A CRITICA BEHAVIORISTA DE W. O. QUINE[1]

 

 

Antonio Trajano Menezes Arruda[2]

 

ARRUDA, A.T.M. - A crítica Behaviorista de W.O. Ouine. TransjFonn/Ação, São Paulo, 3:115-25, 1980.

 

RESUMO: O artigo comenta a crítica comportamental quineana da semântica e da epistemologia. Quine pretende, com esta crítica, ter produzido contribuições significativas para a clarificação de umas tantas noções, entre elas a de observação, ou de sentença observacional, tema este que é apresentado detalhadamente. É examinado, também, o papel exato da chamada tese Duhem_Ouine na rejeição, por Ouine, da doutrina das proposições.

UNITERMOS: Behaviorismo; significado; analiticidade; sentença observacional; teoria e observação.

 

 

1          .    O Significado e a Sinonímia

 

Em um de seus primeiros escritos em semântica, pergunta Quine: "Can an empiricist speak seriously of sameness of meaning of two conditions upon an object x, one stated in the heathen language and ene in ours, when even the singling out of an object x as object at alI for the heathen language is so hopelesslY arbitrary?" (3, p. 20). De fato, a condenação elas noções gerais de significado e de sinonímia, tão associada ao nome de Quine, é um resultado direto do enfoque empírico, ou empírico-comportamental, da linguagem, que é aquele em que Quine se situa.

A teoria da tradução radical, exposta essencialmente no segundo capítulo de Word and Object, fenta mostrar que o único significado setencial de que se pode falar é o significado-estímulo da sentença ocasional; o significado-estímulo de uma sentença é aproximadamente o conjunto das estimulações que poderiam induzir o falante a assentir à, ou a dissentir da sentença, e a sentença ocasional é aquela que não tem valor de verdade quando dissociada de uma indicação ostensiva, pelo falante, a feições observáveis do ambiente circundante. O argumento de Quine de que a ostensão associada a um termo referencial não determina a referência desse termo, conduzindo à tese da multiplicidade de sistemas rivais de hipóteses analíticas, compromete qualquer outro significado sentencial que não seja o da sentença ocasional. Portanto, a doutrina das proposições, concebidas estas, como de hábito, como o significado das sentenças, é rejeitada por ser incompatível com os resultados da semântica da tradução radical. A simples exposição desta semântica é eloquente a esse respeito; e, além disso, Quine é explícito sobre o ponto; escreve ele: "Insofar as we take such a posit [Le. a proposição J seriously, we thereby concede meaning, however incrustable, to a synonymy relation that can be defined for eternal sentences of distinct languages... " (4, p. 205), e isso contraria a tese da aceitabilidade de sistemas alternativos de hipóteses analíticas; assim. conclui ele, os resultados da teoria da tradução radical "may of themselves be said implicitly to scout the whole motion of propositions, granted a generally scientific outlook." ( 4, p. 206). Veja-se, ainda, esta outra afirmação: "Were it not for this situation [ i.e., a multiplicidade de hipóteses analíticas], we could hope to define in behavioral terms a general relation of sentence synonymy suited to translation needs, and our objection to propositions themselves would thereby be dissipated" ( 4, p. 207). A "generally scientific outlook" do texto citado mais acima não é outra coisa senão o enfoque empírico-comportamental básico de Quine, do qual a indeterminação semântica aparece como um resultado.

 

A relação entre significado e sinonímia é óbvia; no entanto, para se compreender completamente como se a relação na filosofia quineana, há que ressaltar o seguinte ponto: Quine tenta mostrar que o discurso que faz referência a entidades precisa conjugar os termos referenciais com um aparato linguístico que permita individualizar as entidades. Ou seja, falar de objetos supõe o domínio de critérios de individualização para eles; e, no caso das proposições, esse critério seria a sinonímia entre as sentenças que exprimiriam uma dada proposição. Ora, a semântica naturalizada, com sua rejeição da sinonímia, priva as proposições desse critério, e com isso faz com que elas emerjam como entidades obscuras e apresenta como carente de inteligibilidade científica o discurso que fala delas; assim, a crítica quineana das proposições é uma crítica de natureza semântica: "... the appropriate equivalence relation [ i. e.' a relação de sinonímia] makes no sense at the leveI of sentences." (5, p. 3)

A rejeição das proposições priva a epistemologia de sua tradicional entidade para fazer o papel de veículos do valor de verdade. Representaria isso desastre? Não; Quine procura suprir essa perda, propondo as próprias sentenças para fazerem esse papel; mas os enunciados mas típicos da ciência apresentam muita fixidez e constância de valor de verdade, o que não ocorre com as sentenças em geral; é por essa razão, entre outras, que Quine recorre ao seu artifício de "eternização" das sentenças, o qual tem o efeito de fixar de uma vez por todas o valor de verdade da sentença. A eternização de sentenças é importante em conexão com dois pontos; um é este que acabei de referir; o outro tem a ver com a regimentação do discurso na notação canônica.

 

Recorre-se à sinolllmla e a proposições, ainda, para fazerem outros papéis: à sinonímia como critério para a avaliação da citação indireta, e a proposições como objetos das atitudes proposicionais. Neste caso a resposta de Quine é que sua semântica naturalista degrada ambos os discursos a um estatuto científico inferior; esses discursos são contextos opacos, vale dizer, são modos não-extensionais de compor enunciados;e entende Quine que o discurso intencional está estreitamente associado com o mentalismo: "[ o contraste entre o discurso das atitudes proposicionais e os extensionais] is intimately related to the distinction between behaviorism and mentalism... " (4, p. 219); e: "Even indirect quotation... seems insusceptible to general reduction to behavioral terms... " (4, p. 220); ainda: "Brentano's thesis of the irreducibility of intensional idioms is of a piece with the thesis of indeterminancy of translation" (4, p. 22 1).

É o behaviorismo a única razão, em Quine, para a rejeição das proposições? Embora seja uma razão suficiente, ela não é necessária: o único papel relevante que as proposições desempenham. ou desempenhariam, é segundo Quine o de serem aquilo de que se diz o verdadeiro e o falso; e para essa função a epistemologia quineana dispõe da sentença eterna; ora, argumenta Quine, se temos que passar pelas sentenças para chegar às proposições, por que não ficar com sentenças e esquecer proposições? Vejase o texto: "The doctrine of propositions seems in a way futile on the face of it, even if we imagine the individuation problem solved. For, that solution would consist in some suitable definition of equivalence of sentences; why not then just talk of sentences and equivalence and let the propositions,go?" (5, p. 10). Esta argumentação relaciona-se com um princípio de economia ontológica, subscrito por Quine.

É muito interessante notar que a tese Duhem sobre a lógica das hipóteses científicas, mesmo tomada na formulação dUhemiana, isto é, restrita ao domínio da teoria física, é suficiente em conjução com a teoria verificacional, para comprometer de modo irremediável, e independentemente do behaviorismo, a noção de proposição como significado de sentenças declarativas; para comprometer, portanto, uma noção geral de significado para o discurso, e mesmo para a linguagem geral. Com efeito: se o sign$cado de uma,sentença consiste na evidência empírica para sua confirmação e sua refutação, e se esta evidência o se vincula individualmente às sentenças teóricas, segue-se que é equivocado falar-se d? significado de uma sentença teórica. QUlne, ele próprio, argumenta nessa direção: "When. " we take a verification theory of meaning seriously, the indeterminacy would appear to be inescapable. If we recognize with peirce that the meaning of a sentence turns purely on what would count as evidence for its truth, and if we recognize with Duhem thar theoretical sentences have their evidence not as single sentences but only as larger blocks of theory, then the indeterminacy of translation of theoretical sentences is the natural conclusion.... This conclusion, conversely, once it is embraced, seals the fate of any general notion of propositional meaning... " (3, p. 80-1).

A polêmica, de inspiração naturalista, contra as proposições é relevante, e de um modo especial, no contexto da psico-gênese semântica do discurso, que é estudada por Quine em The Roots of Reference; com efeito: o assentimento incide sobre o quê? Se sobre abstrações proposicionais, então, na perspectiva da iniciação da criança ao discurso, fica comprometido a enfoque empírico-naturalista; se sobre sentenças, então sim, pois o assentimento incide sobre a forma física audível da sentença.

 

2          . A Analiticidade

Desqualificada a noção geral de sinonímia sentencial, e aceita a interdefinibilidade dela com a analiticidade, seguese que está última também não pode fazer sentido empírico. Assim, o behaviorismo es por trás da rejeição da dicotomia do analítico e do sintético; vários são os textos em que Quine é explícito sobre o ponto; eis dois deles: "... we find it argued that the standard of clarity that 1 demand fOr synonymy and analyticity is unreasonably high; yet 1 ask no more, after all, than a rough characterization in terms of dispositions to verbal behavior" (4, p. 207); e este outro, a propósito da doutrina do fundamento linguístico da lógica, que no positivismo lógico relaciona-se estreitamente com a aceitação da analiticidade: "I have protested more than once that no empirical meaning has been given to the notion of meaning, nor consequent1y, to this linguistic theory of logic." (6, p. 78). Ou seja, o que Quine pretende é que não é possível, nos quadros empíri'cos-comportamentais, distinguir as sentenças ditas analíticas daquelas que não o o.

Do mesmo modo que no caso das proposições, o behaviorismo não é a única razão, na filosofia quineana, para a rejeição da analiticidade. Quine vincula estreitamente a crítica da analiticidade com a tese de Duhem. Vejam'se, e. g., as afirmações: "[a noção de analiticidade] has long had its doubters; Duhem's views... are scarcely congenial to it." ( 4, p. 67); e: "it is mistaken to try to distinguish even between those scientific statements which are true by virtue of the meanings of our terms and those which are true or probable by inductive evidence. As Pierre Duhem urged, it is the system as a whole that is keyed to experience." (7,.p. 209). Mas esse vínculo implica na presunção, a que me referirei como o suposto globalista do conhecimento, e que vem a ser a seguinte: num corpo qualquer de teoria científica, qualquer sentença, inclusive os enunciados lógicos ou matemáticos eventualmente pressupostos nele, encontram sua justificação, em última análise, e ainda que muito indiretamente, na experiência sensível. Este suposto é explicitamen· te subscrito por Quine, e. g., no texto: ".., mathematics - not uninterpreted mathematics, but genuine set theory, logic, number theory, algebra of real and complex numbers, differential and integral calcufus, and so on - is best looked upon as an integral part of science, on a par with physics, economics, etc., in which mathematics is said to receive its applicacions." ( 7, p. 23 1); e neste outro: "All these laws - those of physics and those of mathematics equalIy - are among the component hypotheses that fit together to constitute our inclusive scientific theory of the world." (8, p. 52). Quine entende que, dadas duas porções quaisquer de teoria científica há, em alguns casos mais, noutros menos, mas sempre há, alguma conexão entre elas; essas porções fariam parte de uma "single connected fabric including aI sciences, and indeed everything we ever say about the world; for the logical truths at least and no doubt many more commonplace sentences toa, are germane to all topics and thus provide connections". (4, p. 12-3) O globalismo é um suposfo essencial para que a tese Duhem possa comprometer a analiticidade, e isso porque a rejeição da analiticidade é, e precisa ser, completa: a existênci'a de uma única sentença que satisfizesse o requisito da analiticidade comprometeria seriamente quase toda a crítica comportamental de Quine; de fato: suponhamos que existia uma tal sentença; então seria possível fa' lar do significado individual dela, que seria precisamente esse significado que faria ver sua analiticidade; mas tratar-se-ia de um significado não-empírico, e portanto, presumivelmente, de uma proposição; mas a aceitação de proposições conflita com a tese geral da multiplicidade de sistemas diversos de hipóteses analíticas. Logo, a interpretação correta da lógica dos enunciados lógico-matemáticos deve incluir a presunção de que eles se justificam, em última análise, em função de seu uso no discurso das teorias empíricas.

Quine entende que "no statement is immune to revision" (9, p. 43); esta afirmação vai na direção das considerações acima, isto é, ·tende para um certo empirismo da matemática e da lógica; de faf'o, se uma lei lógica é um princípio revisável, ela deve sê-lo, presumivelmente, em função de alguma consideração de ordem empírica. Assim, a proximidade ou a distância de um enunciado teórico qualquer em relação à observação seria marcada por um gradualismo, gradualismo esse que seria perceptível, inclusive, na transição da matemática para a lógica: a lógica estaria mais distante das hipóteses da ciência natural do que a matemática; veja-se, e.g. ". " it seems that mathematics generally... is from an evidential point of view more like physics and less like logic than was once supposed. On the whole the truths of matematics can be deduced not from self-evident axioms, but only from hypotheses which, like those of natural science, are to be judged by the plausibility of their consequences" (8, p. 29)

 

A crítica comportamental de Quine é feita ou no cenário da tradução radical, ou na perspectiva do aprendizado da língua-mãe. No primeiro, viu-se que a analiticidade não é suscetível, conforme diz o texto citado mais acima, nem de uma "rough characterization"; já na perspectiva psicogenética de The Roots of Reference descobre Quine que alguma coisa pode ser feita no sentido daquela caracterização: uma "rough line" pode ser traçada entre as sentenças analíticas e as outras. Vejamos como; Quine imagina que o aprendizado das funções de verdade consiste na percepção de certas conexões entre condições de assentimento; nós aprenderíamos, e.g., o conectivo "ou" constatando que as pessoas se dispõem a assentir a uma disjunção toda vez que estão dispostas a assentir a um dos disjuntos; se o "ou" é aprendido assim, então fazer o seu aprendizado é saber verdadeira a sentença da forma "Se p, então p ou q"; ou seja, dominar o significado daquela sentença é sabê-la verdadeira, e isso dá virtualmente a definição de sentença analítica. Por outro lado, segundo a teoria psicogenética quineana, aprender a sentença "Um cachorro é um animal" é assentir a ela, é sabê-Ia verdadeira, e mais uma vez tem-se algo parecido com a analiticidade. Considere-se, ainda, esse que é um dos exemplos preferidos de sentença analítica: "Nenhum solteiro é casado"; se se admite que nós aprendemos a palavra "solteiro" observando que as pessoas assentem a ela nas ocasiões em que assentem a "homem nãocasado", então dominar o significado de "solteiro" é saber verdadeira a sentença "Nenhum solteiro é casado". Estas considerações sugerem que se defina a sentença analítica como a sentença tal que aprendê-la é sabê-la verdadeira; mas, observa Quine, ocorre que diferentes sentenças são aprendidas diversamente por diferentes pessoas; exemplo: alguém pode aprender "Um cachorro é um animal" do modo acima descrito, e outra pessoa vir a compreendê-la a partir do domínio da própria construção universal afirmativa, a qual, nela mesma, não tem nada de analítica; o remédio óbvio é acrescentar, ao requisito estipulado, a exigência de uniformidade social no modo de aprendizado da sentença; e assim se obtém a caracterização psicogenética da analiticidade: 'Here then we may at last have a line on a concept of analyticity: a sentence is analytic if everybody learns that it is true by learning its words". (6, p. 79); sugere Quine que esta versão de analiticidade pode talvez traçar uma "rough line between sentences like" no bachelor is married" or "We are our cousins' cousins", which are ordinarily said to be analytic, and sentences that are not." (6, p. 80). Mas isso não significa, adverte Quine, uma concordância com a dicotomia lógico-positivista do analítico e do sintético; a analiticidade continuaria sendo uma questão de grau, isto é, algumas sentenças seriam mais ou menos analíticas que outras; e o critério proposto não é tal que permita decidir, em todos os casos, quando se tem um maior ou menor grau de analíticidade; ou ainda: muitas sentenças habitualmente consideradas analíticas poderão não sê-lo segundo o critério proposto: a própria lei do terceiro excluso, pelo fato de, para começar, não ser aceita por todas as pessoas, talvez deva ser vista como sintética.

Pode-se dizer, portanto, que a epis­

temologia quineana dá, em The Roots of Reference, algum passo na direção de uma parcial clarificação da noção de analiticidade, e isto poderia ser tomado, aliás, como uma prova do interesse do enfoque psicogenético em epistemologia.

 

3.                    . A Sentença Observacioncl

 

Quine apresenta sua noção de sentença observacional como solução para o problema das protokollsâtze, isto é, para o problema de saber qual é o repositório da evidência empírica ou a garantia de certeza do conhecimento científico. Convém salientar dois traços importantes desta solução, os quais ilustram bem o gênero de atividade ou análise filosófica recomendado e praticado pela filosofia quineana. Quine é um adepto da explicação filosófica no sentido de Carnap (1, p. 8), que consiste na proposição de determinadas entidades e noções para substituir outras, presumidas menos claras, menos satisfatórias; uma explicação, neste sentido, não precisa ser propriamente uma clarificação de uma noção habitual, ela pode ser uma eliminação, parcial ou total, desta última, em favor de outra, que cumpra o mesmo papel relevante. O significado-estímulo e a sentença eterna são duas instâncias desse tipo de análise filosófica, e a sentença observacional vem a ser uma outra instância. Quine explica a noção de observação, substituindo-a pela de senfença observacional, e com isso alegadamente evita tradicionais dificuldades associadas com as observações propriamente ditas, como, por exemplo,. o problema envolvido na subjetividade delas: "I propose to dodge the problem of defining observation by talking instead of observation sentences... " (6, p. 39). Portanto, Quine resolve o problema da observação, evitando-o, mostrando que o precisamos nos preocupar com ele; e, segundo ele próprio afirma, mostrar que um problema é evitável é solucionar esse problema, num sentido importante de "solucionar um problema". O outro traço importante ilustrado pela solução quineana é a estratégia da ascenção semântica, como ele chama, que é um estilo de análise e solução de problemas filosóficos; esta estratégia consistiria, em linhas mui,to gerais, em tratar problemas de realidade deslocando-se do nível do objeto para o nível da palavra, do nível da realidade objeto do discurso, para o discurso; referindo-se à dificuldade envolvida na subjetividade das observações, escreve ele: "There is a way out of this difficulty over the notion of observation. It consists in talking neither of sensation, nor of environing situation, but of language... 1 propose that we drop the talk of observation and talk instead of observation sen° tences... " (6, p. 39). Algumas instâncias do procedimento de abordar prOblemas filosóficos pelo lado da linguagem estão fora da epistemologia naturalizada; 11m exemplo disso é a sentença eterna. que é um expediente proposto dentro do fazer deliberado da epistemologia, da mutação deliberada do quadro conceitual em que nos enquadramos. Outras instâncias estão dentro do naturalismo, entre elas a propos'ta da sentença observacional; de fato, Quine insiste em que sua contribuição específica, nesse terreno, é uma conceituação behaviorista de observação: "What is worth noticing is that we have here a behavioral criterion of what to count as an observation sentence" (6. p. 39). Quine preza muito esta sua contrbuição, que ele considera a sentença observacional como a pedra angular da semânica do discurso.vale dizer, da epistemologia e da psico-semântica do discurso; a noção de sentença observacional seria fundamental na dimensão conceitual e na doutrinaI da epistemologia: "Clarification of the notion of observation sentences is a good thing, for the notion is fundamental in two connections. These two correspond to the duality... betwecn concepf and doctrine, between knowing what a sentence means and knowing whether it is true." (3, p. 88). A noção de observacionalidade é indispensável na teoria psicogenética, porque a ostensão é um expediente necessário para iniciar o processo de aprendizado, e a ostensão requer a observacionalidade (6, p. 37). E o papel evidenciaI da observação na teoria científica radica naquele aprendizado ostensivo da sentença observacional; ou ainda: a circunstância de sermos capazes de estar de acordo a respeito das observações - circustância essa que faz a importância delas em ciência - é iluminada pela reflexão psicogenética.

A sentença observacional quineana discrepa daquilo que se pode considerar enunciado de observação num sentido mais habitual, mas amplo, não definido tecnicamente; "Campinas é menor do que São Paulo" é cIassificável como enunciado observacional no sentido habitual, e não é uma sentença observacional no sentido quineano. Esta última é um tipo particular de sentença ocasional, vale dizer, ela em geral não tem valor de verdade quando dissociada de uma indicação ostensiva a feições observáveis do mundo exterior; assim, a sentença oc asional, enquanto unidade linguística apropriada para o assentimento e o dissentimento, é, a rigor, uma mescla de estimulação verbal e estimulação extra-verbal; ou seja, a parte verbal da sentença ocasional não é uma unidade linguística significativa, ela é fragmento de uma unidade significativa que inclui a ostensão; ou ainda: a sentença ocasional, na sua parte estritamente verbal, é um símbolo linguístico (semanticamente) incompleto; e é neste seu hibridismo - nesta fusão íntima do componente verbal com o componente empírico extra-verbal - que reside o grande interesse do empirista Quine nela. Não fosse por esse seu caráter híbrido, a sentença observacional não teria o papel fundamental que tem na epistemologia naturalizada de Quine.

Tratemos agora de um tópico delicado, o da lógica das sentenças observacionais. A tese Duhem-Quine afirma que o discurso é em geral uma mescla indissociável de teoria e experimento, de elementos teóricos e elementos empíricos: as setenças observacionais são a exceção: "Observations sentences peel nicely; their meanings, stimulus meanings, emerge absolute and free of residual verbal taint." ( 4, p. 76); o texto é forte: "absolute and free... "; estes outros também são: "(O significado-estímulo) isolates a sort of net empirical import of each of various single sentences without regard to the containing theory". (4, p. 34-5); e: "If the business of a sentence can be exhausted by an account of the experiences that would confirm or discomfirm it as an isolated sentences in its own right, then the sentence is substantially an occasion sentence." (4, p. 64). O modo como, inicialmente, a criança aprende e o linguista traduz, as primeiras sentenças observacionais, é algo que milita em favor dessa total independência semântico-epistemológica da sentença observacional; com efeito, o que ambos fazem, bem no início, é aprender a dominar individualmente, separadamente, cada uma dessas sentenças. No entanto, esta não é, a rigor, toda a correta interpretação quineana; os seguintes trechos, de obras posteriores a Word and Object, de onde foram retiradas as citações anteriores, atenuam a contundência: "The predicament of the indeterrninacy of translation has little bearing on observation sentences" (3, p. 89); este outro: "... usually observation sentences are indeed individually responsive to observation" (5, p. 5-6); e ainda: "The beliefs face the tribunal of observation not singly but in a body. But note... that the observation sentence... does face the tribunal singly, in the usual case... " (8, p. 13). Estas afirmações sugerem a possibilidade de rejeição de uma sentença observacional, em função de exigências teóricas; esta possibilidade está, de resto, em conformidade com a presunção de que todo enunciado é em princípio revisável. E a consideração principal que Quine faz para apoiar esse ponto é lembrar que um enunciado de observação pode ser desconsiderado no caso extremo de ele conflitar COm uma teoria solidamente aceita e, por enquanto, insubstituível. Portanto, o traço lógico distintivo da sentença obseivacional, que é a independência semântico-epistemológica a que nos referimos, não deve ser interpretada como infalibilidade; uma coisa é a pretensão de infalibilidade (absoluta) da sentença observacional - que não é endossada por Quine - outra coisa é sua firmeza; as sentenças observacionais são um terreno firme, não porque elas são infalíveis, não-revisáveis, mas porque são, e continuam sendo ainda que modificadas, a base comum onde se o acordo intersubjetivo das pessoas; sua firmeza está no seu caráter social, intersubjetivo, e não numa eventual apodicticidade sua: "Our definition of observation sentence speaIcs only of concurrence of present witnesses, and setes no bar to subsequent retractions" ( 6, p. 41).

 

A sentea observacional quineana tem uma caracterização semântica e uma caracterização psicogenética; a primeira resulta da conjunção da sentença ocasional com o acordo intersubjetivo na comunidade, e a segunda reside na modalidade ostensiva primária de aprendizado.

necessário entender que a conceituação completa é a conjunção das duas: Vejamos por que; considere-se a sentença ocasional "Presidente da República" exclusivamente no contexto semântico, isto é, fora do enfoque psicogenético; é legítimo admitir-se que o significado-estímulo da referida sentença seja uniforme durante um bom intervalo de tempo em toda uma comunidade linguística; ela se classificaria, portanto, como sentença observacional, o que seria um problema para.a. filosofia quineana; de fato, todo o empmsmo da construção naturalista de Quine está em última análise na noção de sentença observacional e no grande papel que ela desempenha; portanto, para que se possa estar certo de que a filosofia quineana é um empirismo consequente, é preciso que se esteja certo do caráter de empiricidade da sentença observacional; ora, "Presidente da República" carece desse caráter, contrapondo-se às sentenças cujos significados-estímulos são "free of residual verbal taint", pois é óbvio que o assentimento ou o dissentimento a ela é induzido por toda a interconexão verbal de que faz parte a expressão "Presidente da República". Considere-se, por outro lado, a expressão "Mamãe" exclusivamente no contexto psicogenético, fora da semântica do discurso adulto; ela é ensinável segundo a modalidade ostensiva básica, e portanto qualifica-se como sentença observacional, como o próprio Quine reconhece. No entanto, "Mamãe" é um dos casos extremos de variabilidade de significado estímulo e, por isso, discrepa muito da noção de sentença observacional da teoria da tradução radical. A luz de sentenças do tipo de "Presidente da República" e de "Mamãe", vê-se bem que, se quisermos apresentar uma conceituação de sentença observacional que seja apropriada para toda a epistemologia naturalizada, temos que conjugar a versão psicogenética com a versão da semântica da tradução radical; e, com esse expediente, protegemos a semântica quineana da objeção envolvendo "Presidente da República", já qUe esta sentença, considerada na perspectiva psicogenética, está longe de qualificar-se como observacional.

 

Ê virtualmente impossível exagerar a importância da sentença observacional na epistemologia naturalizada; seu papel decisivo, além de ser repetidamente comentado por Quine, é fácil de ser surpreendido em vários passos da construção psicogenética e da teoria da tradução radical; por exemplo, o aprendizado das expressões para o assentimento e para a negação, tão importante nas duas teorias, se através das sentenças observacionais.

 

 

4.                    Sobre o Comportamento Verbal

 

A epistemologia naturalizada, entendida aqui como a conjunção da teoria da tradução radical e da psicogênese semântica do discurso, começa por converter o verdadeiro e o falso, tradicionais na literatura filosófica, em comportamento verbal de assentimenfo e de dissentimento: "Truth cannot on the whole be viewed as a trait, even a passing trair, of a sentence merely; it is a passing trait of a sentence for man." (4, p. 191). E o comportamento verbal de que se trata aqui é a modalidade assertiva de comportamento verbal; portanto, a de assertar sentenças, a de assentir a elas, e a de dessintir delas; mas, mais restritivamente, toda vez que Quine utiliza a noção de comportamento verbal ou de disposição para o comportamento verbal, ele a insere numa situação particular que é aquela em que uma expressão é apresentada ao veredito dos falantes; é preciso levar-se em conta eSSe ponto, para não se ser levado a objeções equivocadas ao uso que Quine faz da noção de disposição para o comportamento verbal, como a feita por Chomsky (2, p. 57). Quine responde, com razão: "Verbal dispositions would be pretty idle if defined in terms of the absolute probability of utterance out of the blue. I, among others, have talked mainly of verbal dispositions in a very specific circumstance: a questionnaire circumstance, the circumstance of being offered a sentence for assent or dissent ar indecision reaction". ( 10, p. 445). Dir-se-ia mais: nos pontos impor­

tantes em que Quine usa o comportamento verbal, ou a disposição para o cOmportamento verbal, ele o faz não apenas em conexão com situações de interrogação, mas ainda em situações de interrogação ou elocução estreitamente vin' culada a estimulações extra-verbais conspicuamente presentes na cena.

O assentimento e o dissentimento, que são as contra-partidas comportamentais do verdadeiro e do falso, ocupam uma posição focal na epistemologia behaviorita de Quine: "(o assentimento) is the indispensable means of tapping the reservoir of linguistic dispositions." (6, p. 47); esta importância tem a ver centralmente com o primado do significado sentencial ou com o princípio da definição contextual, e está intimamente associada com a visão de Quine de que aprender uma linguagem é aprender a distribuir valores de verdade (6, p. 65). Um contraste notável entre o valor de verdade no sentido tradicional e o valor de assentimento, é a fixidez do primeiro, em oposição à variabilidade do segundo. O falar-se em valor de assentimento, ao invés de em valor de verdade, está mais conforme a uma doutrina para a qual nenhum enunciado é imune à revisão; com efeito, que o valor de assentimento de uma sentença varie de falante para falante, e até para um mesmo falante, nada mais natural; já o que é menos concebível é que varie o valor de verdade, concebido de algum modo como uma propriedade da sentença.

 

5.                   A Tese Duhem-Quine

 

Falaremos neste item de alguns aspectos da relação entre a formulação quineana e a formulação duhemiana da tese Duhem-Quine. Segundo esta tese, há uma íntima interdependência entre teoria e observação, no sentido de que os relatos de observação não são o registro ingênuo do que se passaria objetivamente no mundo exterior; eles são, ao contrário, i mpregnados de teoria. A fundamentação especificamente duhemiana para esta presunção tem a ver com o uso na ciência física experimental de Ü'lstrumentos que supõem a validade de umas tantas leis, distintas daquela que o experimento trata de verificar: Quine endossa esta argumentação, mas sua específica fundamentação para esta presunção reside na semântica da tradução radical, mais precisamente na tese da inescrutabilidade da referência: um relato de observação do discurso do senso comum (e. g., "Vejo um coelho branco na soleira da porta"), implica numa referência a entidades, referência essa que não é um retrato passivo do mundo exterior tal como ele é independemente do sujeito, mas é antes uma construção do sujeito; ou seja, mesmo o discurso do senso comum, e nesse nível tão próximo da observação, não é teoricamente inocente, é, antes, construção, teoria; em The Web of Belief, depois de notar que as sentenças observacionais falam habitualmente de corpos, escreve Quine: "That there are enduring bodies at alI, behind the passing show of sensory appearance, is a point of physical theory a rudimentary point, but still something beyond the observable present occasion." (8, p. 15). Esta consideração registre-se de passagem - pode gerar a seguinte perplexidade: como pode ser empiricamente determinado o significado de uma sentença, a observacional, se ela fala de algo que é empiricamente subdeterminado, que são os corpos? A perplexidade dissipa-se tão logo se considere que a sentença observacional, qua sentença observacionaI. é a rigor uma unidade cujo componente linguístico é uma expressão não-analisada internamente.

 

Uma outra coisa que a tese DuhemQuine diz, é que muitas asserções do discurso são subdeterminadas pela evidência empírica. A formulação duhemiana está restrita às sentenças teóricas da física, ou talvez às sentenças teóricas de qualquer ciência experimental altamente desenvolvida; a formulação quineana é bem mais geral, engloba todo o discurso, exceto a sentença observacional. A contribuição de Quine para este aspecto da tese DuhemQuine provém igualmente da tese da subdeterminação empírica da referência; considere-se a sentença teórica da ciência natural "Existem moléculas"; segundo a própria formulação duhemiana, ela deve ser subdeterminada pela evidência empírica; ora, sendo, como é, uma asserção existencial, ela é no sistema de Quine uma sentença subdeterminada pelas condições empírico-comportamentais; desse modo, a teoria da tradução radical traz alguma fundamentação própria da tese Duhem. É possível propor, dentro da filosofia quineana, uma outra linha de argumentação, que permitiria exibir um modo, d iverso do anterior, de surpreender a contribuição quineana para a plausibilidade da versão duhemiana da tese; ei-Ia: a tese geral da multiplicidade de sistemas rivais de hipóteses analíticas acarreta que não faz sentido a noção de sinonímia entre sentenças, nem portanto a noção geral de significado para sentenças; ora, se subscrevemos aquela tese e se somos adeptos da teoria verificacional, então temos que concluir que não faz sentido falar-se de condições empíricas de verificação para sentenças teóricas da física, tomadas individualmente.-

 

ARRUDA, A.T.M. W.O. Quine' s Behavioristic critique. Trans/Fonn/Ação, São Paulo, 3: 115-25, 1980.

SUMMARY: The object of this paper is Quine's behavioristic critique of semantics and epistemology. Quine c1aims to have produced with this critique im_ portant contributions to the c1arification of a number a notions, among them the notion of obserwttion, or of observation s entence, a topic which is discussed here in detail. It is aIso discussed the precise role of the so-called Duhem-Quine thesis in Quine's rejection of the doctrine of propositions.

UNITERMS: Behaviorism; meaning; analyticity; observation sentence; theory and observation.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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[1] '" Texto extraído de uma seção de A Epistemologia Naturalizada de Van Orma."! Quine, Cap. 3, dissertação de mestrado apresentada na USP, em 1978.

[2] Professor Assistente junto ao Departamento de Filosof.ia da Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação da UNESP, Campus de Marília.