RESISTINDO À “GUERRA ÀS DROGAS” A PARTIR DE HOMERO: A MULTIVALÊNCIA DO PHÁRMAKON NA ODISSEIA

 

Erick Araujo[1]

Gabriele Cornelli[2]

 

Resumo: Propõe-se uma leitura de três episódios da Odisseia, nos quais há o uso de um phármakon. São Helena, Circe e Hermes as personagens que administram as phármaka. Trata-se de leitura: 1) vinculada a um projeto: o levantamento e a interpretação de discursos que se distanciem e/ou questionem a perspectiva da “guerra às drogas”, algo como um projeto de extração de elementos textuais que possam servir como ferramentas teóricas, na construção de uma perspectiva menos mortífera em relação às substâncias; 2) guiada por três princípios, os quais podem ser ditos anticoloniais e antirracistas. Leitura centrada no phármakon, mas que o articula à comida floral dos lotófagos e à relação de xenía; dela, apresenta-se a proposta segundo a qual, no texto homérico, há a valorização de algo que pode ser chamado de multivalência.

 

Palavras-chave: Literatura Antiga. Homero. Phármakon. Drogas. Multivalência.

 

No mundo de hoje as pessoas não recebem mais visitas dos deuses como antigamente, a não ser que tomem drogas. (ATWOOD, 2005, p. 33).

 

INTRODUÇÃO

            Propõe-se, aqui, um exercício de uso do texto homérico, a partir de um problema nosso: a guerra às drogas. Um exercício que se pretende cuidadosamente anacrônico (LORAUX, 2005). A atenção será voltada ao conceito de phármakon como é abordado, em especial, na Odisseia,[3] distinguindo-o da comida floral dos lotófagos (Hom. Od. IX, 82-104) e, ainda, relacionando sua complexidade à crítica de Circe ao pensamento bélico univalente de Odisseu (Hom. Od. XII, 115-117). A existência e o manejo do phármakon apresentam certos problemas, no sentido de que forçam o pensamento a traçar estratégias de prudência, fazem com que emerjam certas práticas no lidar com a sua ambivalência – assim como de certa atmosfera de multivalência – que é, logo se verá, compartilhada pela relação de xenía.

            Este artigo vincula-se, portanto, a um esforço de levantamento e interpretação de discursos que não só se distanciam daquele da guerra às drogas, mas também podem apontar elementos úteis para se pensar um caminho menos mortífero em relação às substâncias (mas não apenas em relação a elas). Consiste em construção dada por um trabalho de pensamento no qual se simetrizam elementos variados (e, comumente, hierarquizados), como os da Antiguidade grega e aqueles das vidas das pessoas que fazem uso, nos mais diferentes contextos, de substâncias registradas como ilegais.[4] Tal simetrização não implica equivalência, tendo em vista que se trata de um enriquecimento mútuo das análises sobre tais elementos, a partir, exatamente, de suas diferenças.[5] Percebe-se, assim, uma preocupação com um problema nosso.

Mas recorrer aos textos da Antiguidade grega não é um ato arbitrário. Não basta seguir certo costume de, para abalar os alicerces da guerra às drogas, afirmar a existência milenar do manejo pela humanidade disso que se chama drogas, porque tal guerra é uma que se trava contra parcelas da humanidade, sustentando-se numa secção herdada e replicada, algo como um esquadrinhamento perene e mortificação permanente de seções da humanidade: barbárie-civilização, Ocidente-Oriente, Norte-Sul, Branco-Negro. O recurso aos textos da Antiguidade grega não é arbitrário, pois significa lidar com o que se instituiu como berço de tais secções. Nesse sentido, há, aqui, certa atenção a traços que podem corroborar tal instituição e traços que dela divergem. Essa atenção é necessária, já que se pretende usar esses textos, fazê-los, de algum modo, funcionar em relação a um problema nosso. Dessa forma, ao se lidar com textos da Antiguidade grega, mostram-se necessários alguns princípios que, de alguma maneira, possibilitem manter certos perigos afastados, os quais, é importante dizer, não se limitam ao anacronismo.

 

1 TRÊS PRINCÍPIOS

            O caminho a ser traçado e percorrido se dará a partir de e junto a três enunciados: “Todo problema de origem é sempre insolúvel” (BARRETO, 2010, p. 68); [...] a Guerra do Peloponeso é tão minha quanto a descoberta da bússola” (FANON, 2008, p. 186); “[...] os senhores são anjos, porque detêm o poder de se declarar anjos e aquele de fazer de nós bárbaros.” (BOUTELDJA, 2016, p. 22). Esses enunciados não são apenas incorporados ao texto, mas devem funcionar como princípios, guias éticos para a pesquisa e a escrita, são cláusulas até. Sabe-se que uma das questões a ser enfrentada é, também, de recepção e de uso (talvez o mais correto a se dizer seja: receber é usar). Assim, caberia logo responder às seguintes perguntas: por que usar certos aspectos da Antiguidade grega? Para que usá-los? E como? As respostas não serão adequadas, senão em concordância com as cláusulas apresentadas. Assim, ao se virar para a Grécia Antiga, não se trata, nem deve se tratar, de solucionar um problema de origem, de uma busca pelo berço, nada disso. Principalmente porque – e Lima Barreto já o mostrou, especialmente com o seu Triste fim de Policarpo Quaresma (ARAUJO, 2021) – as pedras retiradas do passado, quando este é visto como puro e originário, servem para a pavimentação rumo a um futuro tido como necessário e único, portanto, esmagador.

Procura-se, a um só tempo, distanciar-se de posturas essencialistas (FAUSTINO, 2013) e, sobretudo, do modo segundo o qual aquilo que se costuma chamar de Ocidente – sendo pertinente incluir aí o predicado Branco – fez uso da dita pureza de um passado originário como fonte na qual bebem os racismos/nazifascismos e suas variações, das mais duras às mais leves, suas herdeiras mais ou menos explícitas. Por conseguinte, precisa-se saber que, mesmo se tratando de um problema parcial, como parece ser o problema da guerra às drogas – cujas consequências mais danosas estão distribuídas sobre coletivos específicos, como é o caso das pessoas negras –, o arquivo disponível para ser vasculhado é aquele da humanidade, incluindo aí a Guerra do Peloponeso e a invenção da bússola. Nenhum caminho se impõe pelo fato de se partir de um coletivo mais afetado por um problema. Todavia, aponta-se para uma certa herança metodológica oferecida por esse coletivo:[6] a transformação das armas alheias em ferramentas multivalentes próprias.[7]

            Fez-se da Grécia Antiga uma arma (talvez menos potente que em outros tempos, entretanto, perigosa e ainda à disposição).[8] Por meio dela, alguns grampearam asas às suas costas, instalaram auréolas sobre suas cabeças, operação não só longa e duradoura, mas, sobretudo, permanente: os grampos são fracos, a instalação é mambembe, a manutenção é constante. E, quando se cria o anjo,[9] cria-se também o outro, o demônio. A reaplicação das classificações civilização e barbárie não é derivada apenas de etnocentrismo, é uma engrenagem em um dispositivo de guerra:[10] quem se encontra em cima pode atacar melhor, quem está embaixo torna-se alvo fácil. Não é à toa que se fala que o Ocidente invadiu o Olimpo (BOUTELDJA, 2016).

Levando isso em consideração, deve-se dizer que não se trata somente de, como demônio gestado e expelido pelos anjos, revirar suas sublimes entranhas em busca de elementos protetivos; também se tem como objetivo avaliar traços demoníacos e angelicais, os quais, sabe-se bem, não respeitam essas fronteiras traçadas como divinas. E, quando se diz avaliar,[11] já se fala em seleção, uso e oferta – pois, cabe frisar, a utilidade é uma categoria secular.

            Explicita-se, por fim, o caráter complementar da relação entre os enunciados apresentados como princípios. Não devem ser tomados isoladamente, nem subordinados uns aos outros. É a partir deles e com eles que se enfrenta o problema aqui em foco: o phármakon na Odisseia.

 

2 O PHÁRMAKON EM TRÊS EPISÓDIOS DA ODISSEIA

Cabe realçar, primeiramente, o motivo de a atenção estar sobre a Odisseia, tendo apenas em segundo plano a Ilíada. Pode-se afirmar brevemente: deseja-se focalizar nos phármaka que, por meio do corpo, principalmente pela ingestão, agem sobre o espírito.[12] Sabe-se que, na Ilíada, “[...] prevalecem os phármaka que agem nos traumas e ferimentos que acometem os corpos”; na Odisseia, por sua vez, “[...] as qualidades do phármakon estão fortemente relacionadas às emoções, ao encantamento, à cura e à transformação das dores da alma, assim como às ações específicas na memória.” (SALLES, 2018, p. 28). É esta segunda tipologia de phármaka que nos interessa aqui.

            Não se alude por acaso a prevalência, porque há, por exemplo, no poema homérico sobre a guerra de Troia, o funcionamento farmacológico que parece agir sobre as emoções. Mesmo se tratando de um uso metafórico – nesse caso, de traçar um paralelo entre Heitor, ao esperar Aquiles. e uma serpente aguardando raivosamente um homem – a passagem é digna de atenção, já que aponta para drogas ruins ou, de modo mais grave e moral, drogas malignas,[13] cuja ação parece ser aquela de gerar raiva na serpente que as ingeriu. Tal emoção é “homóloga ao ímpeto de Heitor”, o qual aguarda a aproximação de Aquiles, fazendo pensar que “[...] o narrador, ao mencionar o veneno como razão para uma criatura frágil como uma serpente querer enfrentar algo tão maior que ela quanto um homem, expressa o desequilíbrio entre Aquiles e Heitor” (WERNER, 2010, p. 20), legitimando, por conseguinte, a utilização de termos que denotam um caráter moral, dada a imprudência, aos efeitos da droga.

Por sua vez, há no poema sobre o retorno de Odisseu a menção ao caráter mortífero de um phármakon. Palas Atena, disfarçada de Mentes, conta a Telêmaco como Odisseu conseguiu uma droga para depositar na ponta de suas flechas. Lida-se, portanto, com uma droga assassina.[14] O caso parece ser o mesmo com a expressão utilizada por um dos pretendentes, ao se referir à possibilidade de Telêmaco tentar matá-los por envenenamento. Fica explícito, nesse aspecto, que se trata da ação mortífera da droga. No entanto, é possível afirmar que a expressão guarda, como que adormecido, já que não atuante no texto, o sentido de uma droga cuja ação se dá sobre o espírito,[15] em particular, agindo na sua destruição. Os episódios aos quais se dará mais atenção aqui são aqueles nos quais o alvo é o espírito, sendo os efeitos variados.

            Na Odisseia, serão destacados três momentos nos quais há o uso de um phármakon. No primeiro, a administração da substância é feita por Helena, tratando-se de um remédio. No segundo, quem o faz é Circe, lidando, nesse caso, com um veneno. No terceiro, Hermes oferece a Odisseu algo que o protegerá dos poderes de Circe; mais do que um antídoto, parece lidar-se com algo como uma profilaxia pré-exposição.

            O primeiro episódio (Hom. Od. IV, 168-305): ao saber que recebia o filho de Odisseu em sua casa, Menelau, marido de Helena, relembrou os favores que devia ao pai de seu visitante. Suas palavras tiveram como consequência direta o choro dos presentes. Chorava-se não só por Odisseu, mas por aqueles que não retornaram. Um dos presentes, Pisístrato, filho de Nestor, enquanto lamentava a morte de seu irmão, fez o anfitrião saber da impossibilidade de pensar em iguarias, uma vez que havia tristeza e dor por aqueles que foram perdidos. Menelau prescreveu, ao responder, que o choro fosse deixado de lado e que se voltasse ao jantar. Afinal, as dores provenientes das lembranças dos ausentes impediam que o banquete fosse saboreado. Além das palavras de Menelau, Helena agiu e depositou no vinho uma droga (phármakon). Além de fazer sumirem as dores presentes, diz-se que a droga protege por um dia, impedindo, portanto, um choro futuro. A droga, trazida do Egito, confortava e impediria a desolação de quem perdeu ou pudesse vir a perder algum ente querido. Servido o vinho, Helena tomou a palavra; desse modo, além do banquete, os hóspedes se deleitariam com discursos.

            O episódio é conhecido. Mas cabe destacar alguns pontos. As palavras de Menelau instigaram o choro. Ele busca, por meio de suas palavras, fazê-lo parar. Entretanto, parece difícil saber se o choro pararia, caso Helena não tivesse agido, adicionando a droga ao vinho. Por isso, não se pode saber, aqui, se a palavra do rei seria suficientemente persuasiva, a ponto de fazer cessar o choro. O que parece pertinente apontar é certa complementaridade entre o phármakon e os discursos posteriores. Por um lado, pode-se afirmar que o prazer usufruído, ao se ouvir os últimos, é permitido pela eficácia do primeiro (CASSIN, 2010); por outro, mostra-se certo espelhamento entre a multivalência do phármakon e a de Helena – pois, se há em polos opostos de um phármakon potência benéfica e maléfica, o que denota sua ambivalência, há toda uma linha da qual, ao ser percorrida até se chegar a seus extremos, podem-se enfatizar valores diversos de uso. O discurso de Helena versa sobre seu encontro com Odisseu disfarçado entre os muros de Troia. Ela o reconheceu, mas não o denunciou; assim, por ele, fica conhecendo o plano que derrotará os troianos.

O discurso que vem em seguida, em resposta, é o de Menelau, que confirma a adequação do que foi falado por Helena, mas acrescenta, relatando o momento no qual ela rodeia o cavalo imitando as vozes das esposas daqueles que se encontravam dentro dele, fazendo-os querer responder ou sair, desfazendo, assim, a armadilha. Afirma-se, portanto, toda a multivalência de Helena: aliada, inimiga, e o que há entre, como denota sua capacidade de imitar as vozes de inúmeras mulheres. Há algo mais. Já que parece pertinente levantar a hipótese segundo a qual os discursos foram pronunciados e ouvidos sem consequências dolorosas – neles se sabe do risco ao qual foram submetidos os gregos por Helena, inclusive seu marido e Odisseu, pai de Telêmaco – graças ao poder do phármakon de Helena.

            Dois pontos do episódio merecem ainda atenção: o lugar de onde Helena recebeu os phármaka, o Egito; o modo como ela administra um deles, misturado no vinho. O Egito, apontado não apenas como lugar exótico, mas também como um território de grande prosperidade, dotado de grande variedade de riquezas e de espécies (FASANO, 2019; SILVA, 2019), tem suas características visíveis indiretamente na suntuosidade e nas cores do palácio real, dados os presentes recolhidos em seu retorno da guerra de Troia, cujo trajeto inclui, dentre outras terras, o Egito. Destaca-se o momento no qual Helena sai de seu quarto perfumado e conhecem-se, de modo pormenorizado, alguns dos presentes recebidos em terras egípcias. Alguns destes estão na cena em questão, o que, de certa maneira, faz pensar que o Egito, ou certa ideia de Egito, também está presente – e ganha força, ao se saber que o phármakon utilizado por Helena também vem desse território. Ainda mais quando se caracteriza tanto o solo egípcio, realçando sua fertilidade e variedade de phármaka nele produzidos, quanto seus habitantes, como sendo todos médicos, instruídos no manejo farmacológico, atividade que deve ser precisa, tendo em vista os possíveis benefícios e malefícios dos phármaka, de acordo com suas misturas, o que denota, na cena, a presença dessa sabedoria.

Se é possível ver algo como uma transmissão de objetos – dada por meio de uma rede, não de comércio, mas de amizade e diplomacia entre gregos e não gregos, relações materializadas pelos presentes (FINLEY, 1979) – como os recebidos no Egito e colocados à vista na cena, há visível, também, uma transmissão de ideias e tecnologias (VLASSOPOULOS, 2013), como parece informar o poeta, ao falar sobre os phármaka e os saberes egípcios e seu uso por Helena. Sobre tal uso, há algo que parece importante: o modo como o phármakon é administrado, misturado no vinho.

            Sabe-se do costume de misturar água ao vinho, utilizado como meio, inclusive, para traçar uma valoração entre quem o possui e quem não (CANDIDO, 2018). Que se lembre do vinho puro dado a Polifemo (Hom. Od. IX, 345-374), do deleite do gigante ao bebê-lo com insensatez e a consequente intoxicação, tornando possível a fuga de Odisseu e seus companheiros da gruta do ciclope. Nesse sentido, o costume parece apresentar funcionamentos, além daquele de uma diferenciação valorativa entre humanos: tornar o vinho mais seguro para o consumo contínuo e mais palatável em situações nas quais a sede, mais do que o prazer pela bebida, deve ser satisfeita. A água seria, portanto, um moderador (SHUSTER, 2014). Além disso, o que a cena de Helena parece apontar é uma prática na qual não apenas a água, mas outras substâncias, outros phármaka, eram misturadas ao vinho, com diferentes objetivos: alterar o sabor, adicionar odores agradáveis e ampliar sua ação psicoativa (RINELLA, 2010).

            Mostra-se adequado dizer, portanto, que há, na cena, algo como uma atmosfera, produzida pelo agenciamento de elementos heterogêneos e graus de alteridade (MUGLER, 1969) (as cores, o perfume, os sabores, os discursos, o Egito, Helena, o vinho, o phármakon), que funciona juntamente com o phármakon; mas, talvez, que faça o phármakon funcionar de determinada maneira. Cabe lembrar, nessa direção, que essa palavra grega “[...] comumente traduzida como ‘remédio’ ou ‘veneno’”, não se restringe a tal “binarismo”, pois invoca meios diversos de, falando brevemente, “alteração da percepção”,[16] meios como o “[...] ‘perfume’, ‘pigmento’, ‘encantamento mágico, filtro ou talismã’ e ‘droga recreativa’.” (RINELLA, 2010, p. xvii).

            Pode-se ir, agora, ao segundo e ao terceiro episódios da Odisseia (Hom. Od. X, 210-335): um grupo de companheiros de Odisseu se aproxima do palácio de Circe, no entorno do qual se viam lobos e leões da montanha, ao mesmo tempo aterrorizantes e dóceis, na verdade, homens que foram encantados com drogas maléficas.[17] Vê-se já uma atmosfera se formando: passam a escutar a sedutora melodia do canto[18] de Circe (ASSUNÇÃO, 2011), a qual, enquanto cantava, tecia uma obra de características divinas. Convidou-os a entrar (apenas Euríloco rejeitou o convite, ao manter-se fora do palácio). Logo, preparou-lhes algo para comer, misturando ao alimento um phármakon,[19] cujo poder era fazer esquecer, especificamente, a terra considerada como pátria. E, ao toque da vara de Circe, os homens foram transformados em porcos, mantendo, porém, o intelecto humano.

Se é possível ver a formação de uma atmosfera, cabe dizer que é explícito tratar-se de uma atmosfera de ambivalências: a mata e a construção; animais não humanos aterrorizantes e dóceis; animais não humanos (antes humanos) com intelecto humano; e, sobretudo, Circe – mulher e deusa, complexa coexistência de refinamento, do canto e do tear, com o poder sedutor e brutalizador (SEGAL, 1968) – e o phármakon. Mais do que uma “marca distintiva de Circe” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 64) ou do phármakon, a ambivalência, mesmo a multivalência, parece ser algo como uma marca atmosférica em diversos episódios da Odisseia – entendendo-se atmosfera, cabe lembrar, como um agenciamento de elementos heterogêneos e graus de alteridade que cria a possibilidade mesma de um acontecimento (que se lembre, por exemplo, das névoas criadas pelos deuses, para, sob elas, intervirem no mundo humano).

            Segue-se que Euríloco pôde encontrar Odisseu e contar o ocorrido. Resolvido a salvar seus companheiros, Odisseu direcionou-se para a habitação de Circe, conhecedora e detentora de muitos phármaka.[20] No caminho, o deus Hermes apareceu para o herói, e aqui se desenrola o terceiro episódio farmacológico. Hermes ofereceu um phármakon a Odisseu – tratava-se de uma erva chamada móly,[21] difícil de ser extraída do solo pelos mortais; já para os imortais, como tudo podem, não há problemas. Tendo desenterrado a móly, Hermes a mostrou a Odisseu – raiz preta, flor branca. Esse phármakon, Hermes informou, protegerá Odisseu do phármakon que Circe oferecerá misturado a um alimento. Pode-se dizer, brevemente, que constitui um antiveneno[22] e, de modo mais extenso, que se lida com algo como uma profilaxia pré-exposição, medida protetiva antes do contato com um agente capaz de causar uma doença ou um dano. Não se trata de curar, mas sim de prevenir.

Há uma coisa a notar: o encontro de Hermes e Odisseu, no caminho para o palácio. O deus mensageiro, sempre nos caminhos, como aquele pelo qual levou Príamo, em segurança, até a tenda de Aquiles (Hom. Il. XXIV, 358-467) – atuando como deus do sono, fazendo os guardas mirmidões dormirem e abrindo portões, atuando como deus das portas, dobradiças e trancas (VERGADOS, 2011). Sabe-se da caracterização de Hermes como um deus astuto, mesmo ardiloso,[23] por isso, ser adequada a definição de trickster, quando aplicada a ele: personagem ambivalente, mediador, sempre nos caminhos, ladrão e presenteador, encantador e desencantador (HYDE, 2011). E é em um caminho, aquele ao palácio de Circe, que Hermes ofereceu a Odisseu uma proteção[24] aos encantamentos da divindade das muitas drogas, dando também os conselhos que abririam o mundo de Circe a Odisseu.

            São três episódios, três faces do phármakon, uma mesma atmosfera, a qual, logo se verá, não se restringe aos episódios analisados. Antecipa-se que a presença espraiada dessa atmosfera parece apontar para algo mais que um dispositivo estilístico que a induziria (SELS, 2013), pois o que se vê é algo como a expressão de um mundo no qual tal atmosfera não pode ser desprezada, porque é necessário lidar com ela.

           

3 O ESPRAIAMENTO DE UMA ATMOSFERA

            Remédio, veneno e antiveneno imbricam-se no phármakon. A estabilidade momentânea de cada face de um phármakon será dada em uma atmosfera da qual fazem parte as relações estabelecidas entre quem administra a dosagem, quem a toma e os efeitos corporais e espirituais, inclusive aqueles efeitos codificados moralmente na situação. Nesse sentido, parece possível sustentar que o esquecimento, por exemplo, deve ser avaliado de acordo com as variáveis da situação, ou melhor, dos elementos que constituem a atmosfera: graças ao phármakon, a dor e o azedume da perda de entes queridos são esquecidos; o esquecimento da pátria é um dos efeitos do embrutecimento das drogas circeanas. Além disso, vê-se, na Odisseia, um certo cultivo da dor e do azedume derivados da perda de pai e marido, por parte de Telêmaco e de Penélope: a retidão moral de filho e esposa é afirmada nesse e por esse cultivo, durante os vinte anos de ausência de Odisseu.

            O que se mostra interessante com a noção de atmosfera é o vislumbre de um acoplamento de elementos que têm implicação sobre o próprio funcionamento de cada elemento, de seus efeitos individuais e daqueles gerais, atmosféricos. Logo, passa-se a ver que as características do phármakon não lhe são exclusivas. Ao oferecer vinho a Heitor, Hécuba pontuou que, ingerido por um homem cansado, o vinho aumentaria a força daquele que o toma; Heitor, no entanto, recusou a oferta, pois o vinho doce o faria se esquecer da força e da coragem (Hom. Il. VI, 264-265). Caso Heitor estivesse em uma condição de mero homem cansado, talvez o vinho funcionasse como provedor de força, contudo, tratava-se de alguém em guerra, de maneira que o vinho seria, portanto, um veneno. Talvez se deva ir mais longe, pois o vinho e seus efeitos eram utilizados para descrever, também, os efeitos de outros phármaka (RINELLA, 2010). Portanto, a pergunta a se fazer é: haveria um alastramento da multivalência própria ao phármakon para além das substâncias? Ao ver Odisseu, a resposta adequada parece ser a afirmativa. O termo que o define é polýtropos.[25] Não são poucas as maneiras pelas quais o termo foi traduzido: o homem versátil;[26] o muitas-vias;[27] o multifacetado;[28] podendo-se falar, ainda, em “multiastucioso” (COSTA, 2016, p. 264).

Há ainda o uso de sua transliteração: o “politrópico” (HYDE, 2011, p. 178). É também, cabe lembrar, o de mil ardis; o saqueador de cidades. Ou seja, não é apenas o phármakon que condensa em si a multivalência; figuras centrais na Odisseia, como Helena e Odisseu, aparecem como intrinsecamente multivalentes: tendem a representar, ou melhor, a serem apresentadas como aberturas para toda a potência da humanidade, da identidade à alteridade, da multivalência à univalência. Diz-se que as personagens são apresentadas como a incorporação de um trajeto de aprendizado moral (RUTHERFORD, 1986). Talvez caiba dizer algo mais: tais personagens são aberturas amorais que permitem, por meio delas, a visualização das diferentes linhas de valoração moral. Apenas como aberturas, como vias de possibilidade, poder-se-ia asseverar que Homero, por meio das personagens, teria dito tudo o que se podia dizer acerca da humanidade.[29]

            Daí as palavras de Agamenon a Odisseu, no Hades, poderem significar também outra coisa além daquilo que aponta a biografia do comandante grego. Cabe recordar: Agamenon sugere que não se deve contar tudo à esposa, que se deve ocultar certas informações, ou seja, que não se deve confiar excessivamente naquela que se tem como companheira (Hom. Od. XI, 440-464). Nada se tem a aprender com a misoginia. Que se tenha atenção a um ponto: pode-se confiar, mas não de modo exagerado, pois se deve manter um campo guardado para o desconhecido próprio à alteridade. E isso em relação também à alteridade que habita o interior de cada pessoa. Mas não só, pois a identidade, talvez possa-se falar em univalência, passa a ser, também, um problema: nada de confiança excessiva, nem mesmo em si, como ilustram certos momentos de Odisseu, nos quais, em sua narrativa, afirma: não me contive – como aquele no qual, depois de ter dito alguns impropérios ao Ciclope do qual acabara de fugir com seus companheiros, e ainda tendo seu barco escapado da destruição que seria causada, caso a pedra lançada pelo gigante acertasse seu objetivo, Odisseu volta a gritar, se apresentando, trazendo-lhe a fúria não só do gigante, como também a de Poseidon. A identidade, o valor do herói iliádico – afirmada em seus feitos gloriosos e na propagação do conhecimento acerca desses feitos e de seu autor –, mostra aí não apenas sua inutilidade (WERNER, 2001), mas seu perigo, já que coloca em risco o retorno à casa.

            Há algo, ainda. Algo que faz toda a atmosfera de multivalência espalhada pelo mundo de Odisseu se destacar, exatamente por expor seu oposto. Algo encontrado na primeira ilha visitada por Odisseu, em seu caminho de volta: a ilha dos lotófagos.

            Uma delegação selecionada por ele seguiu para conhecer os comedores de pão, ou seja, para conhecer os humanos daquele lugar. Há perigos inerentes a esse encontro com desconhecidos: serão, mesmo, humanos? Caso o sejam, respeitarão as regras da hospitalidade, isto é, da xenía, ou serão agressivos? A delegação encontrou humanos e travou com eles um “contato cordial” (ROUSSEAUX, 1971, p. 340). Os habitantes da ilha não planejaram mal contra o grupo de Odisseu, seguiram, inclusive, uma das regras da hospitalidade: o partilhar do alimento (FINLEY, 1979). Entretanto, há desvios no respeito à regra. Primeiro: o que é oferecido – trata-se da lótus, não os usuais pão, carne e vinho; segundo: o efeito da ingestão da oferta – quem “[...] saboreia a doçura do loto, perde a vontade de informar, de viajar, esquece o lar, quer permanecer, morar com aqueles indivíduos, os lotófagos.” (Hom. Od. IX, 93-96; tradução de Schüler).

            Parece haver aí algo importante. Ao se falar em xenía, lida-se com “[...] uma relação extremamente poderosa, capaz de gerar uma guerra como a de Troia.” (COSTA, 2017, p .176). Que sejam lembradas as palavras de Menelau em prece a Zeus, durante embate com Alexandre: “Zeus soberano, concede que me vingue de quem errou primeiro, o divino Alexandre; e subjuga-o às minhas mãos, para que de futuro estremeça quem dos homens vindouros pense em causar danos ao anfitrião que o recebeu com amizade.” (Hom. Il. III, 250-254). Uma relação capaz de produzir a guerra, mas também capaz “[...] de estancar, senão a guerra, ao menos uma batalha, como a de Glauco e Diomedes”, como narrado na Ilíada. Os dois “[...] não só se negam a se enfrentar, ao descobrirem que seus antepassados foram noi uns dos outros, como trocam suas armaduras, confirmando materialmente sua amizade.” (COSTA, 2017, p. 176). Pode-se ver que há “[...] riscos envolvidos para ambas as partes em toda a relação de xenía: tanto quem é recebido (hóspede) quanto quem recebe (anfitrião) participa dessa relação ambígua.” (SILVA, 2017, p. 190). Assim, xénos indica não só o anfitrião, mas também o hóspede; o de casa e o estrangeiro; o possível aliado e o inimigo.

            Então, xenía não é homogeneização, identificação, mas a constituição de um plano comum pela relação arriscada entre heterogêneos. Por conseguinte, se ela é um modo de lidar com a aspereza e os riscos próprios ao encontro entre diferentes, ao se comer a lótus, a heterogeneidade da xenía é desfeita, pois estrangeiro e anfitrião se tornam o mesmo. Não há multivalência, não há ambivalência: simplesmente se torna um lotófago. Mostra-se justificado o termo phármakon não aparecer, quando se trata da comida floral, afinal é “[...] a única na Odisseia a funcionar ela mesma como ‘droga’” (ASSUNÇÃO, 2016, p. 286): apesar de sua natureza incerta – afinal, apenas se supõe que se trata da lótus – seu efeito é “fulminante” (ROUSSEAUX, 1971, p. 337). No entanto, cabe um complemento: se a comida floral é a única na Odisseia a funcionar como uma droga, esse termo deve ser entendido segundo o estatuto vigente que orienta a guerra às drogas.

            Pode-se pressentir, assim, certos pontos de fixidez, como a comida floral, mas caberia lembrar também a fúria de Aquiles, na Ilíada, e a insignificância de Elpenor – aquele que se conhece na Odisseia, na qual se enfatiza o fato de a personagem não se destacar, nem na luta, nem na inteligência (Hom. Od. X, 552-560). Esses pontos de fixidez realçam uma ampla atmosfera de multivalência – como se viu nos três episódios farmacológicos, na relação de xenía e em personagens como Helena e Odisseu tornada visível pelo poeta. Nesse sentido, há um derradeiro episódio que parece importante para análise e conexão com nosso problema.

 

4 A GUERRA COMO VÍCIO

            Circe tornou-se aliada de Odisseu (Hom. Od. X, 400-405). Ao descrever seu caminho de volta, ela lhe prescreveu o que fazer para seu retorno a Ítaca ser bem-sucedido. Narrou como seria o encontro com Caríbdis e Cila: a primeira destruiria completamente sua embarcação, matando a todos; a segunda arrebataria seis de seus companheiros. Circe aconselhou que fosse escolhido o caminho próximo à morada de Cila, pois, entre a morte de todos e de seis, a última opção seria a preferível. Tendo dito isso a Odisseu, ele a questionou se seria possível fugir de Caríbdis e, de algum modo, repelir, afastar, talvez mesmo atacar,[30] fazendo com que Cila recuasse. Circe respondeu de modo enfático, realçando o fato de Odisseu parecer apenas se interessar ou apenas pensar em atos de guerra.[31] Como Odisseu em seu retorno, o da imaginação sem limites – como diz Aquiles, ao encontrá-lo, vivo, no Hades –, como uma imaginação sem limites se restringiria à resposta única da guerra? Como aquele que é conhecido e admirado por ser muitos e ninguém, por isso mesmo capaz de analisar e superar as condições mais adversas, poderia sugerir a ação bélica como resposta ao encontro com um ser imortal? Mas ainda há algo mais. Em vez da proposta fadada ao fracasso de Odisseu, que levaria a um segundo ataque devastador, Circe propôs uma alternativa: poder-se-ia invocar a mãe de Cila, Crátais, para negociar, de sorte a assim escapar de uma nova investida.

            E aqui algo merece destaque. Ao repreender a proposta bélica de Odisseu, Circe descreveu Cila – além de imortal, tratava-se de um ser terrível, indomável. Portanto, o ato de guerra seria algo tolo, vicioso, mesmo nefasto,[32] porque faria com que Cila matasse mais. É tolo, vicioso, nefasto lidar com ela, da mesma forma que se lida com desavenças entre realezas humanas, fazendo guerra. Ao ter questionado Odisseu – “[...] não há nada em tua cabeça além de ações bélicas?” –, é como se tivesse dito: “[...] ao pensar apenas em fazer guerra, em utilizar a guerra como resposta a tudo, não pensas nas consequências.” Ainda, de modo mais preciso, utilizando-se de uma linguagem relacionada ao nosso problema, é como se tivesse dito: “és dependente da guerra”, pois univalente. Talvez seja adequado compreender que a vontade de guerra aparece, aí, como vício,[33] ou seja, um uso contínuo e repetitivo, tendo prioridade sobre outras atividades e persistindo, apesar de suas consequências danosas.[34]

            Vê-se que Circe proscreveu a guerra contra Cila, todavia, não prescreveu a prostração. Se puder se levar a interpretação um pouco mais longe, é possível sustentar que a questão enfatizada é o bloqueio de possibilidade que a resposta única da guerra impõe. Cabe prestar atenção ao fato de Circe ter proposto uma negociação com a mãe da terrível Cila. O conselho inicial foi o de dar seis homens de Odisseu e fugir. Odisseu não o acatou e aventou a possibilidade de um ataque a Cila. Circe o repreendeu, mas o ouviu; seu conselho inicial foi transformado, adicionando-se a possibilidade de chamar por Crátais: talvez seja possível negociar. Parece ter havido, efetivamente, um diálogo: as opções são dadas; duas propostas são feitas e depois desprezadas; faz-se uma nova análise da situação e daí uma variável distinta emerge, apontando outro caminho.

Parece adequado dizer que o saber técnico de Circe acerca dos seres que habitam o mundo (Cila é uma calamidade, mas é, também, uma filha) e o saber-fazer de Odisseu, o multifacetado, guerreiro estrategista, mas também um habilíssimo aedo, se acoplam. Desse acoplamento de saberes e da superação do bloqueio imposto pelo vício de guerra, uma situação incontornável mostra-se tratável. Assim, mesmo o encontro com algo como uma calamidade indestrutível é algo que pode ser encarado mais como um problema a ser discutido do que uma convicção a ser partilhada.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Sabe-se: há inúmeras, quase intermináveis, entradas e saídas interpretativas dos poemas homéricos e, em particular, da Odisseia. Dentre elas, destaca-se, desde a Antiguidade, o caráter formativo de Homero, o “educador da Grécia” (Pl. R. X, 606e) (daí todo o esforço de Platão em substituí-lo): a capacidade dos poemas de ensinar (ADKINS, 1971). Por conseguinte, pode-se dizer que, ao se olhar atentamente para a Odisseia, é possível aprender com o phármakon, sobretudo com a atmosfera multivalente na qual os phármaka aparecem e funcionam. Nesse sentido, há algo mais: se for aceito que aquilo que se expressa nos poemas homéricos é um mundo de resultados, no qual uma ação é avaliada, inclusive moralmente, não pela intenção que a moveu, mas pelo seu fracasso ou sucesso (ADKINS, 1971), pode-se afirmar que a multivalência é de alto valor (guardando todos os sentidos desse termo).

Trata-se de entendê-la a partir do caráter indefinido de algo, caráter esse que permite, de uma gama de funcionamentos diversos, o desenvolvimento de um, dentre eles, de acordo com a atmosfera na qual tal algo está agenciado.[35] Quando se alude a caráter indefinido, ressalta-se também a abertura para possibilidades avaliativas, incluindo ainda graus diferentes que teriam, apenas em seus extremos, o bem-mal/bom-ruim/remédio-veneno. Daí se dizer que a ambivalência é a redução, permanente ou momentânea, de funcionamentos e avaliações possíveis (sendo a univalência o ponto de valor e funcionamento mais baixo, algo expresso na crítica de Circe a Odisseu). A dificuldade de se lidar com algo, como uma filosofia (moral) da Odisseia (RUTHERFORD, 1986), se encontra, exatamente, no fato de ela ter como seu mais alto valor a multivalência.[36]

            Deve-se, a esta altura, recordar o ponto de partida e o problema que moveu a atenção em direção aos textos homéricos, um problema nosso. Lida-se assim com uma preocupação acerca de um problema atual e de um grupo específico – a guerra às drogas e seus efeitos sobre as pessoas negras. Cabe ressaltar, portanto, que menos do que ter como fundo um possível diálogo com um campo particular – como aquele que lida com os chamados transtornos ou desordens por uso de substância, que, buscando meios para se desvencilhar de termos estigmatizantes, optam por tratar, singularmente, os casos de pessoas em sofrimento que fazem uso de drogas –, debate-se com uma perspectiva generalizada, espalhada por instituições e grupos sociais diversos, a qual dá suporte: ao encarceramento em massa; a violências múltiplas e cotidianas; a chacinas; ao terrorismo de Estado, incluindo aí instituições paraestatais, como a milícia e o tráfico de drogas; à gestão, compartilhada entre Estado e Capital, do abandono de territórios urbanos; ao mercado global das drogas registradas como ilegais (entre muitas outras coisas).

Além disso, dá-se base a todo um léxico que busca exacerbar o poder das drogas, fazendo daquelas pessoas que as usam – até mesmo daquelas pessoas que se supõe fazerem uso – meros autômatos, mortos-vivos, loucos, dentre muitos outros termos que apontam para a perda total, ou quase total, dos atributos ligados ao espírito, ao desejo, à vontade, à conduta que usualmente caracterizam um ser humano pleno. E mais: há linhas históricas que fazem com que o dito combate às drogas se vincule ao racismo. Algo importante emerge aqui, mesmo que como um breve apontamento: parece possível pensar na guerra às drogas como um mecanismo que se utiliza de algo como um modo pré-epidérmico do racismo,[37] similar à compreensão da forma de diferenciação e hierarquização entre coletivos, na Antiguidade, sustentado, principalmente, pelo julgamento do ethos ou da cultura (CANDIDO, 2018).

Sabe-se, no entanto, que se lida com a produção de níveis prático-discursivos: um nível no qual se poderia criticar e combater os hábitos e os costumes vistos como danosos, a ponto de serem registrados como crimes; outro nível, mais subterrâneo, apesar de explícito, no qual as críticas e os combates usam os hábitos e costumes como meios para atingir um grupo específico, aquele constituído pelo racismo (nos seus diferentes modos de justificação: religião, biologia, estatística) e seus efeitos. Nesse mesmo nível, torna-se visível o fato de que tais hábitos e costumes não são, em grande parte, próprios a nenhum grupo, mas são, já, um dos efeitos do funcionamento do racismo.

            Todavia, o que se pode aprender da leitura da Odisseia, a partir de nosso problema? Mesmo com toda a dificuldade inerente ao lidar com um texto no qual a multivalência ganha todo o seu valor, parece possível – talvez correndo o risco de atuar por reduções – traçar uma linha capaz de atravessar o problema da guerra às drogas: as consequências do fracasso de uma guerra, mesmo que dela se diga vitorioso, materializam-se em um trajeto de retorno que se transmuta em um duro percurso de aprendizado acerca de si e do mundo; encontram-se tipos de humanos que ameaçam, mas podem, também, hospedar; encontram-se seres fantásticos que podem enfeitiçar, devorar, ou se tornar aliados para a superação dos percalços do caminho; lida-se com substâncias que, associadas a outros elementos, incluindo discursos, curam e/ou envenenam e/ou protegem. Não se trata de se deixar à mercê dos deuses ou de responder unidimensionalmente aos desafios à frente, mas de ativar um repertório de faces, de vias, de linhas de diálogo, de saberes e práticas. Em suma, não se trata de guerrear contra a multivalência, a ambivalência, ou seja, contra a complexidade do mundo, contudo, de encará-la com base no aprendizado por ela proporcionado.

            Há ainda algo mais, algo que perturba: certos pontos de fixidez – a comida floral, a fúria de Aquiles, a insignificância de Elpenor –, os quais perturbam e, concomitantemente, destacam a atmosfera de multivalências que cobre muitas áreas do mundo de Odisseu. Não é só isso, pois tais pontos de fixidez parecem oferecer-se como grade de inteligibilidade para aquilo com que se debate. Parece pertinente afirmar, por conseguinte, que, diferentemente de herdar os modos segundo os quais se pode lidar com a multivalência e a ambivalência do mundo, como o manejo do phármakon e a constituição de um campo comum, com a xenía, o que se faz é estender o efeito univalente da comida floral a todas as substâncias inscritas sob o termo drogas e circunscritas à ilegalidade. Ademais, tal univalência não se restringe às substâncias, pois, cabe lembrar, trata-se de atmosferas de relações. Logo, os humanos também passam a ser univalentes. Parece que há uma tripla extensão: generaliza-se, em relação àquelas pessoas que fazem uso de drogas restritas ao campo da ilegalidade, o lotófago como figura que beira o inumano. Lida-se com um ser que não pode ser classificado plenamente como humano, porque, segundo a lógica homérica, não trabalha a terra, não cozinha ou sacrifica animais domésticos.

Essa extensão da figura do lotófago se torna explícita, quando nos lembramos do vocabulário relacionado à figura do morto-vivo, do zumbi, vocabulário utilizado para denominar as pessoas que usam crack; estende-se sobre aquelas pessoas que, em princípio, não usam essas drogas, a figura de Aquiles, o herói furioso, cujo imperativo é o combate – na Ilíada, mesmo sua recusa ao combate é bélica. Não basta não usar drogas, é preciso que todos guerreiem – mesmo que apenas discursivamente – contra as drogas, independentemente das consequências; e, através da generalização da figura do lotófago e da extensão da figura de Aquiles, traça-se um horizonte de homogeneização, no qual não seria mais possível a relação de xenía, pois não há alteridade: há o mesmo e o em-via-de-se-tornar-o-mesmo. E o que escapa está destinado a ser extinto, pela assimilação ou pela morte. Nesse sentido, pode-se concluir: o extermínio das diferenças é um dos maiores vícios desse empreendimento que se chama Ocidente.

 

Resisting the “war on drugs” STARTING from Homer: The Multivalence of THE PhArmakon in the Odyssey

 

Abstract: The aim of this paper is to analyze three episodes of the Odyssey in which a pharmakon is used. Helen, Circe and Hermes are the characters that administer the pharmaka. This analysis is linked to a project – the survey of discourses that distance themselves and/or question the perspective of the “war on drugs”, a project that aims to extract textual elements that can serve as tools of thought in the construction of a less deadly path in relation to substances – and guided by three principles – which can be called anti-colonial and anti-racist. From this focus, centered on the pharmakon, also articulating it to the floral food of the lotophagi and the relationship of xenia, a thesis is put forward according to which, in the Homeric texts, one can find something that can be called multivalence.

 

Keywords: Ancient Literature. Homer. Pharmakon. Drugs. Multivalence.

 

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Recebido: 22/6/2021

Aceito: 20/12/2021

 



[1] Programa de Pós-Graduação em Metafísica, Universidade de Brasília (UnB), Campus Universitário Darcy Ribeiro, Brasília, DF – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8993-5456. E-mail: ericklaraujo@gmail.com.

[2] Programa de Pós-Ggaduação em Metafísica, Universidade de Brasília (UnB), Campus Universitário Darcy Ribeiro, Brasília, DF – Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5588-7898. E-mail: cornelli@unb.br.

[3] As traduções dos poemas homéricos utilizadas são as de Frederico Lourenço (2005,;2018), Christian Werner (2014) e Donaldo Schüler (2008), sendo da edição da tradução deste último o original consultado para axplicitação pontual de poucas expressões avaliadas como de interesse para o presente texto. Muito menos do que discutir num quadro especializado acerca da cultura grega antiga, trata-se de fazer funcionar, com as ferramentas limitadas que se tem às mãos, os problemas e seus desenvolvimentos, como facalizados nos textos (com base, principalmente, nas traduções), em um outro problema, um problema nosso.

[4]             esse sentido, este trabalho está ao lado de outro, no qual quem fala são as pessoas que habitam as ruas e fazem uso de crack, e aquelas pessoas cujo trabalho é oferecer os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) às primeiras (ARAUJO, 2017).

[5]             abe, aqui, ver o detalhamento de uma “perspectiva transimétrica” (LIMA, 2019, p. 168), um trabalho de constituição/manutenção de uma atmosfera de coexistência da simetrização – prática de desmantelamento e/ou afastamento de hierarquizações entre os elementos em relação – e da assimetria – prática de cultivo das diferenças entre os elementos em relação.

[6] Pode-se, aqui, levar as coisas a um passo além, ou mesmo aquém, ao se afirmar que, se couber estipular uma origem e um destino que seja, exatamente, o lugar nenhum (nowhere), pois todo o mundo veio e vai para o lugar nenhum (KINCAID, 2020; TORRES, 2015). Os modos pelos quais são traçados os percursos entre tal origem e tal destino, incluindo, aí, as encruzilhadas formadas entre tais caminhos, constituem o que pode ser chamado de singularidade, e são, ao mesmo tempo, aquilo que pode ser ofertado como herança para uso e, necessariamente, variação.

[7] Cabe ver, nesse sentido, o que asseveradAbdias Nascimento (2017), acerca do que se costuma chamar de sincretismo católico-africano. Por um lado, o autor mostra o erro no qualase incorre, com o termo sincretismo, pois, a partir dele, se faz-pensar que haveria um intercâmbio harmônico entre os elementos envolvidos na sincretização. Sabe-se que se tratou de uma investida com ímpeto de destruir todos os traços africanos, inclusive os imateriais, da vida das pessoas escravizadas, fazendo-as curvarem-se aos santos cristãos. Por outro lado, faz-se ver que o sincretismo, como a arma de destruição, é manejado de modo a se tornar “[...] técnica de resistência cultural afro-brasileira” (NASCIMENTO, 2017, p. 134), fornando-se ferramenta de proteção, preservação e continuidade, por meio, também, das suas variações da religião africana.

[8] Que o exemplo fique restrito aos usos da Grécia antiga pelo nazifascismo do século XX e pelo supremacismo branco do século XXI. Sobre o primeiro, cf. Roche (2018); sobre o último, cf. McCoskey, (2017).

[9] É interessante notar que o uso feito por Houria Bouteldja da figura cristã do anjo, personagem, portanto, posterior aos períodos arcaico e clássico, guarda algo de seu significado do grego antigo ἄγγελος, aquele ao qual é passada uma mensagem, sendo responsável por repassá-la. Guarda algo, pois a pretensão ocidental é aquela de, concomitantemente, ser responsável por fazer a oposição aos demônios e ser portador legítimo da mensagem grega.

[10] De modo breve, pode-se afirmar que não é o etnocentrismo que marca distintivamente o que se chama de Ocidente, como Clastres (2004) e Lévi-Strauss (1996) já o evidencimram. O que marca e explicita o Ocidente, em seu caráter de empreendimento moderno (APPIAH, 2016), é o etnocídio e o genocídio, articulados pelo dispositivo do racismo: a prática do extermínio das diferenças, através da extinção dos espíritos e dos corpos, a qual. por sua vez, dá corpo e espírito ao capitalismo.

[11] Por isso, poder-se-ia fustentar que a intenção da presente pesquisa, da qual este artigo é resultado parcial, mesmo introdutório, é fazer algo como uma genealogia, destacando aí o caráter nietzschiano dessa noção, isto é, uma pesquisa acerca do valor dos valores. Daí os termos usados: multivalência, ambivalência e univalência,;noções que buscam englobar funcionamento, efeito e valoração, a um só tempo.

[12] Sabe-se do caráter multívoco do termo espírito. Sabe-se, também, da longa história e, portanto, do peso filosófico dessa expressão. Entretanto, procuramos nos desvencilhar de tal carga, umpregando o termo em uma tentativa de apontar uma dimensão imaterial do corpo (sendo, portanto, uma dimensão material do espírito). Trata-se, sobretudo, de enfatizar uma relação, intrínseca, entre corpo e espírito.

[13] A expressão é:κακὰ φάρμακα (Hom. Il. XXII, 94). Frederico Lourenço (2005) usa, em sua tradução, a expressão ervas malignas.

[14] A expressão utilizada é φάρμακον ὰνδροφόνον (Hom. Od. I, 261), droga assassina de homens, droga homicida. Christian Werner (2014) traduz como poção assassina.

[15] O pretendente utiliza a expressão θῡμοφθόρα φάρμακα (Hom. Od. II, 329). No caso, fica explícito que se trata do caráter mortal da droga, como expressam as traduções. Mesmo que se saiba que há um sentido do termo derivado de uma concepção fisicalista, a partir da qual aquilo ao que se está referindo é algo como o âmago do ser humano, há um sentido de θυμός que se vincula à sede da vontade, da inteligência, das paixões, resumida no termo espírito. Pode-se entrever, por conseguintet um trânsito entre materialidade e imaterialidade humanas.

[16] Talvez seja mais adequado fe pensar em algo mais amplo do que alteração da percepção, algo como manejo ou intervenção no espírito.

[17] Repete-se, aqui, a expressão κακὰ φάρμακα (Hom. Od. X, 213). Daí não se seguir a opção de Schüler (2008), que é drogas poderosas.

[18] Que seja recordado o canto das Sereias (Hom. Od. XII, 41-46). “Posto que totalizante e enfeitiçador”, o canto “roubaria do aspirante ao retorno exatamente a possibilidade de retorno. Alucinando-o [θέλγω] com droga distinta da flor de lótus, seu canto, as Sereias teriam também a capacidade de fazer o viajante se esquecer do retorno.” (COSTA, 2018, p. 414).

[19] A expressão traduzida por Lourenço (2018) como drogas terríveis é φάρμακα λύγρα.

[20] Πολυφάρμακου (Hom. Od. X, 276). As traduções são interessantes, pois acabam denotando a possível amplitude da expressão, dado o contexto em vista: Lourenço (2018) opta por falar de Circe como a das muitas poções mágicas; Werner (2014) escolhe Circe muitas-drogas; já Schüler (2008) fenciona Circe como a dos fatídicos remédios.

[21] O termo é μῶλυ (Hom. Od. X, 305). Toda uma tradição (Moly tradition) se constituiu a partir dessa única aparição, em Homero (STANNARD, 1962).

[22] Essa é a opção de Schüler (2008) para o termo φάρμακον ἐσθλόν (Hom. Od. X, 292).

[23] Caracterização explícita no hino homérico a Hermes, dado o roubo do gado de Apolo pelo deus mensageiro.

[24] Vale recordar, no hino a Hermes, o encontro do deus com uma tartaruga, que logo ele não só assumirá como sinal de sorte, mas dirá ser algo como um contrafeitiço protetivo (h. Hom. 4, 30-39). A tradução consultada é a de Evelyn-White (1914).

[25] O termo πολύτροπον, utilizado para caracterizar Odisseu, aparece, também, na Odisseia, em referência a Hermes.

[26] Tal é a tradução de Lourenço (2018).

[27] Assim é que Werner (2014) traduz o termo.

[28] Essa é a escolha de Schüler (2008).

[29] A referência aqui é a conversa de Goethe com Eckermann (1990, p. 168): ao se referir aos personagens de Aquiles e Odisseu, afirma que o poeta disse tudo o possível sobre os homens, a partir deles. Pode-se acrescentar que bastaria se virar para Helena e Penélope, para apresentar um enunciado um pouco mais pertinente.

[30] O verbo ἀμῡναίμην é traduzido pelos termos resistir, por Werner (2014); repelir, por Lourenço (2018),;e atacar, por Schüler (2008).

[31] “Não há nada em tua cabeça além de ações bélicas?” (Hom. Od. XII, 115-117; tradução de Schüler).

[32] O termo σχέτλιε parece recobrir todos esses sentidos.

[33] Aqui, opta-se pela manutenção do termo vício, apesar da indicação, na Classificação Internacional de Doenças (CID-11), da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2021), da noção de dependência e, mais amplamente, da expressão desordem derivada do uso. A opção se justifica pelo empregu, ainda corrente, dos termos viciado, viciada, viciados, para se referir às pessoas que fazem uso de certas substâncias.

[34] Acerca do nosso problema, Lancetti (2015) fenciona, nesse mesmo sentido, uma “corrente entorpecedora em favor do enfrentamento” (p. 25) e prossegue: a “[...] esse afã por resolver imediatamente e de modo simplificado problemas de tamanha complexidade chamamos contrafissura.” (p. 30, drifo do autor).

[35] Félix Guattari (2012, p. 57) fborda a “multivalência da alteridade”, remetendo-se ao estudo de Marc Augé, sobre a sociedade africana dos Fon, acerca do legba: “[...] um punhado de areia, um receptáculo, mas é também a expressão da relação com outrem. Encontramo-lo na porta, no mercado, na praça da aldeia, nas encruzilhadas.”.Além disso, ele pode “[...] transmitir as mensagens, as perguntas, as respostas”. É “instrumento da relação com os mortos e com ancestrais. É ao mesmo tempo um indivíduo e uma classe de indivíduos, um nome próprio e um nome comum.” (GUATTARI, 2012, p. 57).

[36] Rutherford (1986) menciona f ethical framework, aquilo que constitui a filosofia da Odisseia, como sendo menos definido e, isto é importante, mais realístico do que geralmente se afirma.

[37] Em grande medida, parece não haver motivos suficientes para não se adotur o racismo como chave de inteligibilidade, quando o objeto de análise são as práticas de diferença e hierarquização dos coletivos, na Antiguidade grega. Os estudos que rejeitam o uso do termo costumam confiar na utilização de etnia, como se esta fosse uma noção cujo sentido é, já, dado e indiscutível. Parece haver certo apego ao significante (éthnos), algo que acarreta o risco de engessamento da análise das práticas documentadas, como pode, também, negligenciar o possível enriquecimento das análises comparativas entre as práticas (documentadas, pesquisadas, testemunhadas, sofridas, praticadas) de diferenciação e hierarquização entre coletivos, pelos tempos e espaços. Essas análises comparativas que podem, por um lado, apontar para linhas de continuidade e, por outro, fornecer grades de inteligibilidade. Cabe lembrar, inclusive, que as práticas e os discursos racistas se modificam- Por exemplo, não se trata, hoje, de um racismo biológico, no qual haveria uma determinação genética do modo de estar no mundo e, a partir daí, se poder-a hierarquizar, de maneira pretensamente inexorável, os grupos de pessoas. O racismo parece se beneficiar de um caráter cumulativo, algo como um arquivo de práticas, discursos e vítimas, acessado por meio do modo hegemônico vigente de racismo, pelo grupo com as condições materiais e imateriais de fazê-lo e de se beneficiar com seu funcionamento – sendo esse grupo, no caso em questão, aquele que encarna o dito Ocidente Branco. Nesse sentido, não se mostram como impeditivos os fatos de, na Grécia Antiga: não haver algo como raça, em seu teor de determinismo biológico – algo discutível, principalmente com base nas análises do texto hipocrático Ares, águas e lugares (CAIRUS; RIBEIRO, 2015; McCOSKEY, 2004); não se ter a cor da pele como um marcador negativo da diferença (CANDIDO, 2018); e, consequentemente, não haver algo como uma supremacia branca, nem mesmo povo branco ou raça branca (DEE, 2003). Não se mostram como impeditivos, pois o racismo não se limita a tais bases, mas as articula, incluindo aquelas que preexistem à emersão do termo, de maneira a ser mantido em funcionamento, beneficiando uns, vitimando outros. É uma suposição de grande ingenuidade, dssinala Norman Ajari (2019), aquela segundo a qual o racismo começa com a invenção do conceito moderno de raça. No entanto, há um motivo que talvez possa levar à restrição justificada do uso do termo racismo aos modos modernos de diferenciação e hierarquização de grupos humanos: sua vinculação práxica ao colonialismo e ao capitalismo. Em outras palavras, seu caráter de dispositivo específico funcionando como justificação, como motor e como efeito do genocídio, do etnocídio e da exploração cotidiana colonial-capitalista, dada sua função de desvalorização e coisificação de certos humanos, fazendo desses matéria-prima, mercadoria e subsídio racial para exploração do planeta (MBEMBE, 2018). Devido a tal restrição, faz sentido, ao mesmo tempo, limitar o uso do termo racismo e manter sua conexão com práticas dadas antes de sua efetiva emersão, conexão explicitada, por exemplo, pelo termo protorracismo (ISAAC, 2004).