DIREITOS HUMANOS, PROPRIEDADE PRIVADA E EDUCAÇÃO

 

Reginaldo Carmello Corrêa de MORAES[1]

 

RESUMO: O presente texto constitui síntese de comunicação do autor à /lI Conferência Brasileira de Educação (Niterói, outubro de 1984). Afirma-se a necessidade de discutir as raízes da idéia de direitos do indivíduo e seu vínculo, no pensamento fundador de Locke, com a propriedade e, mais ainda, a liberdade e autonomia da pessoa humana. Discute-se ainda o suposto liberal-racionalista de alocação ótima dos recursos sociais através do choque e combinação de interesses privados. Uma dupla crise de nossos tempos: crise da concepção de universo auto-regulado laplaceano (e sua ciência: o determinismo mecânico ou substancial) e a crise da crença na alocação ótima via mercado. A idéia de intervenção do Estado na economia não significa a destruição da propriedade privada, da lei do valor e do lucro. Apenas atesta a sua sobrevivência e procura garantir seu desenvolvimento. Não se pode pensar analogamente a idéia de educação como direito social garantido e alocado pelo Estado, como investimento no "capital humano"? Qual o sentido da expressão - uma "política educacional"?

UNITERMOS: Ideologia; educação; propriedade privada; organização do saber; capital humano; divisão do trabalho.

 

- I -

Entre os "direitos inalienáveis da pessoa humana", inalienáveis exatamente por constituírem parte da natureza humana, Locke arrolava o direito à propriedade. De fato, os direitos remetiam-se reciprocamente e o seu sistema era habitado por uma solidariedade fundada nas idéias de lei natural e Razão.

O direito à propriedade é, nesse pensamento, o verso de outro direito, configurado na idéia de liberdade e autonomia da pessoa humana. Liberdade inalienável: a lei natural, a Razão, não concebe a escravidão ou qualquer forma de alienação do próprio cor· po e da própria vontade.

A propriedade das coisas do mundo irá derivar dessa primeira propriedade:

"Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa (...) O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriedade dele" (3, § 27).

Mas ocorre que a "condição da vida humana (...) exige trabalho e material com que trabalhar" - o homem se objetiva, ele verte o seu suor e seu sangue na terra, deposita sobre as coisas do mundo o seu corp% bra/trabalho, de modo tal que nessas coisas do mundo, em seguida, está infiltrado o indivíduo e a propriedade de si mesmo. A "condição da vida humana (...) necessariamente introduziu a propriedade" ( 1, § 35). Quando se apropria dos pedaços do mundo que trabalha e transforma, é de si mesmo que o indivíduo toma posse: "A extensão de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva, cuj os produtos usa, constitui a sua propriedade. Pelo trabalho, por assim dizer, separa-a do comum" (3, § 35).

Estanquemos neste in stante a nossa reflexão para sublinhar cu idadosamente que está um dos "mitos fundadores " do capital como acumulação originária proven iente da renúncia ao ócio e ao prazer, como fruto do "suor do rosto". Mais do que isso, Locke assegura o sentido "progressista" da propriedade privada: não se trata apenas de uma apropriação que interessa ao indivíduo, mas ao homem enquanto gênero. "Aquele que toma posse da terra pelo trabalho não diminui mas aumenta as reservas comuns da humanidade" (3, § 37) - dirá o inglês, antecipando-se a Quesnay, de La Riviere, Smith, na afirmação do caráter positivo, para o avanço da civilização. das desigualdades de riqueza.

Peço ao leitor que retenha a lógica desse argumento que aqui si ntetizamos. Que retenha o vínculo estabelecido entre liberdade-ind ivíduo-trabalho-propriedade. Nós vamos reencontrá-lo mais adiante em nossa reflexão.

 

- II -

A con fiança "lógica" na melhoria das condições da vida humana através e no interior dos interesses ind ividuais conflitantes, essa convicção otim ista reaparece, no século seguinte ao de Locke, na extraordinária obra de Adam Smith. Seu argumento a respeito da divisão do trabalho e da produtividade (6, livro I, cap o 1) é, nesse sentido, fundamental e pode ser resumido do seguinte modo:

1.           . A divisão do trabalho aumenta a destreza e a rapidez do trabalhador na sua operação especí fica;

2.          ela diminui, por outro lado, a porosidade entre as operações e a dispersão do trabalhador no intervalo das mudanças, aumentando a disciplina dos corpos e men tes;

3.            simplifica o trabalho de inventar máquinas, uma vez que estas se destinam a operações cada vez mais simples.

Ora, a razão e a linguagem, naturais ao homem, impl icam a troca (de bens de razão, pelo discurso, ou de bens materiais) (6, livro I, cap o 4). A troca, por sua vez, implica e supõe a divisão do trabalho e a busca do interesse pessoal (6, livro I, cap o 2). A divisão do trabalho favorece o incremento da produtiv idade, como pudemos notar, e, portanto, a realização de benefícios coletivos. Assim, no indivíduo e na sua egoísta procura de vantagens, está radicada, embrionariamente, a realização do bem comum. A "mão invisível " (6, livro IV, cap o 2) do mercado, da lei do valor, acondiciona, cuidadosamente, cada átomo no conj unto simultaneamente dinâm ico e equilibrado, autoaj ustado, da sociedade humana.

Não apenas a propriedade privada e uma forma histórica de organização da produção material são dados como "naturais" à vida humana. O mundo fragmentado dos homens, seus ofícios e saberes, é uni ficado pelo fato mesmo da atomização de interesses.

Estabelece-se a concil iação entre autonomia e li berdade individual e, de outro lado, a ordem do mundo, sua fi nalidade ótima. Antes que problema, a autonomia é condição para a existência da ordem e do fi nalismo. Essa imagem da hi stória encontrasua correspondente metafísica na filoso fia kantiana, onde o plano da natureza, o universo concertado, não contradiz,  mas supõe a autonomia e os conflitos dos interesses individuais/ grupai s.

 

- III -

Façamos uma pausa nesta reconstitu ição de alguns episódios da história das idéias modernas. Uma pausa para repet ir e sin tetizar, para insistir e condensar. Se autonomia e final ismo não se con tradizem, mas se produzem reciprocamen te, qual a política adequada ao mundo dos saberes e ofícios? Ao que tudo ind ica, uma política do negativo: tratar-se-ia de eliminar os antinaturais obstáculos ao desenvolvimento do indivíduo. A garantia dos direitos individuais ao "progresso " está indissoluvelmente ligada à consecução de objetivos comuns da humanidade enq uanto espécie.

Contudo, os sécu los XIX e XX assistiram à crise de duas utopias. Em primeiro lugar, da utopia de um mundo sócio-econômico auto- reg u lado em função (em di reção) do ótimo - as teorias de plani ficação conservadoras ou libertárias, a exigir estabelecimentos de valores ou metas previamente deli beradas. Em segu ndo lugar, crise da utopia de um mundo natural auto-regulado, absolutamente determinado e, portanto, potencialmente presente a um Divino Calculador - em suma, a crise do universo laplaceano.

Deixemos de lado esta última, que pelo momento não nos interessa diretamente. A crise do pensamento li beral deixará à deriva grande parte das teorias polí ticas. Pode-se dizer que a resistência à revi são alcança seu lim ite e su peração após as crises dos ano.s 20, com a emergência da revolução keynes iana. A in tervenção do Estado não significará el iminação do mercado, "revogação " da lei do valor, da propriedade privada e do lucro. Na verdade, ela apenas atesta e con serva sua existência.

Pois en tão restará pensar essa in tervenção no plano educacional - o plano dos saberes e ofícios. Não se trata mais de apostar na educação como direito social do indivíduo, que, uma vez garan tido, propiciará, pelo mu ndo da competição, o progresso de todos. Agora, trata-se de pensar a educação como dever e in vestimento do Estado, uma intervenção que pode eventualmente contradizer impu lsos individuais.

A utopia smithiana de harmonização de saberes e fazeres através da mão-invi sível é substituída então por um modelo que se assemelha a outra utopia, aquela sugerida por Bacon, na Nova A t/ântida (2): não é a sociedade, pela própria força natural dos interesses, que assegura a fel icidade e o bem-estar coletivo. O Estado e sUa cu idadosa organização das ciências e técnicas modelam a sociedade e propiciam a fel icidade planejada.

Mas ainda nesta intervenção - como na revolução keynesiana - os pressupostos liberais e individuali stas não são questionados, mas emendados.

 

- IV -

É interessante notar como Marx, nos Grundrisse, exam ina a imagem adquirida pelo trabalhador no  capitalismo:  o  trabalho  como  capital  do  operário,  a  famí.\a  operária como loj a e fábrica de força de trabalho. Tive ocasião de discutir essa questão em outras oportunidades (4 e 5). Nos mesmos textos, procurei expôr como a caracterização de Francisco de Oliveira - a família operária como "agente que acumula ativos " - é uma descrição que não se distancia daquela operada pela chamada "contabilidade social " (não-marxista).

O mais curioso, no entanto, seria analisar como esses elementos consti tuem pensamento (e prática) nas chamadas "teorias do capital humano". Essa passagem - sugerida por um trabalho de J. Arapiraca (I) sobre a USAID e a educação brasileira - seria ainda mais chocante se lembrarmos de certo marxismo que, em 1935, chamava o homem "de o capital mais precioso ".

Arapiraca sintetiza os elementos da teoria do capital humano de uma forma que nos convém ler, ainda que rapidamente e como ponto de partida. O autor afirma que, para essa concepção, o "capital humano é algo de deli beradamente produzido pelos investimentos que se faz no indivíduo a partir da ed ucação formal e do treinamento; que a produtiv idade do indivíduo resulta na maior ou menor quantidade de capital humano que este venha a possuir" li, p. 41). Ela sustenta ainda os segu intes argumentos:

1.  . O) OS fatores de produção são remunerados conforme sua produtividade marginal - e o fator trabalho é um deles (conforme o suposto neoclássico);

2.  O) a educação aumenta a produti vidade do fator trabalho;

3.  O) a educação aumenta a renda do fator trabalho;

4.   O) as pessoas são bens como potencialidades produtivas e, portanto, as habilidades humanas são bens de produção produzidos, isto é, capital;

5.  O) a educação é investimento básico no capital humano.

 

Este rápido alinhamento da história de uma perspectiva - e de suas adequações aos tempos mutantes - parece- me um passo inicial necessário para imaginar e pensar o que seria uma concepção de educação que não partisse dos pressupostos gerados por uma ideologia datada e referida à classe que criou os nossos tempos e o nosso modo de ver e viver o mundo. Estou seguro de que apenas sugiro temas e levanto problemas, mas acred ito que vê-los como problemas é uma necessidade inarredável. Isso posto, como diria Leibniz, "calculemos ".

 

MORAES, R.C.C. de - Human rights, private property and education. Trans/ Form/ Ação, São Pau- 10, 8:25-28, 1985.

ABSTRACT: The presenl lexl conslilules a summary of a lalk f!.iven by lhe aulhor ai lhe 111 Co nferência Brasileira de Educação (Nilerói, Oclober 1 984). fi is here claimed Ihal lhere is a need lO discuss lhe rOOls of lhe idea of righls of lhe individual and of ils link, in Locke '5 founding Ihoughl, wilh properly and, moreo ver,  wilh  lhe freedom and aulonomy of lhe human person. Furlhermore, a discussion is made of lhe liberal-ralionalisl assumplion of lhe oplimum allocalion of social resources Ihrough lhe clash and combinalion of privale inleresls. A  Iwofold crisis of our limes: crisis of lhe view of a self-regulaled L aplaceaQ univ(!rse (and ils science: lhe mechanical or subslancial delerminism) and lhe crisis of lhe belief in lhe oplimum allocalion via markel. The idea of lhe inlervenlion of lhe Slale in lhe economy does nOI mean a deslruclion of privale properly nor of lhe value la w and.of profil. fi only allesls lo ils survival and seeks lo ensure ils implemenlalion. Can 'I lhe idea of educalion be analogously Ihoughl of as a social righl guaranleed and allocaled by lhe Slale; as an in veslmenl in "human capila/ " ? Whal is lhe meaning of lhe expression "educalional policy "?

 

KEYWORDS: Ideology; educalion; privale properly; organizalion of kno wledf!.e; human capilal; divison of labour.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

I.  ARAPI RACA,  J.  O.  A  USA ID e a educação brasileira. S. Paulo, Cortez Ed., 1983.

2. BACON, F. - Nova A llânlica. S. Paulo, Abril, 1 979.

3. LOCKE, J. - Segundo Iralado sobre o governo.

S. Paulo, Abril, 1 978.

4.   MORAES, R.C.C. de - Marx, ° cínico? - Trans/Form IA ção, 6: 37 -43, 1 983.

5. MORAES, R.C.C. de - A Fênix Tropical - nota crítica sobre ° dualismo e a teoria da depeno dência. Araraquara, ILCSE-U NESP, 1 984. (mimeo).

6. SMITH, A. - A Riqueza das Nações. S. Paulo, Abril, 1983. Livro I, cap o 4.



[1] Departamento de Ciências Sociais Aplicadas a Educação - Faculdade de Educa,ão - UNICAMP - 13100 Campinas - S P.