A QUESTÃO RU SSA: SEU LUG AR NAS REFLEXÕES DE VA NG UARDA SOCIAL IS TA[1]

Isabel Maria LOU REIRO[2]

 

RESUMO: Vanguarda Socialista, jornal editado por Mário Pedrosa no Rio de Janeiro, de 1 945 a 1948, elabora uma proposta política socialista e democrática como alternativa à concepção bolchevique, que acredita superada pela história. Nessa medida, a "questão russa " encontra-se no centro das preocupações do grupo. Este artigo procura não só analisar a explicação do jornal para as origens da burocracia na URSS, mostrando as contradições que a perpassam, como também estabelecer a filiação do grupo às idéias de Rosa L uxem burgo, na tentativa de esclarecer as referidas conll·adições.

UNITERMOS: Revolução; leninismo; stalinismo; burocracia; socialismo; democracia.

 

 

Ao Luiz Araújo Prado, amigo.

In memoriam.

 

Os homens de minha idade que não se empolgaram pela Revolução Russa... alguma coisa lhes falta.

Mário Pedrosa

 

Para Vanguarda Socialista, a reflexão sobre o caráter da Revolução Russa, considerada "o maior acontecimento do século"[3], e sobre as causas da sua degenerescência burocrática constitui a pedra de toque, tanto do ponto de vista teórico quanto prático, para se determinar com clareza o que é o socialismo e qual a via para chegar. É pela compreensão desse processo que se pode definir o stal inismo "separando o que ali foi ditado pela lei de ferro da necessidade objetiva e o que é conj un tural ou deformação evitável"[4] e o Estado russo atual, clarificação que para Vanguarda Socialista representa o primeiro passo para a constituição de uma alternativa de esq uerda ao "Estado totaiitário "[5] implantado na Rússia. Com tal intuito, Mário Pedrosa realiza uma. série de palestras, publicadas entre 12 de abril e 28 de junho de 1 946. A partir dessa ocasião são elaboradas teses, sob o título de "Novos Rumos", vi stas pelo grupo como uma primeira contrib uição teórica para a consti tuição de um partido socialista no Brasil[6]

Ao ten tar detectar as origens da bu rocracia na Rússia, Mário Pedrosa diz concordar com Lenin, para quem os primeiros sinais de degenerescência burocrática se verificam em 1919, sendo con statados no VII Congresso Pan-R usso dos Sovietes. Contudo, a questão é abordada em toda a sua plenitude no decorrer do X Congresso do PCU S, em março de 1 921. Nessa ocasião, diz Pedrosa, "a burocracia, já como um grupo social à parte, em bora ainda sem independência social e política, tomava cada vez mais caracteres próprios. "

Nesse artigo, de 26 de ju nho de 1 946, Pedrosa refere-se às frações surgIdas no mterior do partido - Oposição do Centralismo Democrático e Oposição Operária - e cita a plataforma desta última a qual trad uz o profundo descon tentamento sentido pela parte mais consciente do proletariado em relação à política bolchevique.[7] A Oposição Operária, diretamente ligada à massa trabalhadora e aos sindicatos, toma consciência de que nos três anos de guerra civil em que as instituições soviéticas foram criadas, a classe operária, enquanto classe, é cada vez menos levada em consideração pelo governo bolchevique. Segundo Pedrosa, a Oposição Operária é fruto da "separação cada vez maior entre as massas que primeiro que tudo precisavam de comer e a base do partido, de um lado, e, de outro, os vértices do partido, da burocracia e do aparelho de Estado."

Para Mário Pedrosa, Lenin é o grande líder da Revolução de Outubro, o político que procura compreender e resolver os problemas inesperados que a conj unt ura coloca. Nesse sentido, é um crítico alerta e perspicaz da bu rocracia nascente. Porém, as medidas que toma para destruí-Ia são inócuas, porque também burocráticas. Ao mesmo tempo que con stata que toda a sociedade soviética está sendo corroída pela "gangrena burocrática " que começa mesmo a atingir a vida do partido, toma a decisão, apoiada pelo X Congresso, de proibir as frações no interior da organização: "A ju stificativa para a proibição eram as tremendas di fic uldades por que passava o país (insu rreição de Kronstad t, de Tambov, etc.); como tantas vezes acontece, o que foi di tado por circunstâncias fortuitas, o que devia ter apenas validade provisória, tornou-se eterno sob a forma do monolitismo staliniano". **** Ou seja, denunciava-se o perigo da burocracia e, simultaneamente, adotava-se uma medida burocrática para resolver um problema mu ito mais profundo, reforçando-se assim o que se queria combater.

Em bora a bu rocratização da sociedade soviética, do Estado e do partido tenha começado no decorrer da guerra civil, de acordo com Mário Pedrosa ela era ainda incipiente neste primeiro momento. É a adoção da NEP que permitirá o seu verdadeiro desabrochar mas, mesmo aq ui, não era ainda uma classe: tinha saído do proletariado que fizera a Revolução de Outubro, era politicamente neutra, servindo tanto o setor privado quanto o estatal *. Ou seja, a burocracia se torna uma classe com interesses próprios a defender quando, com a derrota da Oposição de Esquerda e de Direita, vence a tendência de Stalin no in terior do partido.

Pedrosa lem bra que a tendência stalinista nasceu sobre a ideologia do social ismo num país, representando a bu rocracia do partido e a do Estado. De 1 927 a 1929 essa nova corrente destruiu a velha base revolucionária e proletária do partido e iniciou a fase nacional de industrial ização feita pelo Estado sob os im perativos da racionalidade taylorista. Os kulaks e os "nepmem " foram expropriados, os sindicatos liquidados, as frações ou emb riões de frações esmagados. Surge a ideologia do partido monolí tico, do chefe infalível. Os sind icatos passam a lutar pelo aumento do ritmo da produção, aparece o stakanovismo, a exploração intensiva do trabalhador que passa a ser premiado caso produza mais. Tem início a coletiv ização forçada.

De acordo com Pedrosa, foi com a industr ial ização acelerada, levada a cabo por Stalin no final dos anos 20, que a bu rocracia cresceu. Surgiram os especialistas apenas interessados em real izar os planos im postos sob pena de fuzilamento ou afastam ento das funções. Como os in teresses das massas eram menosprezados, tornava-se necessário dar estímulo pessoal à camada de bu rocratas para que Stalin tivesse um ponto de apoio na população. Criou-se a especialização in tensiva das funções tanto no aparelho de Estado quanto no de prod ução, dividindo-se a própria burocracia em duas camadas: baixa e alta, aumentando cada vez mais a distância entre o trabalhador médio e os vértices da bu rocracia estatal e industrial. O lucro foi reinstaurado como maneira de estimular a produção. Em suma, o programa da Oposição de Esquerda, defensor da industrial ização acelerada, apl icado com atraso por Stalin, não levou à criação de uma economia social ista de caráter democrático mas a um "regime totalitário de uma burocracia onipotente"

Tanto o programa da Oposição de Direita (favorável ao fortalecimento dos camponeses, o que levaria à restau ração do capitalismo, segundo Pedrosa), quanto o da Oposição de Esq uerda se revelaram inadequados à real idade, o que, em parte, se deveu à ilusão de ambas que acred itavam estar a Revolução de Outubro ainda de pé, o Estado soviético ser ainda operário e o proletariado russo, tal como ressurgi u, ser ainda capaz de exercer controle sobre o Estado. Diz Mário Pedrosa que o proletariado que fizera a Revolução de Outubro fora substituído por outro, mais "novo, mais inconsciente, manobrado pela bu rocracia" que se im plantou no vértice das camadas sociais substituindo-se à burguesia, não para implantar o socialismo, mas para ind ustrial izar a Rússia. Na medida em que o controle dos trabalhadores inexistia, o governo sentiu-se forte o bastante para promover a industrial ização acelerada e a coletiv ização forçada às custas dos in teresses imediatos das massas. Se, num primeiro momento, a bu rocracia (que, de acordo com Pedrosa, Lenin queria controlar) era ainda uma camada neutra e amorfa, sob Stalin ela passa a dirigir a produção, a controlar o Estado e a defender seus privilégios. "A burocracia se c1assiciza. Na base de quê? Precisamente dessa extrema centralização do aparelho econômico e do fato de o Estado passar a possuir todos o:; meios de produção."* Segundo Pedrosa, na opinião de Lenin, essa extrema centralização nas mãos do Estado levaria ao suicídio da revolução de fato ocorrida. Morreu a revolução proletária, o comunismo, mas não o Estado que dela surgiu.

Onde se encontra, afinal, a origem da burocracia? Pedrosa responde: na inexistência de controle da economia e da política pelas massas trabalhadoras. O que explicaria essa inexistência de controle? "... a falta de organizações autônomas e independentes das classes trabalhadoras e camponesas, de pequenos burgueses e massas consumidoras. Quer dizer: faltava às massas experiência socialista, consciência prática, capacidade de se dirigir e tomar em mãos a defesa de seus interesses e controlar os problemas da produção. Faltavam técnicos, faltavam condições objetivas favoráveis".

Mário Pedrosa dá a entender que as massas russas não estavam organizadas, englobando no conceito de massas os trabalhadores da cidade e do campo, os pequenos burgueses e as massas consumidoras. Ora, é curioso que Pedrosa se refira à falta de organizações autônomas dos trabalhadores numa revolução que justamente se caracterizou pela intensa criatividade nesse nível com a criação de sovietes de operários, soldados e camponeses além dos comitês de fábrica. A impressão deixada pelos textos de Pedrosa, em 46, é a de que a revolução teria sido prematura, visto que as massas não tinham experiência, capacidade para se dirigir. Contraditoriamente, Pedrosa é ardoroso defensor da idéia de que essa experiência e essa capacidade não são uma criação prévia à luta, mas que é no decorrer da revolução que as massas adquirem consciência dos seus objetivos. Na Revolução Russa, em particular, os trabalhadores mostraram possuir tal capacidade ao ocuparem as fábricas à revelia dos próprios bolcheviques, ao criarem suas próprias organizações revolucionárias que aos poucos foram sendo destruídas e transformadas em meros órgãos burocráticos dominados pelo partido bolchevique. Como entender, portanto, a análise de Pedrosa sobre a desorganização e inexperiência das massas russas e sua teoria da invenção organizadora durante o processo de luta?

No tocante à questão da tomada das fábricas pelos operários, por exemplo, contra a palavra de ordem bolchevique de "controle da produção", Pedrosa dá razão a Lenin contra os trabalhadores alegando a falta de preparo para dirigirem as empresas. Embora Pedrosa defenda com veemência a idéia de que apenas através da experiência os trabalhadores adquirem capacidade para se auto-dirigir, no caso da Revolução Russa justifica a separação entre os que sabem - Lenin, "líder experimentado" - e os que não sabem - os trabalhadores. De modo geral, é possível observar que quando se trata da Revolução Russa, apesar de algumas ressalvas (quanto à teoria do partido, quanto às medidas burocráticas para combater a burocracia), Mário Pedrosa sempre justifica a política bolchevique e, sobretudo, as idéias de Lenin.

No texto que estamos examinando, Pedrosa refere-se tambéllJ à falta de "condições objetivas favoráveis" como um dos motivos que levaram à degenerescência da revolução e ao conseqüente fortalecimento da burocracia. A inexistência de tais condições significa o atraso econômico da Rússia e o isolamento da revolução, fatores que atuaram negativamente sobre o proletariado fazendo com que, numericamente fraco e sufocado pelo campesinato, não pudesse construir a economia russa com métodos socialistas[8]' Aos operários cabia o controle dos organismos políticos e econômicos, mas aqueles encontravam-se "sangrados, enfraquecidos, desfalcados. Parte de sua vanguarda morrera na guerra civil e outra parte assumira cargos de direção no poder estatal, acabando absorvida pela burocracia administrativa. Além disso, o proletariado encontrava-se desencorajado pelo fracasso da revolução na Europa. Sob a ação desses motivos, vai, aos poucos, saindo da cena política e deixando nas mãos do partido e da sua burocracia a direção dos negócios..

Curiosamente, porém, em outro texto, Vanguarda Socialista imputa o advento do stalinismo à "derrota das forças operárias na Rússia, expressa pela supressão da democracia interna no partido e o aniquilamento dos elementos oposicionistas". Neste caso, a expressão derrota das forças operárias supõe que estas se encontravam organizadas e não, como fora dito no texto anterior, porque não tinham organizações autônomas. Se a derrota do operariado se exprime num primeiro momento pela proibição das frações no interior do partido e se uma dessas frações, a mais importante, a Oposição Operária (representante dos trabalhadores das fábricas), possuía um programa alternativo ao do" partido bolchevique, isto significa que os trabalhadores estavam organizados de forma independente e foram golpeados. Nesta perspectiva, a derrota das Oposições de Direita e de Esquerda pelo grupo de Stalin é conseqüência do amordaçamento dos trabalhadores, efetuado no período imediatamente pós-revolucionário.

Por um lado, para Vanguarda Socialista, o surgimento da burocracia deve-se à inexistência de controle, por parte das massas, sobre os organismos econômicos e políticos, explicada, em primeiro lugar, pela falta de organizações autônomas das próprias massas. Além disso, como para Vanguarda Socialista, no conceito de massas está englobada também a pequena burguesia, não basta que o proletariado esteja organizado, a revolução só vingará se a organização se estender às massas trabalhadoras assalariadas como um todo. No caso da Rússia, o proletariado era a vanguarda da revolução, dirigido por outra vanguarda, o partido bolchevique. Uma vez a vanguarda derrotada, a revolução não foi adiante, porque não encontrou suporte no resto da população trabalhadora.

Por outro lado, entretanto, a inexistência do controle é também contraditoriamente explicada pela derrota do operariado, imputada unicamente à conjuntura: o isolamento da revolução, o atraso econômico do país que, com uma pequena indústria, levava o proletariado a ficar submerso pelo campesinato, a morte de parte da vanguarda proletária na guerra civil e a absorção de outra parte pela burocracia do Estado. A política antioperária dos bolcheviques, tal como é denunciada pela Oposição Operária, nunca é questionada por Vanguarda Socialista, pelo contrário, é mesmo justificada, como no caso da crítica à tomada das fábricas, vista como prematura.

Na mesma linha de ju stificativa da polí tica bolchevique, Vanguarda Socialista faz contínuas referências elogiosas à política leninista do "capitalismo de Estado "* acreditando, assim como Lenin, que este seria uma via de acesso ao social ismo, desde que controlado pelos trabalhadores. Nas suas palavras: "O capitalismo de Estado pode ser uma forma de transição do capi tal ismo para o socialismo dentro de determinadas condições políticas e sociais. Lenin o considerou como uma forma de transição ao sair da guerra civil desde que se pudesse transportar para a Rússia a organização técnicoeconômica do capital ism o alemão da época imperial, controlado e canal izado pelo estado operário - ou pelo menos o estado domi nado pelo partido bolchev ique em sua fase revol ucionária. No entanto, a evolução econôm ica e histórica, malgrado as garantias e contrapesos previstos por Len in, su perou estas formas pu ramente polít icas de controle (estado soviético, regime dos sovietes, partido bolcheviq ue) e levou a Rússia ao capital ismo de estado totalitário atual.Afinal, no que consistia a política leninista do capital ismo de Estado? Para Lenin, a Rússia devia apren der, na es fera da economia, com os países capitalistas avançados, tran spondo para aquele país a "racional ização" capitalista, vista como um meio para a construção do social ismo. A extrema central ização alcançada pelo capitalismo monopolista de Estado, modelo alemão, é encarada como progressista e como uma forma a ser utilizada pelo Estado "proletário ". Acred itava que as conqu istas do grande capitalismo deveriam ser preservadas e que teriam um fim socialista porque submetidas aos sovietes proletários. Tal política, contudo, está ind issoluvelmente ligada a um discurso taylorista e autoritário *** consistindo na exaltação da obediência, da produtividade, da disciplina e do espírito de sacrifício dos trabalhadores a que Vanguarda Socialista não faz a menor al usão. Quando Lenin proclama que é necessário aprender com o capitalismo de Estado alemão "não se in terroga nunca sobre uma possível relação entre organização industrial e sistema político, entre disciplina do trabalho e formas sociais de autoridade. Toma uma grotesca combinação de burocracia e militarismo a ponto de se desintegrar como a mais completa exp ressão da razão cientí fica" (7, p. 82).

Vanguarda Socialista, ao tomar como possível via de transição para o socialismo a proposta leninista de capitalismo de Estado, não leva em conta a realidade russa sob o efeito concreto dessa proposta, mas atém-se a um capital ismo de Estado ideal onde, teoricamente, haveria autonomia dos trabalhadores e controle dos grandes organismos econômicos. Não podemos esq uecer que a Oposição Operária de Alexandra Kollontai, a que Mário Ped rosa se refere e à qual créd ito como crítica de primeira hora contra a burocracia, combateu a polí tica do capitalismo de Estado, defendida pela direção bolchevique, polí tica incompatível com a emancipaçã0 autônoma dos trabalhadores defendida tanto pela oposição ao partido bolchevique quanto pela própria Vanguarda Socialista. Essa ambigü idade, porém, não parece incomodar o grupo de Vanguarda Socialista, provavel mente porque desconhecia os detalhes da discussão hi stórica. A defesa da política leninista do capital ismo de Estado feita pelo jornal deve-se possivelmente ao fato de que nela se fala em controle pelos trabalhadores como meio de evitar o crescimento desmesurado do Estado e da bu rocracia e, nessa medida, recusa o capitalismo de Estado tal como se tornou vigente sob Stalin.

No que consiste, então, para Vanguarda Socialista, o capitalismo de Estado da época stalinista? Constata que a estatização da propriedade, tanto na agric ultura quanto na indústria, perm itiu enorme desenvolvimento das forças produtivas e criou, ao mesmo tem po, uma diferenciação social que deu à economia estatizada sua base de classe necessária: "A bu rocracia transformou- se durante estes anos numa classe com sua ideologia à parte" *. A bu rocracia apodera-se do aparel ho estatal, extremamente centralizado e usufrui da propriedade estatizada, assu mindo, ao mesmo tempo, a responsabilidade pelo desenvolvimento das forças produtivas. O Estado, proprietário dos meios de produção, transforma-se numa entidade autônoma, no sentido de que não representa nem os interesses do campesinato nem os do proletariado, vivendo da exploração de classe, no campo e na cidade. a esse processo de diferenciação social, de exploração social na base da estatização dos meios de produção, que chamo de capital ismo de Estado".Neste ponto, portan to, Ped rosa e o grupo de Vanguarda Socialista di scordam dos trotsk istas. Para eles, a Rússia não é um Estado operário nem mesmo "degenerado". "O que se veri fica ali são formas de exploração capitalista coletiva e neofeudais, por interméqio do Estado totalitário, ou seja, uma forma própria do capitalismo de Estado ". No seu entender, a concepção trotskista é puramente jurídica e por isso falsa, na medida em que toma como critério decisivo para caracterizar uma determinada forma de Estado a forma da propriedade - coletiva ou privada. No entender do grupo, é o controle da prop riedade estatizada e não a sua posse que determina a existência de uma nova classe que dispõe dessa propriedade em seu benefíc io.

Como dissemos anteriormente, Mário Ped rosa justifica a polí tica boIchevique, não só no que concerne à proposta do capital ismo de Estado, como acabamos de ver, mas também no que se re fere à questão da organ ização revolucionária, na sit uação particular da Rússia. Em bora critique a concepção leninista do partido-vanguarda porque " marcha inexoravelmente para o partido único, para tornar-se instrumento de um regime totalitário sempre possível ", nas circunstâncias russas, o partido boIchevique, centralizado e autoritário, se expl icava na luta clandestina contra o czarismo. No entan to, ao mesmo tempo, reconhece que no início da revo lução o que havia na Rússia não era a ditadura do proletariado mas a di tadura do partido sobre o proletariado, a ditad ura de uma minoria de revolucio nários jacobi nos. Porém, neste caso especifico, tam bém a di tadura do partido é legítima: "Porque o partido naquela época não era somente a vanguarda mais esclarecida das massas, como tinha uma grande concepção política a real izar. Ele tinha a vi são hi stórica, de conj unto, da marcha da revol ução russa para um regime social ista, quando surgisse na Alemanha, na Europa ocid ental, a revolução proletária. Armados dessa idéia os bolcheviques se defenderam de todas as ma neiras para se manter sozi nhos no poder. Na realidade, isso representava já a primeira quebra na concepção de Lenin dum governo operário e camponês.

A ditadura do partido se expl ica porque os boIcheviques eram a vanguarda que tinha um programa de transição para o social ismo cujo sucesso dependia da revolução na Europa. Essa, que era uma cond ição sine qua non para a instauração do socialismo na Rússia, não ocorreu. Resultado: defasagem entre as idéias "na cabeça" dos líderes e a realidade "objetiva" e conseq üente vitória da burocracia, adepta do "realismo político".

Em suma, nas circunstâncias históricas precisas em que a Rússia se encontrava, a política bolchevique se ju stifica: a burocratização do regime tem seu início em 1 921 quando são eliminadas as frações no interior do partido, ao mesmo tempo, diz Mário Pedrosa, em que os bolcheviques se viram na "necessidade dolorosa" de liquidar Kronstadt. As circunstâncias obrigam os bolcheviques a se isolar no poder, a tomar posições contra a sua própria vontade. Portanto, a degenerescência da revolução foi fruto da conj un tura particular em que a Rússia se encontrava, o próprio Stalin sendo "apenas o instrumento de uma evolução quase irresistível ", devendo ser combatido não por ter traído ou causado a degenerescência da revolução, mas porque se tornou o portavoz de determinados interesses, fruto de cond ições objetivas que não criou. Numa palavra, Mário Pedrosa ju stifica a política do partido bolchevique durante a revolução uma vez que "as condições obj etivas da sociedade russa" acabaram levando Lenin, contra a sua vontade, a criar "as premissas para o reino posterior de Stalin e a consolidação... do Capital ismo de Estado atual”

Ao fazer este tipo de análise, Mário Pedrosa inspira-se em Rosa Luxem burgo que, em seu opúsculo sobre a Revolução Russa, após cri ticar as medidas antidemocráticas adotadas pelos bolcheviq ues, acaba por legitimá-Ias, ao dizer: "Tudo o que se passa na Rússia se explica perfei tamente: é uma cadeia inevitável de causas e efeitos, cuj os pontos de partida e de chegada são a carência do proletariado alemão e a ocupação da Rússia pelo imperialismo alemão. Seria exigir de Lenin e seus amigos uma coisa sobrehumana pedir-lhes que, em semelhantes cond ições, criassem por uma espécie de mágica a mais bela das democracias, a mais exemplar ditadura do proletariado e uma economia socialista florescen te. Com sua atitude resolutamente revolucionária, sua energia sem exemplo e sua inabalàvel fidelidade ao socialismo internacional, eles fizeram quanto possível foi em condições tão terrivelmente difíceis. O perigo começa no ponto onde, fazendo da necessidade virtude, eles criaram uma teoria da tática imposta por estas condições fatais, pretendendo recomendá-Ia ao proletariado internacional como o modelo da tática socialista... O que importa é distinguir na política dos bolcheviques o essencial do acessório, a substância do acidente " (5, p. 1 60, 161).

Se Rosa Luxemburgo ju stifica a polí tica bolchevique é para se contrapor ao imobilismo da social-democracia alemã que, ao emperrar a luta revolucionária em seu país, isolava os bolcheviques levando-os a uma prática autoritária em nome das necessidades da preservação do Estado operário. A admiração de Rosa pela energia revolucionária dos bolcheviques e a constatação da responsabilidade da social-democracia alemã na "traição " ao proletariado russo não a impede, contudo, de criticar a polí tica antidemocrática daqueles.

A crítica, porém, é precisa: as necessidades do momento, as contingências conj unturais forçaram-nos a uma polí tica adaptada a essas necessidades e, por isso mesmo, constitui erro palmar querer transformar o que foi fruto da conti ngência em norma universalmente válida no tempo e no espaço. Simul taneamente, Rosa não con trapõe à crítica ao autoritarismo bolchevique uma de fesa da democracia em abstrato: aceita o em prego da violência contra os sabotadores da revolução, condenando, todavia, "todo arbitrário que ultrapasse essa necessidade absoluta de autodefesa revolucionária" (6, p. 126). O arbitrário, no caso da Revolução Russa, consiste na abol ição da liberdade política por parte dos bolcheviques.

Rosa declara que apenas uma vida pública plenamente livre e democrática, na qual haja participação de "toda a massa do povo", em que esta massa exerça controle sobre os di rigen tes, pode permitir que os mil problemas que su rgem no processo de transformação socialista sej am solucio nados. Caso contrário - a democracia e a liberdade amordaçadas -, a criatividade das massas não podendo se exercer, o resultado será o domínio de alguns intelectuais, dos funcionários do novo governo sobre "toda a massa do povo". Isto é, só a total e completa li berdade será uma barreira eficaz contra a burocracia (6, p. 1 27).

Como podemos perceber, Rosa Luxemburgo acentua o papel da escolha polí tica, da vontade, no fazer histórico. Em prim eiro lugar, foi a prática imobil ista da socialdemocracia alemã que determ inou o isolamento da Revolução Russa e as conseqüências catastró ficas que daí advieram ; em segu ndo lugar, os bolcheviques, ao entrarem pelo cam inho do terror para implantar o social ismo acabaram levando água ao moinho da bu rocracia. Neste ponto, porém, não saída, segundo Rosa; os bolcheviques são coagidos pela conj untura a trilhar esse caminho. Aqui apl ica-se como uma luva a frase de Marx de que "os homens fazem sua própria hi stória mas não a fazem como querem ".

Eis o pano de fundo da análise pedrosiana da Revolução Russa. Contudo, a ênfase, tanto do discurso de Rosa Luxem burgo quanto do de Mário Pedrosa, é posta no seguinte: o que ocorreu na Rússia não deve ser tomado como modelo para outros países, uma vez que o "social ismo... não é mais do que um produto histórico, nascido da própria experiência e da situação concreta" (6, p. 127) não havendo, portanto, receitas prontas para serem apl icadas em toda parte e em qualq uer tempo. O alvo de Pedrosa são os partidos com unistas do mundo inteiro, su bservien tes à polí tica ditada pelo partido comunista russo, sub serviência que, segundo ele, foi responsável pelo "rumo trágico" que tomaram os acontecimentos mu ndiais na Europa Central e na Alemanha (Cf. 6, p. 1 1 9). É na tentativa de traçar uma linha socialista independente do bolchevismo e do stal inismo que Mário Pedrosa, ao analisar a Revolução Russa, faz suas as palavras de Rosa Luxemburgo: "Entregar-se a um estudo crítico da Revolução, sob todos os seus aspectos, é o melhor meio de educar a classe operária, tanto alemã como internacional, diante das tarefas que lhe im põe a atual situação." (5, p. 1 18 ).

 

LOU REI RO, I.M. - The Russian question and its place in Vanguarda Socialisla. São Paulo 8:28- 38, 1985. Trans/Forml A/Ação

 

A BS TRA C T: Vanguarda Socialista, a ne wspaper ediled by Mário Pedrosa in Rio de Janeiro from

1 945 lO 1 948 elaborales a socialisl and democralic polilical proposal as an allernalive 10 lhe bolshevik conceplion, which was believed surpassed by hislory. The "Russian queslion " lies Ihus aI lhe cenler of lhe group 's preoccupalions. This paper Iries nOI only lO analyse lhe ne wspaper 's explanalion for lhe origins of bureaucracy in lhe USSR, bringing lo lighl lhe conlradiclions which run Ihrough il, bUI also lO eslablish lhe group 's affilialion 10 Rosa Luxemburg 's ideas, in lhe allempl lo clarify Ihose conlradiclions.

 

KEYWORDS: Revolulion; Leninism; Slalinism; bureaucracy; socialism; democracy.

 

REFERÊ NCIAS BI BLIOGR Á FI CAS

I. BETTELHEIM, C. - Les lulles de classes en URSS (prem iere période - 1917 - ( 923). Paris, Maspero/Seuil, 1974.

2.CASTORIADIS, C. - L 'expérience du mou vemenl ou vrier. Paris, Ed. 1 0/ 1 8, 1 974. v. 2.

3.CO HEN, S.F. - Bujarin y la revolución bolchevique. Madrid, Siglo Veintiuno, 1 976.

4. LEFORT, C. - Elémenls d 'une crilique de la bureaucralie. Paris, Gallimard, 1 979.

5. LUXEM BURG, R. - A Revolução Russa. In: PEDROSA, M. - A Crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburg. Rio de Janeiro, Civil ização Brasileira, 1979.

6. PEDROSA. M. - A crise mundial do imperalismo e Rosa Luxemburg. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1 979.

7.QUERZOLA, J. - Le chef d' orchestre à la main de ferleninisme et taylorisme. Recherches n. " 32/33, 1978.

8.. RIZZI, B. - La burocralización dei mundo. Barcelona, Península, 1980.



[1] Este artigo const itui o I. o capitulo de minha disserta,ão de mestrado Vanguarda Socialista (/945- / 948), Um episódio de eclelismo na história do marxismo brasileiro - Faculdade de Filosofia, Let ras e Ciências Hu manas, Universidade de São Paulo - 1984.

[2] Departamento de Filosofia - Fac uldade de Educa,ão, Filosofia, Ciências Sociais e da Documen tação - UN ESP - 17500 - Marilia - SP.

[3] Vanguarda SoclO/ista ( VS), "Diretivas", manifesto lançado no primeiro mero do jornal, 31 /8/45.

[4] Id., Ib id.

[5] VS, "Novos Rumos", 20/9/46

[6] Embora VS funcione no seu primeiro ano muito mais como uma tribuna livre do que com uma linha editorial seguida por todos os articul istas,  um corpo de proposh,:àes básicas acei to por lodos e que poderia ser resumido da seguinte maneira: a ssia é um novo Estado opressor, o advento do socialismo será possível at ravés da luta consciente dos trabalhadores organizados pela base, a defesa do part ido-classe con tra o partido-vanguarda". E, no caso do Brasil, a crí tica à polít ica de colaboração de classes do PCB, à di tadura varguista e o apoio à candidatura Eduardo Gomes. Com variaçõe... aqui e ali essa é a linha adotada por todos os colaboradores. linha dada pelo diretor do jornal. Mário Ped rosa, nos editoriais, qu ase todos de sua autoria. Por esse motivo a identi ficação constante. neste artigo, entre Mário Ped rosa e VS.

[7] Castoriadis, na sua introdução ao texto de Alexandra Kollontai, A Oposição Operária, ambos publicados em Socialisme ou 8arbarie, n. o 35 de ja neiro de 1 964, é taxativo quanto à im portância da Oposição Operària na crít ica à burocracia nascente. Diz que an tes de mais nada o texto é importante "pelas ind icações diretas que fornece sobre:ts atit udes c as reações dos Operários russos face à polít ica do partido bo1chevique. Em seguida, e sobret udo, mostrando que uma larga fração da base operária do partido tinha consciência do processo de bu rocratização em curso, e se erguia contra ele. Nào é mais possível, após ler lido este texto, con tinuar a apresentar a Rússia de 1920 como um caos. um amon toado de ruínas, onde o proletariado se encontrava pul verizado e onde os únicos elementos de ordem eram o pensamento de Lenin e a 'von tade de ferro' dos bolchev iques. Os Operários queriam alguma coisa e mostraram-no, no partido pela Oposição Operária, fora do partido pelas greves de Pet rogrado e a revolta de Kronstadt. Foi preciso que uma e outra fossem esmagadas por Lenin e Trotsky para que Stalin pudesse, em seguida, triu nfar". (2, p. 390).

[8] Apesar de falar no atraso da Rússia, Pedrosa não adota as teses mencheviques. No seu entender. estas não poderiam realizar-se devido a fraqueza orgânica da burguesia russa. Contudo. as previsões mencheviques verificaram-se: o socialismo. na medida em que era incerta a revolução internacional, era impossível na Rússia, e isso levaria o governo a contradições insolúveis, como, de fato, se verificou (vs, 26/4/46).