Quatro textos de Galileu

 

Tradutor: Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento[1]

 

 

A última obra de Galileu foram os Discursos e demonstrações matemáticas acerca de duas novas ciências a respeito da mecânica e dos movimentos locais publicados em Leyde pelo editor Elzevir em 1638. É dividida em quatro jornadas nas quais dialogam Salviati (porta-voz de Galileu), Simplício ( representante da ciência aristotélica) e Sagredo (leigo culto e mediador entre os dois interlocutores precedentes). O original foi escrito em italiano (os trechos dialogados) e latim (principalmente os teoremas). Damos a seguir a tradução dos trechos de abertura da primeira, da terceira e da quarta jornadas, bem como o trecho que introduz o estudo do movimento naturalmente acelerado na terceira. O primeiro destes trechos foi redigido em italiamo; os três outros em latim. Servimo-nos para esta tradução do texto dos Discursos tal como aparece no oitavo volume das Opem di Galileo Galilei, Edizione Nazionale, Florença, G. Barbéra, 1929-1939, 2. edição.

 

I

 

Salviati. Amplo campo para filosofar parece-me que ofereça aos intelectos especulativos a freqüente prática do vosso famoso arsenal, Senhores venezianos, e em particular naquela parte que se denomina mecânica; visto que ali é continuamente empregada toda sorte de instrumento e de máquina por grande número de artífices, entre os quais, tanto pelas observações feitas pelos seus antecessores como pelas que por seu pr6prio juízo vão continuamente fazendo por si mesmos, é forçoso que haja ali peritíssimos e de sutilíssimo discurso.

Sagredo. Em nada se engana V.S.; e eu, como curioso por natureza, freqüento para meu lazer a visita deste lugar e a prática destes que n6s, por certa preeminência que têm sobre o resto do conjunto dos melhores mestres, denominamos chefes, cuj o trato me ajudou muitas vezes na investigação da razão de efeitos não s6 maravilhosos, mas ainda recônditos e quase impensáveis. É verdade que às vezes também me deixou confuso e desesperado de poder compreender como pode resultar aquilo que, distante de qualquer concepção minha, os sentidos me demonstram ser verdadeiro. E, no entanto, aquilo que faz pouco nos dizia aquele bom velho é um provérbio e uma proposição assaz bem divulgada; contudo eu a reputava de todo vã, como muitas outras que estão na boca dos pouco inteligentes, introduzidas por eles, creio, para mostrar saber dizer alguma coisa a respeito daquilo de que não são capazes.

Salviati. V.S. quer talvez referir-se àquele último pronunciamento que ele proferiu quando procurávamos entender por qual razão faziam tanto maior aparelho de escoras, armaduras e outras defesas e fortificações em torno daquela grande galeaça que devia ser lançada ao mar, quanto não se faz em torno de navios menores; ocasião em que ele respondeu que isto se faz para evitar o perigo de despedaçar-se esmagada pelo grandíssimo peso da sua vasta mole, inconveniente ao qual não estão sujeitos os barcos menores?

Sagredo. A isto me refiro e sobretudo à última conclusão que ele acrescenta, a qual eu sempre jUlguei vã concepção do vulgo; isto é, que nestas e outras quinas semelhantes não se pode argumentar das pequenas para as grandes, porque muitas invenções de máquinas dão certo em pequeno e depois, em grande, não subsistem. Mas, sendo que todas as razões da mecânica têm os seus fundamentos na geometria, na qual não vejo que a grandeza ou a pequeneza torne os círoulos, os triângulos, os cilindros, os cones e quaisquer outras figuras sólidas sujeitas, estas a certas propriedades, e aquelas a outras, então se a máquina grande for fabricada em todas as suas partes conforme às proporções da menor, sendo esta válida e resistente para o uso ao qual é destinada, não posso ver porque aquela não sej a também isenta dos choques que lhe possam sobrevir, sinistros e destrutivos.

Salviati. A sentença do vulgo é absolutamente vã; é de tal modo que o seu contrário poderá ser proferido com idêntica verdade, dizendo que muitas máquinas poderão ser feitas mais perfeitas em grande do que em pequeno. Como, por exemplo, se fará um relógio que mostre e bata as horas, mais exato de uma tal grandeza do que de uma outra menor. Com melhor fundamento sustentam aquela mesma sentença outros mais inteligentes, os quais reportam a ca.usa do sucesso de tais máquinas grandes, não de acordo ao que se recolhe das puras e abstratas demonstrações geométricas, mas à imperfeição da matéria que está sujeita a muitas alterações e imperfeições. Mas aqui não sei se poderei, sem tropeçar em alguma nota de arrogância, dizer que nem mesmo o recorrer às imperfeições da matéria, eapazes de contaminar as puríssimas demonstrações matemáticas, basta para escusar a desobediência das máquinas em concreto às mesmas abstratas e ideais. Todavia eu o direi, afirmando que, abstraindo todas as imperfeições da matéria e supondo-a perfeitíssima e inalterável e isenta de toda mutação acidental, com tudo isto, o só ser material faz com que a máquina maior, fabricada com a mesma matéria e com as mesmas proporções que a menor, em todas as outras condições corresponderá com simetria exata à menor, exceto na robustez e resistência contra as incursões violentas; e quanto maior, tanto, em proporção, será mais frágil. E porque eu suponho que a matéria é inalterável, isto é, sempre a mesma, é manifesto que dela, como de afecção eterna e necessária, se podem produzir demonstrações não menos que das outras pura e simplesmente matemáticas. Por isso, senhor Sagredo, revogue a opinião que tinha, e isto com muitos outros que na mecânica fizeram estudo, de que as quinas e as construções compostas com as mesmas matérias, com exata observância das mesmas proporções entre as suas partes, devem ser igualmente ou, para dizer melhor, proporcionalmente aptas a resistir e a ceder às incursões e violências externas; porque se pode demonstrar geometricamente que sempre as maiores são em proporção menos resistentes que as menores. De tal modo que, enfim, não só de todas as máquinas e construções artificiais, mas também das naturais, um limite necessariamente prescrito além do qual nem a arte nem a natureza pode ir. Digo "ir além", conservando sempre as mesmas proporções e com idêntica matéria.

 

 

II

 

Sobre um assunto velhíssimo promovemos uma ciência novíssima. Talvez nada mais antigo na natureza que o movimento e acerca dele acham-se escritos pelos filósofos volumes nem poucos nem pequenos. Descubro, porém, várias das propriedades dignas de conhecimento que lhe cabem, ainda não observadas e indemonstradas. Algumas de pouca importância foram registradas como, por exemplo, que o movimento natural de queda dos graves acelera-se continuamente. No entanto, segundo qual proporção se a sua aceleração, não apareceu até aqui. Pois ninguém, que eu saiba, demonstrou que os espaços percorridos em tempos iguais por um móvel que cai a partir do repouso guardam entre si a proporção que têm os números ímpares que se seguem à unidade. Observou-se que os mísseis ou projéteis descrevem uma linha de algum modo curva. Entretanto, ninguém mostrou que ela é uma parábola. Que tais coisas são assim e outras não poucas nem menos dignas de saber, serão demonstradas por mim e, o que julgo mais importante de se fazer, é aberta a entrada e o acesso para uma amplíssima e utilíssima clencia cujos elementos serão estes nossos trabalhos, na qual engenhos mais perspicazes que o meu penetrarão os recessos mais escondidos. Esta discussão é dividida em três partes: na primeira parte consideramos o que diz respeito ao movimento igual e uniforme; na segunda escrevemos sobre o movimento naturalmente acelerado; na terceira sobre o movimento violento ou sobre os projéteis.

 

III

 

Os acidentes que cabem ao movimento igual foram considerados no livro precedente. Resta tratar do movimento acelerado.

 

Em primeiro lugar convém investigar e explicar a definição que lhe caiba exatamente enquanto se encontra na natureza. Pois, embora não haj a inconveniente em imaginar arbitrariamente alguma espécie de movimento e examinar as propriedades que dela decorrem assim, com efeito, procedem os que se imaginam linhas helicoidais ou concoides resultantes de certos movimentos, embora estes não se encontrem na natureza, e louvavelmente demonstraram hipoteticamente as propriedades de tais Unhas - no entanto, visto que se encontra na natureza uma certa espécie de aceleração dos graves que caem, decidimos refletir sobre as propriedades destes na suposição de que a definição que daremos do nosso movimento acelerado venha a concordar com a essência dos movimentos naturalmente acelerados. O que confiamos ter, enfim, conseguido depois de repetidos esforços mentais, baseados principalmente na seguinte razão: que as propriedades sucessivamente demonstradas por nós aparecem como correspondentes ao que os experimentos naturais apresentam aos sentidos e congruentes com isto. Finalmente, na investigação dos movimentos na.turalmente acelerados, como que nos conduziu pela mão a advertência do costume e do instituto da pr6pria natureza em todas as suas demais obras no exercício das quais costuma usar dos meios mais pr6ximos, mais simples e mais fáceis. Penso, com efeito, que não há ninguém que creia que o nado e o vôo pode ser executado de modo mais simples e fácil do que aquele mesmo que é usado, por instinto natural, pelos peixes e pelas aves.

Então, pois, quando me dou conta de que uma pedra, que cai de uma altura a partir do repouso, adquire sucessivamente novos incrementos de velocidade, por que não crerei que tais aditamentos se dão pela razão mais simples e mais 6bvia a todos. Ora, se examinarmos atentamente isto, não encontraremos aditamento ou incremento mais simples do que o que acrescenta sempre do mesmo modo. O que entendemos facilmente examinando a afinidade máxima do tempo e do movimento, pois, assim como a igualdade e uniformidade do movimento se define e concebe-se pelas igualdades dos tempos e dos e spaços - denominamos então, assim, um movimento igual, quando espaços iguais são oompletados em tempos iguais - igualmente podemos perceber os incrementos de celeridade como feitos simplesmente através das igualdades das partes do tempo, concebendo na nossa mente que um movimento é uniformemente e do mesmo modo acelerado quando, em quaisquer tempos iguais, lhe são acrescentados aditamentos iguais de celeridade. De tal modo que, tomado qualquer que seja o número de partículas iguais de tempo, a partir do primeiro instante em que o m6vel sai do repouso e começa a descida, o grau de celeridade adquirido na primeira e segunda partícula de tempo seja o dobro do grau que o m6vel adquiriu na primeira partícula; o grau que adquire em três partículas de tempo, triplo; o que adquire em quatro, quádruplo do mesmo grau do primeiro tempo. De tal modo que - para maior claridade da compreensão - se o m6vel continuasse seu movimento segundo o grau ou momento de velocidade adquirida na primeira partícula do tempo e em seguida estendesse o seu movimento uniformemente com tal grau de velocidade, este movimento seria duas vezes mais lento do que aquele que se realizasse segundo o grau de velocidade adquirida em duas partículas do tempo. E assim não parece de modo nenhum dissonante da reta razão se consideramos que a intensificação da velocidade se dá segundo a extensão do tempo. Daí a definição do movimento do qual iremos tratar pode ser considerada a seguinte: denomino movimento igualmente ou uniformemente acelerado aquele que, partindo do repouso, acrescenta a si, durante tempos iguaiS, momentos iguais de celeridade.

 

IV

 

Salviati. A tempo chega ainda o Sr. Simplício; por isso, sem interpor delongas, abordemos o movimento. Eis o texto do nosso Autor.

 

Sobre o movimento dos prOjéteis

 

Consideramos precedentemente os acidentes que acontecem no movimento uniforme e também no movimento naturalmente acelerado sobre quaisquer inclinações dos planos. Na consideração que agora inicio esforçar-me-ei por apresentar e estabelecer por demonstrações firmes alguns sintomas prinCipais que valem a pena serem conhecidos e que advêm ao móvel na medida em que se mova com movimento composto de um duplo deslocamento, a saber, uniforme e naturalmente acelerado. Ora, parece ser deste tipo o movimento que atribuímos aos projéteis e cuj a geração estabeleço da seguinte maneira.

Concebo mentalmente um certo móvel lançado sobre um plano horizontal, excluído todo impedimento. Já consta, pelo que foi dito mais detalhadamente em outro lugar, que este movimento será uniforme e perpétuo sobre o próprio plano, se o plano se estender ao infinito. Se o supusermos limitado e colocado no alto, o móvel, que concebo como dotado de gravidade, chegado ao limite do plano e passando além, acrescenta ao precedente deslocamento uniforme e indelével a propensão para baixo que possui pela sua própria gravidade. Resulta daí um certo movimento composto do uniforme horizontal e do naturalmente acelerado para baixo, que denomino projeção. Deste demonstraremos alguns dos acidentes, dos quais o primeiro é o que segue.



[1] Professor Assitente Doutor junto ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação da UNESP - Campus de Marília.