SOBRE O PROBLEMA DA DEMARCAÇÃO.[1]
Marcos Barbosa de OLIVEIRA[2]
RESUMO: Desde sua publicaçao, nao têm faltado ataques ao critério da refutabilidade - a soluÇa0 proposta por Popper para seu problema da demarcaçao. A crítica do presente artigo é mais fundamental: seu alvo é o próprio problema da demarcaçao. Como preliminar, mostra-se ha ver na obra de Popper nao apenas um, mas dois problemas da demarcaçao, distintos e incompatíveis. Uma análise do an tiessencialismo de Popper é o ponto de partida para a demonstraçao da tese central do artigo, a saber, a tese de que o problema da demarcaçao deve ser abandonado, por ser parte de uma abordagem cientificista da questao do valor das ciências.
UNITERMOS: O problema da demarcaçao; ciência; pseudociência; cientificismo; definições; essencialismo; essencialismo ético.
Devemos, por falar nisso, deixar claro desde já que se alguma coisa não é uma ciência, ela não é necessariamente má. Por exemplo, o amor não é uma ciência. Portanto, se alguma coisa não é uma ciência, isto não significa que há algo de errado com ela; significa apenas que ela não é uma ciência. Feynman[3]
O termo 'demarcação ' como nome de um problema na teoria do conhecimento foi introduzido na literatura filosófica por Popper. O primeiro trabalho publicado em que ocorreu foi sua carta ao editor da revista Erkenntnis, que apareceu no volume 3, número 4-6, em 1933[4]. Nesta carta ele identifica o problema da demarcação com o problema kantiano dos limites do conhecimento científico, e o define como o problema de formular um critério para a distinção entre as proposições das ciências empíricas e as da metafísica. Mas é Logik der Forsch ung[5], publicado em fins de 1934, que contém a exposição clássica das idéias de Popper sobre o problema da demarcação. Afirma ele nesta obra que este é "o problema central da teoria do conhecimento " (2, p. 35). Embora esta tese possa ser questionada[6] não há dúvida alguma sobre a importância do problema dentro da filosofia de Popper: o critério da refutabilidade - a solução proposta por ele para o problema da demarcação - constitui o núcleo a partir do qual sua epistemologia falsificacionista se desenvolveu.
Desde a publicação de L ogik der Forsch ung não têm faltado ataques ao critério da refutabilidade. A crítica que vai ser desenvolvida no presente artigo é mais fundamental: ela se dirige não à solução proposta por Popper, mas ao próprio problema da demarcação. Minha tese, em poucas palavras, é de que, embora este problema reflita uma preocupação com importantes questões relativas ao valor de conhecimento de certas disciplinas, e da ciência em geral, ele deve ser abandonado, já que expressa uma atitude cientificista diante destas questões*. Para demonstrar esta tese é necessário primeiro caracterizar com precisão a natureza e o significado da idéia de demarcação. Uma leitura atenta da obra de Popper revela a existência de certas discrepâncias bem marcadas, discrepâncias estas que justificam a afirmativa de que existem nesta obra não apenas um, mas dois problemas da demarcação. Um deles aparece principalmente em Logik der Forsch ung; o outro nos trabalhos de cunho autobiográfico que Popper publicou até agora, a saber, a conferência 'Philosophy as science: a personal report' de 1953, e a autobiografia mtelectual que abre o volume da Library of Living Philosophers dedicado a ele. Para explicar melhor e demonstrar a tese da existência de dois problemas da demarcação na obra de Popper, vou principiar por resumir o relato dado por ele nos trabalhos autobiográficos a que me referi.
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Ao fim da Primeira Guerra Mundial o Império Austríaco entrou em colapso; a monarquia foi dissolvida e a Áustria transformou-se numa república. Este foi um período de extraordinária agitação polí�ica e intelectual no país; havia fome, motms provocados pela falta de alimentos, inflação galopante, greves e levantes. Popper tinha então dezesseis anos de idade e participava ativamente da vida intelectual e política do país. Das novas idéias que circulavam em Viena, ele se interessava' especialmente pelas teorias da relatividade de Einstein, pelo marxismo, pela psicanálise freudiana e pela chamada 'psicologia individual' de Adler. Politicamente, Popper provinha de uma família liberal, e nesta época entrou para a associação de estudantes socialistas das escolas secundárias; participou também de reuniões de estudantes universitários socialistas. Embora a princípio desconfiado dos comunistas, ele passou a se considerar como tal na primavera de 1919. Sua adesão entretant:> não durou muito. Pouco antes de seu décimo sétimo aniversário, um incidente ocorreu em Viena em conseqüência do qual Popper tornou-se logo depois um antimarxista.
Alguns comunistas haviam sido detidos e se achavam na central de polícia de Viena. Instigados por comunistas, alguns rapazes socialistas, desarmados, faziam uma manifestação de protesto, a fim de ajudar os presos a fugir. Aí o tiroteio principiou. Vários jovens trabalhadores comunistas e socialistas foram mortos. Fiquei horrorizado e chocado com a brutalidade da polícia, mas também comigo mesmo: pelo menos em princípio, na condição de marxista, parte da responsabilidade era minha. A teoria marxista exige que a luta de classes sej a intensificada, a fim de acelerar a advento do socialismo. A tese marxista é a de que, embora a revolução possa reclamar algumas vítimas, o capitalismo as reclama em número maior do que todas as revoluções socialistas.
Isto era parte da teoria marxista - parte do chamado 'socialismo científico'. Perguntei a mim mesmo se esses cálculos poderiam ser sustentados 'cientificamente'. A experiência toda e, em especial, essa indagação, provocaram no meu íntimo uma permanente reviravolta de sentimentos. (5, p. 39-40)
Havia então uma teoria - o marxismo - da qual se derivava uma norma de ação;: a intensificação da luta de classes. Foi o resultado trágico desta ação que levou Popper a questionar o pretendido estatuto científico da teoria em questão, a perguntar se os cálculos dos marxistas podiam ser sustentados pela ciência.
Um outro incidente que, embora muito menos importante na vida de Popper, também ilumina as motivações que o levaram a formular o problema da demarcação, ocorreu quando ele trabalhava com Adler em uma de suas clínicas de assistência sociai.
Certa vez, em 1919, informei-o de um caso que não me parecia ser particularmente adleriano, mas que ele não teve qualquer dificuldade em analisar nos termos da sua teoria do sentimento de inferioridade, embora nem mesmo tivesse visto a criança em questão. Ligeiramente chocado, perguntei como poderia ter tanta certeza. "Porque já tive mil experiências desse tipo" - respondeu; ao que não pude deixar de retrucar: "Com este novo caso, o número passará então a mil e um... "
O que queria dizer era que suas observações anteriores podiam não merecer muito mais certeza que esta última; que cada observação havia sido examinada à luz da 'experiência anterior', somando-se ao mesmo tempo às outras como confirmação adicionai. Mas, perguntei a mim mesmo, que é que confirmava cada nova observação? Simplesmente o fato de que cada caso podia ser examinado à luz da teoria. Refleti, contudo, que isto significava muito pouco, pois todo e qualquer caso concebível pode ser examinado à luz da teoria de Adler, ou, igualmente, à luz da teoria de Freud. (7, p.65 )
O problema, neste caso, não era o de normas de ação nefastas serem derivadas de uma teoria, mas o de uma teoria, que se pretende científica, ser na realidade vazia de conteúdo empírico.
Como se pode perceber, o que preocupava Popper nesta época não era a metafísica, mas sim as disciplinas para as quais o estatuto científico era indevidamente alegado, ou seja, as pseudociências. Entre as disciplinas (em sua opinião) pseudocientíficas, o marxismo era certamente a mais importante para ele. Em sua autobiografia, ele afirma: "Meus encontros com a "psicologia individual" de Alfred Adler e com a psicologia freudiana foram muito menos significativos que meu encontro com o marxismo, embora tenham seguido mais ou menos o mesmo esquema, e tenham acontecido aproximadamente na mesma época (tudo aconteceu em 1919)" (5, p. 43). Este testemunho é corroborado pelo fato de que Popper mais tarde discorreu longamente sobre o marxismo em duas de suas obras - A Miséria do Historicismo e A Sociedade Aberta e seus Inimigos - mas nunca deu atenção cómparável à "psicologia individual" ou à psicanálise.
Em contraste com estas experiências negativas com as teorias de Marx e de Adler, a reação de Popper à teoria da relatividade foi de admiração exultante. Ele nos conta:
Em maio de 1919, duas expedições inglesas testaram com sucesso as previsões de Einstein relativas a eclipses. Com esses testes, surgiu subitamente uma nova teoria da gravitação e uma nova cosmologia, não como simples possibilidade, mas como real aperfeiçoamento das idéias de Newton, como melhor aproximação da verdade.
Einstein fez uma preleção em Viena a que compareci. Lembro-me apenas de que fiquei deslumbrado. O tema estava bem acima de minha compreensão. Eu havia sido criado numa atmosfera na qual a mecânica newtoniana e a eletrodinâmica de Maxwell eram aceitas, lado a lado, como verdades inquestionáveis...
A idéia de que a teoria de Newton espelhava a verdade resultava, naturalmente, de seu êxito incrível, que culminara na descoberta do planeta Netuno... Apesar disso tudo, Einstein conseguira apresentar uma alternativa real, formulando, sem esperar por novos experimentos, uma teoria aparentemente melhor. Tal como Newton, Einstein fizera previsões acerca de novos efeitos que se manifestariam no Sistema Solar (e fora dele). E algumas dessas previsões haviam agora sido testadas com sucesso. (5, p.43-4)
Foram estas experiências que formaram o contexto emocional, a motivação que levou Popper a formular o problema da demarcação.
Foi durante o verão de 1919 que comecei a me sentir cada vez mais insatisfeito com essas três teorias - a teoria marxista da história, a psicanálise e a psicologia individual; passei a ter dúvidas sobre seu estatuto científico. Meu problema assumiu, primeiramente, uma forma simples;: "O que estará errado com o marxismo, a psicanálise e a psicologia individual? Por que serão tão diferentes das teorias físicas, da teoria de Newton e, especialmente, da teoria da relatividade? " (7, p.64)
Esta formulação inicial do problema deixa claro que a finalidade do critério de demarcação não era a de separar coisas do mesmo valor como, por exemplo, as peças brancas e pretas de um jogo de xadrez; a questão era mais como a de separar o joio do trigo.
Mais explicitamente, a situação era a seguinte: a ciência era então considerada como a forma por excelência de conhecimento e Popper subscrevia esta opinião. Ele também enxergava o perigo que havia em certas teorias serem indevidamente classificadas como científicas. Uma maneira de evitar que isto ocorresse era inventar um teste no qual uma teoria teria que passar para que se lhe fosse concedido o título de "científica". O teste proposto por ele foi seu critério de refutabilidade. Com a aplicação do teste, seriam desmascarados os impostores.
Este teste tinha naturalmente grande relevância política, especialmente quando aplicado a teorias sociais, pois, na ausência de uma rival séria, ser considerada científica, para uma teoria, era o mesmo que ser considerada como contendo a verdade (ou, como diria Popper, a melhor aproximação da verdade) sobre seu objeto. Por exemplo, se a teoria marxista passasse no teste, e se fosse julgada a melhor teoria disponível em seu domínio, então a proposta de Popper implicaria que o marxismo devesse ser aceito; como uma conjectura, sim, mas da mesma maneira pela qual a teoria da relatividade era aceita. Na prática, ela implicaria que todo o mundo devesse se tornar marxista. Por outro lado, se a teoria marxista fosse caracterizada como não-científica por não passar no teste, então seu valor de conhecimento teria de ser considerado nulo, ou muito pequeno. Ela teria que ser tratada como uma mera conjectura, da qual não se poderiam derivar normas de ação, e a qual deveria ser abandonada no caso de haver qualquer teoria rival não-refutada que houvesse passado no teste.
Popper é bastante explícito acerca do significado que o problema da demarcação tinha para ele nesta época. Diz ele: "Inicialmente não o considerei um problema filósofico: eu tinha pouco mais de dezessete anos, e embora tivesse lido um pouco de filosofia, não sonhava em dar eu mesmo uma contribuição a ela. Tratava-se para mim de um problema pessoal urgente, e sua solução me ajudou imensame'nte em minhas decisões pessoais, tais como minha rejeição da psicanálise de Freud e de Adler, e do marxismo." (8, p. 976) Além desse significado pessoal, Popper também tinha consciência das implicações sociais da questão: "Nesta época, em 1 920, ele [ o critério de demarcação ] pareceu-me quase trivial, embora resolvesse um problema intelectual que me havia preocupado profundamente, e que tinha também conseqüências práticas óbvias (políticas, por exemplo)." (7, p. 69) Parece-me adequado, em vista de tudo isto, que se dê o rótulo de "político" a esta versão do problema de demarcação que se encontra nos testemunhos autobiográficos de Popper.
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Consideremos agora L ogik der Forschung. A idéia de demarcação que emerge desta obra é bem diferente da que já examinamos. Para começar, a demarcação é agora entre ciência e metafísica, não entre ciência e pseudociência; a psicanálise é mencionada somente uma vez, en passant, e o marxismo nenhuma vez. A crítica inicial à pseudociência é substituída por uma defesa da metafísica contra o ataque positivista. O aspecto político desaparece, seu lugar é ocupado pelas conseqüências puramente filosóficas do problema.
A abordagem agora é a seguinte: a demarcação é um problema filosófico que remonta a Hume; em Kant ele se torna o problema central da teoria do conhecimento. Consiste em formular "uma caracterização aceitável da ciência empírica, ou em definir os conceitos 'ciência empírica' e 'metafísica' de maneira tal que, a propósito de um determinado sistema de proposições, possamos dizer se seu estudo mais aprofundado coloca-se ou não no âmbito da ciência empírica". (2, p. 38) Em outras palavras, "a primeira tarefa da lógica do conhecimento é a de elaborar um conceito de ciência empírica, de maneira a tornar tão definida quanto possível uma terminologia até agora algo incerta, e de modo a traçar uma clara linha de demarcação entre ciência e idéias metafísicas". (2, p. 40) O que faz com que o problema sej a tão importante é sua relevância para outros problemas da teoria do conhecimento:
O único motivo que tenho para propor meu critério de demarcação é o de ele ser proveitoso: com seu auxílio, muitas questões podem ser esclarecidas e explicadas... Só a partir das conseqüências de minha definição de ciência empírica e das decisões metodológicas dela dependentes poderá o cientista perceber até que ponto ela se conforma com a idéia intuitiva que tem acerca do objetivo de suas atividades.
O filósofo, por sua vez, só aceitará minha definição como útil se puder aceitar-lhe as conseqüências. Temos que dar-lhe garantia de que essas conseqüências nos habilitam a identificar incongruências e inadequações em teorias do conhecimento mais antigas e a relacioná-las aos pressupostos e convenções fundamentais em que elas têm sua raízes. (2, p. 57-8)
Por conseguinte, a avaliação de um cdtério deve ser baseada em suas conseqüências filosóficas: "Só existe um meio, até onde me é dado ver, de defender, racionalmente as minhas propostas. Consiste em analisar-lhes as conseqüências lógicas, em exibir-lhes a fertilidade, isto é, o poder que elas possuem de elucidar questões da teoria do conhecimento." (2, p. 39)
Outra diferença, que deixa claramente à vista a incompatibilidade entre as duas versões do problema, é o caráter convencional que Popper atribui a seu critério em Logik der Forsch ung: ele o apresenta apenas como "uma proposta para que se consiga um acordo ou se estabeleça uma con venção ". (2, p. 38) É claro, entretanto, que não se pode assumir uma atitude antimetafísica ou anti-pseudociência com base em um critério de demarcação puramente convencional. Em outras palavras, um aspecto essencial da primeira versão do problema, a saber, a valoração que ele pressupõe, é inconsistente com a versão posterior.
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As observações acima são suficientes, creio, para estabelecer a tese de que existem na obra de Popper dois problemas da demarcação. (O primeiro deles já foi denominado 'político'; para facilidade de referência, vou rotular - de ' filosófico' - o segundo.) Desta colocação emergem naturalmente duas perguntas: qual a razão para tão profunda mudança nas idéias de Popper acerca da demarcação? E, qual dos dois problemas representa a posição real de Popper?
Parte da resposta à primeira pergunta está relacionada com a situação política na Áustria nas décadas de 20 e 30. Popper nos conta:
... o antimarxismo, na Áustria, era pior do que o marxismo: como os social-democratas eram marxistas, o antimarxismo era praticamente idêntico aos movimentos autoritários que mais tarde viriam a receber o nome de fascismo. É claro que debati o assunto com meus colegas. Mas foi só dezesseis anos mais tarde, em 1935, que comecei a escrever acerca do marxismo, com a intenção de publicar os trabalhos.
Este foi, então, o motivo pelo qual, em Logik der Forsch ung, Popper evitou fazer qualquer alusão às implicações políticas do problema da demarcação. E sem poder mencionar o marxismo - o principal objeto do problema político - não havia razão para que ele apresentasse a demarcação como crítica das pseudociências. A outra parte da explicação encontra-se em alguns eventos de seu desenvolvimento intelectual aproximadamente de 1 926 a 1 928. Já vimos que, quando concebeu o problema da demarcação em 1919-1 920, ele não o considerou um problema filosófico. Nem era a filosofia seu principal interesse intelectual nos primeiros anos da década de 20, mas sim o que pode ser chamado de psicologia do conhecimento. Embora sua tese de doutorado, apresentada em 1 928 versasse sobre este tópico, já em 1 926 ele estava trocando a abordagem lógica pela psicológica no que se refere à teoria do conhecimento. (cf. 5, p. 84-5) A última etapa deste processo ocorreu quando ele percebeu que havia uma conexão entre a indução - a qual, como uma teoria psicológica sobre a aprendizagem, ele já havia rejeitado - e a demarcação. Esta conexão residia na idéia de que o método indutivo era o núcleo de uma solução inadequada para o problema da demarcação. Em conseqüência, a idéia da demarcação passou a se integrar na corrente principal da tradição filosófica. Outro evento que contribuiu para que Popper se voltasse para a filosofia foi seus contatos com membros do Círculo de Viena, os quais principiaram por volta de 1928. Ocorreu-lhe que o critério da refutabilidade - sua solução para o problema político da demarcação - também poderia ser utilizado como solução para o problema dos positivistas - o problema (em sua interpretação) de estabelecer a demarcação entre a ciência e a metafísica. (O problema dos positivistas era na verdade o de formular uma justificação para a rejeição - pregada por eles - da metafísica. A solução que eles adotaram consistia no princípio da verificabilidade, por meio do qual se demonstraria serem as proposições da metafísica desprovidas de sentido.) Foi por sugestão de Feigl que Popper começou a redigir o texto que foi finalmente publicado como L ogik der Forschung - obra esta formulada em larga medida como crítica às idéias dos positivistas.
Há alguns aspectos do critério de Popper que refletem claramente o processo de transplantação que ele sofreu, o fato de ter sido inicialmente formulado como solução para o problema de demarcar a ciência da pseudociência e posteriormente aplicado ao problema de demarcar a ciência da metafísica. Por exemplo, em contraste com o princípio dos positivistas, o critério de Popper tem uma componente metodológica; ele explica a necessidade de introduzi-la da seguinte forma:
Consequentemente, se caracterizarmos a clencia empmca tãosomente pela estrutura lógica ou formal de suas proposições, não teremos como excluir dela aquela dominante forma de matafísica proveniente de se elevar uma teoria cientí fica obsoleta ao nível de verdade incontestável.
Estas são minhas razões para propor que a ciência empírica seja caracterizada por seus métodos: por nossa maneira de manipular sistemas científicos, por aquilo que fazemos com eles, e aquilo que fazemos a eles. (2, p. 52 )
Quem quer que leia o artigo 'Ciência: conjecturas e refutações' perceberá que a 'dominante' formade 'metafísica' que Popper tinha no fundo da mente ao escrever a passagem acima era o marxismo (o qual, como já observamos, não é mencionado nem uma vez em L ogik der Forsch ung. A psicanálise freudiana e a 'psicologia individual' de Adler eram consideradas por ele como sendo irrefutáveis por razões puramente lógicas. ( Cf. 7, p. 67 ) Para a demarcação entre a ciência e a metafísica, entretanto, as regras metodológicas de Popper são totalmente irrelevantes.
Consideremos agora a segunda das perguntas colocadas acima, a saber, qual dos dois problemas representa a posição real de Popper? A resposta deve ser, sem dúvida: o problema político. Em primeiro lugar, o problema filosófico deveu sua formulação em parte a circunstâncias políticas conjunturais, como acabamos de ver. E o fato de Popper ter rememorado suas motivações políticas originais, da maneira como o fez em seus textos autobiográficos, demonstra que ele não as repudiou. O problema filosófico, além do mais, está em conflito com a própria visão de Popper acerca da natureza da filosofia, como veremos agora. Um aspecto fundamental do pensamento de Popper, que se manifesta em tantas de suas obras, e que ele muitas vezes explicitou, é a idéia de que a filosofia não é, ou melhor, não deve ser um fim em si mesma, sendo a relevância para outras questões a: única justificativa possível para sua prática. Em Conhecim en to Objetivo, ele afirma: "Todos nós temos nossas filosofias, estejamos ou não conscientes deste fato. Mas o impacto de nossas filosofias sobre nossas ações e sobre nossas vidas é muitas vezes devastador. Isto torna necessário que tentemos melhorar nossas filosofias por meio da crítica. Esta é a única desculpa que sou capaz de oferecer pela continuada existência da filosofia." (6, p. 42 ) Em contraste com Wittgenstein e seus seguidores, ele acredita na existência de problemas filosóficos genuínos; estes, entretanto, são apenas os que têm origem em questões não-filosóficas. A 'primeira tese' que serve de base à sua crítica a esses filósofos (no artigo ' A natureza dos problemas filosóficos e suas raízes científicas') diz o seguinte: "Problemas filosóficos genuínos estão sempre enraizados em problemas extrafilosóficos urgentes, e eles morrem se suas raízes degeneram." (7, p. 1 00.) Pois bem, em Logik der Forsch ung, como vimos, Popper formula o problema (filosófico) da demarcação como o de encontrar uma convenção adequada, cuja finalidade é aumentar a precisão da linguagem, convenção esta que deve ser avaliada com base em sua fertilidade filosófica. Não é necessário enfatizar a incompatibilidade que existe entre sua concepção de filosofia e esta formulação.
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Tendo clarificado a idéia de demarcação, passo agora a demonstrar a tese principal deste artigo, a saber, a tese de que o problema da demarcação deve ser abandonado. Em conformidade com o que acabamos de ver, esta demonstração deveria, em princípio, restringir-se ao problema político da demarcação, já que é este que representa verdadeiramente o pensamento de Popper. De início, entretanto, vou formular a demonstração em relação ao problema filosófico. Adoto este percurso em parte porque esta etapa constitui-se numa conveniente introdução para a outra, mais importante, que se segue, em parte para que não reste dúvidas quanto ao argumento: quero mostrar que o problema da demarcação deve ser abandonado mesmo se interpretado de acordo com o texto de Logik der Forsch ung.
A tese de que o problema filosófico da demarcação deve ser abandonado e; na verdade, conseqüência direta de uma doutrina defendida pelo próprio Popper - a doutrina denominada por ele 'antiessen·· cialismo'. O antiessencialismo de Popper, entretanto, tem quatro variantes distintas, ainda que inter-relacionadas. É a primeira dessas variantes (de acordo com a ordem em que as descreverei abaixo) que implica dever o problema filosófico da demarcação ser abandonado; um dos argumentos formulados por Popper para sustentar a segunda variante, entretanto, também é relevante para minha demonstração.
A primeira variante do antiessencialismo de Popper consiste na tese de que discussões sobre conceitos, ou sobre o significado de palavras, ou sobre definições são desimportantes e estéreis. Ora, o problema filosófico da demarcação consiste, fundamentalmente, em formular uma definição satisfatória do conceito de ciência. A conclusão que pretendo estabelecer segue-se então imediatamente: se o problema filosófico da demarcação é parte de uma discussão estéril e desimportante, então ele deve ser abandonado. Esta primeira variante aparece freqüentemente nas obras de Popper; ele a menciona praticamente todas as vezes em que faz qualquer comentário sobre uma questão terminológica. Uma das maneiras pela qual ele a expressa é a seguinte: ele apresenta esta tabela:
e então comenta:
Minha tese é que o lado esquerdo desta tabela não tem importância em comparação com o lado direito: o que nos deve interessar são teorias, verdade, argumento. Se tantos filósofos e cientistas ainda pensam que conceitos e sistemas conceituais (e problemas de sua significação ou do significado de palavras) são comparáveis em importância a teorias e sistemas teóricos (e a problemas de sua verdade, ou da verdade de proposições), então estão ainda sofrendo do erro principal de Platão. Pois conceitos são em parte meios de formular teorias, em parte meios de sintetizar teorias. De qualquer modo, sua significação é principalmente instrumental; e eles podem ser sempre substituídos por outros conceitos.
A segunda variante do antiesseneialismo de Popper corresponde à sua rejeição da doutrina - que ele denomina "essencialismo metodológico" - a respeito dos fins e métodos da ciência. De acordo com o essencialismo metodológico, "o fim da ciência é revelar essências e descrevê-las por meio de definições" (4, voi. I, p.46). É claro que essencialistas metodológicos têm que rejeitar a primeira variante do antiessencialismo de Popper a tese da desimportância de palavras, conceitos e definições. É possível, por outro lado, rejeitar esta tese sem adotar o essencialismo metodológico.
Um dos argumentos que Popper apresenta contra o essencialismo metodológico baseia-se numa comparação entre a concepção essencialista de definições e a função que definições têm na ciência moderna. A descrição de Popper do papel das definições na ciência moderna, se correta, também serve de apoio à primeira variante de seu antiessencialismo. De acordo com o essencialismo metodológico, numa definição, o termo a ser definido (o definiendum) é o nome da essência de uma coisa, e a fórmula definidora (o definiens) é uma descrição desta essência (cf. 4, voi. 11, p.20-1). Figurando uma definição como uma identidade, estando o definiendum à esquerda do sinal de igualdade, e o definiens à sua direita, Popper alega que de acordo com a concepção essencialista, a definição é lida da esquerda para a direita, no sentido de que o definiendum levanta uma questão que é respondida pelo definiens. Em contraste,
... uma definição, tal como normalmente empregada na ciência moderna, deve ser lida de trás para diante, ou da direita para a esquerda, pois começa com a fórmula definidora e reclama para ela um simples rótulo. Assim, do ponto de vista científico, a definição "um potro é um cavalo jovem " é uma resposta à pergunta 'Como devemos chamar um cavalo jovem? ' e não uma resposta à pergunta 'Que é um potro? '. (Questões como 'Que é gravidade? ' não desempenham papel algum em ciência.) O uso científico de definições caracterizado pela abordagem 'da direita para a esquerda' está de acordo com o que se pode chamar a interpreta:ção nominalista, em contraste com a inte rp retação aristo télica ou essencialista. Na ciência moderna somente ocorrem definições nominalistas, ou sej a, abreviações ou rótulos são introduzidos para resumir uma longa história. E a partir disso percebe-se imediatamente que definições não desempenham qualquer papel importante em ciência. Pois é claro que abreviações podem sempre ser substituídas pelas expressões mais longas, as fórmulas definidoras que elas representam (4, vol. 11, p. 20- 1).
As duas variantes do antiessencialismo de Popper que acabaram de ser caracterizadas são aquelas que são relevantes para o argumento do presente artigo; por uma questão de completude, vou agora desçrever sucintamente as outras duas. Em sua autobiografia Popper conta que adotou a opinião de que palavras, conceitos e definições não têm importância (a primeira variante de seu antiessencialismo) quando tinha quinze anos de idade, como resultado de uma discussão que tivera com seu pai. (cf. 5, p. 23) Ele tentou então identificar seu problema com um dos problemas tradicionais da filosofia, e chegou à conclusão que ele era estreitamente relacionado com o problema dos universais. (cf. 5, p. 25) O resultado desta identificação - que mais tarde ele passou a considerar errônea - pode ser visto em A Miséria do Historicism o (cf. p. 23-4), onde ele propõe que o termo 'essencialismo' deva substituir 'realismo' como o nome de uma das doutrinas clássicas a respeito da natureza dos universais (a outra sendo, é claro, o nominalismo). A terceira variante do essencialismo de Popper corresponde então à sua oposição ao realismo enquanto doutrina sobre a natureza dos universais.
E, finalmente, a quarta variante consiste na rejeição do primeiro dos 'Três pontos de vista sobre o conhecimento humano'. Ele formula este ponto de vista também chamado por ele 'essencialismo' - da seguinte maneira: "As melhores teorias, as verdadeiramen te cien tíficas, descrevem a 'essência ' ou a 'natureza essencial' das coisas - as realidades que jazem por detrás das aparências. Essas teorias não necessitam explicações adicionais, nem são suscetíveis de tais explicações: são em si mesmas explicações últimas, e encontrá-las é o objetivo final do cientista." (7, p. 131) Este primeiro ponto de vista sobre o conhecimento humano não tem relação com a· questão da importância de palavras, conceitos e definições; é também fundamentalmente distinto do essencialismo metodológico, apesar da ocorrência comum do termo ' essência ' em ambas as suas caracterizações: as 'essências' do essencialismo metodológico são expressas por meio de definições, as, essências <, do primeiro ponto de vista são expressas por meio de teorias.
Estas duas últimas variantes do antiessencialismo de Popper, como mencionei acima, não são relevantes para o argumento do presente artigo; daqui por diante o termo 'anti-essencialismo' será utilizado para denotar apenas a doutrina de que palavras, conceitos e definições não são importantes. Não há dúvida que ao formular e tentar resolver o problema da demarcação (e sobretudo, ao afirmar que este é o problema central da teoria do conhecimento) Popper contraria sua própria pregação anti-essencialista. Consideremos agora, sucintamente, esta doutrina. De maneira geral, creio que o espírito do anti-essencialismo do Popper deve ser subscrito. Duas ressalvas, entretanto, devem ser feitas quanto a sua maneira de expressá-lo.
A primeira é que Popper não distingue discussões sobre conceitos de discussões sobre nomes de conceitos. Discussões sobre nomes de conceitos são desimportantes, e, na verdade, triviais se comparadas a discussões sobre a verdade ou falsidade de teorias. Esta tese, entretanto, também é trivial: ninguém a contestaria nos dias de hoje. A desimportância de discussões sobre conceitos, por outro lado, é questão mais controvertida; a segunda ressalva refere-se ao que Popper diz a respeito dela. Afirma ele que discussões sobre conceitos não são importantes. Esta afirmação é aceitável, porém somente se restringida por uma expressão como 'em última análise'. A razão pela qual julgo ser necessária tal restrição deriva do fato de que, em geral, discussões sobre conceitos são apenas a forma externa em que se manifestam desacordos sobre teorias. O que afirn.o, em outras palavras, é que analisando uma discussão sobre um conceito, descobre-se na maioria dos casos que ela ' contém ' um desacord o sobre teorias. Também afirmo (e Popper certamente concordaria comigo quanto a isso) que uma discussão sobre um conceito torna-se mais clara e profícua quando reexpressa como uma discussão sobre uma teoria. A decorrência prática destas afirmações é portanto: antes de deixar de lado qualquer discussão sobre um conceito, deve-se examiná-la cuidadosamente, para que haja certeza de que ela não contém um desacordo sobre teorias; se isto acontece, deve-se reformulá-Ia em termos desse desacordo·. Popper afirma não ocorrerem na ciência natural moderna discussões sobre conceitos. Esta afirmação é enganosa. O que se nota na história da ciência é que conceitos científicos fundamentais - tais como massa, força, energia, entropia, substância, elemento, espécie, gene, e muitos outros - foram todos objeto de debates. Ele poderia redarguir, por outro lado, que estes debates, se analisados, mostram ser" na verdade, debates sobrt teorias, e que a evolução de conceitos é apenas um subproduto do progresso teórico.
A conseqüência disso tudo para o problema da demarcação é que ele deve ser deixado de lado (esta é também uma implicação do anti-essencialismo de Popper), mas que antes de abandoná-lo devemos verificar se ele não envolve alguma questão relativa a teorias. O resultado desta verificação é positivo: o debate de Popper com os positivistas sobre a demarcação é, na verdade, algo mais que uma discussão a respeito do conceito de ciência. Ele reflete desacordos sobre asserções, o principal deles sendo não tanto um desacordo sobre uma teoria, mas sim sobre a solução de um importante problema: o problema da indução. Este não é, entretanto, como Popper alega, "apenas um exemplo ou uma faceta do problema da demarcação " (7, p. 83): é um problema importante por seus próprios méritos, e deve ser tratado independentemente do problema da demarcação (e, de fato, assim o tem sido, excetuando-se o caso de Popper)··. Mas se o problema da indução for destacado do da demarcação, este não mais refletirá qualquer questão de importância: nada se perderá com seu abandono, Popper não deixou de notar a contradição ex istente entre seu antiessencialismo e suas teses sobre a demarcação. O que ele diz a respeito é o seguinte:
Desde o início caracterizei meu critério de demarcação como uma proposta. Isto se deveu em parte a meu constrangimento em relação a definições, e a minha aversão a elas. Definições ou são abreviações, e neste caso, desnecessárias. embora talvez convenientes (' definições da direita para a esquerda ', como as chamei em A Sociedade A berta) ou são tentativas aristotélicas de 'especificar a essência' de uma palavra, e então, dogmas convencionais. Se defino 'ciência' por meio de meu critério de demarcação (admito que isto é mais ou menos o que faço) então qualquer pessoa pode propor outra definição, tal como ' a ciência é a soma total das proposições verdadeiras'. Uma discussão sobre os méritos de tais definições pode tornar-se totalmente improdutiva. Esta é a razão pela qual dei aqui primeiramente uma descrição da ciência grandiosa ou heróica, e depois propus um critério que permite que se demarque - aproximadamente - este tipo de ciência. (8, p.981)
Não considero que esta passagem atinja seu objetivo de eliminar a contradição em questão. A caracterização de seu critério como 'uma proposta' não muda nada: esta é uma proposta relativa a uma definição; se definições são desimportantes, também o são propostas relativas a definições. E a respeito da última sentença da citação pode-se perguntar: porque não procedeu Popper de acordo com suas teses sobre a natureza das definições, apenas sugerindo um 'simples rótulo' para representar sua descrição de ciência heróica, em vez de propor um critério de demarcação (e alegando depois que havia resolvido o problema central da teoria do conhecimento)?
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Passarei agora à demonstração da parte mais importante da tese deste artigo, a que se refere ao problema político da demarcação. A questão continua sendo a de formular uma definição de ciência; esta definição, entretanto, é agora de um tipo diferente. A definição de que trata o problema filosófico é semelhante às definições que ocorrem em ciência, no sentido de que o termo a ser definido é considerado não-valorativo. É por issó que é possível contrastar, como foi feito acima, as teses de Popper sobre definições científicas com sua atitude para com a definição de ciência no contexto do problema filosófico, No contexto do problema político, por outro lado, o termo a ser definido é valorativo, uma vez que a ciência é considerada algo fundamentalmente bom. Esta pressuposição, como veremos em mais detalhes daqui a pouco, é absolutamente crucial para o problema político da demarcação;: se ela é abandonada, ' o problema perde sua razão de ser.
Pode-se dizer, portanto, que o problema político é o problema de formular a definição de um termo ético. Ele é na verdade, em certa medida, análogo aos problemas de definir termos como 'justiça', 'coragem ', 'piedade', e outros, que são discutidos em vários dos diálogos de Platão. Estas obras exemplificam um méto Q.o de lidar com questões éticas por meio de sua formulação como problemas sobre definições de termos éticos. Por analogia com a nomenclatura de Popper, podemos chamar este método essencialismo ético. A idéia básica do essencialismo ético é explicada e defendida na seguinte passagem extraída de Pla to: the Man and his Work, de Taylor:
Como muitos dos diálogos, Carmides tem formalmente como objetivo encontrar uma definição. Em ética, pelo menos, parece-nos de início uma manifestação de pedantismo atribuir importância a meras definições dos diversos valores. Uma definição, estamos inclinados a pensar, é na melhor das hipóteses uma questão de nomes, enquanto que o pensamento ético deveria ocupar-se de 'realidades concretas'. Se um homem reconhecer e praticar uma norma de vida nobre, importa muito pouco com que nome ele designa a ação correta, se ele a considera uma manifestação de coragem, ou de justiça, ou de temperança. Ao feito admirável pode-se facilmente, na verdade, fazer com que exiba a aparência de qualquer dessas 'virtudes'. Isto é verdade, mas não poder ser colocado como crítica à procura socrática por 'definições' quanto a questões de conduta. Do ponto de vista grego, o próprio problema da definição não é um problema de nomes, mas sim de coisas. Para que nosso julgamento moral sej a justo, e nossa prática moral boa, devemos aprovar e desaprovar corretamente. Devemos admirar e imitar o que é realmente nobre, e não podemos nos deixar conduzir a falsa teoria e má prática por pensamento confuso acerca do bem e do mal. O problema de encontrar a definição de uma 'virtude' é no fundo o problema de formular um ideal ético, e é deste ponto de vista que devemos considerá-lo. O importante é que devemos saber precisamente o que admirar na conduta, e que nossa admiração sej a dirigida ao que é realmente admirável. O fracasso em encontrar as definições significa que na verdade não sabemos o que admirar, e enquanto não soubermos isso nossa vida moral estará à mercê de um semipensamento sentimental. (lO, p. 47)
O essencialismo ético ainda é largamente utilizado nos dias de hoje; isto se vê claramente em relação a algumas questões éticas do campo da política. Na época atual, virtualmente todos os partidos e grupos políticos subscrevem a proposição de que a liberdade e a democracia são coisas boas, desejáveis. Os desacordos se dão em relação a como estas noções devem ser entendidas, diferentes partidos e grupos dando respostas diversas às questões 'que é liberdade? ' e 'que é democracia? '. Temos assim desacordos sobre valores manifestando-se como debates sobre definições de termos. Não creio haver nada de errado com o essencialismo ético em geral, entretanto, sou de opinião que ele deve ser rejeitado no caso particular do problema político da demarcação •. Vou agora explicar por quê.
Em qualquer aplicação do essencialismo ético existe um termo cuja natureza ética (mais precisamente, se ele se refere a algo bom ou a algo mau) não está em questão. Em debates políticos atuais, ninguém se coloca contra a liberdade ou a democracia; nos diálogos de Platão não se encontram alegações de que a coragem ou a justiça são coisas indesejáveis. Afirmei há pouco que no contexto do problema político da demarcação presume-se que a ciência é algo fundamentalmente bom. Isto em verdade é o que acontece, entretanto, a pressuposição em que se fundamenta este problema e que dá à demarcação seu cunho crítico é ainda mais forte: é a proposição de que não somente é a ciência algo bom, mas que qualquer disciplina, qualquer forma de investigação não é boa se não for científica. Chamemos esta proposição de tese cien tificista. De acordo com a tese cientificista, se uma disciplina D não é uma ciência, D não é boa. O papel de um critério de demarcação é servir de fundamento para que se possa estabelecer que algumas disciplinas particulares não são ciências. Este é o mecanismo básico da demarcação de Popper. Um critério pode ser formulado a d hoc para que certas disciplinas sej am excluídas do domínio da ciência. Se esta maneira 'ad hoc' é conspícua, entretanto, o critério claramente deixa de ser eficaz enquanto crítica das disciplinas em questão. É por isso que a alegação de Popper a respeito da fertilidade filosófica de seu critério, em particular sua afirmação de que ele permite a solução do problema da indução, tende a intensificar sua eficácia como arma crítica contra o marxismo e a psicanálise: ela pode ser vista como prova de que o critério não é ad hoc.
Um critério de demarcação não consiste num argumento a favor do cientificismo; em vez disso, o que acontece é que ele só pode ser eficaz como arma crítica se preexiste um consenso cientificista. Se aqueles contra quem a crítica é dirigida também subscrevem a tese cientificista, então é naturalmente maior a força desta crítica. Este era o caso dos alvos da demarcação de Popper, como prova a veemência com que adeptos do marxismo e da psicanálise clamavam o estatuto científico para suas disciplinas. Este fato, a propósito, explica uma das diferenças entre as demarcações de Popper e dos positivistas lógicos. Esta também tem um cunho crítico; ela era dirigida, entretanto, não contra pseudociências, mas contra a metafísica. Mas os metafísicos a quem os positivistas atacavam não subscreviam, em geral, a tese cientificista; no que lhes dizia respeito, portanto', a alegação de que metafísica não é ciência não constituía uma crítica. Em outras palavras, o termo 'ciência' não era para eles um termo valorativo, como ele o era para os pseudocientistas. Os positivistas tinham portanto de introduzir um outro elemento em sua demarcação, um termo que também fosse reconhecido como valorativo pelos metafísicos; esse termo era, naturalmente, 'sem sentido' ('meaningless'). É por isso que a demarcação de Popper é uma identidade simples;: irrefutável nãocientífico, ao passo que a dos positivistas é uma identidade dupla: inverificável = não-científico = sem sentido.
Vejamos agora como a tese cientificista é utilizada na prática. A finalidade última de Popper ao conceber a idéia de demarcação era claramente levar ao descrédito o marxismo e a psicanálise: fazer com que estas teorias não fossem levadas a sério do ponto de vista intelectual, nem tomadas como fundamento de normas de ação. O argumento de Popper baseava-se desta maneira nos princípios, de acordo com os quais as questões 'devem as teorias da disciplina D ser levadas a sério do ponto de vista intelectual? ' e 'Devem as teorias da disciplina D ser tomadas como fundamento de normas de ação? ' devem ser respondidas afirmativamente se D é uma ciência, e negativamente no caso contrário. Estes dois princípios são claramente conseqüências da tese cientificista. A tese cientificista pode na verdade ser expressa como uma coleção de princípios contendo estes dois, juntamente com muitos outros princípios análogos. Cada um desses princípios corresponde a uma pergunta relativa a uma disciplina qualquer D, e assevera que a pergunta deve ser respondida afirmativamente se D é uma ciência, e negativamente no caso contrário. Os princípios mais freqüentemente usados além dos dois já mencionados - são os que correspondem às seguintes perguntas: 'Deve a pesquisa em D ser custeada com fundos públicos? ', 'Deve a pesquisa em D ser permitida? ', 'Deve a maneira de se lidar com um problema prático que é recomendada pelos adeptos de D ser adotada? ', 'Deve um adepto de D ser levado a sério do ponto de vista intelectual? ', 'Deve D ter departamentos em universidades?
Para simplificar, chamemos as questões dessa forma questões metadisciplinares. A importância das questões metadisciplinares não pode, creio, ser negada. O cientificismo pode ser considerado como um dos métodos de se chegar a respostas a elas. Até agora limitei-me a descrever o cientificismo;: nada do que foi dito constitui objeção a ele. Perguntemos agora: qual é a condição para que o cientificismo sej a aceitável? A resposta é: para que o cientificismo seja aceitável seus princípios precisam ser utilizados em associação com uma definição de ciência tal que respostas corretas são dadas às questões metadisciplinares. Pois bem, o que sustento é que esta condição não pode, na prática, ser safisfeita - e esta é a razão pela qual o cientificismo deve ser rejeitado.
Consideremos, como exemplo, a questão 'Deve a pesquisa em D ser custeada com fundos públicos? '. É claro que a correção da resposta que se dê a esta pergunta depende de muitos fatores. Depende, de início, dos prováveis benefícios que resultariam dessa pesquisa. Esses benefícios podem ser divididos em duas categorias: os intelectuais e os práticos. Os práticos são soluções para problemas concretos que podem ser obtidas por meio das teorias produzidas pela pesquisa em D. Independentemente de suas aplicações práticas, entretanto, teorias podem ser consideradas como algo de valor apenas em virtude de suas contribuições para nosso entendimento e apreciação de algum aspecto do mundo em que vivemos. Essas contribuições são os benefícios intelectuais que podem resultar da pesquisa em D. Os benefícios intelectuais e práticos, entretanto, representam apenas um dos lados da equação, no outro encontrase o custo da pesquisa. Este não pode ser medido apenas em termos monetários: uma pesquisa pode ser intrinsecamente perigosa, pode contrariar princípios éticos, pode produzir conhecimento que é utilizado de maneira tal que a qualidade de nossas vidas é prej udicada, etc. Estes são apenas alguns dos fatores dos quais depende a correção de uma resposta a somente uma das questões metadisciplinares. Existem naturalmente muitos outros fatores relevantes para outras questões metadisciplinares. É evidente que todos esses fatores deveriam estar de alguma maneira representados numa definição de ciência para que esta definição conduzisse às respostas corretas para todas as questões metadisciplinares. Tal definição teria, portanto, que ser tão absurdamente complicada que não poderia ser utilizada da maneira pela qual as definições normalmente o são. A conclusão é de que na prática é impossível formular uma definição de ciência que faria com que o cientificismo fosse aceitável.
Afirmei acima que não considero haver nada de errado com o essencialismo ético em geral, mas que o rejeito no caso particular do problema político da demarcação. Estou agora em condições de explicar por quê. As considerações do parágrafo anterior deixam claro que, no que diz respeito a seu valor, a ciência é uma entidade extremamente complexa. O valor da ciência não consiste num só elemento, é uma combinação de diversos valores, positivos e negativos: interesse intelectual, utilidade prática, vários tipos de custo, etc. Pode-se afirmar, portanto, que do ponto de vista ético 'ciência' é um termo multidimensional, ao passo que termos como 'coragem ', 'justiça' e 'liberdade' são unidimensionais. É por isso que é possível formular para esses termos, mas não para 'ciência', definições viáveis que nos levariam a (nas palavras de Taylor) 'aprovar e desaprovar corretamente' e dirigir nossa admiração 'ao que é realmente admirável'.
A maneira de lidar com questões metadisciplinares que em minha opinião deve ser adotada em lugar do cientificismo é essencialmente a seguinte. Para começar, quando nos confrontamos com uma questão metadisciplinar relativa a uma disciplina D, consideramos as proposições 'D é uma ciência' e 'D não é uma ciência' como totalmente irrelevantes. Tratamos 'ciência' e 'científico' como termos não valorativos; eles podem ser utilizados (de acordo com alguma definição implícita ou explícita) para fins puramente descritivos, mas não tomamos o fato de D ser ou não uma ciência com indicação do valor de D, nem derivamos deste fato a resposta à questão metadisciplinar com que estamos lidan o. Este é, por assim dizer, o lado negatIvo da abordagem que proponho as coisas que não fazemos. O lado posi ivo não.tem nada de muito especial: o que fazemos em essência é traduzir a questão metadisciplinar em várias questões mais facilmente respondíveis, tais como: 'Quão bem confirmadas são as teorias de D? ', 'Quais são as prováveis aplicações práticas das teorias que podem resultar da pesquisa em D? ', ' É a pesquisa em D perigosa? ', 'Quão interessantes do ponto de vista intelectual são as teorias de D?', 'Quais são os prováveis efeitos secundários que podem resultar da solução para um problema prático que é recomendada pelos adeptos de D? ', etc. Com base nas respostas que dermos a estas perguntas poderemos então passar a formular a resposta à questão metadisciplinar com a qual nos defrontávamos de início.
A maioria das pessoas com inclinações cientificistas não se dá ao trabalho (como Popper o faz) de complementar os princípios cientificistas com uma definição explícita de ciência: elas simplesmente prt;ssupõem que a biologia, a química e, especialmente, a física são paradigmas de cientificidade, e usam proposições da forma 'D é uma ciência' ou 'D não é uma ciência' ou como propaganda genérica a favor ou contra D, ou como 'argumento' para defender sua posição quanto a alguma decisão que deva ser tomada em relação a D - como, por exemplo, se uma pesquisa em D deve ser apoiada financeiramente. Deste modo, o cientificismo preenche com propaganda um espaço intelectual que deveria ser ocupado pela discussão racional. O cientificismo também pode ser caracterizado como a atitude de apoio acrítico e admiração a tudo que é científico. Como tal, ele acaba por gerar seu oposto: a atitude de rejeição generalizada da ciência que - como se vem notando nos últimos tempos - está cada dia mais disseminada. Na abordagem defendida aqui, em contraste, não se considera estabelecido que a ciência seja um bem, nem um mal: o desenvolvimento de qualquer pesquisa, a adoção de qualquer método de se lidar com um problema prático são julgados com base numa avaliação de suas próprias vantagens e desvantagens; a apreciação geral da ciência (de acordo com qualquer definição que se queira escolher) emerge então da multiplicidade dessas avaliações particulares. Esta abordagem consiste, portanto, na adoção da atitude crítica não somente dentro da ciência, mas também sobre a ciência. Ela é, em minha opinião, a única abordagem que nos pode levar a assumir uma posição racional frente à ciência, a alocar a ela o lugar que lhe cabe em nossas vidas, a controlá-la de modo a minimizar seus efeitos negativos sem renunciar a seus benefícios.
O problema político da demarcação, como afirmou-se acima, pressupõe um consenso cientificista; sem isso, ele perde sua razão de ser. Pode-se acrescentar que, ao fornecer uma definição ' filosófica' de ciência, um critério de demarcação tende a reforçar este consenso. Se o cientificismo deve ser rejeitado, então o problema político da demarcação tem que ser abandonado.
Para concluir, gostaria de deixar claro que não creio que ninguém adote o cientificismo exatamente como ele foi aqui caracterizado. Esta afirmação também vale, em especial, com relação a Popper. Isto não significa que esta caracterização seja inútil: a representação do cientificismo em sua forma extrema pode nos ajudar a tomar consclencia de, e a nos precavermos contra uma tendência sem dúvida bastante generalizada em nossos dias. No que diz respeito a Popper, a única proposição que sustento ter estabelecido é de que seu problema da demarcação é uma manifestação de cientificismo.
OLIVEIRA, M.B. de - On the problem of demarcation. Trans/Form/Ação, São Paulo, 5: 85-101, 1982.
ABSTRACT: Since its publication, there has been no lack of attacks directed against the criterion af refutability - the solution proposed by Popper for his problem of demarcation. A more fundamentaI criticism is raised in the presen t paper: its target is the problem ofdemarcation itself. lt is shown first that Popper's work contains not one, but twa distinct and incompatible problems of demarcation. An analysis of Popper's an ti-essentialism is the starting point for the demonstration of the main thesis of the paper, namely, the thesis that the problem of demarcation should be dismissed, given that it is part af a scientistic approach to the question of the value of the sciences.
KEYWORDS: The problem of demarcation; science; pseudo-science; scientism; definitions; essentialism; ethical essen tialism.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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3. POPPER, K. R. - A miséria do historicismo. Trad. de Octanny S. da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo, Cultrix/EDUSP, 1980.
4. POPPER, K. R. - A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. de Milton Amado. Belo Horizonte, Itatiaia/EDUSP, 1974.
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6. POPPER, K. R. - Conhecim ento objetivo. Uma abordagem evolucionária. Trad. de Milton Amado. Belo Horizonte, Itatiaia/EDUSP, 1974.
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8. POPPER, K. R. - Replies to my critics. In: SCHILPP, P. A. ed. - The phylosophy of Karl Popper. La Salle, Il l., Open Court, 1974. p. 96 1-1 197.
9. SCHILPP, P. A. ed. - The phylosophy of Karl Popper. La Salle, Il I., Open Court, 1974.
10. TAYLOR, A. E. - Plato: the man and his work. 3. ed. London, Methuen, 1 929.
[1] Este artigo consiste na tradução e adaptação de partes dos capítulos 11 e X de minha tese A Critique of Popper's Views on Demarcation and Induction, defendida junto à Universidade de Londres em fevereiro de 1981. Durante a elaboração desta tese contei com o apoio financeiro da FAPESP e do CNPq, pelo qual agradeço.
[2] Departamento de Filosofia - Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação – UNESP - 17.S00 - Marília - SP.
[3] I, vaI. I, section 3- 1. (A traduçllo das citações é de minha responsabilidade, embora tenha consultado os textos das versões em português das obras de onde elas provêm - quando estas silo disponíveis.)
[4] Reproduzida no apêndice 'l de S (p. 343-6).
[5] Este é o título da versllo original de A Lógica da Pesquisa Científica.
[6] Mostro no capítulo I de minha tese que o problema da demarcação é apenas uma das formas em que os problemas fundamentais da teoria do conhecimento se podem manifestar.