TRADUÇÃO/TRANSLATION
O PROÊMIO DE ST. o TOMÁS DE AQUINO AO "COMENTÁRIO À METAFÍSICA DE ARISTÓTELES".
Tradução e Introdução de Francisco Benjamin de SOUZA NETTO[1]
INTRODUÇÃO
Apreciar o exato alcance e o valor dos Comentários de Sto. Tomás de Aquino à obra de Aristóteles não é fácil empresa. Primeiramente, importa desembaraçar-se de todo o preconceito, seja ele favorável, tal o das Escolásticas recentes, seja contrário, tal o de uma historiografia de algum modo positivista. Antes de tudo, cabe visualizar, ainda que de relance, o universo cultural que se erigiu em sujeito pleno de uma nova leitura do estagirita. Então, é possível divisar, de um lado, o fato de a Cultura Ocidental cristã haver acumulado, até então, todo um respeitável patrimônio, posto, de direito ou não, sob o alto patrocínio de Sto. Agostinho. De outro, é indispensável recordar o espaço aberto a um pensamento mais efetivamente pensante com o surgimento das Universidades e com o fato de estas ainda se apresentarem sob a forma de uma interrogação que, antes de dar lugar à sistematização mais tarde chamada escolástica, se manifesta e exerce no gênero da "quaestio".
Neste espaço e desafiado por uma tensão entre os seus valores maiores, é que se elaborou, momento após momento, o trabalho do Comentarista. No que este consistiria? Nem na simples detectação do significado puro do texto, nem na manipulação deste como, por vezes, se diz ou insinua. Sem deixar de constituir um parâmetro respeitável, a Teologia, visualizada já como uma certa Dogmática, não pareceu a Tomás de Aquino impor uma diretriz decisória ao trabalho do "lector".
É o que enotam as seguintes palavras: "Nec video quid pertinent ad Doctrinam fidei qualiter Philosophi verba exponantur" (Responsio ad. Mag. loannem, art. 42). De outro lado, tampouco o significado meramente literal tem o primado: o que se procura é a "intentio auctoris", o que equivale a dizer: procura-se o pensamento deste em sua vida, em sua verdade, a letra servindo tão-somente de "terminus a quo" de uma "inventio" que não se considera encerrada. O que a "lectio" pretende é restituir ao Filósofo o exercício vivo do seu Magistério.
Estas considerações são suficientes a quem empreende a Leitura do Proêmio de Sto. Tomás ao Comentário que teceu à Metafísica de Aristóteles. Nele, o que ressalta é a unidade de pensamento e obra que a invenção da "intentio" origina: o respeito a letra faz-se "reverentia" e a Metafísica se desvela em sua unidade voltando a ser um pensamento vivo, pensante. Isto, ao menos, pretende-o o leitor que foi Tomás de Aquino, quando exerce o seu munus na provável data demarcada entre os anos de 1268 e 1272.
S. THOMAE AQUINA TIS In
Duodecim Libros
METAPHYSICORUM ARISTOTELIS
Expositio PROOEMIUM S. THOMAE
Sicut docet Philosophus in POLITICIS suis, quando aliqua plura ordinantur ad unum, oportet unum eorum esse regulans, sive regens, et alia regulata, sive recta. Quod quidem patet in unione animae et corporis: nam anima naturaliter imperat, et corpus obedit. Similiter etiaminter animae vires: irascibilis enim et concupiscibilis natuntli ordine per rationem reguntur. Omnes autem scientiae et artes ordinantur in unum, scilicet ad hominis perfectionem, quae est eius beatitudo. Unde necesse est, quod una earum sit aliarum omnium rectrix, quae nomem sapientiae recte vindieat. Nam sapientis est alios ordinare.
Quae autem sit haec scientia, et circa qualia, considerari potest, si diligenter respiciatur quomodo est aliquis idoneus ad regendum. Sicut enim, ut in libro praedieto Philosophus dicit, homines intellectu vigentes, naturaliter aliorum rectores e domini sunt: homines vero qui sunt robusti corpore, intellectu vero deficientes, sunt naturaliter servi: ita scientia debet esse naturaliter aliarum regulatrix, quae maxime intellectualis est. Haec autem est, quae circa maxime intelligibilia versatur.
Maxime autem intelligibilia tripliciter accipere possumus.
Primo quidem ex ordine intelligendi. Nam ex quibus intellectus certitudinem accipit, videntur esse intelligibilia magis. Unde, cum certitudo scientiae per intellectum acquiratur ex causis, causarum cognitio maxime intellectualis esse videtur. Unde et illa scientia, quae primas causas considerat, videtur esse maxime aliarum regulatrix.
Secundo ex comparatione intellectus ad sensum. Nam , cum sensus sit cognitio partieularium, intellectus per hoc ab ipso differre videtur, quod universalia comprehendit. Unde et illa scientia maxime est intellectualis, quae circa principia maxime universalia versatur. Quae quidem sunt ens, et ea quae consequuntur ens, ut unum et multa, potentia et actus. Huiusmodi autem non debent omnino indeterminata remanere cum sine his completa cognitio de his quae sunt propria alicui generi vel speciei, haberi non possit. Nec iterum in una aliqua particulari scientia tractari debent: quia cum his unumquodque genus entium ad sui cognitionem indigeat, pari ratione in qualibet partieulari scientia tractarentur. Unde restat quod in una communi scientia huiusmodi tractentur; quae cum maxime intellectualis sit, est aliarum regulatrix.
Tertio ex ipsa cognitione intellectus. Nam cum unaquaque res ex hoc ipso vim intellectivam habeat, quod est a materia immunis, oportet illa esse maxime intelligibilia, quae sunt maxime a materia separata. Intelligibile enim et intellectum oportet proprotionata esse, e unius generis, cum intellectus et intelligibile in actu sint unum. Ea vero sunt maxime a materia separarata, quae nom tantum a signata materia abstrahunt, "sieut formae naturales in universali acceptae, de quibus tractat scientia naturalis", sed omnino a materia sensibili. Et non solum secundum rationem, sicut mathematica, sed etiam secundum esse, sicut Deus et intelligentiae. Unde scientia, quae de istis rebus considerat, maxime videtur esse intellectualis, et aliarum princeps sive domina.
Haec autem triplex consideratio, non diversis, sed uni scientiae attribui debet. Nam praedietae substantiae separatae sunt universales et primae causae essendi. Eiusdem autem scientiae est considerare causas proprias alicuius generis et genus ipsum: sicut naturalis considerat principia corporis naturalis. Unde oportet quod ad eamdem scientiam pertineat considerare substantias separatas et ens commune, quod est genus, cuius sunt praedictae substantiae communes et universales causae.
Ex quo apparet, quod quamvis ista scientia praedicta tria consideret, non tamen considerat quodlibet eorum ut subjectum, sed ipsum solum ens com mune. Hoc enim est subjectum in scientia, cuius causas et passiones quaerimus, non autem ipsae causae alicuius generis quaesiti. Nam cognitio causarum alicuius generis, est finis est finis ad quem consideratio scientiae pertingit. Quamvis autem subiectum huius scientiae sit ens commune, dicitur tamen tota de his quae sunt separata a materia secundum esse et rationem. Quia secundum esse et rationem separari dicuntur, non solum illa quae numquam in materia esse possunt, sicut Deus et intellectuales substantiae, sed etiam illa quae possunt sine materia esse, sicut ens commune. Hoc tamen non contingeret, si a materia secundum esse dependerent.
Secundum igitur tria praedicta, ex quibus perfectio huius scientiae attenditur, sortitur tria nomina. Dicitur enim scientia divina sive TheoJogia , inquantum praed ictas substantias considerat. Metaphysica , inquantum considerat ens et ea quae consequuntur ispum. Haec enim transphysica inveniuntur in via resolutionis, sicut magis communia post minus communia. Dicitur autem Prima Philosophia , inquantum primas rerum causas considerat. Sic igitur patet quid sit subiectum huius scientiae, et qualiter se habeat ad alias scientias, et quo nomine nominetur.
Tomás de Aquino Comentário à Metafísica de Aristóteles
Proêmio
Como ensina o Filósofo em seus escritos Políticos, quando vários são ordenados a algo, é necessário que um deles seja regulador ou diretor e os demais regulados ou dirigidos. Isto, em verdade, é manifesto na união da alma e do corpo, pois, naturalmente, a alma ordena e o corpo obedece. Ocorre o mesmo com as potências da alma, pois, o irascível e o concupiscível são, por ordem natural, dirigidos pela razão. Ora, todas as ciências e técnicas ordenam-se a algo de uno, isto é, à perfeição do homem que é a sua felicidade. Donde, ser necessário que uma delas seja ordenadora de todas as outras, a qual reivindica com razão o nome de sabedoria, pois, compete ao sábio ordenar os demais.
Se examinarmos diligentemente como alguém é idôneo para dirigir, poderemos descobrir qual sej a esta ciência e a respeito do que versa. Pois, como diz o Filósofo no livro acima citado, da mesma maneira como os homens intelectualmente bem dotados são naturalmente chefes e senhores dos demais, e os homens de corpo robusto, mas deficientes quanto à inteligência, são naturalmente servos; assim também a ciência que é intelectual ao máximo deve ser ordenadora de todas. Esta, porém, é aquela que versa sobre o que é mais inteligível.
Ora, podemos conceber o que é ao máximo inteligível segundo uma tríplice acepção. Primeiro, a partir da ordem da intelecção. Pois, aquilo do que o intelecto adquire certeza é certamente mais inteligível. Donde, como o intelecto adquire a certeza científica a partir das causas, o conhecimento das causas é certamente intelectual ao máximo. Portanto, aquela ciência que considera as primeiras causas é certamente ordenadora ao máximo das outras.
Em segundo lugar, a partir da comparação do intelecto com os sentidos. Pois, enquanto aos sentidos pertence o conhecimento dos particulares, o intelecto deles difere com certeza por lhe caber compreender os universais. Donde, ser ao máximo intelectual aquela ciência que verse sobre princípios ao máximo universais. Ora, estes são o ente e o que se lhe segue, como o uno e o múltiplo, a potência e o ato. Ora, estes não devem de forma alguma permanecer indeterminados, pois, sem eles não se pode obter o conhecimento completo do que é próprio a um determinado gênero ou espécie. Nem devem , por outro lado, ser tratados numa determinada ciência particular, pois, como todos os gêneros de ente deles dependem para seu conhecimento , pela mesma razão, seriam tratados em todas as ciências particulares. Donde, resta que sej am tratados numa só ciência comum que, sendo ao máximo intelectual, é reguladora das demais.
Em terceiro lugar, a partir do próprio conhecimento do intelecto. Pois, tirando todas as coisas sua potência intelectiva de serem imunes da matéria, é mister serem ao máximo inteligíveis aquelas que são ao máximo separadas da matéria. De fato, é necessário que o inteligível e o intelecto sej am proporcionados e do mesmo gênero, pois, o intldecto e o inteligível são um no ato de intelecção. Ora, é ao máximo separado da matéria aquilo que abstrai totalmente da matéria sensível e não só da matéria singularizada "como as formas naturais tomadas em universal das quais trata a ciência da Natureza". E não só quanto à concepção , como na matemática, mas quanto ao ser, como Deus e as inteligências. Donde, a ciência que considera tais coisas ser com certeza ao máximo intelectual, primando sobre as demais e dominando-as.
Esta tríplice consideração não deve ser atribuída a diversas ciências , mas a uma única. De fato, as supracitadas substâncias separadas são as causas universais e primeiras de ser. Ora, cabe à mesma ciência considerar as causas próprias de determinado gênero e o próprio gênero, assim como a ciência da Natureza considera os princípios do corpo natural. Donde, ser necessário que à mesma ciência caiba considerar as substâncias separadas e o ente em geral, que é o gênero do qual as supracitadas substâncias são as causas comuns e universais.
Disto decorre ser manifesto que, embora esta ciência proceda à tríplice consideração acima, não considera qualquer uI9a delas como tema de estudo, mas apenas o ente em geral. Pois, de fato, é tema na ciência aquilo cujas causas e propriedades procuramos, não porém as próprias causas do gênero investigado. De fato, o conhecimento das causas de um gênero determinado é o fim ao qual chega a consideração da ciência. Embora o tema desta ciência seja o ente em geral, diz-se ela no seu todo referente ao que é separado da matéria segundo o ser e a concepção , pois, diz-se separado segundo o ser e a concepção não só aquilo que jamais pode ser na matéria, como Deus e as substâncias intelectuais, mas também aquilo que pode ser sem matéria, como o ente em geral. Isto porém não aconteceria se dependesse da matéria quanto ao ser.
Portanto, esta ciência recebe três nomes a partir da tríplice consideração supracitada da qual provém sua perfeição. É denominada ciência divina ou teologia na medida em que considera as substâncias separadas. Metafísica, na medida em que considera o ente e o que lhe é conseqüente. Pois, o que é transfísico se encontra na marcha analítica do pensamento como o que é mais geral após o menos geral. É denominada filosofia primeira, na medida em que considera as causas primeiras das coisas. Fica, portanto, explicado qual seja o tema desta ciência, como se relaciona com as demais ciências e por que nome é denominada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
S. THOMAE AQUINATIS - In: Duodecim libros Metaphysicorum Aristotelis Expositio. Turim , Catha1a-Spiazzi, 1950.
CHENU , M.D. - Introduction à l'étude de Saint Thomas d'Aquin. Montreal, Vrin. 1950. p. 173- 183 (lnstitute d' Étude médiéval, n. o 1 1).
[1] Departamento de Filosofia - Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação – UNESP 17.500 - Marília, SP.