COMENTÁRIO a “O governo biopolítico do migrante de sobrevivência”

 

Thiago Fortes Ribas[1]

 

Referência do texto comentado: Candiotto, Cesar. O governo biopolítico do migrante de sobrevivência: uma leitura crítica da lógica do capital humano na era neoliberal. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 2, 2021, p. 79 – 96.

 

            Como entender a situação das fronteiras nacionais, na contemporaneidade, cada vez mais abertas ao livre mercado internacional e mais fechadas às populações em busca de condições de subsistência? O artigo de Cesar Candiotto sobre o governo biopolítico do migrante de sobrevivência nos mostra que, diante da expansão da racionalidade neoliberal, não há efetivamente um paradoxo na constatação de que os estímulos para a livre circulação comercial são acompanhados do recrudescimento de dispositivos securitários que incidem sobre o fluxo de pessoas. Ao contrário, trata-se justamente de uma das consequências necessárias do processo de economização da vida, no qual a liberdade de mercado não compactua com ideais de liberdade humana, supostamente sustentados por direitos universais.

Os moldes da liberdade requerida pelo neoliberalismo se encaixam exclusivamente na lógica do capital, a qual agora é aplicada sobre a totalidade das nossas existências. Assim, para o funcionamento de um sistema de capitalização das vidas humanas, não caberia às instituições governamentais qualquer intervenção visando à proteção dos indivíduos ou ao acolhimento de populações em perigo. Antes, trata-se de governar com foco na manutenção da liberdade econômica, mediante a responsabilização individual e das populações pelos êxitos ou fracassos de seus investimentos sobre si mesmos.

Já em 1979, no curso O Nascimento da biopolítica, Foucault apontava que, para o pensamento neoliberal norte-americano, conhecido principalmente através da Escola de Chicago, a forma econômica do mercado generaliza-se como “[...] princípio de decifração das relações sociais e dos comportamentos individuais.” (Foucault, 2004, p. 249). Nessa racionalização, quaisquer comportamentos humanos passam a ser julgados nos termos de um cálculo econômico determinante dos resultados futuros, na vida dos indivíduos, considerados como empresas em competição. Sistemas de amparo social por parte do Estado seriam contrários à cobrança de um aperfeiçoamento contínuo dos comportamentos individuais. Como contrapeso aos estímulos do mercado, a institucionalização de medidas de proteção ou redistribuição de renda para populações precarizadas é considerada um freio ao desenvolvimento “natural” do mercado.

Enquanto apenas elementos de um mundo comercializável, indivíduos e populações são objetivados em um horizonte de sentido no qual aquilo que importa é a capacidade de capitalização. Pensados como capital humano, são medidos pelos termos de bons ou maus investimentos, sendo naturalmente abandonados, quando em falência. A ameaça de ficar obsoleto diante de uma sempre renovada competição gera um imperativo moral de atualização de si mesmo, em um ambiente de hostilidade entre pessoas. Com isso, por meio da naturalização desse modo de enxergar o mundo pelos termos neoliberais, essas pessoas se voltam umas contra as outras, em disputas que agravam a incapacidade de criticar e resistir à organização social que se alimenta da precarização das condições sociais.

Cesar Candiotto esclarece, em seu artigo, que a gestão econômica dos fluxos opera, então, por critérios que definem a boa e a má circulação (de coisas e de pessoas), estimulando aquilo que se mostra rentável e marginalizando o que não é capaz de agregar valor ao mercado ou fazer frente ao ambiente de competição. Logo, ao invés de o mercado ser regulado por ações governamentais para atender às necessidades das populações, em regime neoliberal, são as populações que devem optar entre a normalização, respondendo aos estímulos para aperfeiçoarem a si mesmas continuamente, em vista das demandas do mercado e da ameaça do desamparo na miséria.

Dessa forma, a migração voluntária de um “empresário de si mesmo” pode ser uma forma de capitalizar-se, sendo um bom investimento tanto para ele próprio quanto para o país que o acolhe. Ao migrante voluntário isso se daria pelo acréscimo de renda e de valorização de si e de suas atividades, enquanto, para o local que o recebe, sua migração corresponde à expectativa de impulso econômico e de recursos para desenvolvimento de conhecimentos. Por sua vez, ao migrante de sobrevivência não há, de fato, escolha possível, a não ser pela conservação de sua vida. Seu deslocamento não é uma forma de investir em si como capital humano. Ao país de sua chegada, esse tipo de migrante não oferece a expectativa de qualquer vantagem econômica ou de aquisição de saberes apreciados pelo mercado. Pelo prisma do capital humano, portanto, faz-se uma diferenciação biopolítica das formas de mobilidade das populações. Aos incentivos a certa mobilidade migratória se opõe radicalmente o combate rigoroso à migração de populações miseráveis, pelo qual se deixam vidas humanas em situação de completa vulnerabilidade.

Mas como se justificam tais medidas, enquanto políticas de Estado? Sobre esse ponto, Foucault, na última aula do seu curso intitulado Em defesa da sociedade, traz uma questão fundamental, ao explicar uma das funções do racismo de Estado moderno. Se, por um lado, na modernidade, o poder político passou a ter como objetivo principal a promoção da vida da população, desde a emergência da biopolítica, o racismo será inserido nos mecanismos do Estado como “[...] uma maneira de fragmentar esse campo biológico de que o poder se incumbiu, uma maneira de defasar, no interior de uma população, uns grupos em relação aos outros.” (FOUCAULT, 1999, p. 304). Será pelo racismo que se opera o corte biopolítico entre as vidas a serem protegidas e aquelas que devem ser deixadas para morrer.

Este me parece ser um dos motivos de o artigo de Cesar Candiotto enfatizar, em suas considerações finais, a racialização dos migrantes de sobrevivência. Estes, como afirma Candiotto, são representados simbolicamente “como inimigo potencial e perigo político e econômico”. Culpabilizados pela sua miséria e vistos como incapazes de contribuir à economia local, tornam-se uma massa de indesejáveis, nos quais não se admitem as trocas culturais enaltecidas nos “bons migrantes”. Se o racismo é o meio pelo qual o governo biopolítico legitima a exposição de certas populações à morte, a racialização dos migrantes de sobrevivência se acentua, quando imbuída da lógica desagregadora da competição pelo mercado.

Com isso, percebe-se que um dos efeitos da racionalidade neoliberal é a formação de estigmas que agravam o sofrimento de variadas populações. De fato, o governo biopolítico da circulação de pessoas é uma forma contemporânea de controle, a qual regula não somente as migrações internacionais, mas também os espaços públicos em geral, como podemos constatar em qualquer cidade do Brasil. Lembro-me dos emblemáticos episódios de “rolezinhos”, que marcaram um movimento pelo direito de uma população marginalizada de frequentar locais, nos quais eram historicamente proibidos. Poderíamos também recordar todo movimento de expulsão das populações pobres dos centros urbanos.

A luta por melhores condições aos migrantes de sobrevivência aparece, portanto, atrelada a questões mais globais, a saber, o combate tanto à racionalidade neoliberal, em sua mercantilização de vidas humanas, quanto aos mecanismos biopolíticos que operam pela segregação de vidas que importariam menos. Tendo em vista que uma das principais funções da filosofia contemporânea é “[...] vigiar os poderes excessivos da racionalidade política” (FOUCAULT, 1994, p. 224) e, para que o combate a tais excessos seja eficaz, cabe à atividade crítica difundir formas alternativas de pensar a nós mesmos e ao mundo, na construção e reforço de outras relações sociais. É justamente o que o artigo em questão realiza.

 

Referências

Candiotto, C. O governo biopolítico do migrante de sobrevivência: uma leitura crítica da lógica do capital humano na era neoliberal. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 2, 2021, p. 79 – 96.

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FOUCAULT, M. Le sujet et le pouvoir. In : Dits et écrits IV (1980-1988). Paris: Gallimard, 1994, p. 222-243.

FOUCAULT, M. Naissance da la biopolithique. Paris: Gallimard/Seuil, 2004.

 

Recebido: 12/10/2020

Aceito: 20/10/2020

 



[1] Professor do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4883-8737 E-mail: filosofiathiagoribas@gmail.com.