R E S E N H A S R E V I E W S

 

 

Francisco Benjamin de SOUZA NETTO[1]·

 

CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1981.

LEBRUN, Gérard. O que é poder. São Paulo, Brasiliense, 1 98 1.

 

 

As duas obras aqui comentadas pertencem a extensa coleção recentemente lançada pela Editora Brasiliense. Em princípio, devem elas efetivar o que indica o título da coleção a que pertencem: "Primeiros Passos". E, sem descer a banalidades, certamente o fariam, engajando no projeto a indiscutível competência de seus autores. As razões do condicional serão indicaaas ao final da presente resenha. Antes disso, importa acenar para o que, em cada uma delas, constitui os passos a serem dados na impostação e encaminhamento das questões postas e da questão erigida em tema.

O livro de Marilena Chaui, "O que é Ideologia", cumpre sem artifícios o mister de constituir uma Introdução ao tema e ao problema. A simplicidade de sua estrutura favorece a realização deste escopo: após um breve histórico do termo, parte-se para a abordagem do que efetivamente importa: o estudo da concepção marxista de Ideologia. É quando o leitor depara com uma oportunidade relativamente rara em abordagens do tema em pauta: o conceito advém devidamente articulado e visado desde o momento histórico de sua emergência. Uma referência, forçosamente sumária mas suficiente, Filosofia de Hegel e à complexa descendência deste grande filósofo estabelece a devida relação entre o devir do conceito e a grande procura do real no racional e deste no real que é o grande desafio da modernidade e da própria Filosofia. Face ao idealismo de Hegel e em meio às reações por este produzidas, mais do que simplesmente provocadas o conceito de ideologia demanda e conquista o seu significado. Mas ele não o faz no seio de uma abordagem que o recorte ou desarticula; ao contrário, é no todo do Pensamento Marxista que toma forma e perfaz suas determinações: o livro de Marilena Chaui é uma Introdução ao que de fundamental neste Pensamento.

Assim, a ideologia vai se determinando sem se sobrepor ao real (ou a este e aquele de seus aspectos), com o que se reage contra o seu uso corrente no jargão acadêmico. Reduzida à sua estrita accepção, ela aparece na exata contradição que trava com a relação de domínio que mascara. Determinado com precisão, o conceito pode manifestar-se na inerência dos dicursos os mais variados, das mais diversas formações simbólicas, desde este remoto fenômeno que Marx denominou "religião natural ", até a política, sem se olvidar (e os exemplos do início do livro o atestam), o quanto pode ele tomar forma na própria Filosofia. Responde-se à questão posta, sem se fazer eco ressonância que a palavra adotara em seu uso cotidiano. O que se expõe merece atenção e debate e não comporta a ilusão do acordo fácil. Lido com aplicação, o discurso em que se articula vai exigir do leitor médio, e não do principiante, uma revisão de sua concepção de ideologia e propor-lhe o desafio de uma Teoria efetivamente Crítica. Em outros termos, se ele representa os primeiros passos de um itinerário, propõe também a continuidade deste.

Se o conceito de ideologia circula descaracterizado no discurso acadêmico corrente, o conceito de Poder, ainda que beneficiado por uma representação mais accessível, é com freqüência objeto de equívocos. Correspondendo a uma experiência mais ampla do que a estrita esfera do político, é nesta que a sua determinação se torna decisiva: em verdade, a questão política é a própria questão sobre o Poder, sobre o seu sujeito, sobre o seu alcance e limites. E é esta a questão que rard Lebrun se propõe, acrescentando mais esta contribuição às mui tas prestadas ao Pensamento no Brasil.

O autor principia por insistir, e muito a propósito, que o conceito de poder não pode determinar-se, devidamente sem um recurso ao conceito de força, associado ao de potência: "Existe Poder quando a potência, determinada por uma certa força, se explicita... sob o modo da ordem dirigida a alguém que,       presume-se,   deve cumpri-Ia" (p. 1 2). Isto é, trata-se de dominação, de senhorio, do efetivo exercício da condição de senhor. Posta nestes termos, a idéia envolve coerção e desde o início, observa-se a tendência a se minimizar a importância de um tal componente. Lebrun aponta para esta tendência e não a perde de vista. No seu termo, o poder se dissolveria na autoridade. Ora, é fato permanecer ele sempre poder. Isto não quer dizer que não tenha evoluído; ao contrário, desde Engels se nota que houve sociedades que se arranjaram sem o Estado e  desde Hume que os homens, podem, por algum tempo, manter a sociedade sem intervenção do governo. Desta evolução, Lebrun estuda os momentos teóricos capitais, principiando por assinalar que o que os gregos chamavam de "arché politiké" não é o nosso conceito de poder político.

O marco inicial de suas considerações situa-se na modernidade: nesta, mais precisamente em Bodin e Hobbes, mostra-se como a teoria da Soberania libera o poder do príncipe das limitações que, por exemplo, lhe impuseram os doutrinários da Idade Média. E não se trata apenas de um exemplo, mas de uma decisiva passagem. O Poder se concentra, por oposição ao fracionamento medieval ; ele se torna também eficaz no que concerne ao direito e à ordem. O leitor tende a precisões, é tentado a pensar que a Instituição torna-se instituinte e não apenas instituída. Mas a seqüência do discurso deixa clara a complexidade do Poder, exercício e forma. Nas origens, a anarquia imediatamente decorrente do estado de natureza; em seguida, a mediação do contratualismo. Mas depois, desfilam as doutrinas, todas a responder aos desafios da modernidade, para a qual a comunidade não é mais entendida como a congregação de homens zelosos pelo interesse do todo, mas de homens de tal modo absortos em seus próprios interesses que não lhes resta como dedicar-se ao todo, carecendo, ao contrário, de uma proteção que lhes advenha da instância política, à qual não lhes cabe participar.

Seria inútil tentar seguir, em resenha, o itinerário de Lebrun, mesmo porque o propósito do livro é levar o leitor a ulteriores desdobramentos. Importa, porém, assinalar o realismo com o qual o autor encara a atualidade do problema, quando, por exemplo, critica a tendência do marxismo a minimizar o político em nome do econômico ou quando afirma a autonomia do socialismo como resolução da questão econômica e da democracia como resolução da questão política: trata-se de dois conceitos que nem se excluem reciprocamente, nem se implicam. Para Lebrun, o Poder permanece questão, permanece desafio, porque permanece inelutável. Trata-se, não de o suprimir, mas de se saber "quem é capaz, num dado momento, de exercê-lo com menor detrimento de todos aqueles que, por princípio, são excluídos dele" (p _ 1 1 8 ). O que se propõe é que o dominador seja mais o soberano hobbesiano do que o tirano. "Mas, como esta rude franqueza poderá ser possível num mundo que foi, e continua a ser, educado pelo racionalismo grego e pelo cristianismo? " (p. 1 1 9).

Esta pergunta, o próprio epílogo do livro, é, em verdade, o prólogo a todos os leitores possíveis, mas, especialmente, ela é prólogo para quem hoje, no Brasil, medita o político. Ela sugere, por isso, a reflexão final com que, aqui, se visualizam como um todo os dois livros examinados. Se a racionalidade grega é o remate de uma elite acadêmica que, a seu modo, fornece ao Brasil os seus ideólogos, o Cristianismo foi decisivo na formação da prática, da consciência e do discurso do brasileiro. Mais ainda: ele continua a ter uma proposta que se pretende nova e fala mesmo a linguagem dos revolucionários e dos libertários, a linguagem do antipoder. E, porque não o dizer, fala em nome de uma antiga tradição e de sua contradição mais profunda: a que se trava entre um discurso que, em sua expressão superior, dissolve o poder na liberdade absoluta do ser em Deus, e uma prática que é uma diuturna e competente experiência do jogo do Poder, um jogo no qual o sábio eclesiástico é capaz de tirar vantagem da própria derrota, particularmente quando acumulada. A reflexão sobre tudo o que constitui o tecido dos livros aqui examinados pode auxiliar a formação de um Pensamento Crítico no que concerne à experiência brasileira, auxiliando-o a descobrir a ideologia onde se pretende encontrar-se a teoria e os ardis do poder onde se proclama o seu óbito.

Mas é antes de tudo a Filosofia quem ganha com o nível atingido por estes dois escritos. Embora o espaço gráfico lhe tenha sido aberto graças aos propósitos pedagógicos da coleção, o que realmente conta é o nível alcançado: mesmo sem poder explorar em toda a profundidade os temas que se propuseram, Marilena Chaui e Gérard Lebrun não permitiram que seus escritos se extraviassem pelos caminhos de um didaticismo meramente oportunista. Sem deixar de ser didáticos, não recuaram jamais ante as exigências de um discurso propriamente filosófico. Isto, talvez, torne a leitura de seus ensaios árdua para grande parte da clientela brasileira, cuj os hábitos de leitura se situam em níveis ainda muito baixos e, se se tomar por base a experiência das Universidades, em nível inferior ao de anos passados. Todavia, este fato apenas situa diferentemente os dois escritos, incluindo-os entre os que, por sua exigência, deverão abrir novos horizontes, permitindo que não se fale mais no condicional da realização dos propósitos da coleção a que pertencem.



[1] Professor Colaborador a nivel de Assistente Doutor do Departamento de Filosofia - Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação - UNESP - 175 00 - Marília - SP - Brasil.