A PRODUÇÃO RACIONAL EM REGIME HISTÓRICO DE FÉCOM VISTAS À CIÊNCIA[1]
Ub aido M. PUPPI"[2]
RESUMO: Em razão das diferenças das respectivas pertinências, mio há diálo!!.o direto possível entre ciência e fé teologal. Nüo há nada de estranho nisso. pois o lI1eSIl1O ocorre entre lI/na ciência e outru. entre ciência e filosofia e até entre ciência e cultura !!.eral. Cada ciência é Ull1a estrutura fechar/a. Fala apenas sua língua, ignorando as demais. Mas isso não quer dizer que não seja possivel o diálo!!.o elltr" diversas espécies ou diversos gêneros de discurso. E a lI1 ediaçüo de intérpretes qu" o viaiJiliza. e a filosofia é o seu agente privilegiado. Por sua natureza. e desde que assistida por intérpretes que pode/li estar acumulados no próprio filósofo. a filosofia é apta a conduzir UIl1 diálo!!.o universal. Por aquilo que ela transcende. a filosofia mantém fronteiras com as ciências e COIl1 a cultura !!.eral; por aquilo que a transcende, ela mantém fronteiras com a teologia. Esta última marca. ela a deve ao estado em que se encontra. que é de um regime h istórico de revelaçüo e de fé.
UNITER MOS: Ciência; fé, diálogo; discurso; intérprete; filosofia.
INTRODU ÇÃO
O tema trata da possibil idade de diálogo entre o cientista e o teólogo, entre o homem de ciência e homem de fé. Esclareço previamente que quando me refiro ao cientista ou homem de ciência e ao teólogo ou homem de fé, me estou reportando, por metonímia, ás com unidades das quais são a mais legítima expressão. Não me refiro ás suas expressões ilegítimas ou por demais deficientes.
Se mesmo numa com unidade cientí fica, altamente especializada, se encontram membros que a representam mal, por um nível inferior de conhecimento, por sua contaminação ideológica, por su as prevenções in fundadas, pela falta de discernimento cultural e polí tico que consente em sua manipu lação pelo poder, o que não se poderá dizer da outra comunidade, a comunidade da fé?
Esta é antes de tudo uma comunidade de vida en tre os homens, e de todos e cada um com o Deus que a eles se revela como Amor. Mas também como Verdade. Nessa comunidade, o amor deve ser vivido na verdade e a verdade deve ser recon hecida e amada, resultando daí indissolúvel sol idariedade entre amor e verdade, entre vida e doutrina. Esta tem seus especialistas, os teólogos, que consti tuem uma comun idade na com unidade, fato determi nante de duplo parâmetro, um comum, a prática da fé, e outro particular, o saber teológico. A comunidade dos teólogos existe dentro da comunidade da fé, com a função especí fica da elaboração do discurso cristão e do seu diálogo com outros discursos. Com função especí fica na comunid ade, o teólogo precisa da fé para ser teólogo, ao passo que o h omem de fé não precisa ser espec ializado em teologia para a prática de sua fé. Como não poderia deixar de ser, aqui tam bém, e aqui de modo particular, encont ramos membros que represe ntam mal a com un idade a que pertencem, sobretudo se. ju lgando at ravés de espel hos deform antes, reduzimos a comun idade á instituição c sua representati vidade à autoridade hierárq uica. Por tratar-se de comu ni dade de vida e de doutrina, o critério de legí ti ma representativ idade de seus membros pode se r tão convincente como são decepcionantes as falsi ficações que o convertem num "ópio do povo ".
A discu ssão do tema assume pois, como prel iminar, a representati vidade dos in terlocut ores e, como será en fatizado adiante, a necessidade de mediação de in térpretes famil iarizados com os discursos cien tífico e teológico. Sem a med iação de in térpretes - que pode estar ac um ulada no próprio interlocutor -- não seriam ultrapassadas as barreiras de um diálogo de surdos. De fat o, sem uma visão teol ógica, o homem de ciência ignorará o aporte da fé sobre a vida e sobre a atividade racional, e portanto sobre a própria ciência. Estará ele, antes, exposto a declarar a fé como obsoleta e su pér flu a. principal mente se der ouvidos ao cienti ficismo, ideologia da ciência. que promete respostas para tudo ou, pelo menos, as úni cas su postas dignas de crédito. De outro lado, sem formação ou pelo menos razoável in formação cientí fica, o homem de fé desconhecerá a contribuição da ciência para o progresso racional c para a compreensão racional do homem e do mundo. Em decorrência disso, não está li vre de opor-se à ciência e de mantê-Ia sob severa vigilância, uma vez que a seu nível, o nível teologal, a fé possui resposta para tudo.
É preciso, pois, a intervenção do in térprete, de alguém que se situe "na fronteira ", conhecendo os dois lados dela. Devo, a propósito, prestar um esclarecimento: qu em lhes fala não é teólogo, opera profissionalmente nos domínios da razão natural, mas reconhece que um estudo su ficiente de teologia é indi spensável à prática da fé e ao di álogo desta com a razão.
Quanto a conhecer su ficientemente a ciência, é afirmação ou questão que não faz sen tido. A ciência não é singular; no singular ela não existe senão adj etivada. O ideal do conhecimento científico se distribui por uma multipli cidade de especializações heterogêneas. O conhecimento de todas é tare fa sobre-humana. Diante das exigências atuais da prod ução cien tí fica e dos limites de capac idade e duração de uma vida de homem, a sim ples menção do antigo ideal enciclopedista soa de modo anacrônico. Substi tuí-lo pelo assim chamado polivalente, - panvalen te, no caso,.- equivale a trocar o anacronismo pela ingenuidade, ou pela astúcia pol ít ico-burocrática no intuito não declarado de esvaziar a função crítica do verdadeiro saber.
O expediente de isolar entre as ciências apenas uma delas para a efetuação do confronto com a teologi a, torna o debate ir realizável. Uma ciência é uma est rutura fec hada, uma clausura. Em razão de seu método e de:;(;:.1 cr iti.'rio de conhecimento, não questiona a razão que a pensa nem toma conhecimento de questionamentos extramuros. Só sabe servir-se da razão para o fim particular da produção do seu discurso. Nada sabe das outras ciências, da filosofia, da poesia, da teologia: conceitos poéticos ou filosóficos, por exemplo, não são elementos de sua estrutura nem compatíveis com ela. E prec iso abrir ja nelas para enxergar a rua, sair da caverna para ver o mundo. O cientista pode, - e deve, - fazê-lo; a ciência, não. Em termos leibn izianos, ela é uma mônada sem porta nem janelas. A matemática, para ser ela mesm a, nada sabe da célula; a biologia, da desindexação. Com maior razão, é impraticável o diálogo entre uma ciência e a teol ogia. E se, por impossível, fosse praticado, haveria tantos diálogos heterogêneos quantas forem as ciências. O resultado seria uma verdadeira con fusão das lí nguas.
Teria eu vindo aqui só para dizer que o que existe é uma babei epistemológica e que, nas frontei ras da teologia e das ciências, ni nguém se en tende? Não por acaso pronunciei a palavra que estava faltando, epistemologia, que signi fica literalmente discurso da ciência. Porque a preposição é aí empregada no pass ivo e não no ativo, para ev itar ambiguidade é preferível traduzir epistemologia por discurso sobre a ciência. Há vários modos de entendê- lo, segundo quem faz o discurso. O agente do discurso, o suj eito ao qual o discurso se atribui, é aqui decis ivo. Num primeiro modo, epistemologia designa o discurso sobre a ciência feita por ela mesma: depois de suficientemente elaborada, ela estabelece um retrospecto sobre si e repassa seus próprios passos. É uma teoria da ciência: teoria matemática fei ta por matemáticos, teoria eco nômica feita por econom istas. Num segundo modo, epistemologia é tomada como teoria das ciências, com complemento preposicional no pl ural, e nesse caso a ex pressão não é unívoca; sua acepção está suspensa à identi ficação do agente do discurso teórico. Se o agente for concebido de modo indeterm inado, a teoria não terá valor algum, por falta de critério de referência para a avaliação das ciências. Não se fica sabendo quem fala e em nome de que fala. Se se pensa que o sujeito produtor da teo ria se situa a nível das ciências, cla não comportará um discernimento crítico abrangente; tampouco será objeto de consenso entre os teóricos, pois, na ordem da exatidão, a maioria das ciências permanecc distante do paradigma teorem ático da matemática, e, na ordem da especificidade, as ciências hu manas perdem em propriedade o que venham a ganhar em exatidão. Finalmente, tomando-se a filosofia como autora do discurso teórico sobre as ciências, este é colocado no caminho certo.
Teoria das ciências sinoni mi za en tão com fil osofia das ciências, à con di.,:ão bcm entendido de não envolver as duas expressões em um círculo vicioso à maneira do positivismo, que red uz a filosofia, que não possuiria conteúdo próprio, a mera teoria das ciências. Mas, neste caso, ou a teoria não dispõe de nenhum critério de referência para a avaliação das ciências como na primeira hi pótese do segu ndo modo, ou, como na segunda hipótese, para a qual a ciência seria produtora da teoria, esta não é critica nem goza de consenso. Como se vê, a hi pótese positivista nada acrescen ta às duas outras anteriormente consideradas, ambas in sustentávei s.
A teoria das ciências só estará fu ndada se for uma filosofia das ciências. Mas a filosofia só será também uma filosofia das ciências se, na abrangência de seu conteúdo, ela for simultaneamente uma teoria do ser, uma teoria do conhecimento e uma lógica fundamental. Com esses pressupostos, o discurso teórico sobre as ciências, para ser plenamente fundado, crítico e abrangente, deve ser conduzido e produzido pela fil osofia. Para isso, a filosofia deve complementarmente saber das ciências. O importante a notar a esta altura da exposição, é que saber das ciências está incluído em seu projcto: tematizadora do ser em geral e da natureza do conhecim ento, está apta a identi ficar a realidade particular com a qual lida cada ciência; elaboradora do organon uni versal, da lógica com um, é capaz de recon hecer os métodos e processos tí picos de cada ciência; e, last and lo lhe last, se põe à escuta e na escola dos cient istas. Mantem-se constantemente informada por eles para instruir-se e para não di sparatar sobre as ciências.
Por conseguinte, ao contrário do que propõe o reducionismo positivista, a fi losofia possui conteúdo e espaço próprios; por isso mesmo pode ser também um saber de fronteiras, tomar con hecimento de con hecimentos outros que o seu, nestes incluindo as ciências. Mas a filosofia só toma efet ivamente conhecimento das ciências, entrando em diálogo com elas. E por isso nada é mais urgente do que descartar ilu?ões e destruir conceitos con fusos, por mais generosos ou menos maldosos que sej am em suas intenções.
Com efeito não é possível um diálogo direto das ciências en tre si, ou delas com a filosofia, com a teologia (como adem ais com a poesia e com as lí nguas comuns). Cada uma fala só a própria língua, nenhuma fala a lí ngua da outra. Qualq uer tentativa de diálogo se traduz em hidridismo, o qual, no mínimo, trai uma e outra, se não produzi r, acolá, a inquisição da Igrej a contra Galileu e, aqui-e-agora, a neo- inquisição do materialismo histórico contra a fé. Se esta neo- inquisição se erige em nome da ciência, apoia-se num hibridismo ininteligível; se em nome da polí tica do partido, apoia-se numa arbitrariedade fascista.
A con statação da inviabil idade do diálogo di reto conduz á possibilidade de um diálogo mediado. A possibilidade contempla duas hipóteses: diálogo por meio da cultura geral e diálogo por meio de in térpretes. A cul tura geral é o meio por excelência da comunicação universal. Nela, todos os conhecimentos especial izados se encontram diluídos, e por isso mesmo aí os entendimentos, como também os desentendimentos, são comuns e fáceis, mas em contrapartida sempre superficiais. Não é a esse nível pouco confiável que a questão se põe. O diálogo mediado por in térprete, pelo contrário, respeita a especialização das lí nguas e preserva as verdades de cada uma. Intérprete é tomado aqui menos no sentido hermenêutico do que no sentido lingü ístico de tradutor: aquele que conhece as lí nguas confrontadas, tanto para entender como para reproduzir uma lí ngua na outra.
Suponhamos como in térprete um filósofo com formação suficiente em outra área, digamos uma ciência. Como filósofo já poderia ter situado grosso modo a ciência e seu obj eto no conj unto do saber e no universo do ser; mas com formação apropriada nessa ciência, está apto a penetrar na especificidade de seus conheci mentos. Esse lastro de conhecimentos lhe perm ite: aprofundar os con trastes e del imitar as fronteiras da ciência e da filosofia; respeitar a irredutibil idade dos respectivos modos de conhecer; traduzir e in terpretar as verdades de um na lí ngua do outro. Isso é o essencial para o encam in hamento do nosso tema. A título de complemento convém acrescen tar que, sob as condições postas, a filosofia é com petente para reconhecer um conj unto de condições básicas, epistêmicas e ontológicas, que a ciência pressupõe, mas ignora, mais ainda, para identificar questões com uns sob problemática e tratamento diferenciados na ciência e na filoso fia.
Por esse exemplo isolado é posto em relevo uma pecul iaridade da filosofia: por sua vocação de universalidade e para o eficaz desem penho dessa vocação, ela não prescinde de in térpretes para c omunic ar-se com qualq uer outra esfera do saber. Por meio desses agentes de lig ação, ela estabelece, em seu registro próprio, uma síntese e uma crítica do saber especial izado e as introduz, ainda que de modo diluído, no caldo comum da cultura geral, nela constituindo o que se pode chamar com propriedade de massa crítica. É, pois, por sua própria natureza, serv ida por batedores que atravessam todas as fronteiras do saber, que a filosofia se realiza també m como um diálogo universal. Por aquilo que ela transcende, a filosofia mantém fronteiras com as ciências (e com a cultura geral e em geral); p or aquilo que a transcede, ela man tém fronteiras com a teologia.
A filosofia linda cum as ciências porque uma e outras operam no espaço comum da razão natural, não obstante sob enfoques e alc a'nces diversos. Sob seu enfoq ue típico, conhece ela a razão que as ciências exercem, mas desconhecem. A ciência só conhece as razões de seus resultados bem sucedidos, por exemplo a causa da lepra ou da fissão nuclear, não conhece a razão de suas razões. Fora e além de suas razões endógenas, a ciência não é crítica, nem aquem delas, autocrítica., Só a razão filosófica pode dar razão às razões da ciência. Por essas metarrazões, epistemológica e ética, e por todas as demais razões primeiras e últimas em cada es fera do saber, a filosofia tem o privilégio de ser a interlocutora autorizada da razão.
Trilhando caminhos escol hidos, eis-nos chegados aonde queríamos: às fronteiras da razão com a fé. Nesse debate, a filosofia, - e vimos porquê, - será porta-voz da razão, falando em nome próprio e no da ciência. Mas, a filosofia só fala em nome das ciências enquanto conh ece a razão das razões da ciência. Afetando só e propriamente às razões da ciência, um problema si ngular deve ser levado em conta, posto que foi e é levantado: haveria i ncompatibilidade entre as asserções e os critérios da ciência com os da fé? De saída é pr eciso insistir que tais i ncompatibil idades não são biunívocas, bilaterais. Estão exclusivamente do lado dos cientistas, e não repousam em nenhuma descoberta cientí fica especi fica. É ponto p ací fico, hoje, que as descobertas e critérios cientí ficos, sem exceção, podem ser admitidos ou integrados nos sistemas teológicos e absorvidos pela prática da fé, posto que jamais serão capazes de responder às questões que a revelação coloca. Desse modo são, antes, mais aptos a ampliar e a atualizar o hino às criaturas de um Davi ou de um Francisco de Assis. O agravo unilateral do cientista será de natureza indiossincrásica ou ideológica, derivada esta do estado de crise da episteme da cultura ambiente. Nossa época vive, com efeito, uma crise epistemo-teoIógica, que consiste no contraste entre a razão positivista e a razão teológica. A razão positivista é marcada pela resistência e pela desconfiança, no mínimo agnósticas, diante de tudo o que não diga respeito ao dado empír ico e àquilo que ela mesma produziu. A razão teológica, pelo contrário, se caracteriza pela adesão incondicional à Verdade personalizada que, em pessoa, se dá e se pro fere na carne e no discurso humanos, pelos quais revela seu verdadeiro ser. De um lado, a razão é reduzida às dimensões do empírico, de outro lado, mesmo as regiões suspeitas d a-razão são reabilitadas e alargadas. Aqui, o aprisionamento nos limites do empírico, ali a libertação a partir do empírico e da palavra.
Posta nestes termos, a i ncompatibilidade se manifesta como expressão de um conflito de ordem exclusivamente pessoal ou cultural, que só comporta uma solução igualmente pessoal, eventualmente acompanhada, ou preced ida, da instau ração de uma crí tica da cultura vigente. Exemplar como desveladora dos dois lados da questão é a narração pelo renomado cientista Newton Freire M aia de sua adesão à fé: "Eu agora acred ito em tudo. Passou a época em que eu não acreditava em nada Nada tive de mudar em relação... à v ocação para a pesquisa cientí fica e aos paradigmas cientí ficos ". É digno de nota que as expressões "acredito em tudo" e "não acreditava em nada" definem de modo feliz, embora elíptico, o conflito a que me referi, e sua ún ica saída possível. Explicitados em seus elementos sintáticos, as frases completas seriam: "não acreditava em nada q ue transcendesse minha r azão agnóstica", " agora acredito em tudo o que se contem sob o dado revelado".
Uma vez isolada e analisada essa dificuldade unilateral e não dialógica, creio estar fundado a afirmar que toda a problemática efetivamente suscitada a partir das ciências, em suas relações de d iálogo com a teologia, se concentra em torno da razão filosófica. É por meio desta que as ciências se in screvem, cada uma em seu lugar próprio, no horizonte da razão natural. M as a filosofia, expressão por excelência do alcance máximo da razão natural, se apropria de possibilidades e de visadas efetivas para além d aquelas que idealmente possui. E isso sem perda de sua autonomia, nem comprometimento de seu modo especí fico de proceder. O que quer isto dizer? Pode a filosofia ser melhor e mais completa do que aquilo que ela é ou deveria em principio ser? Ser outra que ela mesma, sem deixar de ser o que é? Por analogia com conhecida defin ição autoritária da democracia, devemos aceitar que haja uma filoso fia rel ativa e uma filosofia tout court, ou que aquela é a que existe de fato e esta a sua projeção utópica, que não existirá jamais?
A questão é mais com plexa e importa inserí-Ia em con testo adeq uado. Tanto mais que se constitui no centro de referência para a elucidação das relações entre razão e fé. Trata-se, com efeito, de bem discernir entre o que seria, de- direito, a natureza da filosofia e o estado no qual, de-fato, ela se concretiza e existe; dito de outro modo, entre a ordem da especi ficação e a ordem do exercício*. Considerada academ icamente em sua pura natureza ou essência, a filosofia é especi ficada por um objeto sobre o qual ela deve evidentemente possuir a máxima competência com os sós recu rsos e critérios da razão natural. Mas a razão assim considerada é ainda um mero conceito abstrato. Ela só existe exercendo-se, e seu exerc ício se dá em situação, em conj untura, enfim num determi nado estado, estado sendo entendido como um regime histórico, sej a ele pré- cristão, cristão ou não-cristão. Existem estados menos decisivos, mas nem por isso negligenciávei s, q ue explicam a pecul iaridade das filosofias grega, alemã, francesa, hindu, latinoamericana. A razão filosófica não é portanto uma razão pura; ela não é abstrata, ela está concreta. O estado da razão filosófica é parte integrante do modo de produção da filosofia.
Em razão da dimensão livre e universal de sua natureza, a filosofia é levada a se interessar por todas as coisas e a se perguntar sobre o sentido radical do mundo, do ser, do homem, e sobre suas situações- limites. Nem todas essas perguntas transcendentais chegaram a ser explicitamente form uladas. O fato de terem sido omi tidas ou formu ladas, o modo como foram respond idas ou eludidas, são reveladoras do estado da filosofia. Dois exemplos principais e inequ ívocos podem ser evocados: a filosofia pagã da Antiga Grécia e a filosofia cristã. A filosofia grega, apesar de toda a sua grandeza, por exem plo em Platão e Aristóteles, é portadora de signi ficativas lacunas e embaraços dessas "sempre buscadas questões ", como as define Aristóteles. Basta com parar a "A Metafí sica" de Aristóteles com o seu "Comentário" por Tomás de Aquino, texto este da mais rigorosa filosofia.
Em contexto hi stórico cristão, a filosofia recebe da fé e da revelação socorros sem os quais, segundo os teólogos, ela é incapaz de realizar plenamente as promessas de sua natu reza. Ela recebe aportes objetivos e subjetivos. Da revelação, com efeito, a filosofia recebe, antes de tudo, verdades que, nem por in tegrarem o corpus do discurso revelado, pertencem menos à razão natural, e portanto à filosofia mesm a. Também as verdades de conteúdo estritamente teológico beneficiam sobremodo a reflexão filosófica, pelas repercussões que sobre ela incidem para a com preensão da realidade. A fé, por sua vez, existindo em continu idade com os habitus filosóficos dá-lhes uma força subjetiva que os retifica e orienta em seu próprio nível e para seu objeto especí fico.
Convém, a esta altura, alertar que as conseqüências do estado cristão sobre a natureza da filosofia extrapolam os limites de uma opção explícita. Os teólogos insistem sobre a ação da fé implícita. Esta, além do que eles chamam de graças atuais, somadas a certas inspirações naturais, podem animar filósofos não-cristãos, em medida que não nos é possível aval iar.
Do que precede resulta que, graças à contrib uição da fé e da revelação, todo um conj unto de certezas e de conceitos, de si accessíveis à razão filosófica, só foram efetivamente tematizados e plenamente afirmados em regime histórico cristão. Pelo fato mesmo, a filosofia se tornou mais rica e fecunda, e através dessa fi losofia al argada está aberto o diálogo, em todas as es feras e dimen sões, entre razão e fé. Um diálogo assim conceb ido, no qual a busca da verdade não se opõe à busca da verdade e estim ula a busca da verdade, se anuncia fácil, solto e prom issor. Na realidade, porém, toçamos antes com o baral hamento das lí nguas e a fal ta de in térpretes adeq uados. A dificuldade crucial se aninha lá mesmo onde pareceria superad a: no seio da comunidade filosófica, entre o crente e o descrente ou o agnóstico.
Suposto que também o fi losófo incréu ou agnóstico vive e pensa e produz em um estado determinado, cujas in fluências são diferentes, não deve causar espanto cons tatar que o nome mesmo de filosofia possa se tornar eq uívoco, segundo empregado por ele ou pelo interlocutor cris tão. Afinal de contas, o que é que o levaria a reconhecer a validade das distin<,:ões das quais este se serve, e que supõem conceitos precisos sobre a fé como sobre a razão? Daí o seguinte estado de coisas contraditório: é um universo racional, e de escorrei ta filosofia, que o filósofo cristão propõe e deve propor em seu discurso, mas o fi lósofo incréu ou agnóstico se sentirá constantemente tentado a não convalidar a autenticidade desse discurso. E não por má von tade deste. Si metricamente, não será por triunfalismo ou prosel itismo que aquele se encon trará na contingência paradoxal de propor uma filosofia mais racional e mais completa do que certas construções de seus colegas não-cristãos, e, no entanto, de conceber essa filosofia como se, em seus principios, ela pressupusesse a fé.
E o filósofo cristão sabe que dificilmente conseguirá eliminar malentendidos e superar prevenções. Apesar de tudo, deve fazer o que a razão pede para evitá-los. O zelo pela enxuta racionalidade de sua obra filosó fica e de sua lin guagem jamais será ex agerado. É o que de seu lado pode fazer, certo de que o diálogo, se não é fácil ao modo da circulação entropizada das rela<,:ões sociais, é possí vel; tão possível como desejável. O único fator que em definitivo o in viabiliza é, de um lado como de outro, o poder fanático e autoritário de rec usar ao contendor a capacidade de acesso á verdade. A admissão dessa capacidade é o caci fe sobre o qual os ousados apostam forte no jogo do diálogo.
PUP P I. U. M. - The rati ona l produetion in the hi\torical eonditilm\ of faith \\ith regard to "i enc·c. Trans/ Furm / A�·ãu. São Paulo. 7: 1-7. I lJX...
A8S TRACT: 8ecause of lhe diflerence of Iheir o wn peninences, Ih ere is no possible direcl dialogue bel ween science and Iheologal failh. Indeed, Ihere is nOlhing slrange in Ihis, because lhe same occurs bel ween one science and anolher, heI \I'ee/l u/le science and philosophy and even bel ween science and general cullure. Each science is a dose slruclure, and il speaks on ly ils own language, ignoring ali lhe olhers. 8ul il does nol mean Ihal lhe dialogue among several kinds and genera of dis(,ul/rse.\ i\ ill/pussi/Jle. 1I is lhe illll,'lpreler's medialion Ihal makes il possible, and philosophy is ils privileged place and agen/. 8y ils own nalure, a/ld il is assisled by compelenl inlerprelers, who may be accumulaled ill lhe philosopher hilllself, philosophy is able lo lead an universal dialogue. Through lhe aspecls Ihal il lranscends, philosophy keeps borders wilh science alld wilh general cullure; Ihrough Ihose Ihal Iransceml il, philusuphy keeps hurders wilh Iheulu!!.y. Thal, pllilosuphy ulI'es {() lhe.\�{(lIe. i/l \I'hi"h il i\/ul/nd, lhe hislUri('al ('ondiliuns o/ revelaliu/I a/ld /ailh.
KE Y- WOR DS: Science; failh; dialogue; discource; inlerpreler; philosophy; Iheology.