Comentário a “La condición del académico en la época técnica”

 

Robson Costa Cordeiro[1]

 

Referência do texto comentado: Bula, Germán Ulises Caraballo; Rodríguez, Hernan Ferney García. La condición del académico en la época técnica. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 2, 2021, p. 179 – 196.

 

O artigo promove um questionamento original sobre o dilema que assola o acadêmico das humanidades, no mundo contemporâneo, submetido, por um lado, ao enquadramento do sistema avaliativo das ciências, fundamentado no caráter matemático de antecipação, previsão e cálculo,o qual fornece a base para a análise quantitativa e supostamente objetiva do real, e, por outro lado, tendo que atender ao caráter próprio das humanidades de questionamento da vida e das concepções da natureza e do mundo cultural e social, os quais se impõem de forma padronizada e estereotipada, na modernidade.

Mostra bem como a filosofia e as humanidades acabam se enquadrando na locomotiva do sistema produtivo, aos padrões quantitativos de análise, devendo atender ao requisito de número de publicações em revistas e periódicos indexados, que possuem prestígio no mundo acadêmico e que constituem uma espécie de “corporação intelectual”, fazendo com que a atividade do pensar apareça como “empresa cultural”. O texto se desenvolve bem, principalmente em um diálogo com Michel Henry e com alguns outros pensadores importantes da filosofia, além de também estabelecer um diálogo frutífero com a poesia, evicenciando que, segundo Henry, a época moderna faz abstração do mundo da vida, instaurando a representação do real como o que pode ser medido e quantificado.

O enquadramento nesse mundo abstrato é tão gigantesco que não se dá conta do próprio enquadramento e, portanto, não sabe que a abstração também é algo produzido pelo mundo da vida, como forma de proteger o homem do desamparo diante da existência, mas que, no entanto, acaba encaminhando-o para a dispersão e a barbárie do mundo moderno, o qual só considera real o que pode ser medido e calculado, o que pode ser representado e antecipado pelo cogito, pela razão.

Conforme frisam Bula & Rodríguez (2021, p. xxx), ao se referir a René Guénon, o nosso tempo é o “reino da quantidade”, que exige a padronização e a homogeneização de tudo, inclusive do homem, em nome da funcionalidade, do controle e domínio sobre a vida. Acerca disso, Heidegger faz a seguinte ilustração, na conferência “Ciência e Pensamento do Sentido”: “Uma frase de Max Planck diz: ‘real é o que se pode medir’.” (HEIDEGGER, 2001, p. 49).

Tudo isso, conforme é indicado no início do artigo (p. 2), se estabelece sob a égide de uma determinada forma de desocultar o real, que vai constituir a essência da técnica e dos objetos técnicos. O artigo revela que esse enquadramento se dá sob a estrutura da composição (Gestell), conforme foi pensada por Heidegger, na conferência “A Questão da Técnica”. No entanto, não chega a desenvolver como se articula essa estrutura para promover o referido enquadramento. Tendo em vista esclarecer um pouco como Heidegger desenvolve essa articulação, observamos inicialmente que, em “O Tempo da Imagem do Mundo”, ele sublinha que

[...] aos fenômenos essenciais da modernidade pertence a sua ciência. Um fenômeno de um nível igualmente importante é a técnica de máquinas... A técnica de máquinas permanece o rebento até agora mais visível da essência da técnica moderna, a qual é idêntica à essência da metafísica moderna (Heidegger, 2002, p. 97).

 

Nessa obra, Heidegger desdobra a questão decisiva sobre o primeiro fenômeno essencial por ele descrito acima, ao colocar a seguinte indagação: qual a concepção de ente e a interpretação da verdade que constituem a essência da ciência? Segundo ele, na modernidade o ente é concebido como objeto – enquanto ente à disposição, supostamente conquistado e objetivado, portanto, tornado imagem – e a verdade é interpretada como a certeza do representar, de modo que, quanto mais objetivamente aparecer o obiectum, mais manifestamente se erguerá o subiectum, revelando que a representação objetiva e planificada do mundo é, na verdade, um feito da subjetividade, não sendo, portanto, nada objetivo. A subjetividade, no entanto, é uma engrenagem da com-posição (Gestell), o que mostra que a ciência e a metafísica moderna já se encontram regidas pela essência da técnica moderna, que articula os dois processos: 1) que o mundo se torna imagem; 2) que o homem se torna sujeito.

Na preleção de 1929, “Que é Metafísica?”, Heidegger declara inicialmente que a totalidade da existência que interroga é determinada pela ciência. O que acontece então, pergunta ele, nas raízes da nossa existência, desde que a ciência se tornou a nossa paixão? Ele mostra que, disperso na multiplicidade das disciplinas científicas, o Dasein perdeu completamente o enraizamento das ciências. A ciência procura dar a última palavra sobre a própria coisa, o ente. Dar a última palavra significa: controlar, sujeitar, colocar o ente a serviço do sujeito. No entanto, o controle das coisas é a projeção, nas coisas, da subjetividade.

  Essa paixão pela ciência, assinalada por Heidegger, revela uma fuga do desamparo diante da existência, evidenciando que a ciência, em sua peremptória afirmação do ente, ao dizer que “[...] pesquisado deve ser apenas o ente e mais – nada” (Heidegger, 1979, p. 36), repetidamente rejeita o nada, embora, desse modo, acabe por admiti-lo, como aquilo que se deve abandonar. O nada, como o mundo da vida, é o que a enorme força da com-posição (Gestell) precisa sobrepor, ao só tornar admissível como real o que está à dis-posição, o que está disposto para o sujeito como reserva disponível, matéria-prima. Todo o mundo, dessa forma, se torna um enorme reservatório de combustível. Ciência e técnica são os instrumentos a serviço da essência da técnica, da enorme força da com-posição.

Bula & Rodríguez (2021, p. xxx) ressaltam que “[...] la técnica, vale la pena aclararlo, es algo maravilloso y poderoso; de allí proviene el peligro.” No entanto, conforme assevera Heidegger, em “A Questão da Técnica”, “[...] a técnica não é perigosa. Não há uma demonia da técnica. O que há é o mistério de sua essência.” (Heidegger, 2001, p. 30). E um pouco adiante, acrescenta: “A ameaça, que pesa sobre o homem, não vem, em primeiro lugar, das máquinas e equipamentos técnicos, cuja ação pode ser realmente mortífera. A ameaça propriamente dita já atingiu a essência do homem.” (Heidegger, 2001, p. 30). Faço aqui apenas essa pequena observação, visando a contribuir com a reflexão precisa e rigorosa desenvolvida pelo artigo.

O que ameaça, por conseguinte, o perigo, está na essência da técnica, que se retrai, se encobre, deixando patente apenas o mundo técnico. O perigo é o não saber da essência da técnica e, conforme Bula & Rodríguez (2021, p. xxx), à medida que a compreendamos, ela “[…] será para nosotros un elemento más del mundo, sobre el que podemos tomar postura de forma soberana.” É por isso que a salvação, para Heidegger, não é a saída do perigo, mas poder saber que se está nele, chegando assim à sua essência e fazendo-a aparecer em seu brilho, conforme enfatizam Bula & Rodríguez (2021, p. xxx), ao afirmar: “[…] sea el Minotauro figura de la estructura de emplazamiento, representante de la Barbarie. ¿Qué debe hacerTeseo? No es, en este caso, un asunto de matar al Minotauro, basta con comprender el laberinto, con conservar el hilo de Ariadna.”

Mas como compreender o labirinto? Como conservar o fio de Ariadne? Como, no perigo, conservar o que salva? Não seria preciso que o próprio perigo crescesse e se enraizasse como perigo, fazendo assim aflorar aquilo que o sustenta e fundamenta? A essência, o fundo, as raízes do perigo, desse modo, não viriam à superficie? Na cumulação e acabamento do mundo técnico, o que vem à tona, à superficie, é a essência do perigo, que não é nada técnico, nada que possua fundo, mas a própria essência da técnica, que representa tanto o perigo como a salvação.

 

Referências

Bula, Germán Ulises Caraballo; Rodríguez, Hernan Ferney García.. La condición del académico en la época técnica. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 2, 2021, p. 179 – 196.

HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Tradução Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2001.

HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin Caminhos de Floresta. Tradução de Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

 

Recebido: 25/4/2020

Aceito: 28/4/2020

 



[1] Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, PB – Brasil. Coordenador do PPGF-UFPB. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7890-0111. E-mail: robsonccordeiro@bol.com.br.