PLATÃO E O PENSAMENTO GREGO.[1]

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Francisco Benjamin de SOUZA NETTO··

 

RESUMO: O Pensamento de Pla tão tem o encanto das estátuas de Dédalo: esvai-se pelos meandros do discurso, tão logo se pretenda tra var com ele uma relação de domínio. A sua correta interpretação exige que se assuma a Polis como o lugar natural no qual emerge, como a limitação que ele se propõe superar remontando à Fysis e ao Ser. Fazê-lo importa em captar o movimento que lhe é próprio, partindo da questão sobre o ente e visualizando a resposta como o enunciado de sua essência, isto é, do eidos, e de seu fundamento, isto é, do Bem como nome próprio do Ser. Determinando o ente em sua essência, o eidos é a medida de toda a adequação, da episteme à Polis.

UNITERMOS: Platão; Aristóteles; Pré-Socráticos; Homero; Hesíodo; ser; ente; eidos; forma; epÍsteme; ciência; lagos; mythos; mitologia; teologia; idealismo; racionalismo; polis; política; fysis; natureza; metafísica; física.

 

INTRODUÇÃO

Desde o Pensamento Grego, denominação e conceito, Filosofia e História confrontam-se e se alteram em sua recíproca relação. Interrogar-se sobre a racionalidade da História é filosofar sobre esta e o é também o questionar radicalmente a historicidade da Filosofia. Mas fazer ambas as coisas comporta uma resposta que não se esvazie na pura abstração, se se procede à empresa de gerar e articular um discurso que, ao ser "IOTOela", o faz sempre segundo uma certa racionalidade. A Crítica ao Historicismo tornou menos presentes estas questões, não as tornou men.os atuais: ao contrário, deixando-as em aberto, por ter permanecido tãosomente "Crítica", ela não foi até o seu próprio fundamento, isto é, nem respondeu à questão, nem precisou qual a efetiva possibilidade de uma resposta à mesma(27). Assim sendo, uma Filosofia Transcendental da História ou, mais correntemente, uma Epistemologia desta e não apenas uma Fenomenologia e uma Ontologia da História é uma questão ainda em aberto, se não na preocupação do Filósofo, ao menos na do Historiador e, em especial, na do Historiador da Filosofia. É o que se expressa correntemente quando se pergunta se a História é uma Ciência (4).

É proveitoso deter a atenção por um instante nesta última formulação da pergunta; mesmo no quadro de uma exposição que deve passar ao caso particular do pensamento antigo e de Platão em especial. Com efeito, a Ciência se concebe como obra do Entendimento e da Razão.

Com isto quer-se dizer que só é Ciência o Saber que discorre sobre o seu objeto segundo uma certa racionlilidade. Isto é o mínimo a se admitir. Ora, deste mínimo decorre o seguinte: só pode haver Ciência quanto ao objeto de um certo saber se reconhece a racionalidade, advenha esta do sujeito, seja inerente ao próprio objeto, ou associe um e outro fundamento. Pensar um discurso racional sobre um objeto privado de toda a racionalidade é uma contradição nos termos. Isto quer dizer: toda ciência e cada ciência pressupõe como seu campo, objeto ou referente algo caracterizado por uma certa ordem, algo que, de algum modo, transcende a pura indeterminação. Por conseguinte, ser a História Ciência pressupõe a racionalidade do histórico, daquilo "de que" ela é a " loToQla".

De forma muito geral, pode-se dizer que a História visa a compreender a racionalidade do devir humano no espaçotempo. Ora, ao fazê-lo, ela se conta que a racionalidade deste mover-se, de tudo o que o homem é ou realiza, não é o que há de mais accessível. A Racionalidade, a própria Razão de ser do Sujeito da Razão, tem escapado não só ao Saber Imediato, mas mesmo ao esforço mais sistemático. O Debate permanece aberto. De Hegel aos tempos que correm, reluta-se ainda em se pensar a História como o puro domínio da inconstância e do arbítrio. E, se as Filosofias da História não estão mais na ordem do dia, não obstante, faz-se História, faz-se Filosofia e a abordagem desta tem por sua via a mais habitual a sua própria História. Eis a questão a ser abordada. Ampla em excesso, ela o será, aqui, a partir do caso mais restrito da Filosofia Antiga e de seu suposto apogeu em Platão.

 

1.           PLATÃO E A CULTURA HELÊNICA

Denominar uma Filosofia "Antiga" já é começar a fazer História. Mas, o que faz uma Filosofia " antiga" ? Ao nível de uma generalidade abstrata, o fato de ela remontar no tempo a uma proximidade máxima de uma suposta origem. Ora, esta origem, como algo inserto no espaçotempo (embora a ênfase, por enquanto, seja posta no tempo) e o que dela é mais próximo são "algo", são o referente do discurso, a "História" em accepção objeti..a. Assim, poe-se a todo o pesquisador uma questão: o que precisamente tem ele por referente quando diz uma Filosofia "Antiga". Primeiramente, como já se esclareceu, a sua remota situação "no tempo". Nesse sentido, a Filosofia diz-se histórica, mas ainda em accepção crônica e, portanto, com referência a uma exterioridade inessencial. Ocorre, então a questão: quem a produziu? E esta se abre a uma outra maior: qual o seu processus de produção nas dimensões e momentos que o definem? Em meio a estas questões, nelas implicada, a questão essencial se formula: o que é precisamente esta Filosofia cujo processus de produção remonta a momentos determináveis no tempo e neste se perfaz sob esta ou aquela forma?

 

A resposta deve formular-se a partir de algo. Este "algo" é, da parte daquele que se interroga, o que ele próprio define como "Filosofia". Usou-se, aqui, a propósito e de propósito, o verbo "definir". Definir quer dizer demarcar, estabelecer fronteiras. A grande questão da História da Filosofia, visada como Saber, é discernir o que lhe cabe considerar e que níveis ou momentos de desigual importância esta consideração comporta, bem como qual a articulação racional destes momentos. O presente estudo privilegia o "caso" Platão e não por acaso. Visualizado de seu exterior, é o Pensamento deste Filósofo accessível primeiramente em seus "Diálogos". Há, depois, a Doxografia, de Aristóteles e Diógenes Laércio e pósteros. Enfim, há uma "Interpretatio Recepta ", toda u'a massa de leituras ainda posteriores, feitas de concórdia e discórdia, a seu modo também uma doxografia. O que haveria o autor de considerar? Os Diálogos? É a resposta espontânea, freqüentemente ingênua(6). Neste caso, o de se assumirem os Diálogos como momento principal e sempre instância decisiva, a História passa a ser História de um texto, isto é, de um discurso que chega ao historiador em sua tecitura escrita. A consideração vale para o "Corpus Aristotelicum" e para toda a Filosofia: esta é, em si, um discurso e só como tal pode ser historiada. Nesse sentido pode-se chegar a um acordo. Mas trata-se de um acordo ainda abstrato. Resta saber como realizar a obra que se tem por objeto a partir de um tal acordo. Com efeito, obtido este, põe-se a clássica "questão do Método"(5). Esta é tanto mais grave quanto menos se crê que não só como "Interpretatio" mas mesmo como simples "inventio".

O caso "Platão" é privilegiado na História da Filosofia. Para uma historiografia menos preocupada com a Crítica ao Historicismo do que com a sua própria racionalidade, nele, Platão, o que se depara é a racionalidade do mundo helênico. Sem dúvida, também, para ela tudo principia por uma "quaestio disputata". Do epos homérico ao logos platônico, caminhou-se. Pode-se pensar que este caminhar foi um mero aglutinar-se, uma justaposição no tempo do que se acotovelou no espaço. Mas nada assegura a ninguém que esta confusão seja mais do que aparência. O primeiro sinal disto é o próprio despertar no homem da preocupação histórica: resta sempre a aporia de o acaso jamais poder ser pensado sem a necessidade. De qualquer forma, admitida a racionalidade, pode-se pensar que esta se instaura sob a forma de uma evolução homogênea ou de uma Dialética na qual, de algum modo, cada momento é o contrário do que o antecede.

 

No que concerne a Platão, admitida a última via, ao menos porque mais árdua, este momento antecedente, mas também englobante, é uma totalidade concreta: a Polis grega com sua praxis própria, a política, e com suas formas simbólicas e teóricas, muito especialmente a Tragédia e a Filosofia e esta aberta à "tÚOIÇ" ou restrita ao "VÓjlOç"

Esta questão não é, porém, debatida sob a forma de um Tratado Sistemático e muito menos segundo uma Didática que pretenda transferir conhecimentos como quem faz a água fluir de um vaso a outro (13). A forma de seu Debate, sabe-se, é o Diálogo. Este, por sua vez, não deve ser concebido como um simples gênero, na acepção meramente formal da Palavra: o seu autor é, neles, o Mestre mesmo da Academia a fazer fluir o Pensamento vivo. É no elemento do Diálogo, desde a invenção da Maiêutica, que aflora tudo o que vem a ser na Fysis e tudo o que vem a ser a Polis. Em verdade, mesmo reconhecendo a relatividade de cada homologia considerada em separado, Platão reconhece, antes de Aristóteles (3), que a gênese do saber se processa a partir do que é mais chegado ao homem que a empreende. Parte-se daquilo com o que se faz fronteira: empeiria, a experiência é limitação. E o que articula o helênico com a Fysis e o Ser é a Polis ! Parte-se dela como "niQaç", como Finis e Terminus, como limitação. Sobre ela o Pensamento incide primeiro; os primeiros Diálogos debatem as suas formas e instâncias, valores e figu'raso Entretanto, desde o início pode-se notar: a força do Diálogo mede-se pela radicalidade com que a questão se imposta e responde. O que se procura é "aUTO TO E:I doç...,... T T 'IV Id{au" (7).

O contexto deixa claro que esta, a idéia, responde à questão: "-?IÇ nOTI') ÉOTlV" (8). Em verdade, uma limitação não é posta se não para ser transgredida: a própria Polis remete a suas raízes na Fysis e esta a seu Fundamento: a questão "o que é" só pode encerrar-se com o desvelamento do Ser. E o próprio Saber, se, na condição presente do homem, não pode prescindir da gênese, só se perfaz quando a transcende e se eleva ao Bem: o seu lugar natural é a verdade deste irradiante.

Estas simples considerações esboçam a complexidade do quadro. Platão debate  a Polis como totalidade e a totalidade de suas relações com tudo o que recobre a "'VOII;". Seria inútil descriminar: ele o faz na totalidade de sua obra: e não é por acaso que, nesta, circulam e se confrontam todos quantos a construíram e disseram. E o que se intenciona alcançar é algo que a tudo comunique a unidade cabível: se se sujeita "vój.to <;" a "'tlOI<;", quer-se transcender a simples exterioridade e superar o que é em parte. A "'tloi<;" simplesmente vista e auscultada, calculada e medida, recobre algo que a transcende: c "E:;óo<;". É quando a demanda deste SI instaura que se pode falar em Filosofia.

 

2.    ;O PENSAMENTO E O EIDOS

O " E: óo <;" é o "ens realissimum ". É ele o princípio de todo o ser e de todo o saber. O que ele não é em sentido próprio, ele o fundamenta ou origina, a um título de aparência, "'alvoj.tE:VOV", de apreeno, "j.tá9E:OI<;", ou de entidade segunda, "TOj.tIXTOV" (24). Ele é ainda o fundamento do múltiplo enquanto multiplicidade transcendente e transcendental, "Tà E:I')" (14). É ele, enfim, o UNO em que âtudo se resolve em seu ser, o próprio SER em absoluto, " T' àÀa9óv" (22). Determinar as precisas relações entre o " óo<;", enquanto uno e múltiplo, e todo o espectro do "j.tíXTOV", isto é, do que é mesclado do "j.t), ót", eis o primeiro desafio da historiografia filosófica do platonismo. Isto se não se pretender que as articulações do discurso constituam um ser em si e para si. E este desafio é tanto mais sério quanto implica a compreensao do "tióo<;" e do Bem que Platão reconhece à "AlaÀE:XTlXI')'ln L<;Tr}j.tI') " (2 1).

A questão axial do Platonismo é, portanto, em um primeiro momento, a questão sobre o "tlóo <;". É quando a dificuldade emerge: nem o discurso platônico nem a sua doxografia mais qualificada expõem as determinações, senão exaustivas, ao menos suficientes deste "E:ióo<;". Ac contrário, ao refletir criticamente sobre o seu Pensamento mais maduro em "O Parmênides " (1 5), o próprio Platão permanece ao nível da questão, do desafio que resulta em aporia e o resultado é uma exigência: a invenção de um novo "JiE9o<;", de um caminho até então o desconhecido mas insuspeito. Deste caminho, nenhuma exposição sistemática é oferecida nos Diálogos Posteriores. Donde só restar ao intérprete a possibilidade de tentar descobrir os seus segmentos na estrutura dos Diálogos. Nesta Procura, a Maiêutica e a Dialética demarcam os extremos. Na primeira, trata-se da inventio, da gênese "do" e "no" Saber: na Dialética, remonta-se para além da simples l" ólávo la" em demanda do Bem e não só de sua j.t1ÍrJj.t1') (20). A retratação deste esforço ingente divide os intérpretes. Sem ele, todavia, o que fica é a tirania dos doxógrafos, de ontem, de hoje e de sempre.

A "inventio" do " t óo<;" faz com que o "vou<;" e a "'eovl')o<;" se voltem para a "tpuXI')"". A questão se desvela clara desde o seu amadurecer, à altura da composição do Menon. Neste, ao logos erístico do interlocutor, responde Sócrates com um Mythos. Eis a aporia: não me é possível vir a saber o que sei, porque já o sei; nem o é o que não sei, pois não me seria possível discernir se o que alcancei é o que procurava. O Mythos em que se enuncia a resposta propõe simplesmente a Doutrina dita da Pré-existência da Alma, momento e fundamento de uma precognição desta. Mas o significado deste Mythos se descerra em seguida. As palavras de Platão são de meridiana clareza:

"ATE: yàe Tll<; 'tlOE:W<; d-náol')<; OtlYYE:VOÜ<; OUOI')<;, xal j.tE:j.ta{J1') X ti ía<; TI{<; tptlxij<; ánavTa, ovdEv XWÀÚE: I f.V j.tÓVOV avaj.tVI') 09E:VTa, o ói! jJ.á9l')olv xaÀotlolv avgewnol, TaUa náVTa aVTov avweúv, Ê.áv TIl; ávóeúo<; I') xal j.th ánoxáj.tvl') I')TWV TO yae I')Tdtl lxea l Tb jJ.av(jávE: lv clváj.tvl')ol <; oÀov f.OTív. (12)

É, portanto, em uma natureza toda congênita que a alma é e conhece. O exercício com que o escravo faz as vezes de prova: uma prova ao vivo (13 ). Desde então, estava traçado o destino do Platonismo. O Banquete é o prelúdio do que esta de servir: o Fedon e Fedro hão de traçar uma ontologia da Psyché; "A República" VI-VII de traçar-lhe uma primeira visão sinótica de sua Metodologia

Geral, a doutrina em que o Logos, como Via para o Bem, se eleva até a "AIO'ÀElCTllCt1 ÉntOTI'ÍIJT} ". Com isto, o Logos, no início procurado como refúgio a preservar a Alma contra a cegueira decorrente da contemplação direta dos entes sensíveis, se desvela capaz de superar a aparência, elevando-se ao que efetivamente é (9).

3.             PLATÃO E A POUS HISTÓRICA Um outro desafio para a abordagem histórica do platonismo consiste em se estabelecer o nexo entre a forma teórica que constitui e o Mundo Grego, mas precisamente, o kosmos que, como Polis, emerge da "+iíou;". O próprio Platão fornece o itinerário que se deve percorrer para estabelecer esta relação, não com seus escritos políticos, mas no conjunto de seus diálogos, desde a juventude aos derradeiros escritos. Trata-se de toda uma trama de nexos, tensões, antagonismos. Uma leitura atenta pode mostrar que a Polis platônica, em verdade um logos, quis ser e efetivamente foi a Polis genuinamente grega (23 ). Mostrá-lo exige texto e tempo. Certamente, não que o negar: para Platão, a Polis histórica foi sempre a corruptela da Polis efetiva, da Polis em seu "E!ÓOt;", aquela que, , torna efetivo o "E!ÓOt;" da tX:rJ". A História desvela a Polis em sua aparência ao imitá-la: esta aparência pode iludir se for a aparência da verdadeira Polis: eis o caminho. Na "f.lClCÀrJoía", -na assembléia de escopo político, ela debate o seu destino; na Democracia, este Debate põe em confronto a totalidade das formas qye, desde a apancia, conduzem ao "dóo t;" (16). Com  isto, o Platonismo se ergue como o termo racional, lógico, isto é, v ÀóY8-l " de todo o Mundo Grego. Todavia, para o realizar, tem ele que o negar.

Esta negação, para alguns, é a supressão da Polis (26): no "logos" de Platão ela se dissolve, este logos é a forma teórica que assinala o momento de sua dissolução. Todavia, devidamente lido, o discurso platônico aparece como uma procura da Polis verdadeira e justa face à experiência histórica da Hélade. Desde os seus agentes e instituições, é ela o desafio de que se parte e a que se retoma. E quando a questão sobre a Justiça se imposta, então, por inteiro, é ela posta em questão. Nessa altura, negada como experiência, a supressão que esta negação ongma concebe-se como a via para a verdade que lhe é própria. A dissolução do ilusório e do simplesmente aparente tem por escopo o perfeito. Se, como se disse, é a Polis o elemento em que o Diálogo nasce, é ela também a proposta e o Projeto a que ele chega. Com efeito, a contraproposta à Polis histórica é a Polis segundo o seu Pa· radigma e o seu Logos (18), não o Despotismo persa ou qualquer forma de Imperialismo Oriental (1 1). Em verdade, se o discurso platônico é a forma teórica a assinalar o momento em que a Polis se dissolve na transgreso de sua "nCQa t;", isto é, em sua experiência, a supressão que ele opera é também o nascimento da Política como Logos fundado e fundante a assinalar e dizer que é possível, sob formas a descobrir e criar, totalizar na Política como Praxis todo o fragmentado espectro da prática humana.

4.           PLATONISMO E HISTÓRIA

O desafio representado pelo pensamento de Platão é, portanto, geral e especial, teórico e prático. É geral, isto é, não é uma exclusividade do Platonismo: em toda a Filosofia depara-se com um discurso e, desde então, a sua História passa a ser a História de um Discurso. Simplesmente afirmado, isto equivale ao óbvio: en tretanto, o que seja a História de um Discurso e em que medida tem um discurso uma História é, a partir desta constatação, uma questão a ser determinada e uma questão cuja resposta de ser determinante para o trabalho do historiador. Entre outras coisas, é sempre um espinho a relação a travar com outros discursos. No caso de Platão, isto é problema, antes de tudo, no que concerne à sua relação com Sócrates.

O contraste com Sócrates ajuda a compreender o que tem de próprio o Platonismo, ao mesmo tempo que assinala o desafio comum a se fazer História da Filosofia. Sócrates nada escreveu: é o que assevera toda a tradição a seu respeito. Nem por isso a História de seu Pensamento deixa de ser a de um discurso: um discurso que tem de próprio ser o de outrem, de Platão, de Xenofonte, de Aristóteles, dos doxógrafos posteriores. E não é preciso insistir o quanto isto é oneroso a quem faz História. Ora, discípulo maior de crates, Platão tem de especial, de próprio, o ter sido o Filósofo-escritor por excelência, o que foi à revelia de sua mais radical concepção da Linguagem (1 0). Nele, o Discurso filosófico adota um gênero, o Diálogo e, neste, compromete toda a Filosofia anterior e grande parte da Cultura helênica com o debate e a " ICQ IÓI l;" a que Platão a submete. Em verdade, trata-se de um gênero em acepção ontológica e não meramente formal: com ele o seu Pensamento se compromete " E"ICW V", ainda que se comprometa apenas " Qr-ICWV" com a sua forma escrita. Todavia, a Teoria do Diálogo apenas se esboça, o que não dispensa o historiador de a procurar, mas, ao contrário, o obriga a encontrar uma totalidade a partir de indicações esparsas e mediante uma análise estrutural. Ora, uma análise de tal ordem, por mais que aspire a neutralidade científica, converte-se facilmente em um ardil e em uma armadilha. No caso de Platão, a hora e a vez têm sÍ/jo, quase sempre, a da caça, escapando 0- Logos à análise. As "exigências" do texto fragmentam a leitura e o historiador é a vítima predileta desta fragmentação, cujos escombros tem que recompor para recobrar o significado maior do discurso, perdido ao termo da dissecação operada pelo analista. Com efeito, o que resta, após uma análise estrutural, é uma certa relação no interior do "espaço gráfico": o que se tem em conta de "o tempo lógico" pode recobrar-se no interior de uma leitura, de uma "lectio ", irredutível à simples análise estrutural. O que se pretende, com estas considerações, não é a supressão desta, mas a sua redução ao estatuto que lhe cabe de "momento " da leitura integral de qualquer discurso.

Todavia, não é só a estas questões que se reduz uma consideração histórica do Platonismo. Haveria ainda a considerar a relação de Platão com o Mito, com os Pré-Socráticos e com Aristóteles. No que concerne à sua relação com o Mito, o que aqui se pode dizer é menos do que um escorço. Importa, entretanto, assinalar que ela não se inscreve na tensão MitoLogos, tal a formulou a sua interpretação ocidentalizada. Ao contrário, esta tensão deve ser assumida quando, como e se verificar a sua ocorrência. Em rigor de termos, Platão considera o Mito um Logos e, como tal, solidário deste na antítese que lhe é própria, a que se trava entre o verdadeiro e o falso (1 9). É com fundamento neste pnncípio que se articula toda a sua Crítica às formas assumidas pelos Mitos nas Mitologias de Homero e Hesíodo e, a fortiori, a todo o mitologar (17). Por isso, Mito e Logos fluem dentro de seu Pensamento, aquele integrando este último como a totalidade na qual convive com a forma nova da Filosofia, que vivifica, na qual sobrevive e que demarca em seus extremos limites (25). Vale aqui o que se afirmou acima a respeito do Pensamento: sendo o seu lugar natural a v"erdade que irradia do Bem, do Ser, o que importa é que as formas concretas nas quais perfaz o seu devir lhe sejam adequadas, isto é, sejam verdadeiras e não o limitem, bloqueando o processus segundo o qual se eleva em direção a este mesmo lugar (19). No Diálogo, o Mito não é apenas um recurso ou um momento necessário: é ele também um interlocutor que vive e se renova.

Interlocutores e Personagens são também os Pré-Socráticos e, com eles, as suas respectivas Filosofias. Mesmo breves, as considerações aqui tecidas sobre o "tlóoç" denotam o quanto o Logos platônico levou a sério a radicalidade da questão com a qual a Filosofia veio à luz: a questão sobre a" áexrf". É esta radicalidade que o faz debater o todo representável do Kosmos, remontando da Polis ao Ser. É ela igualmente que o leva a assumir a sua mestria e paternidade, mesmo sob pena de vir a cometer um parricídio (23). Para ele, é necessário ir além da Pré-Socrática PósParmenídea se se quiser fazer face à aporia eleática cumprindo a exigência de encontrar um novo "1lE:90óoç" (1 5). Nesse sentido, não é suficiente ir além da praxiologia sofística, mas importa superar todas as restantes soluções: é necessário elevar-se a um Logos mais radical que tenha um valor de via em que os entes se deixem visar em sua verdade (2 1). E isto, Platão o realiza em permanente Diálogo com todo o Pensamento Grego. É nessa perspectiva de um Diálogo permanente que cabe dizer uma palavra sobre Aristóteles. Este assinalou com suficiente clareza as suas diferenças em relação ao pensamento do Mestre (1). Aqui cabe apenas ponderar o seguinte: o caráter dialogal do pensamento platônico, a visão do filósofo de "A República" mas também de "O Parmênides" e o incansável afã de pensar radicalmente geraram uma abertura que o Estagirita ocupou de direito, mas que cabe a todo aquele que assuma em espírito e verdade a missão de pensar (2).

 

CONCLUSÃO

O diálogo platônico tem de próprio pretender satisfazer a uma necessidade racional e a uma racionalidade necessária. É a este título que ele constitui um problema teórico: importa determinar o que é essencial ao diálogo, o que não lhe pode faltar sem uma "+90Qá" total. Pode-se falar das leis do Diálogo como se pode falar das leis do trágico. Mas, onde encontrá-las? Em verdade, a teoria platônica do Diálogo tem a forma de uma prática. Nesse sentido, uma caracterização dos "momentos" de cada "Diálogo", do seu "movimento", das exigências impostas à sua continuidade, é de capital importância. Sem ela, não se passa de um arranjo meramente exterior a recobrir um simples monólogo.

A prática do Diálogo: eis a questão. O Diálogo como todo, na totalidade de seus componentes, na dialética de suas personagens, cujos discursos se confrontam e interagem, eis o desafio. O Diálogo é como praxis coessencial ao " vouç", o Diálogo, "dIa + Àoyoç" isto é, a forma substanciosa do " Àoyoç", a sua forma forte, o único devir plenamente capaz do Ser. O Diálogo, o Platonismo exposto à História, a opor-lhe o repto de o reencontrar aticulado na letra, na " A.IÇ".

 

 

SOUZA NETTO, 'F.B. de - Plato and lhe Greek thought. Trans/Form/ Ação, São Paulo, 5: 35-42, 1982.

ABSTRACT: Pla to 's thought is as charming as the statues of Dedalus: it disappears into the meanders of the discourse, as soon as one proposes to esta blish with it a dominance relationship. The correct interpretation of Plato 's thought demands the assumption of the Polis as the natural place from which it emerges, as the limitation which he proposes to surpass remoun ting to the Fysis and to the Being. In order to do it, it is important to catch its peculiar mo vem en t, starting !rom the question about the being and visualizing Ú1e answer as the statement of its essence, i. e., of the eidos, and of its founda tion, i. e., of Good as the proper name of Being. As it determines the being in its essence, the eidos is the measure of the whole adequacy, from the episteme to the Polis.

KEY- WORDS: Piato; Aristotle; Pre-Socratics; Homer; Hesiodo; being; creature; eidos; form; episteme; science; logos; myth; mythology; theology; idealism; racionalism; polis; politics; fysis; nature; metaphysics; physics.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Jornal com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

 



[1] Comunicação pronunciada pelo autor na mesa de debates sobre " Antiguidade Clãssica: Os impasses do Historiador", durante a VI Jornada de Filosofia e Teoria das Ciências Humanas na UNESP - Campus de Marília, no dia 23/09/81.

[2] Departamento de Filosofia - Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação -'- UNESP - 17.S00 - Marília - SP.