânica, como se defrontou com uma questão básica que movimentou o pensamento médico do fim do século XVII e principalmente do século XV III: até que ponto o organismo p.ode ser comparado a uma máquina? Entre as correntes desta época, possivelmente foram os organicistas que deram uma resposta mais próxima ao que Descartes se propunha, pois buscavam um princípio explicativo de organ ização interna do corpo humano, sem apelar a um agente externo que desse conta das atividades vitais (cf. 1, p. 302-304).
No entanto, se uma resposta mais próxima foi encam inhada pelos organicistas, o problema em Descartes tem seu desenvolvimento próprio. Quando assume uma concepção de natureza que tem nela mesma uma finalidade, a qual se manifesta sob a forma de autop reservação e auto- restauração, Descartes está rei ntroduzindo em sua filosofia, através dessa concepção de organ ismo, a noção grega de "physis ".
Justi fica-se deste modo ter igualmente rei ntroduzido, segu ndo nossa interpretação, a concepção hipocrática das forças automed icadoras do organ ismo. Como afirma A. Bernardes de Oliveira: "... foi ao se deparar com os 'm ilagres' relatados nas plaquetas votivas dos templos que H ipócrates concebeu a existência de forças curativas naturais como chave para a explicação racional das misteriosas curas. Em decorrência dessas convicções, surgiram os lemas de 'vis med icatrix naturae' e do 'p rimum non nocere' (nas suas formas latinizadas) " (1, p. 75- 76). Não seria com uma finalidade semelhante, que Descartes faz questão de distinguir o que cabe ao filósofo refletir e realizar experimental mente no campo da medicina do que são propriamente problemas teológicos, como já vimos ao analisar sua resposta a Burman? Foi nesse contexto crítico que nosso autor afirmou tanto a necessidade do filósofo permanecer ao nível das causas naturais quanto uma concepção da natu reza do corpo e tudo que daí decorre como uma retomada da concepção hipocrática.
Em suma, Descartes salvaguarda uma teleologia própria à vida biológica, sem que
para isso necessite afirmar nesse nível uma teleologia própria da alma para comandar o corpo. A questão da in teração corpo/alma tem seu espaço no sistema cartesiano tanto quanto tudo que possa estar implicado na distinção de ambos. É nesta reiteração da distinção que está inscrita a afirmação de uma natu reza animal que se autopreserva e se auto-restaura. Não só ao nível das funções se coloca o problema da disti nção, mas também ao nível de uma concepção da natu reza corporal. Esta foi a intenção que dirigiu nossas reflexões neste artigo.
FRAGA-SILVEIRA, L. - Physiologic, conceptions médicales et le statu de la médicine chez Descartes. Transl Forml Ação, São Paulo, 8: 39-48, 1985.
RÉSUMÉ: Notre intention est montrer comment les conceptions médicales de Descartes, disseminées dans ses oeuvres et dans sa correspondance, se sont constituées a partir de deux questions fondamentales posées par le philosophe: I - comment fonctionne-t-il notre organisme; 2 - quel est-t-il la nature du corps animal et, en particulier, du corps humain.
UNITERMES: Conservation de la vie; prolongement de la vie, teleologie de la vie; se restaurer; se preserver; la nature du corps animal; mecanicisme; création continuée.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
I. BERNARDES DE OLIVEIRA, A. -A evolução da medicina. São Paulo, Pionei'ra, 1961.
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3. DESCARTES, R. -Oeuvres et lellres. Paris, Pléiade, Gallimard, 1953.
4. ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL. São Paulo, Encyclopedia Britanica do Brasil Publ., 1977. v. 14.
5. FRAGA-SILVEIRA, L. -As concepções médicas e morais na filosofia de Descartes. São Paulo, Departamento de Filosofia, USP, 1985. (Tese - Doutoramento).
6. GOUHIER, H. -La pensée religieuse de Descartes. Paris, J. Vrin, 1924. 7. TREVISAN I, F. - Descartes et la medecine. Bul/etin Cartésin, 9, Archives de Philosophis, Cahier 1, 1981.
[1] Este texto é um dos capítulos. com pequenas mod i fica(,.:ões de nossa tese de Doutorado - As concepÇões Méd icas e Morais na Filosofia de Descartes - Departamento de Fil osofia da Facu ldade de Filosofia, Let ras e Ciências Hu manas da Universidade de São Paulo.
[2] Departamento de Fi losofia - Faculdade de Educação, Fi losofia. Ciências Sociais e da Docu mentação - UNESP - 17 500 Marilia - SP.