DELLA VOLPE CRÍTICO DE LUKÁCS.
Wilcon Jóia PEREIRA[1]
RESUMO: Silo apresen tadas algumas críticas de Della Volpe à estética lukacsiana. Segundo o filósofo italiano, uma filosofia da arte materialista nilo poderia estar fundamentada no conceito de intuipIo. As categorias básicas seriam a de "plenitude cognoscitiva " e de "linguagens específicas". Assim, propõe-se que o sistema dellavolpiano seja levado em consideraçilo, como verdadeiro ponto de partida para as reflexões sobre arte, sobre as relações entre a obra e a sociedade e sobre o grau de saber que o universo artístico produz.
UNITERMOS: Filosofia da arte; estética; ma terialism o dialético; intuiçilo; epistemologia; dellavolpismo; linguagem; reflexo.
e, no caso da filosofia, uma procura tal que não admite nenhum pressuposto não problematizado.
Galvano Della Volpe, Crítica do Gosto.
1.1. Vamos principiar com uma citação-homenagem, que apresenta a grande virtude de lançar-nos no centro de uma problemática decisiva. "Das duas estéticas marxistas propostas em nosso tempo", escreveu Leandro Konder em Os marxistas e a Arte, "a de Lukács e a de Della Volpe - é a primeira que nos parece levar vantagem. A elaboração de uma estética marxista tanto quanto possível definitiva e completa; segundo cremos, deverá partir das conquistas do sistema lukacsiano" (7, p. 229). Leandro Konder soube recolher, no calor da hora e em cima dos fatos - em várias passagens do seu livro, mas sobretudo no capítulo dedicado especialmente a Della V olpe - pelo menos os ecos de uma complexa e rica polêmica sobre os fundamentos da estética materialista-dialética: a que opunha frontalmente os discípulos de Lukács e, para usar a expressão de Althusser, "Della Volpe e sua escola " 0, p. 55). Prestamos homenagem, assim, à excepcional qualidade e oportunidade das informações que reuniu e divulgou entre nós. Podemos não concordar com a posição que ele assumiu, tão radical e apressadamente. Vale registrar, no entanto, o pioneirismo de seu trabalho, que põe em cena de modo vigoroso, no âmbito da cultura brasileira, algumas teorias do filósofo italiano.
1. 2. Na Itália, esse confronto entre as duas orientações divergentes já se esboçava na década de cinqüenta, depois amadureceu plenamente nos anos sessenta e está ainda longe de esmorecer em nossos dias. Opera sem cessar, como pano de fundo para tão amplas discussões, a ânsia de fazer e de conhecer, o desej o de renovação dos projetos políticos, de reconstrução econômica e de desprovincianização cultural que caracterizam a vida italiana no pós-guerra. No interior do próprio marxismo elas eram alimentadas também pela desestalinização e impulsos de liberalização que o XX Congresso provocara; além disso, a notável herança teórica deixada por Antonio Gramsci fazia emergir necessariamente os temas da cultura nacionalpopular, do realismo em arte, da função do intelectual na elaboração de uma nova concepção do mundo, dos liames entre forma e conteúdo nas produções ideológicas.
Nesse esforço para definir uma "nova cultura", ressalta-se igualmente com força particular uma linha mestra: a penetração e difusão das teses de Lukács, frequentemente usadas como suportes para as investigações a respeito desses assuntos. Sabe-se do grande interesse pelos seus escritos, como revelam as magníficas traduções, os números especiais de revistas, os artigos e obras de divulgação. Tudo isso contribuiu, evidentemente, para que a Itália se transformasse num centro de irradiação do pensamento lukacsiano. Mais ainda: sua filosofia da arte chegou a ser tomada, em muitos casos, como a própria ortodoxia na matéria, uma espécie de doutrina quase oficial ou semi-oficial, contando inclusive com fortes amparos institucionais em editoras, universidades, órgãos de imprensa, agrupamentos políticos.
1. 3. Compreende-se melhor, a partir deste quadro esboçado sumariamente, um primeiro benefício da oposição dellavolpiana: tentar impedir, de todos os modos possíveis, uma identificação pura e simples entre as idéias de Lukács e a estética do marxismo. Della Volpe cuidará, para tanto, de examinar os princípios e as conseqüências daquele sistema, a fim de criticá-los explicitamente, mas com tanto rigor e pertinácia que se chegou mesmo a falar, no seu caso, de "calvinismo marxista" ". Com este procedimento vai pôr em xeque, ao mesmo tempo, o mestre húngaro e seus diluidores, estes já correndo o risco de dogmatismo e esclerose. Sai ganhando, felizmente, a própria reflexão sobre os limites, possibilidades e resultados de uma estética materialista bem fundamentada. E sempre de acordo com a concepção de filosofia que pusemos em destaque, na epígrafe: busca que não admite nenhum pressuposto não problematizado.
A incessante retomada dos princípios e resultados, em todos os domínios do saber e da práxis, será aliás um traço diretamente responsável pelo fascínio que as propostas de Della Volpe exercerão sobre os contemporâneos. Como reconhecem até mesmo os adversários da "escola", os jovens foram sempre os mais envolvidos Rossi, Colletti, Ambrogio, Musolino e outros.. •. Mas a velha-guarda - um teórico do filme do porte de Umberto Barbaro, por exemplo - também não conseguiu ficar totalmente imune·..[2]. Assim sendo, num balanço objetivo do contexto teórico da época, torna-se impossível deixar de reconhecer, como acentuou Robert Paris, que se exceptuarmos Gramsci, "é sem dúvida a obra de Della Volpe que fornece os temas maiores dos debates que conheceu o marxismo italiano" ·.
2. 1. Vejamos então quais os principais tipos de argumentos a que se poderia reduzir, na sua substância última, as objeções de Della Volpe. Se nossa leitura não falha, estamos aqui diante de dois momentos diversos no seu itinerário de filósofo da arte. Dois momentos, é bem verdade, de difícil delimitação no tempo e nos textos em jogo. Como sói acontecer, não são fases estanques. Ao contrário, freqüentemente os problemas e perspectivas se prolongam ou se interpenetram, continuam-se ou retomam-se. Mas parecem-nos etapas distintas na sua carreira e não mero expediente didático visando simplificar a nossa exposição. Esquematizando bastante, seriam as seguintes:
2.2. Num primeiro estágio, assistimos a um confronto direto, um acerto de contas bem explícito. Em meados dos anos cinqüenta, Della Volpe publica um ensaio que vale por um manifesto e um desafio: "Contraddizioni dell'estetica di Lukács" ··. Em vários outros escritos da época, todavia, localizamos ainda constantes reenvios polêmicos ao sistema de Lukács ou às posições dos seus seguidores •••. O dellavolpismo vai assim se constituindo, no seio do marxismo italiano, como oposição e alternativa claramente antilukacsiana. O breve e denso trabalho de 1954, acima lembrado, se for bem analisado já nos revelará o essencial da problemática levantada, os pontos salientes desse debate sobre os fundamentos da estética marxista.
2.3. Bem diferente, e muito mais complexa, se nos afigura a situação em Crítica do Gosto, publicada em 1960 mas depois revista e aperfeiçoada em várias edições sucessivas. Inicialmente, ocorre uma significativa mudança na própria forma de apresentar a reflexão em curso. Até agora Della Volpe costumava referirse a ela como "laboriosa investigação, distante porém de uma sistematização teórica propriamente dita". O prefácio de sua obra-prima já anuncia, entretanto, uma viragem radical, pois tentará "fazer a exposição sistemática de uma estética materialista-histórica". Nesse estágio da pesquisa, em que a filosofia marxista da arte surge como resolvida e fundada, qual será então o seu posicionamento face ao tradicional adversário?
À primeira vista, numa abordagem superficial, parece que o filósofo húngaro deixou de ser personagem central no universo dellavolpiano. Se levarmos em conta a riqueza de análises e a enorme extensão de Crítica do Gosto, poderíamos até mesmo afirmar que seu comparecimento no livro, a título de parceiro de discussão e pretexto para novos confrontos, acha-se reduzido a um mínimo indispensável. Poucas vezes é invocado diretamente e não há qualquer passagem mais desenvolvida a seu respeito. Na aparência, Della Volpe se limita a repetir, e quase com idênticas palavras, as recusas formuladas anteriormente. Tudo se processa, na superfície do texto, bem entendido, como se tivesse havido, há muito tempo atrás, uma refutação definitiva, como se não mais valesse a pena enfocar aquele pensamento datado e classificado para todo o sempre entre os "pseudomarxismos" e "marxismos vulgares ".
Debruçando-se sobre esse monumental reposittio de idéias sobre arte e sobre estética, aprendendo-se melhor a sua estrutura geral, aos poucos se desvela uma outra realidade. Não se trata, é verdade, de acusar defeitos ou pontos duvidosos, vícios de base ou núcleos merecedores de juízos cheios de reservas. Desta vez a controvérsia se aprofundou ainda mais e a obra de Lukács passa a ser recusada em bloco. Mas continua, apesar disso, uma referência obrigatória, uma das motivações e desafios essenciais para a especulação que atinge sua plena maturidade em Crítica do Gosto. Embora seja pouco nomeado de forma declarada, o autor de Teoria do Romance está assim onipresente, impregnando todas as páginas do tratado e servindo mesmo de horizonte às sutilíssimas demonstrações que aí se encadeiam.
3. 1. Examinemos em seguida, com maiores detalhes, o momento inaugural da polêmica que Della Volpe faz surgir. O artigo sobre as contradições de Lukács pode ser tomado, por uma de suas faces, como aberto elogio à sua "estatura de crítico europeu ". É o teórico, em compensação, o filósofo da arte, bem particularizadamente, que desperta as mais severas objeções; pois haveria um nítido descompasso entre a sua atuação como crítico militante, quase sempre muito original e bem informado, e a insuficiente elaboração teórica que procura lastreá-Ia. O talento, o "sólido gosto cultural" serviriam assim para cobrir muitas vezes a extrema fragilidade do pensador Georg Lukács. Mas talento e gosto nem sempre eliminam os deslizes, a exemplo do que sucedeu nas avaliações negativas de Flaubert ou de Zola. A simples ocorrência de tais equívocos - contrabalançando acertos geniais, como nas análises de Balzac, Sthendal, Tolstói, Mann - põe às claras a falibilidade do sistema que se questiona. Em outras palavras: fornece evidentes sintomas de que o crítico ainda não estebelecera um "critério estético geral coerente".
Essa defasagem, por sinal, não seria exclusividade de Lukács, ou sequer atingiria no seu caso um elevado grau de excepcionalidade. Longe disso. Tratar-se-ia apenas de concreta manifestação, embora particularmente ilustrativa, de um desajuste mais amplo e profundo, que caracterizaria todo o domínio da estética marxista: a falta de unificação entre a prática, a crítica em ato, e o sistema de princípios sobre o qual repousa. Por isso já estaria formada, segundo o autor de O Verossímil Fílmico, uma irrecusável sensibilidade artística materialista (Eisenstein, Pudovkin, Brecht, Maiakovski e tantos outros), carente não obstante de uma plena "consciência estética materialista".
3.2. Há também, no referido texto, uma acusação ainda mais radical, visando o cerne do pensamento que se submete a intenso bombardeio: Lukács abrigaria em sua complexa rede conceitual, talvez inadvertidamente, uma contradição interna. O arguto leitor que era Della Volpe não poderia deixar passar, no sistema com o qual se debatia e ao qual pretendia impugnar, a comprometedora e inaceitável manutenção de uma premissa fundamental cuja origem seria claramente idealística.
Como procede então, a fim de comprovar a existência de um tal corpo estranho, que solaparia na base todo o trabalho de Lukács, e do qual nem o mestre nem discípulos se teriam dado conta? Destaca, de ensaio muito divulgado e já antigo, a "Introdução aos escritos de estética de Marx e Engels", de 1 945, uma passagem na qual Lukács formula sua idéia a respeito da modalidade específica que assume o reflexo estéti co. Traduzindo-a livremente: "De fato, contrariamente à ciência, que resolve tal movimento [da realidade histórica dinâmica] nos seus elementos abstra tos e procura definir conceitualmen te a ação recíproca destes elementos, a arte o faz intuir sensivelmente enquanto movimento na sua unicidade viva".
Documenta-se assim a "contradição fundamental" de Lukács, a sobrevivência de noções idealistas no contexto de uma filoso fia da arte que se propõe como autenticamente marxista. Enlaçam- se, com efeito, na fórmula isolada e ressaltada por Della Volpe, dois vetustos filosofemas do pensamento idealista: a) a arte (com suas imagens, fantasias, mitos, impressões) é distinta da ciência (conceitos, razões, esquemas); b) o objeto estético leva à intuição sensível e imediata da totalidade que se representa.
3.3. Como avaliar, afinal de contas, este requisitório montado pelo filósofo italiano? Não seria apenas um excesso de zelo "calvinista"? Não teria sido mais produtivo manter Lukács preservado como aliado e companheiro de viagem na luta contra inúmeros adversários tão mais contundentes?
Parece-nos que a resposta só pode ser a favor de Della Volpe, uma vez que está em causa um ponto essencial de doutrina e de método. Trata-se de contrapor à "ortodoxia" lukacsiana a hipótese (central para uma estética de pressupostos marxistas) da plenitude cognoscitiva do trabalho de arte. Este o elemento positivo que se acrescenta, então, aos gestos de pura negatividade: a obra de arte é também uma maneira de pensar, completa, integral. A partir deste reconhecimento são finalmente rompidos os cordões umbilicais que prendiam a reflexão dialética ao pensamento idealista. Não menos que o cientista ou o historiador, também "o poeta,para ser poeta, e portanto dar forma às coisas, deve raciocinar e pensar, e logo acertar as contas com a verdade e a realidade".
Amadurece assim, no período que focalizamos, uma das teses mais originais do chamado dellavolpismo: a ênfase toda especial que se atribui ao papel das idéias e dos significados, ao valor cognoscitivo da elaboração artística. As obras envolveriam, seja na produção ou na recepção ou no ajuizamento crítico, requintadíssimas intervenções intelectuais - raciOCInlOS, conceituações, opções, descartes, comparações, associações, deduções, induções. Sob o aspecto gnoscológico não haveria mesmo qualquer distinção entre o poema (o filme, o quadro, a música, a dança) e a investigação científica. De resto, esses seriam inClusive atributos racionais comuns a todos os objetos histórico-culturais, sem qualquer possibilidade de exceção. No teorema ou na prosa narrativa, no ritual ou nos edifícios, os significados colam-se aos materiais agenciados e dão origem deste modo a "complexos lógicointuitivos". De outro jeito seria totalmente impraticável explicar/ compreender/praticar os inúmeros e essenciais reenvios do universo artístico às experiências humanas, à historicidade, às formações ideológicas. Tudo isso não implica, exatamente discriminações e operações intelectuais, como propõe a instância marxista da socialidade da obra de arte?
3.4. . Para demonstrar, contra os irracionalismos e intuicionismos dos mais variados matizes, essa hipótese de que o saber é elemento constitutivo - vale dizer: eficiente, positivo, funcional e não meramente ocasional ou exterior ao verdadeiro núcleo da obra -, Della Volpe enraíza suas pesquisas em descobertas de Brecht, Goethe ou Pudovkin, brilhantes mesmo quando fragmentárias. Ou na gramsciana vinculação necessária entre poesia e estrutura (racional, intelectual). Ou na categoria engelsiana de "tipo", fusão de caracteres universais e de traços singulares dos personagens. Ou na passagem da In trodução de 1857, na qual Marx se reporta à arte grega como fonte e modelo permanente de um prazer de gênero muito especial: o gozo estético. Neste elenco tão flexível e diversificado, porém, não sobra espaço onde se encaixe Lukács e suas concepções sobre o reflexo artístico, na medida em que continuariam dando livre curso a princípios idealísticos.
4. l. Vamos agora ao tratamento dado às posições de Lukács em Crítica do Gosto. Havíamos notado que se fazia sentir nesta obra uma considerável mudança geral de tom. Desde o início da exposição, efetivamente, proclama-se o término de um longo percurso: a definitiva elaboração de um sistema estético materialistadialético, destinado enfim a substituir as precedentes intenções de caráter mais polêmico e preparatório. O que se oferece ao leitor, todavia, apesar dessa explícita disposição, fica ainda muito distante de um completo sistema das artes. De fato, algumas passagens são dedicadas à música, à arquitetura, às artes visuais ou ao cinema, sobretudo no terceiro e último capítulo. "Laocoonte 1960". Mas o interesse por literatura é de longe o preponderante. A ponto de se poder mesmo afirmar, sem risco de erro, que estamos primordialmente diante de uma pesquisa sobre teoria da literatura, salvo uma ou outra extrapolação às demais formas de arte. Neste sentido, Lukács e seu contraditor operam, bem restritamente, na mesma zona comum de reflexão - quase tão-somente a produção literária. O que facilita sobremaneira a nossa abordagem deste período do confronto que os divide.
4.2. Toda a primeira parte de Crítica do Gosto se dedica à reafirmação das teses sobre a "co-presença orgânica ou de qualquer modo eficiente do intelecto ou discurso ou idéia".
Em verdade, no capítulo "crítica da imagem poética", que abre o livro, encontram-se reinterpretações de inúmeros poemas (Eliot, Maiakovski, Brecht e outros), mas com a preocupação de pôr à prova as teorias dellavolpianas sobre o "critério do alcance imediato, aos fins do gosto, da significação racional implicada pelas imagens poéticas adotadas ". Lukács comparece aqui, duas ou três vezes, de passagem em todos os casos, como se fosse apenas um fantasma já exorcizado há muitos anos e para todo o sempre. Repetem-se, inclusive, e quase com as mesmas palavras, as antigas restrições aos vícios e resíduos de origem idealista, que o prejudicariam irremediavelmente como filósofo da arte.
Tudo muda de figura, porém, se enfocarmos o nosso problema à luz dos ensinamentos da segunda parte, "Chave semântica da poesia". Fica bastante claro, a partir dela, que Lukács continua sendo um incisivo elemento de instigação, não obstante a freqüente omissão de seu nome. Mais ainda: Della Volpe ampliou consideravelmente o seu projeto de crítica ao lukacsianismo, como etapa necessária à fundamentação de uma estética de filiação marxista.
4.3. Talvez seja produtivo, antes de mais nada, resenhar um pouco as linhas gerais do referido capítulo. Procurar-seia, para sermos breve e irmos logo ao essencial, revelar exaustivamente que a obra de arte é conhecimento pleno, mas de um gênero muito específico. E sua particularidade vem do fato de exercer-se através de meios expressivos próprios, recursos ou processos semânticos de modalidades especiais. A irredutível tecnicidade da arte, em conexão com o "imediato alcance estético dos significados ou conceitos", causaria assim aquele prazer sui generis que não escapou à lucidez de Marx na In trodução de 1857. Esta a principal lição que nos oferece Crítica do Gosto: o trabalho artístico implica necessariamente uma dimensão semântica, que contribui sempre para a determinação dos efeitos conseguidos. Linhas, ritmos verbais, cores, estruturas narrativas, volumes no espaço, sucessão de imagens, jogos vocais ou sondagens sonoras são fatores inerentes, intrínsecos à própria gênese de tais " universos expressivos".
Se na parte inicial do livro, portanto, Della Volpe cuida sobretudo da natureza sociológica da obra, na segunda procura iluminar a outra face do mesmo problema de tão extrema complexidade: as dimensões formais, igualmente de natureza e origem histórico-culturais, mas dotadas de autonomia. Ora, o aberto reconhecimento do valor desses meios expressivos, aos quais o pensamento se enlaça indissoluvelmente, já bloqueia pura e simplesmente qualquer veleidade de intelectualismo, uma vez que esses elementos técnicosemânticos são também responsáveis pelo nascimento das representações estéticas. Por outro lado, incidem positivamente na geração dos efeitos artísticos em fusão com os significados racionais, o que basta para fazer entrar em colapso as pretensões dos vários tecnicismos e formalismos.
4.4. Esta particularidade do fenômeno artístico, bem precisamente, é que Lukács não teria apreendido de modo satisfatório, por não ultrapassar jamais a esfera unilateralmente conteudista. Recordemos, por exemplo, os passos do seu raciocínio na Introdução a uma estética marxista: a) os reflexos estéticos e científicos espelham a mesma realidade objetiva;
b) para tanto, põem em jogo as mesmas categorias lógicas, visando formá-la e recuperá-la assim pelo menos nos seus traços essenciais; c) logo, a especificidade do reflexo estético só pode ocorrer no interior dessa identidade geral, por meio de escolhas, acentuações e reorganizações ao nível do conteúdo que se busca exprimir.
Della Volpe oferece então, vis-à-vis ao lukacsianismo, uma opção distinta, em embrião desde os seus escritos da fase anterior, mas atingindo aqui sua plenitude: o critério da "diferença técnica e semântica", segundo o qual os aspectos semânticos seriam os diretos responsáveis pela feição particular que assumem os reflexos estéticos. A realidade objetiva é a mesma, para a ciência ou para a poesia, para o historiador ou para o cineasta. Não há como duvidar disso, e a insistência de Lukács é mais do que oportuna. Uma ruptura se produz, contudo, no plano da instância formal, dos variados recursos geradores de tantas e tantas linguagens específicas - pictóricas, fílmicas, literárias, arquitetônicas, teatrais, e assim por diante.
4.5. Toda essa ênfase no papel-chave que assúmem os recursos formais, na construção da obra, vem, está claro, sob o empuxe da grande evolução conhecida neste século pelas ciências humanas. Mais particularizadamente pelas ciências do signo e da comunicação - teoria da informação, lingüística, semântica, semiologia, teoria da cultura de massa e outras que seria ocioso continuar enumerando. O próprio Della V olpe o reconhece, com a habitual franqueza: "os progressos realizados no campo da linguística e a semântica em geral nos obrigam a levar em conta rigorosamente os elementos semânticos, isto é, técnicos, do opus artístico, qualquer que ele seja".
O plano de Della V olpe consiste, aliás, primordialmente, em integrar essas pesquisas sobre os sistemas de significação aos quadros clássicos do marxismo. Se as artes são organizações semânticas ou linguagens (assim mesmo, no plural, para respeitar-lhes as diversificações), torna-se muito natural e oportuno assimilar ao pensamento que se reclama de Marx todas aquelas investigações concernentes à semiótica geral da arte. No delineamento de uma estética desta ordem, concebida como teoria sociológica das linguagens artísticas, necessariamente Saussure e Hjelmslev são também guias e inspiradores. Naquela região particular das análises técnicas nas quais se destacaram como pioneiros e mestres, bem entendido, pois não há no autor de Crítica do Gosto qualquer intuito de capitular frente aos ecletismos e contaminações de critérios. Mesmo quando geniais, adverte-nos em Crítica da ideologia contemporânea, esses hibridismos jamais conseguem escapar à "fraqueza cognoscitiva".
Outra é a inspiração mais profunda do dellavolpismo. A fim de poder enfrentar os problemas que nos solicitam, o marxismo, "enquanto ciência humana por definição, tem a obrigação constante de estar à altura dos tempos e, portanto, de afinar a lógica do seu método ". Refinar e modernizar o instrumental acaba por transformar-se, no caso, em tarefa e palavra de ordem: servir-se dos resultados e métodos de exame, sem abdicar entretanto à crítica minuciosa deles, sem perder de vista a "problem atização gnoseológico-estética, e dialética" dos recursos estabelecidos em outras frentes ideológicas e culturais. Elimina-se, deste modo, no interior da filosofia da praxis e num só movimento, tanto o estéril fechamento dogmático (um certo medo ao novo, do qual Lukács está longe de ser o menos responsável) quanto as indiscriminadas aceitações de princípios estranhos ao materialismo histórico.
4.6. Esse arsenal de métodos, noções e modelos - que vão da retórica à estilística, do new criticism à glossemática, da poética estrutural à mais recente filologia - será mobilizado por Della Volpe, em primeiro lugar, contra o "espiritualismo" da estética romântica-idealista. A investigação dos meios artísticos passa a ser vista, finalmente, como desafio inadiável e de caráter primordial. E a razão dialética, capaz de absorver, de recuperar "por dentro" aqueles procedimentos técnicos, só poderia mesmo exercer uma função de vanguarda na exploração científica de tão rica veio. Em Crítica do Gosto ela é pensada, inclusive, como instrumento para uma emenda tio do vicioso e arraigado hábito mental que consiste em subestimar os aspectos materiais, concretos, físicos, dos recursos utilizados. Inversamente, uma filosofia materialista da arte coloca-os no primeiro plano e consegue ultrapassar deste modo o ingênuo purismo conteudista da estética romântico-idealista, "inimiga por constituição da técnica, das 'regras', e em suma dos meios dos quais nasce a obra de arte em geral".
A admissão de que o modus iaciendi é também um dado fundamental da significação obtida, de sua gênese e maneira de atuar, volta-se pois contra o idealismo e seus vários irmãos de leite - irracionalismos, intuicionismos, estetismos, misticismos. Mas não apenas contra eles, vai nos sendo adiantado já desde o Prefácio. Porque a Lukács faltaria igualmente uma estética dos meios expressivos, e uma tal carência empobreceria toda a sua obra de teórico da arte, estreitando-a sobremaneira. Pior ainda: confinaria seu âmbito de reflexões ao conteudismo e, portanto, ao limbo do pseudomarxismo: "E note-se, por um momento", observa o "calvinista" Della Volpe, "que esta repugnância idealista e romântica pela técnica na arte a reencontramos ainda em teóricos marxistas, ou que se dizem tal, como Lukács".
Neste nível de polêmica, então, o gume da crítica se aguça; aprofunda-se e assume feição globalizadora. Não está mais em causa um ponto interno do lukacsianismo. Trata-se, ao contrário, de desvelar sua inconsistência de base, como programa de uma estética moderna, científica e materialista-histórica. Não nos esqueçamos de adicionar, porém, a fim de não vilanizar excessivamente Lukács, que os outros filósofos marxistas da arte (ou que se pretendem tal) não foram também muito adiante neste rumo da valorização explícita dos recursos formais e materiais na configuração das obras singulares. Opera como denominador comum entre eles uma espécie de lacuna constitutiva: o solerte desconhecimento do papel específico dos meios técnico-semânticos. Fácil comprovar esta asserção. Circulam por aí, de mão em mão, textos de Plekhnov, Goldmann, Hauser, Fischer. O conteudismo triunfa neles, aliado ao sociologismo e colorido por generalidades sobre os modos de produzir objetos estéticos. Tudo se passando como se as formas e materiais de trabalho não operassem ativamente, não fizessem parte integrante da praxis que se analisa. Só de quando em vez uma exceção aparece: páginas de Gramsci, notas de Trotski sobre poesia, considerações de Brecht ou de Eisenstein, para ficarmos apenas com estes exemplos. Pouca coisa, infelizmente, e tudo sempre muito fragmentário, ao sabor das circunstâncias, sem qualquer ordenação em sistema.
4.7. Tem alguma razão Henri Arvon, por tudo isso que dissemos, quando escreve: "A estética marxista é pois uma estética do conteúdo" (3, p. 89). Ao inserir a obra de arte no conjunto da vida social, observa o ensaísta francês, não lhe restaria outra escolha senão admitir a priorida. de do conteúdo. Alguma razão, escrevemos, em tom propositalmente restritivo, pois o autor deveria acrescentar, para ser mais correto, que se verifica nesta dependência só um estágio provisório, um momento da pesquisa, uma circunstância a ser ultrapassada, e não uma inelutável necessidade. O pensamento materialistahistórico tem condições e recursos para inspirar também uma filosofia da arte que leve em conta as dimensões técnicas das obras. Essa a via indicada (iniciada) por Crítica do Gosto. Em tal contexto é que ganha seu verdadeiro sentido a negação das perspectivas lukacsianas. A estética marxista tem sido comumente um exame dos temas e visões do mundo. Inaugura-se enfim com Della Volpe uma viva preocupação com a dialética entre meios expressivos (formas, técnicas, materialidade dos signos, estruturações) e significações a serem fixadas e transmitidas (pensamentos, idéias, concepções do universo, tendências ideológicas). Eis aqui, então, a passagem metodológica para a constituição de uma rigorosa teoria geral dos fenômenos artísticos. Contradizendo Leandro Konder: a elaboração de uma estética marxista tanto quanto possível definitiva e completa, segundo cremos, deverá partir das conquistas do sistema dellavolpiano.
5. 1. Apesar de todas essas críticas, refutações e recusas frontais, nos últimos anos ainda o encontramos às voltas com Lukács. Isso é patente nos ensaios publicados em Crítica da Ideologia Contemporânea ou nas polêmicas mantidas nos anos sessenta, sobre a verdadeira natureza da dialética científica e a ruptura entre Marx e Hegel**. No dizer de Pierre Méthais, "a originalidade do dellavolpismo foi ter sido a primeira corrente radicalmente antihegeliana do marxismo ocidental no vigésimo século"·. Nesse esforço teórico, exatamente, vai explicitar-.se a raiz última da oposição a Lukács, o motivo essencial que perpassa e recobre as demais objeções ao "ídolo dos últimos hegelianos"". Sem dúvida alguma, dos vínculos com o pensamento do filósofo de lena é que derivam, no lukacsianismo, tanto o idealismo residual (combatido no primeiro momento) quanto o abstrato e unilateral conteudismo (negado na segunda fase). Por isso Della Volpe tem diante de si, nas derradeiras reflexões, aquele mesmo interlocutor de porte formidável, sua sombra e seu outro. Abrir-se-ia aqui uma nova etapa deste confronto decisivo?
PEREIRA, W.J. - Della Volpe, critic of Lukács. Trans/Form/Ação, São Paulo, 5: 55-64, 1982.
ABSTRACT: Some criticism of DelIa Volpe to the Lukacsian esthetics is presen ted. According to the ltalian philosopher, a ma terialistic philosophy of art could not be established upon the concept of intuition. The basic categories should be the category of "cognitive plenitude " and the ca tegory of "specific language ". lt is, thus, proposed that the DelIa volpian system be taken into consideration as the true starting point for the reflexions upon art, upon the rela tionships between the work and the society, upon the degree of kno wledge produced by the artistic universe.
KEY- WORDS: Philosophy of art; esthetics; dialectic ma terialism; intuition; epistemology; dellavolpism; language; reflexo
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS