RACIONALIDADE E CONTROLE NOS PROCESSOS SOCIAIS NOTAS PARA UM PLANO DE TRABALHO

 

Reginaldo Carmello Corrêa de MORAES[1]

 

 

RESUMO: O autor expõe etapas que julga // ecessárias para li exall/e de //l Od"n/(/s teorias a respeito das transfonna("ões econômicas, sociais e culfl;rais da história hrasileira. Por outro lado, esse II/o vi///e//to visaria in vestigar os fu ndall/enlOs epistell/o/r;gicos de tais ' 'explica("(}es do Brasil ' '. U leX{() corresponde. insiste-se. a um plano de trahalho.

 

UNI TER MOS: Racionalidade histórica; processo social; fl l//dall/e// {()s da explical'ÜO cie// t ífica; filosofia da história; filosofia política; pensall/cnto políli,.o hrasileiro; planejall/el/ lo.

 

 

A moderna reflexão sobre o sentido ou a racionalidade dos processos históricos foi freq üentemente habi tada pela im plícita ou declarada in tenc,:ão de determinar os canais e limites da in terven c,:ão da "von tade" e da consciência sobre o mundo, este último tomado como objeto resistente e auto-legislado . O binômio const ituído pela natureza (e suas leis) e pelo espírito dotado de von tade traduz-se muitas vezes pela idéia de que, do confronto entre o mundo da med ida e das regras e o mundo da pertur bac,:ão e da mudan c,:a, nasce o universo aberto, elástico, da pertu rba c,:ão "co-medida ", isto é, da ac,:ão política da "consciência histórica" ,

Não é preciso dizer o quanto esta polaridade valoriza o papel do "legislad or" , que por vezes nos é apresentado, pelo pensamento ocidental , como o educador, que deriva da natu reza das coisas a const itu i c,:ão do estado, como o condolliero que, para além do bem e do mal aparentes, su pera a ética do imediato para cultu ar o objetivo supremo de garantir a permanência da hum an idade organizada, Tal valorizac,:ão aparece não apenas na reflexão platônica, ou na "técnica" maqu iavélica do poder, mas tam bém num pensamento como o hegel iano, onde a " fil osofia chega necessariamen te tarde se pretende dizer o que o mundo deve ser " (6, p. 4 1 ) . É que, mesmo neste caso , o " grande homem " e os "funci onários do uni versal " aparecem como guardiães e caminho da realizac,:ão de regras e destinos (6, p. 304 e 3 1 8 ).

Ao que tudo indica, é inevi tável que um recorte do mundo vivido, classi ficando aq uilo que se deve chamar de real e "digno de considerac,:ão ", tenha como contrapart ida a defin i c,:ão de um semi-espac,:o habitado pela fantasia, pelo irreal, pelo desimportante. Conseqüência ética dessa divisão ontológica é o aparecimento da condenac,:ão das heresias, dos desviaci onismos e das utopias, como elementos que in stabil izam e põem em risco o universo possível e real . Desse modo, a nova ciência do século X V deveria declarar a irreal idade das categorias aristotélico-tomistas ao mesmo tempo que afirma a realidade dos corpos abstratos que informam as "experiências pensadas" de Galileu, como repetidamente apontaram os estudos de Alexandre Koyré (8, 9). Por outro lado, na nascente ciência polí tica dos séculos XVII-XVIII, confere-se ao fictício (ou ao menos hipotético) contrato entre os indivíduos a realidade de fundamento do Estado, ao mesmo tempo que se classi fica no rol das fantasias as construções utópicas . Abstrações aceitáveis opõem-se às in aceitávei s. Estados acei táveis opõem-se a sonhos perigosos. Até que ponto Rousseau não se torna maldito quando ultrapassa a fronteira do raciocínio hipotético dedutivo do contrato e chega ao lim ite (não cientí fico? ) da li teratura fantástica sobre o "novo mundo"?

A n eces sidade de estudar com maior profundidade tais questões nos foi sugerida, basicamente, a partir dos problemas que enfrentamos na nossa tese de mestrado (6 ), quando nos deparamos com a filosofia da história embutida em autores como os desenvolvimentistas do IS EB e Celso Furtado. Em síntese, o papel atribuído, nesse ideário, aos intelectuais como constru tores da "nova razão ", a razão compatível com a "modernidade".

 

Hipóteses a verificar e questões a responder

 

Parece-nos fundamental analisar mais detalhadamente o proj eto de ciência que informa essa postura . E temos fortes motivos para ac red itar que esse exame passa pela constituição histórica da "moderna ciência ", em particular pela natureza do pensamento Galileu-newtoniano e pela sua trans formação em guia e paradigma para as chamadas ciências humanas em constituição. Paradigma não apenas em termos de consistência, coerência e completude, mas sobretudo de eficiência, de vitória sobre a insegurança. A sentença de Mendeleiev - "quando uma propriedade pode ser medida ela perde seu caráter de i ncerteza e se torna um signo quantitativo" 04 , p. 1 95) - revela o sentido profundo da exp ectativa matemática, como notou Heidegger: não se trata apenas de operações sobre números, mas a ansiedade de "contar, antecipadamente, com uma equação fundamental para toda ordem possível " (5 , p. 65) .

Desse modo, caberia inicialmente investigar os pressupostos desse pensamento, delineando em Galileu, Newton, Descartes, trabalho a que se dedicaram os estudos de Koyré, por exemplo .

Em seguida, pensar como se vislumbra a generalização da análise, tal como apare-

ce nos sonhos de um D' Allembert (3) (a ciência como teoria ded utiva, constituída de termos primitivos, definições, axiomas, teoremas, constituindo, no limite, o universo presente a uma subj etividade ideal como a do Divino Calculador de Laplace 00, p. 3) de um Lavoisier O , ou Condillac (o método analítico que constitui as - e se nos constitui nas - línguas como guia para o encontro da "língua dos cálculos" e das evidências sem erro possível), O) , um Condorcet (e seu projeto de matemática social) (2) . E porque afinal a idéia do tegumento universal de Gilbert (o magnetismo) ou de Newton (a sua fórmula da gravitação) e a descoberta da " fórmula geral " na álgebra de Viéte não entusiasmariam os proponentes do algoritmo universal para toda ciência possível ou do "alfabeto do pensamento", o sonho setecentista de Leibniz O 2) que desperta no Boole de 1 847?

O passo seguinte (ou quase simultâneo) seria pensar a transfigu ração dessa análise nas nascentes teorias da sociedade (do contratualismo aos fundadores da economia política). Por que afinal Hobbes pretende uma filosofia dos "corpos sociais" análoga à " filosofia natural " (7, Cap o IXn E como L ocke se inspira no "i ncomparável Newton" 03 , p. 1 3 7)? Ou Montesquieu e tantos outros vislumbram o interesse e o comércio como elementos que, ordenando e regrando o mundo hu mano, o tornam previsí vel e permitem deste modo uma ciência da sociedade e da política (1 5, livros V, XX, XX I)? Nada poderia contudo ser mais explícito que essa expectativa transformada em doutrina, nos trabalhos de Quesnay- Mirabeau , Mercier de la Riviere, Smith, que se poderiam citar fartamente .

Por fim, mas fundament almente, nos in teressa exam inar o estado dessas questões nos autores e correntes que pensaram o papel da "intelligen tsia" nos chamados "países em desenvolvimento". Entre estes , enfaticamente, Celso Furtado.

Furtado parece- nos caminhar num rumo bastante sintomático . Na economia, alinha-se com a revisão dos pensadores clássicos, questionando a su ficiência do mercado como alocador ótimo dos recursos . Na política (e na "pedagogia de massas" que esta envolve) , procura, através de revisão an áloga à anterior, especificar a natureza e as fontes de legitimidade da intervenção dos in telectuais, supostamente ac ima das classes e assimilando o que poderíamos chamar de "o ponto de vista da totalidade" : "único elemento dentro de uma sociedade que não pode mas deve sobrepor-se aos condicionamentos sociais mais imed iatos do comportamento individ ual" - como afirma na sua Dialética do Desenvolvimento (4, p. 9). Isto sign ificaria, como notamos em nossa tese de mestrado, afirmar a invisibilidade do absoluto como fundamento do visível poder dos sujeitos empíricos envolvidos. Em economia, tais concepções segu ramente deviam muito à escola cep alina, à idéia das econom ias latino-americanas como "economias reflexas ", ou, nas p alavras de Furtado, como "proj eção " do capit alismo ocidental em expansão . Essa "versão tercei ro-m undo" da revolução keynesiana tinha como im portante corolário político a necess idade de formar as el ites dirigentes dos estados subdesenvolvidos. Na sociologia acadêm ica, devem muito às chamadas teorias da modernização, que concebiam as sociedades latino-americanas como ' 'desintegradas" , em oposição às "integradas" sociedades eu ropéias . Mas a proxim idade maior está com o pensamento autoritário brasileiro, que, desde Varnhagen , A. Torres e Oliveira Viana, acentuava o papel demiúrgico do Estado, diante da nação , em algo que se aparenta a uma leitura "bismarckiana" de Hegel: a opaca sociedade civil, conformada pelo Estado, lugar da história, do movimento e da von tade . Em particular, é de se destacar, em Oliveira Viana, (1 8 ), a caracterização da nação brasileira como um ser em idade infantil, necessitando de um tutor : o estado autoritário. A formação socioeconômica brasileira - alicerçada no latifúndio, geratriz da dispersão social, da não existência de laços de solidariedade de classe - dependeria então, para sua maturidade, dum poderoso agente de vontade, o Estado.

No plano das re flexões sobre a educação , impõe-se a an álise dessa tradição em confronto com as particularidades do liberalismo brasileiro na pedagogia. Em particular, com o movimento da chamada escola-nova (de Fernando Azevedo, Anísio Teixeira (1 7 ) e outros) e sua preocupação em modernizar e democratizar a sociedade através de um instru mento decisivo: uma escola que se atualiza frente à ciência e à técnica, aumenta a produtividade e, questão fundamental, no limite m olda a estrati ficação soci al.

Evidentemente, trata-se de um pl ano de investigação ambicioso e que demandaria bom tempo. Contudo, parece- nos necessário iniciá-lo, por ser ele inevi tável, se se quiser pensar essa questão dos int elec tuais e do seu papel na conform ação da c ultura (em sentido am plo), sem cair no imediatismo apressado que, pensando apontar para o "progresso" , arrisca reconstruir, sem o saber, os tropeços do "atraso" .

 

 

MORAES, R.C.C. de - RaLionality and cont rol in social processes - notes on a work plan .

Trans/ Form/ Acão, São Paulo, 7:21 -24, 1 9 84.

 

A BS TRA CT: The aulhor exposes some Slal!,es judl!,ed necessarv for lhe exa/lli llalion of lhe /II oderll Iheories aboul lhe eeonomic, social and cullural chan?,es of braúlian hislory. On lhe Olha halld, Ih i., movemenl would have in view la search lhe episle/llolol!,ical l!,rounds of such "Brazil 's explanalions ". This lexl, il mUSI be remembered, presenls ilself on ly as a work pIem.

 

KE Y- WORDS: Hislorieal reasonableness; social process; I!,roun ds of scielll ific explallalion; !Jhilosophy of h islory; polilic philosophy; brazilian polilie Ihoul'hl; plannin?

 

 

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[1] Departamento de Antropologia, Filosofia e Politica. Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação, UNESP, Araraquara.