SEMIÓTICA PEIRCEANA E PRODUÇÃO POÉTICA[1]

 

Lauro Frederico Barbosa da SI LVEIRA[2]

 

RESUMO: Entre as diversas semióticas e semiologias atualmente existentes, devem-se distinguir dois projetos gerais: o de origem saussureana e o de origem peirceana. O primeiro recolhe da ciência lingüistica seu modo de proceder e as caracteristicas gerais do signo. O segundo pertence à tradição critica filosófica. Para a inteligência capaz de aprender com a experiência, a d(mensão temporal e histórica é essencial. O signo peirceano implica as relações de um tempo irreversivel. A produção presente do signo cabe a função poética, a qual é essencial à vida de toda inteligência. A hipótese cientlfica, as revoluções sociais em seu momento originário e a produção artistica produzem novos signos, recortam novos objetos e abrem feixes de possibilidades para a conduta futura.

UNITERMOS: Semiótica; semiologia; inteligência cientlfica; tempo; signo; poética.

 

As diversas semióticas

Os estudos semióticos, apesar de apresentarem alguns pontos em comum, diversificam-se profundamente dependendo da tradição onde encontram sua origem.

Crê-se poder dizer que todos eles se preocupam em investigar os signos em geral e seus significados; nem todos são tão explícitos na procura de elucidar possíveis distinções entre as relações de significação e as de comunicação.

Ao se tentar, no entanto, considerar como se desenvolvem os estudos semióticos, vão aparecer algumas grandes diferenças entre eles. Em primeiro lugar, convém mencionar, para logo excluir dessa exposição, semióticas ou semiologias que se restringem a classes bastante particulares de signos e que visam determinar condutas bem precisas de quem os utiliza; seria o caso da semiologia marítima e da semiologia de trânsito que estudam sistemas convencionais restritos de sinalização e de transmissão de mensagens que, de percepção fácil e inequívoca: semáforos, bandeiras, sinais de rádio e gestos, transcendem a diversidade dos códigos lingüísticos e, portadores de significados bastante restritos e estereotipados, garantem a determinação de condutas de grupos de pessoas que sob outros aspectos sociais diferenciam-se pro fundamente. A marinha e a aeronáutica de todo mundo conhecem e decodificam do mesmo modo determinados signos e suas combinações; pedestres e automobilistas praticamente de todo mundo também, reconhecem o significado para sua conduta, dos sinais verde e vermelho, da mão única de direção, do cruzamento de uma via preferencial ou do sinal internacional de perigo.

Constituindo classes naturais de signos, que vão sendo reconhecidos, descritos e comunicados aos profissionais da área, os sintomas de disfunções do organismo são objeto de semiologia médica, a qual constitue o passo inicial na elaboração de qualquer hipótese diagnóstica. Essa ciência instrue O pro fissional das ciências da saúde: médicos, dentistas, etc., de como procurar no relato do paciente e no exame físico do corpo do mesmo, através da percepção visual, táctil e auditiva, aqueles indicadores que depois, combinados entre si, servem de via de acesso à inferência de possíveis anomalias do organismo.

Em ambos os casos, a semiótica ou semiologia não constitue uma teoria geral dos signos, mas a codificação e a sistematização de classes bastante particulares de signos convencionais - como nO primeiro caso - ou de signos na(urais - como no segundo exemplo. Toda ciência da natureza - como a meteorologia, por exemplo - estabelece, com ou sem a denominação explícita de semiótica ou de semiologia, uma ciência inicial ou propedêutica, equivalente à que as ciências da saúde desenvolveram.

A partir da segunda metade do século XIX, porém, dois grandes sistemas teóricos procuraram encontrar as condições gerais do estabelecimento de todo e qualquer signo e receberam, no século atual, uma imensa consagração: a partir das pesquisas lingüísticas especialmente realizadas por Ferdinand de Saussure, originou-se um estudo mais generalizado de como os signos significam e permitem o processo da comunicação e, por outro lado, Charles Sanders Peirce, colocando-se mais diretamente no interior de uma longa tradição filosófica que procurava, desde ao menos Platão, estabelecer as condições gerais do conhecimento, propôs hipoteticamente o estatuto do signo no processo do pensamento e na determinação da conduta.

A semiologia, como Saussure a denominava, é certamente bem mais conhecida dos alunos de letras do que a semiótica elaborada por Peirce. Sua proposição, como sabem, decorreu dos estudos lingüísticos revolucionados no final do século XIX e começo do século XX na medida mesma em que o lingüista e professor suíço de expressão francesa critica duas tendências dominantes, em seu tempo, do estudo da língua: a gramática normativa, que impunha regras de correção à escrita e à fala e o estudo histórico, filológico, que procurava estabelecer, através da história, a formação das línguas (2, p. 39 - 45). Resaltando o caráter social e institucional do fenômeno lingüístico, Saussure propõe-se construir uma ciência analítica dos padrões que num determinado momento impõem-se ao grupo social para que esse possa comunicar-se verbalmente (2, p. 46, 176 - 1977). Sem descer a detalhes sobre os conceitos saussureanos de língua e fala (Iangue e paro/e), convém lembrar que o lingüista reconhece na primeira, o objeto adequado da ciência lingüística (2, p. 50 - 53, 56 - 59, 63 - 66) e procura encontrar os elementos mínimos capazes de, por regras também racionalmente estabelecidas, comporem os sinais sensíveis utilizados na comunicação lingüística (os fonemas) e aqueles capazes de articular os significados ou universo semântico. Por simples posição e oposição dessas formas elementares, a língua poderia ser racionalmente inteligida (2, p. 70, 84, 91 -94, 97 - 105, 106 - 126, 180 - 184, 191 - 202, 207 - 213).

 

Do signo lingüístico, postos de lado seus caracteres especiais, poder-se-ia inferir o estatuto geral de todo e qualquer signo (a). O signo lingüístico é a relação socialmente estabelecida entre uma imagem acústica e uma imagem mental, ambas capazes de exercer seu papel específico no interior da língua, dado que suas realizações se diversificam pura e simplesmente por oposição recíproca. A língua não precisa recorrer à sua história para determinar que signos usar e que significados veicular: um signo signifiCará na medida em que sua imagem acústica, que exerce a função de significante, se opuser a todas as outras imagens acústicas e recortar uma imagem mental igualmente oposta a todas as outras. O signo saussureano tem uma estrutura binária (significante / significado; signo / referência) e a origem de sua decodificação encontra-se no processo de identificação dessa correspondência por parte do usuário e de imposição por parte do meio social (2, p. 135 - 137, 178 - 180, 191 - 202).

o trabalho da ciência lingüística e, por extensão, da semiologia seria fundamentalmente o de estabelecer a distribuição das formas elementares constitutivas ao nível do significante e ao nível do significado em quadros taxonômicos; estabelecer por oposição e por equivalência os elementos distintivos contidos no sistema lingüístico ou no semiológico, as regras de combinação permitidas nesses sistemas e" aplicar tais quadros distributivos aos diversos enunciados, possibilitando tipificá-los em classes distintas (2 p. 127 - 134, 146 - 157, 161 - 165, 207 - 213).

A imensa fecundidade desse procedimento é sobejamente conhecida e o desenvolvimento e constante aperfeiçoamento que vem sofrendo até os nossos dias na lingüística, na semiótica em geral e em todos os domínios da produção social de signos, tornam patentes a importância e a capacidade explicativa de que é portador.

A semiótica peirceana tem um estatuto epistemológico e um modo de proceder bastante diversos dos que caracterizam a semiótica ou semiologia de tradição saussureana. O estabelecimento das condições de possibilidade do conhecimento; o que pode uma mente que conhece pela experiência, conhecer; qual o estatuto do processo cognitivo e muito especialmente do conhecimento científico, como conhecimento auto-controlado genuinamente racional, constituem um dos principais campos de investigação da tradição filosófica ocidental. Notória é a diversidade de propostas levantadas para equacionar a questão e intensa tem sido a polêmica gerada entre as diversas posições. Se não cabe aqui discorrer sobre essa história, cabe esclarecer que o trabalho filosófico de Charles Sanders Peirce e, no seu interior, a semiótica por ele elaborada, desenvolvem-se inteiramente dentro de tal questionamento.

A semiótica peirceana pretende-se uma ciência crítica e geral: quais são as condições gerais da representação racional do mundo da experiência; quais são as condições gerais da conduta racional, da conduta de uma inteligência "científica", ou seja, daquela inteligência que pode aprender com a experiência?

o estatuto temporal da inteligência

Uma inteligência que pode aprender com a experiência é uma inteligência que pensa no tempo. Para ela o pensamento é intrinsecamente processo, é irredutivelmente histórico.

Os fenômenos de natureza mecânica interagem por um jogo de ação e reação, atraem-se e repetem-se indiferentemente ao passado, ao presente e ao futuro como modalidades específicas do contínuo temporal. Os processos estritamente mecânicos não têm memória e sobretudo não têm intensionalidade, não apresentam um projeto para o futuro. O tempo é perfeitamente reversível, podendo a ação entre os corpos ser lida indiferentemente num sentido temporal ou no seu contrário. (b).

Bem pelo contrário, a inteligência "científica", a mente que pode aprender pela experiência, diferencia em sua ação de modo irredutível uns aos outros, a experiência passada, a representação da situação futura e esse momento instantâneo em que ela se efetiva e que constitue o presente.

O passado é aquilo que lhe é legado, cuja existência está fora de seu poder e que no entanto, sob vários aspectos, determina seu próprio existir. O futuro é, bem pelo contrário, o indeterminado, aquilo que poderia acontecer dadas certas circunstâncias ou condições propícias. É sobre o futuro,. especificamente, que a razão extende seu domínio. A razão interfere nas coisas e nos eventos somente na medida em que representa em que circunstâncias ou condições tais coisas ou eventos poderão ter lugar. Mais explicitamente ainda, a razão exerce sua ação causal na medida em que planeja a conduta para que essa atue auto-controladamente, com uma taxa preferivelmente calculada de sucesso, sobre coisas, eventos, pessoas, etc. A esses seres, a razão representa como objeto de seu interesse ou volição - como um fim para ela (l, V. 7, p. 330).

O passado é fato consumado e, como tal, a razão não pode modificá-lo. Todo fato, tomado no seu sentido estrito, pertence ao passado. Sobre o que está para acontecer, a razão pode procurar estabelecer as leis que determinarão a efetivação. A representação das leis dos fenômenos permite a direção racional da conduta a fim de propiciar ou evitar condições da efetivação futura dos mesmos. Diante de fenômenos que a razão não possa promover ou evitar a realização, a representação das condições de realização dos mesmos pode, ao menos, determinar a conduta do sujeito para que interaj a com o fenômeno - caso esse se apresentar como benéfico ao sujeito - ou para que evite essa interação - caso esse se apresentar como maléfico ou nocivo. Em último caso, se a relação fatual da conduta com o fenômeno não puder ser produzida ou evitada, que ao menos essa independência do fenômeno e de sua relação à conduta sej a assumida ao nível do conhecimento, ao nível da consciência racional. O que a razão não pode, sob pena de um verdadeiro suicídio, é declinar de sua capacidade de investigar os fenômenos e determinar a conduta, considerando algum domínio do real como intrinsecamente incognoscível, imune à investigação racional.

Se o passado e o futuro para a atividade racional foram aqui rapidamente delineados em sua irredutibilidade recíproca, deve-se levar em conta que a razão é um modo positivo e específico de ser: a razão é pensamento; é, para usar um termo tão caro à tradição alemã, embora talvez ausente do texto peirceano, "energeia"; é uma forma de espontaneidade com altíssima capacidade de expansão. A razão, na medida em que é experimentada e efetivada em determinados fatos de pensar - experimentos particulares de uma mente - é premida por um passado ao qual cada ato, uma vez colocado, logo passa a integrar como "ergon", produto do pensamento. Mas, por outro lado, a razão tem um imenso poder gerador de proposições para o futuro, uma capacidade de generalizar o que antes pôde ser experimentado como limitado pela ação bruta dos condicionamentos que permitiram sua realização. Esse único instante em que a razão é plenamente, é o instante presente da razão, irredutível ao passado que a determina e ao futuro por ela determinado. Tal instante estabelece o vínculo da continuidade do pensamento no tempo. No seu presente, a razão, como pensamento, se afirma em sua irredutível originalidade como alguma coisa toda nova embora vinculada ao passado como um experimento mas geradora de infinitas determinações futuras como um modo de ser que cresce e se expande (3, V.6., p. 82, 86 - 87,

140 - 141).

Para falar do signo peirceano, não era possível deixar de expor o modo próprio da temporalidade da razão. É nesse tempo contínuo e irreversível no qual a cada instante uma gênese se realiza, que se torna possível entender por que a razão se constitue num universo essencialmente semiótico, pensamento e signo se identificando plenamente.

A semiótica peirceana e o estatuto do signo

 

O estudo dos signos usados por uma inteligência "científica", não na medida em que ela produz esta. ou aquela classe especial de signos: signos lingüísticos, signos matemáticos, sinais de trânsito, etc., mas enquanto é capaz de produzir toda e qualquer classe de signos, constitue-se numa ciência da observação que pretende de uma maneira teoricamente consistente, propor um esquema das relações fundamentais, o mais unificado e simples possível, capaz de equivaler ao modo como a inteligência deve pensar temporalmente.

A semiótica procura estabelecer diagramaticamente, isto é, por via de construções relacionais abstrativas, como a inteligência se refere às determinações do passado, procedendo no presente a fim de determinar para o futuro a conduta diante da classe de fenômenos que incluem, de um determinado modo, os fatos experimentados no passado.

A inteligência "científica" não se limita, no processo do pensamento, a identificar os fatos passados através de um signo que os designasse. O modelo binário elaborado por Saussure, embora como tal, provavelmente, nunca tenha sido conhecido por Peirce, não seria suficiente para dar conta da integridade das relações que a mente estabelece ao pensar. A inteligência não articula pura e simplesmente uma imagem sensível com uma imagem mental, ao estabelecer o significado. O significado que a inteligência estabelece é um programa de conduta para o futuro; seu propósito é essencialmente ético, afirma Peirce várias vezes (3, V. 1, p. 591 - 615; V. 5, p. 419, 440).

Cabe à inteligência estabelecer racionalmente - através, principalmente, de conceitos ou representações gerais - como deverá proceder para alcançar os fins nos quais crê encontrar sua plena realização, expandir-se e aperfeiçoar-se.

A simples acumulação dos experimentos passados, todos eles necessariamente particulares pois limitados no tempo e no espaço, também seria incapaz de produzir idéias genuinamente gerais sobre os fenômenos e dar garantias reais, e não meramente ilusórias, de que a conduta futura alcançará, mesmo que nos limites da probabilidade, os fins procurados. Os fatos passados, e todo fato é passado, não garantem que se repetirão no futuro. Bem pelo contrário, os fatos, por sua definição e estatuto, são individuais e não podem repetir-se. O que pode ser previsto são classes de fenômenos experimentais regidos por leis gerais e que, devido à particularidade dos eventos que os atualizam, são sempre de caráter probabilístico.

A inteligência necessita ser ativa e produzir representações hipotéticas dessas leis gerais para determinar a conduta futura. Nos experimentos futuros, verificará a adequação de suas hipóteses em amostras fatuais da classe de fenômenos à qual as leis se Teferem. Estabelecerá, ao longo da experiência, a razão de freqüência com que os fatos obedecerão a essas leis.

Daí decorre que o diagrama, o modelo relacional imagético-conceitual, construído pela semiótica, deverá necessariamente apresentar uma estrutura triádica, correlacionando na unidade do signo, o passado, o presente e o futuro.

Apesar das múltiplas formulações encontradas no texto peirceano sobre o estatuto do signo e da multiplicidade de aspectos que, ora uma ora outra, salientam, todas parecem desenvolver o mesmo diagrama. A leitura de um deles permitirá explicitar as principais relações implicadas na idéia peirceana de signo:

"Um Signo, ou Representamen é um Primeiro que se põe numa relação triádica genuína tal para um Secundo, chamado seu Objeto, de modo a ser capaz de determinar um Terceiro, chamado seu Interpretante, o qual se coloque em relação ao Objeto na mesma relação triádica em que ele próprio está, com relação a esse mesmo Objeto. A relação triádica é genuína, isto é, seus três elementos estão por ela relacionados de maneira tal que não consiste em qualquer complexo de relações diádicas. Tal é o motivo poruqe o Interpretante ou Terceiro não pode colocar-se em mera relação diádica para com o Objeto, mas deve por-se em relação a ele na mesma posição em que se coloca o Representamen. Não pode também a relação triádica em que o Terceiro figura ser meramente similar àquela em que aparece o Primeiro, pois isso tornaria a relação do Terceiro para com o Primeiro simplesmente uma Secundidade degenerada. O Terceiro deve necessariamente aparecer numa relação dessa espécie e deve tornar-se capaz de determinar um Terceiro próprio; além disso, deve existir uma segunda relação triádica em que o Representamen, ou melhor, a relação dele para com seu Objeto, seja seu próprio Objeto (do Terceiro) e capaz de determinar um Terceiro para essa relação. Tudo isso deve ser igualmente verdadeiro a propósito dos Terceiros dos Terceiros e assim indefinidamente; e isso, e mais do que isso, está presente na idéia familiar de um signo. Como o termo Representamen é aqui empregado, nada mais está em tela. Um Signo é um Representamen cujo Interpretante é um espírito:' (3, V. 2, p. 274). (c)

Evitando-se discutir conceitos contidos no texto que desviariam a leitura do propósito da exposição, evitando sobretudo as questões implicadas nas nQções de Primeiro, Segundo, Terceiro e Secundidade degenerada pois elas exigiriam uma ampla: exposição sobre as categorias propostas por Peirce em sua Fenomenologia, (3, v. l, p. 284 -353; 'v. 5, p. 41 - 119; v. 8, p. 327 - 332), cabe ressaltar no momento algumas idéias básicas sobre o signo e a inteligficia que o produz.

O signo, em sua estrutura triádica, interrelaciona três elementos: o representamen, o objeto e o interpretante. O representamen é alguma coisa: uma palavra, uma qualidade sensível ou um certo fenômeno, que fica no lugar de uma outra, ou porque a ela se assemelha, ou porque liga-se a ela existencialmente ou porque a designa por alguma convenção social, permitindo e determinando que uma mente que o perceba, represente essa relação que ele mantém com a coisa (seja ela uma coisa material, uma idéia, um evento, ou, sobretudo, uma classe geral de coisas, idéias ou eventos).

A coisa da qual o representamen ocupa o lugar, exerce na relação triádica do signo a função de objeto do representamen. Ela é o outro a que o representamen se refere, relata ou designa e que é um Segundo (um Outro) para o representamen. Este último é considerado o Primeiro na tríade do signo.

A idéia produzida na mente que interpreta a relação do representamen com seu objeto é um Terceiro mediador da relação entre representamen e objeto. A essa idéia, que é um signo do objeto e da relação do representamen para com o objeto que o determina, Peirce denomina interpretante do signo.

Se essa idéia interpretante não for determinada, e não for determinada precisamente por essa relação do representamen com o objeto, a função mediadora do signo não se completa. Um girassol, para tomar um exemplo do próprio Peirce, pode por fototropismo dirigir sua corola em direção ao Sol quanto quiser; ele só constituirá um signo indicador da posição do Sol se vier a determinar numa mente, ao menos possível, uma idéia que interprete essa sua relação com o Sol. A sombra projetada de um objeto material por efeito da iluminação solar só será conectada com o movimento do girassol se uma idéia for produzida numa mente, ao menos possível, que relacione ambos os fenômenos como indicadores do mesmo objeto, ou sej a, a posição relativa do Sol à Terra.

Se a mente construir uma idéia geral sobre a energia luminosa, sobre o Sol como emissor dessa espécie de energia, de como reagem células tais como as que se encontram na corola da classe de objetos das quais o girassol é um exemplar e de como os corpos opacos reagem ao impacto de tal energia, essa idéia constituir-se-á numa hipótese, de natureza diagramática, a ser verificada experimentalmente, permitindo estabelecer no decorrer da experiência, a razão de freqüência com que tais reações se darão nas diversas correlações das variáveis integrantes da hipótese. Constituir-se-á assim a idéia interpretante dessas relações em seu máximo poder explicativo, em sua máxima capacidade de determinar a conduta diante de tal classe de fenômenos e, por conseguinte, no seu máximo grau de interpretação do signo.

 

Graus menores, mais degenerados dirá Peirce, de gem;ralização da idéia intepretante são possíveis no processo semiótico, ou seja, no processo de pensamento. Quanto menor for o grau de generalização mais a relação de interpretação dos signos e da determinação da conduta dependerá da particularidade de cada experimento.

Quanto maior for o grau de generalização, maior será o grau de previsibilidade dos fenômenos futuros e mais perfeita será, então, a determinação da conduta em alcançar seus fins no futuro, maior será seu auto-controle.

Começa-se a retomar agora a dimensão temporal específica da inteligência "científica", integrando-a no diagrama explicativo do signo.

A idéia interpretante é a relação para o futuro. É essa relação que é principalmente visada no processo do pensamento. Os signos são produzidos precipuamente para determinar num futuro o mais amplo e infinito possível uma conduta racional (auto-controlada e auto-consciente) relativa: mente a uma classe determinada de fenômenos experimentais - objeto do signo - mediante a utilização do representamen.

O objeto, aquilo que o signo designa ou relata, ocupa o lugar do real para uma mente que pode aprender pela experiência. Ele nunca pode prescindir de seu caráter fatual, de independência face ao representamen e à idéia jnterpretante. Ele sempre se apresenta como o Outro relativamente aos seus dois correlatos na relação triádica. É dele que o signo fala e é, finalmente, para interagir com ele de uma maneira racional, que a conduta é determinada.

Por mais que o processo semiótico o generalize como uma classe geral de fenômenos que poderá ser encontrada, em seus exemplares, no futuro, o objeto sempre se apresentará como fato no momento da experimentação. Para uma inteligência que pode aprender pela experiência, ele sempre se apresentará como algo diferente e independente dela. Na concretude do experimento, ele será sempre um fato consumado, pertencendo inexoravelmente ao passado.

Estabelecido o estatuto fatual do objeto, não fica excluída a possibilidade dele se constituir, às vezes, numa mera potencialidade de existir. Nesse caso, a mente não poderá interpretá-lo como existente e sua conduta para com ele será, por conseqüência, meramente potencial.

O representamen, por sua vez, é o correlato da tríade do signo que pode relacionar o objeto à idéia que determina a conduta futura. Determinado pelo objeto - o qual é passado relativamente a ele - o representamen abre a possibilidade da determinação da idéia que representa tanto o objeto quanto a sua relação determinada com o objeto.

O representamen é caracterizado pela potencialidade de designar o Outro e, a partir daí, produzir a idéia interpretante. Encontra-se, ao menos potencialmente, presente na mente, articulando o passado do objeto e o futuro da conduta. Sem o poder do representamen essa articulação j amais se estabeleceria. Esse poder é que lhe atribue o caráter de Primeiro.

Se se admitir a imagem, o representamen é a esfinge que coagulando em si toda a relação com o objeto passado que o determina, desafia a mente a interpretar sua relação com o objeto, ou seja, a construir um outro signo, ou uma série infinita de signos, que decifre para a conduta futura o projeto de alcançar o objeto. O representamen ocupa para a inteligência que o interpreta o lugar onde se abre o feixe de possibilidades de interagir com o objeto de uma maneira auto-controlada, pela produção de idéias interpretantes, de programas racionalmente determinados de condutas para o futuro. (d).

A partir do representamen e de como ele ocupa o lugar do objeto, a mente construirá, efetivará idéias que a habilitarão, sob a forma de hábitos de conduta, a interagir racionalmente com os fenômenos experirrientais dos quais o objeto do signo é um exemplar geral, particular ou meramente potencial.

A estrutura do signo tal como é proposta por Peirce, corresponde assim à maneira pela qual o filósofo compreende o modo próprio da inteligência "científica" efetivar-se, produzir pensamento.

Cada idéia interpretante constitue-se num novo representamen do objeto, esclarecendo cada vez mais as idéias interpretantes que determina.

"Tudo isso, diz o texto, deve ser igualmente verdadeiro dos "Terceiros dos Terceiros e assim indefinidamente"; "e isso, e mais do que isso, está presente na idéia familiar de um signo".

As relações entre signo, pensamento e tempo foram aqui abordadas sem que o texto peirceano citado as tivesse exposto explicitamente. Não foram desenvolvidas, contudo, na presente exposição várias outras relações implicadás no texto. Poder-seiam desenvolver, além da questão das categorias excluída no início da leitura da passagem mencionada, as características próprias da argumentação científica ou as dimensões metafísicas, tão caras a Peirce, que justificariam hipoteticamente o fundamento de realidade de uma proposta que atribuisse ao conhecimento a capacidade de, ao nível da representação, falar e fetivamente do mundo e o ferecer uma real esperança de sucesso à determinação de uma conduta que racionalmente quer atuar e interagir com o mundo que se lhe apresenta. Uma das vantagens da exploração explícita das construções diagramáticas é, com efeito, explorar configurações relacionais de um determinado conjunto pressupondo outras e, portanto, sem desfigurar a integridade do fenômeno.

Caberia avançar sobre o espaço virtual aberto pela proposta peirceana e considerar o modo próprio como a inteligência "científica" interage com um mundo determinado socialmente, de tal modo que o produto do trabalho material e intelectual é expropriado do trabalhador em proveito do capital que coercitivamente compra sua força de trabalho a um preço vil, separando-o dos meios necessários para a produ- o ção. Tal é a amplitude das determinações das relações históricas da produção, que sua consideração não prejudicaria o caráter geral que Peirce propõe à ciência semiótica.

Se, no entanto, algum espaço ainda sobra para considerações além daquelas que, em termos muito gerais e introdutórios, foram aqui expostas, parece dever ser ele ocupado para pensar, em poucas palavras, as caraçterísticas semióticas, segundo a proposição peirceana, da produção poética.

Os fundamentos semióticos peirceanos da produção poética

 

o universo fenomenológico não seria querido ou amado, e não seria, conseqüen­

temente, representado como um programa de conduta racional se não fosse, assim diz o pensador norte-americano do final do século XIX e início do século XX, apresentado à mente como admirável e amável.

Um universo fenomênico totalmente banal, indiferenciado e indiferenciável, não sucitaria amor por ele, um processo de eleição que motivasse e dispusesse a inteligência capaz de aprender com a experiência, a procurá-lo como um fim capaz de realizá-Ia.

Ao nível estético, o mundo é visto sob seu aspecto de amabilidade, de admirabilidade, de possibilidade de despertar na mente a volição de algum aspecto total ou parcial como um fim para sua realização.

À estética, como ciência geral e parte da filosofia, cabe, segundo Peirce, estabelecer racionalmente essa condição de amabilidade e admirabilidade dos fenômenos. Deve representar as condições de originalidade do universo fenomênico. Antes do universo da experiência constituir-se num universo ético, objeto de volição, e antes sobretudo de constituir-se num universo lógico, objeto de representação geral, ele é estético, objeto da poética geral para a qual se apresenta vibrante de potencialidades múltiplas, mas não necessariamente dispersas.

Vibrar com essa multiplicidade de qualidades, dispor-se a amá-Ias é a primeira atitude da mente, sua primeira capacitação para escolher seus fins e estabelecer caminhos para alcançá-los.

Qualquer atitude racional tem um primeiro momento poético. Se se abandonar, por um instante, o nível geral do dever ser em que se estabelece o pensamento filosófico peirceano, mas de modo algum em prejuízo dele, pode-se dizer que em nossa sociedade, face ao verdadeiro bombardeio de apelos à disposição da conduta para esse ou aquele fim - quer atraindo-a à beleza das formas sensíveis, quer à ilusão de um conforto e de um status desproporcional aos meios oferecidos como mercadoria para o consumo, quer ainda pelo aspecto terrífico da repressão, de agressões múltiplas prontas a se desencadear sobre todos e cada um dos cidadãos - esse primeiro momento poético encontra-se altamente prejudicado na originalidade e liberdade que lhe são características e essenciais.

Os objetos são apresentados estereotipados, os programas de conduta são limitados e heterodirigidos, as possibilidades de escolha sendo aparentemente amplas mas realmente restritas. Uma política econômica dos signos é imposta de modo a controlar os ideais e dobrar as condutas a aceitar passivamente os impactos da expropriação da energia, da "energeia", da quase totalidade da sociedade.

Dadas as condições e fetivas de produção, pouco espaço sobra à admiração do universo fenomênico, à produção de uma poesia como elaboração original dos signos e para o livre e intenso jogo da fruição.

A vida como fulcro de potencialidades infinitas, no entanto, exige o momento poético; a partir dele os obj etos podem ser realmente amados e escolhidos como fins e, a partir daí, podem ser estabelecidos, por meio da representação, programas e hábitos de conduta auto-controlada. O cerceamento do momento poético é, no rastro da filosofia peirceana, origem de comportamentos neuróticos, do bloqueio da produção e interpretação de signos que leiam efetivamente os objetos como fatos determinantes da existência e que determinem, por sua vez, a conduta para o futuro, como atividade crítica do Eu emergente a cada instante no fluxo do tempo (3, v. 5, p. 421).

A produção poética é, sem dúvida, o pressuposto básico da liberdade, da efetiva integração da mente, eminentemente social, no universo. cósmico como elemento ativo e co-criador de seu pleno desenvolvimento. Ela caracteriza o momento presente da efetivação do pensamento (3, v. 1, p. 614 - 615).

Vista no âmbito geral em que se desenvolve a filosofia peirceana, a produção poética não se limita às áreas que a cultura contemporânea denomina e reconhece como atividades artísticas. A produção de hipóteses científicas, como sínteses originárias da representação de leis gerais de classes de fenômenos e de determinação de condutas para o futuro, pertence igualmente ao domínio da produção poética: a proposta saussureana, a proposta peirceana, as representações newtoniana e einsteineana do universo são momentos de intensa poesia na história do pensamento.

As revoluções sociais, que só se fizeram violentas devido à resistência das forças anacrônicas e, por isso, repressivas, também colhem seu significado libertador da intensidade de sua proposição original.

As produções reconhecidas como artísticas, só o são na medida em que trabalham os signos - lingüísticos ou não - fazendo a florar do meio dos códigos que impõem seu uso, novas maneiras de ressaltar facetas do objeto a que se referem. Rompendo um passado impositivo, chegam mesmo a propor novos objetos e, por conseqüência, novos signos. Assim procedendo, ampliam o universo de condutas possíveis, criam novos objetos amáveis e admiráveis e diversificam as possibilidades de interação da inteligência "científica" com o mundo. Fazem crescer, a seu modo, a própria perfeição do universo (3, v. 1, p. 51 5).

Notas

a)        A referência de Ferdinand de Saussure à semiologia como "uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social" (2, p. 60) é demasiadamente sucinta para que possa elucidar os conceitos básicos de sua formulação. É certo que para o lingüista suíço, ela constituiria uma ciência mais geral do que a lingüística, com as características de generalidade e formalidade da psicologia social proposta por Auguste Comte e, portanto, na ordem lógica, não

fundada na ciência da língua. Entretanto, ao perguntar por que a semiologia não era reconhecida em seu tempo como ciência autônoma, já que apresentava como as demais clencias um obj eto próprio, julga Saussure que a instituição da semiologia decorreria do estudo da língua em si mesma, ou seja, do estabeleci!lento de uma lin-. güística geral (2, p. 61). E desta lingüística que Saussure estabelece os fundamentos, dos quais tem-se registro no Curso de Lingüística Geral. Pode-se crer, por conseguinte, que por via abstrativa, os caracteres gerais dos signos lingüísticos, na medida em que independerem dos caracteres especiais da língua, poderão ser predicados de todos os signos. Pode-se inferir igualmente que o estatuto da-semiologia não se diferenciará essencialmente daquele que caracteriza a lingüística geral.

b)        Como Peirce admite a presença do acaso em todos os fenômenos, propõe mesmo para as ações mecânicas, de natureza conservativa, um ponto de discontinuidade no presente. Nesse caso, por não haver distinção entre passado e futuro,... "o instante atual difere de todos os outros instantes absolutamente, enquanto os outros (instantes) somente diferem em grau" (3, v. 6,)

p. 87). Os outros instantes assumiriam, certamente, um caráter virtual e sua gradação decorreria da maior ou menor proximidade com o instante presente (3, v. 6, p. 84).

c)                      Para a tradução do texto, recorreuse a Semiótica e Filosofia, textos escolhidos de Charles Sanders Peirce, tradução br!lsileira de Octanny Silveira da Mata e Leônidas Hegenberg, Editora Cultrix, São Paulo, 1972.

d)      A figura da esfinge para referir-se ao signo não está ausente do próprio texto peirceano. O signo, ou representamen, -apresenta um caráter enigmático, como aquilo que está diante da mente no instante presente mas que sofre uma irrecuperável metamorfose quando pretende ser apreendido pela representação. Ao ser captado, o signo assume o caráter de fato passado e pode ser previsto enquanto é dotado da indeterminação característica do futuro. Desenvolvendo essa idéia, Peirce interpreta os versos de Emerson nos quais a esfinge coloca-se como meio através do qual o próprio sujeito inquire o real. A esfinge declara ao homem, ser a retina de seus olhos, parte essencial e diáfana do suj eito em sua relação com o mundo:

"A velha Esfinge bateu seus secos lábios e disse: 'Quem te ensinou meu nome? Sou teu espírito, homem escravizado,

de seu olho sou a retina:

'Tu és a questão não respondida; Puderas ver teu próprio olho, Ele sempre pergunta, pergunta;

e cada resposta é uma mentira:'

(3, v. 1, p. 310).

 

 

SILVEIRA, L.EB. da - Peircean semiotics and poetic production. 13 -23, 1983.

 

ABSTRACT: Among lhe several semio[ics and semiologies exis[ing nowdays, [here are [wo [ha[ mus[ be dis[inguished: [ha[ of saussurean origin and [ha[ of peircean origino The firs[ finds i[s mode of proceeding and lhe general features of sign in lhe science of linguis[ics. The o[her belongs [o lhe cri[ical philosophic [radi[ion. For the intelligence tha[ can learn with the experience, lhe temporal and historic dimension is essential.The peircean sign supposes lhe relations of an irreversible time. To the present produc[ion of sign should be related lhe poetic func[ion, which is essential to life of ali intelligence. The scien[ific hypo[hesis, lhe social revolutions in [heir originary momenl and lhe artistic produc[ion make new signs, draw new objec[s and open seIs of possibililies for lhe conducI in the fulure.

KEY-WORDS: Semio[ics; semiology; scientific in[elligence; lime; sign; poelics.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

l. BURKS, A.W. ed. - Col/ecled papers oi Charles Sanders Peirce. Cambridge, Havard Univ. Press, 1958. v. 8.

2. DE SAUSSURE, F. - Curso de lingü(slica general. Publicado por Charles Bally y Albert Sechehaye e con la colaboración de Albert Riedlinger. Trad. para el espanol de Amado Alonso. 6.ed. Buenos Aires, Losada, 1967.

3. HARTSHORNE, C. & W EISS, P. eds. - Col/ecled papers oi Charles Sanders Peirce. Cambridge, The Belknap Press of Harvard Univ. Press. 1932. Reprinted 1974. v. 1-6.



[1] Este texto serviu de base para a conferência realizada pelo autor na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jahu, para alunos e professores do curso de licenciatura em Letras, em Jaú, Estado de São Paulo, no dia 7 de outubro de 1983.

[2] Departamento de Filosofia da Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação - UNESP - 17.500 - Marília - São Paulo - SP.