Estrutura Profunda e Padrões de Representação Semântica

Telmo  Correia Arrais

 

 


1.1.

Os últimos doze anos  têm-se mostra­ do fecundos quanto a publicações rela­ cionadas com a "semântica gerativa". Se por meados da década de 60 tais publi­ cações se caracterizaram pelo aspecto polêmico, já em fins dessa década esbo­ çam uma fase de maior reflexão e elabo­ ração, caminhando hoje para uma boa formalização e síntese, graças, sobretu­ do, à progressiva  integração  da  lógica aos estudos semânticos.

O interesse pelo sentido - tão des­ prezado no quadro da lingüística norte­ americana anterior ao gerativismo - advém de uma comprovação bastante simples: a do quanto é óbvio, para o falante de uma língua, que o significado é um elemento central e decisivo em sua atividade lingüística. Mas, a partir do momento em que os gerativistas se dão conta deste fato, os problemas se levan­ tam: Como considerar um nível tão flui­ do como o semântico? Em que parte da gramática se deve localizá-la e qual será seu papel? Qual será sua (possível) rela­ ção com o componente transformacio­ nal? Enfim, será a semântica gerativa propriamente uma "teoria do sentido"?

Para os gerativistas da "teoria pa­ drão", tão fortemente centralizada na sintaxe, a solução foi tratar o nível se­ mântico como um componente interpre­ tativo. Preservava-se, dessa forma, a independência e autonomia da sintaxe na estrutura profunda. A certa altura, po­ rém, os gerativistas dão-se conta de que a distinção entre sintaxe e semântica era relativamente precária. Daí o surgimento de duas orientações teóricas: de um lado, a teoria interpretativa, que tenderá a manter a distinção entre sintaxe e se­ mântica; de outro lado, a teoria da semântica profunda, que tenderá a apa­ gar tal distinção, com noções de ordem sintático-semântica que acabam por constituir o  princípio  organizador  do seu sistema. Esta última orientação, con­ seqüentemente, teve de reconsiderar alguns princípios teóricos do modelo transformacional, embora sem rompi­ mento com a tradição gerativista[1].

 

1.2.

 

A questão fundamental das pOSlçoes teórico-críticas assumidas contra a teo­ ria clássica diz respeito ao estatuto da estrutura profunda[2]. Não se tratava, certamente, de pôr em causa a hipótese fundamental da concepção transforma­ cionalista    da   gramática,   segundo   a   qual a descrição  lingüística  deve  postular  um nível subjacente, suficietemente simples, geral e universal, que pode ser posto em relação  com  o  conjunto   das   frases   de uma língua. Como bem mostra Charles Fillmore   (1 966,  passim,   1968,  p.    1 7- 19 ) , o nível de  estrutura  profunda,  tal como  havia  sido  considerado   até  então, não correspondia às exigências de gene­ ralidade    e    universalidade :    tratava-se, antes, de um modelo heterogêneo, onde noções    relacionais     (sintáticas )     como "Suj eito"   e    "Objeto    Direto"    aparecem ao lado de noções semânticas  como "Advérbio  de   modo",   "Advérbio   de tempo", etc. E Fillmore ressalta, nota­ velmente,  que  as  primeiras  têm   um   pa­ pel  apenas  secundário  na   caracterização das frases : a noção de sujeito, por exem­ plo,    só    intervém   nas   questões   relativas à  colocação   dos   constituintes   na  frase  e à concordância gramatical do verbo em pessoa e número, ou sej a, diz respeito de fato aos  fenômenos  próprios  da  estrutura de  superfície.  Além  do   mais,   é   impos­ sível  conferir  às  noções  de   Sujeito   e Objeto   qualquer   pertinência    semântica; em  outras  palavras : estas  funções   não têm um sentido constante.

Percebe-se,  facilmente,  a   inadequação de uma  teoria  que  considera  este  gênero de "estrutura profunda" como o nível destinado  à   interpretação   semântica.   Daí a  necessidade  de  substituir   tais   noções por   um   aparelho   conceptual   mais   adequado.  Este  aparelho  conceptual,  variá­ vel de autor para autor, assenta na idéia básica de que um nível  de  representa­ ção semântica é capaz de atingir o poder explicativo que se espera de um nível subjacente.

 

2.1.

Faz-se  necessário,  neste   ponto,   expli­ car  a  noção  de  "representação   semân­ tica" e sua relação com a estrutura  pro­ funda. Não haverá,  certamente,  coinci­ dência  entre  os  vários  autores   quanto   a tal noção, embora  concordem  quanto  à Vlsao   das   representações    semânticas como  compostas  de  conceitos  universais,

o que faz supor  que  elas  sejam,  em princípio, independentemente motivadas. Assim, para George  Lakoff  ( 1 969-1971,

p.  339-340) , a  representação  semântica RS compreende uma estrutura inicial 11 (estrutura pós-Iexical gerada por um componente categoria!)  e  a  indicação das  Pressuposições,  do  Tópico  e  do Foco   da   frase.   Daí,   RS   (lI   P,   T, F, . . . )[3].

para J ames McCawley (1 968,  p. 138), a  representação  semântica  das frases deve envolver não os simples "marcadores do tipo traço" mas antes "predicados"   no   sentido   lógico-simbólico do termo.  Para  ele,  a leitura  mais  comum da palavra homem não deve ser repre­ sentada  como  um  conjunto  de  marcado­ res   [humano,   macho,   adulto]   e    sim como um conjunto de propriedades ('humano', 'macho' e 'adulto') que são predicadas  a  partir   do   ser   ou   indivíduo ao qual se pretende referir[4].

 

Por   outro   lado,    que   caracteriza alguns    dos   trabalhos   lingüísticos   recen­ tes é a tendência a considerar  a  estrutura mais profunda da frase como a  repre­ sentação isomórfica de uma situação extra-ingüística referida pelo  locutor. Qualquer situação extra-lingüística se caracteriza por relações entre processo e substâncias, relações  essas  que  se  obser­ vam  quer  na  natureza,   quer   na   vida social,   quer   em    nossa   atividade   psíqui­ ca.   Assim,   a   substância   pode   represen­ tar  o   papel   de   agente   de  um   processo, de   origem   ou   de   causa   de   uma   ação, de  afetado  por  um  evento,  de   instru­ mento  de  uma   ação,   de  destinatário  de um processo, de objeto  visado  por  uma ação, etc. O conjunto das relações extra­ linguísticas existentes entre processo e substâncias constitui a estrutura da  refe­ rência de uma dada  situação  extra-lin­ güística. Processo e substâncias são re­ presentados, na estrutura profunda  das frases de uma língua, por unidades lin­ güísticas apropriadas - por semantemas verbais e por semantemas nominais, res­ pectivamente.     Como     afirma    M.    Kubik (1 972, p. 20),  "as  relações  extra-lingüís­ ticas   entre   o   processo   e   as   substâncias se transformam, no nível da estrutura profunda  da  frase,  em   relações   semân­ ticas entre os semantemas nominais e o semantema verbal". Estas relações se­ mânticas, entretanto, não refletem pro­ priamente  as  relações   extra-lingüísticas entre   os   elementos;    antes    "representam o  resultado  de  um  arranjo   destas   rela­ ções na consciência do homem por inter­ médio da língua" (idem, p. 20).

Os semantemas nominais - mais comumente tratados como sintagmas nominais -, aos quais têm sido pro­ postos  vários  termos  para  identificá-los em estrutura profunda (actantes segundo Greimas, casos segundo Fillmore, subs­ tantemas  segundo  Kubik),  são  definidos e classificados  de acordo com o  caráter de suas relações semânticas com o se­ mantema ou sintagma verbal. Na literatura lingüística  atinente,  distinguem-se as seguintes  categorias  para  os  sintag­ mas nominais: agente (instigador do processo verbal), objeto (ser visado pela ação verbal), instrumento (estímulo ou causa física imediata de um evento), receptor (ser que recebe ou sofre as conseqüências da ação),  locativo  (enti­ dade na qual a ação é localizada) , desti­ natário (ser ao qual a  ação é destinada), etc.[5] Será esta a base com  que  Fill­ more esboçará  uma  "gramática  dos casos", cuja estrutura subjacente é uma representação semântica da relação entre verbo e sintagmas nominais, estes pro­ vidos de etiquetas semânticas do  tipo acima apontado.

O  ponto   comum   aos   diversos   autores é que se deve conceber um sistema de representação no qual o conteúdo se­ mântico  dos  nomes  e   verbos   se   origina no exterior das frases em  que  são  utili­ zados.  Em  outros   termos:   devem   rece­ ber um modo de  representação  que   conta de sua função semântica de  refe­ rência, tanto real como intencional.

Pensamos, entretanto, que tal repre­ sentação seria incompleta se se  consi­ derasse apenas o conteúdo  semântico original exterior à frase. Nomes  e  verbos vêm a adquirir um conteúdo semântico complementar relacionaI, resultante das relações   específicas   que   mantêm   uns com  os  outros  no  interior  da  frase   em que são inseridos.

 

2.2.

Para   nós,   o   que   acabamos   de   expor em 2. 1 como "representação semântica", resultado do que se encontra corrente­ mente nos trabalhos   lingüísticos   gerati­ vistas destes últimos anos, parece   sem dúvida bastante   heterogêneo.   Fala-se,   de um lado, em relações extra-lingüísticas entre processo e substâncias (o   que constitui, portanto, a estrutura da refe­ rência) e, de outro lado, em categorias atribuídas    a    sintagmas    nominais    de acordo com o caráter de suas relações semânticas com   o   verbo   (o   que   eviden­ cia, certamente, uma estruturação   lin­ güística     de     natureza     sintático-semânti­ ca) .    Percebe-se,    mesmo,    o    valor   nocio­ n al   variável   com   que   cada   autor empre­ ga    expressão   "representação    semânti­ ca", adquirindo tal expressão uma gama de       significações       relativamente       gran­ de[6] .

De nossa  parte,  cremos  que  o  pro­ blema está em não se distinguirem dife­ rentes padrões  de  representação  semân­ tica  na   estrutura   mais   profunda   das frases da língua, que não deve ser con­ fundida  com  a  estrutura  profunda  sintá­ tica  do  modelo  clássico.   Esta   última deverá reduzir-se, pois, a uma estrutura intermediária,  constituída  de   um   con­ junto de regras sintagmáticas e de um componente    transformacional,    cujas regras permitem derivar estruturas sin­ tático-semânticas em estruturas de super­ fície.   Fica   implícito,   portanto,   que   a nosso ver não é  válido  postular  a  exis­ tência  de  um   só   tipo   de   representação na estrutura profunda semântica; admi­ timos, antes, a  existência  de  pelo  menos três padrões nessa  estrutura,  cuja  dife­ rença é marcada pela presença de regras formativas diversas em  cada  padrão,  as quais  se  apresentam  em  diferentes  graus de complexidade.

O  primeiro  padrão,  a   que   chamare­ mos "referencial-semântico", é  caracte­ rizado  por  "regras  de  formação  léxica"; dele trataremos no item 3. O segundo padrão, caracterizado por processos formativos  a  que  propomos  o  nome   gené­ rico   de   "formações   por    modalização", será chamado "lógico-semântico"; dele trataremos no item 4. Enfim, ao terceiro padrão nos referiremos como o "sintá­ tico-semântico", caracterizado  por  pro­ cessos formativos a  que  damos  o  nome geral  de  "formações  por  concatenação"; este  será  tratado  no  item   5.  Reservamos o item 6 para tratar do problema da equivalência semântica de  frases,  com relação a esses três padrões.

 

3 .

O padrão "referencial-semântico", caracterizado por regras de formação léxica, é o da representação dos itens lexicais por conjuntos de propriedades inerentes, e  estas  em  concordância  com as características peculiares do objeto ou processo  referido,  tal  como  é  "menta­ do" pelo falante-ouvinte. Isto corres­ ponde, pois, a considerá-lo primeira­ mente como o padrão em que se pro­ cede à análise do significado das  pala­ vras - tomadas individualmente - por definições de caráter externo. Definições externas são, pois, as que  relacionam itens lexicais de uma língua com enti­ dades fora do próprio sistema  lingüís­ tico. Este tipo de análise do  significado das palavras tem tido especialmente dois tratamentos: o primeiro é baseado nas regras semânticas (ou "meaning postu­ lates") de Carnap (1 956, p. 222-9), o segundo  nos  componentes   semânticos em que os significados lexicais são de­ compostos. Eis  os  exemplos  que  ilustram o tratamento baseado em regras semân­ ticas:

 

(1)     (a)  homem macho

(b)    mulher fêmea

 

Uma regra como (l a) diz que homem implica macho ou, ou que dá na mesma, que sentenças como Um  homem  é macho ou Se x é um homem, eutão x é macho são analíticas As regras semânticas podem também envolver partículas lógicas como 'e', 'ou', 'não',  etc. :

 

(2)        (a)  homem   macho  e  adulto

(b)    mulher fêmea e  adulto

(c)    fêmea   não  macho

(d)    criança não adulto

(e)   homem  ou  mulher ou  criança

humano

 

Assim, o significado  de  um  item  lexi­ cal de uma língua é definido implicitamente pelo conjunto de todos os  postu­ lados significativos que nele ocorrem.

O  segundo  tratamento  mencionado,   o da análise componencial, define o  signi­ ficado  de  um  item  Iexical  explicitamente em termos de  componentes  semânticos. Mas tais componentes não devem ser tomados como parte do vocabulário da própria língua, e sim como elementos teóricos,  requeridos   a   fim   de   descrever as  relações  semânticas  entre  os  elemen­ tos lexicais de uma língua. Estes com­ ponentes são  também  conectados  através de partículas lógicas,  como  se  depreende dos seguintes exemplos:


 

(3)         (a)  homem: ANIMADO  e  HUMANO  e MACHO e  ADULTO

(b)    mulher:  ANIMADO   e  HUMANO   Ff:MEA   e  ADULTO

(c)                            potro:   ANIMADO    o  HUMAN  EQÜIN E  MAC��O

 não   ADULTO

 


Na  verdade,  tal   sistema  de   definições de itens lexicais compreende regras de implicação que acarretam à descrição grande redundância. Eis algumas regras depreendidas dos exemplos acima:


 

(4)        HUMANO -> ANIMADO

MACHO ou Ff:MEA ANIMADO MACHO não FÊMEA

Ff:MEA   não  MACHO

EQÜINO   não  HUMANO  mas  ANIMADO

 


Daí podermos ter (5a) como uma sim­ plificação da  forma  plena  (5b),  expres­ sando a primeira as generalizações mais relevantes   sobre    estrutura   semântica do vocabulário descrito:


 

(5)        (a)   homem:  HUMANO  e  MACHO   e  ADULTO

(b)    homem: ANIMADO  e  HUMANO  e  MACHO  e  não  Ff:MEA e ADULTO

 


Do confronto dos dois tipos de tra­ tamento  acima   expostos,   conclui-se   que certamente uma grande relação entre ambos.   Assim,   uma   análise   componen­ cial  do  tipo  ilustrado  em  (3)  e   (5)   pode ser convertida em um sistema de regras semânticas  e,  ao   contrário,   um   sistema de  regras  semânticas   como   o   ilustrado em (1) e (2) pode ser convertido em um sistema componencial.  Contudo,  obser­ ve-se que o estatuto de elementos como macho em (1) e (2) não é o mesmo que MACHO em (3) e  (5) : no  primeiro caso é entendido como pertencente à língua descrita, enquanto no  segundo caso  são  elementos   puramente   teóricos. De qualquer modo,  consideramos  ambas as análises como formalmente equiva­ lentes, não havendo motivos suficientes para quebrar lanças por uma ou por outra.

Outra comprovação a que  nos  levam tais análises é  a  da  existência  de  rela­ ções do significado entre  os  diferentes itens lexicais, ou seja, os itens lexicais acabam  por  poder  ser  descritos  através de  definições  internas.  De   um   modo mais  explícito,   queremos   dizer   que,   se o significado de uma p alavra é um  com­ plexo de componentes (ou traços, ou marcadores)  semânticos,  há   relações entre as propriedades semânticas dos diversos itens que podem ser definidas. Assim,  homem  e  mulher  são   'antôni­ mos' porque o primeiro  item  lexical tem um componente C onde  o  segundo  tem C', sendo C e C' componentes mutua­ mente  exclusivos;  celibatário  e  solteiro são 'sinônimos' porque apresentam os mesmos componentes conectados pelas mesmas partículas lógicas, etc.

 

4.1.

No    padrão    de    representação    lógico­

-semântica, as formações  por  modali­ zação são entendidas como  procedimen­ tos lógico-gramaticais qUe! conduzem a esquemas lingüísticos determinados, em­ pregados para indicar ou  identificar "coisas"   (substâncias)   ou   "processos". Em síntese, trata-se de uma estrutura abstrata   ell   funçã d qua s podem conceber os  esquemas  lingüísticos  que têm  a função  de identificar e  os  que  têm a  função  de  predicar.  Os   primeiros devem ser representados na estrutura lógico-semântica por expressões quanti­ ficadas do tipo  argumento,  os  últimos serão representados como predicados lógicos,  a  que  reservamos   nome  de predicadores. Assim, com os termos predicador e argumento queremos carac­ terizar, neste nível, respectivamente o "processo" e a "substância".

A frase é pois aqui vista como uma unidade estruturada na base de um predicador e pelo menos um argumento, ambos determinados por formadores ou expoentes lingüísticos de diferentes tipos. Está claro, dessa forma, que os símbolos categoriais que vão representar a  estru­ tura lógico-semântica profunda  não deverão conter a noção de "classes de palavras" (N, V, Adv, Art) ou de "constituintes  imediatos"   (SN,   SV,   SA). Os símbolos categoriais deverão ser re­ presentações  de  classes  semânticas   reais ou propriedades que atravessam as áreas cobertas pelas tradicionais classes de palavras.

Há, portanto, a possibilidade de re­ presentar simbolicamente a estrutura lógico-semântica da frase como uma proposição   de   dois    elementos   mínimos: Pr   +   Argn,   ou   seja,   um   predicador  e um   número   variável   de    argumentos, nunca  inferior  a  1.  Desta  forma,  não  há, na estrutura mais profunda, proposições reduzidas ao predicador [7], e sim pro­ posições com argumento implicado no predicador, por um processo transfor­ macional   comum    a    muitas    línguas. Assim,   em   chove   (IngI.   it's   raining,   Fr. iI pluit, Esp. lIueve, It. piove)  um argumento    implicado    no    predicador, como   uma   declaração   que   se   faz   sobre o tempo[8]

 

4. 2.1.

Irena  Bellert  (1969)  estudou  os   tipos de argumentos depreensíveis numa estrutura   lógico-semântica,   tendo   chegado a três tipos. O argumento  tipo- l  corres­ ponde ao que aparece em sentenças  em que o locutor identifica tão somente um "objeto", e lhe atribui um predicado. As frases (6)-(9) exemplificam  as  ocorrên­ cias desse tipo de argumento:

(6)    Mário  casou-se.

(7)    O  rapaz  casou-se.

(8)  Mário   foi   horrivelmente   acidentado.

(9)    Aconteceu   um    horrível    acidente com o rapaz[9].

Ê plausível supor que,  para  cada  sen­ tença com uma referência particular, é possível  encontrar  uma   paráfrase   em que ocorrerão tantos índices lingüísticos quanto o  número  de  "seres"  que  se supõe  serem  identificáveis  no  momento

em que uma sentença é pronunciada num processo normal de comunicação. Assim, consideramos  a  frase  (7)   como  paráfrase de  (6)   e  a  frase   (9)  como  paráfrase  de

(8). O emitente de qualquer uma dessas mensagens   ( consideremo-las   como   men­

sagens intencionais, e não como meros exemplos)  tenciona  identificar  tão  so­ mente um indivíduo (o qual deverá ser identificado pelo destinatário  da  mensa­ gem, de acordo com  o  contexto  situa­ cional),  ao  qual  aplica   predicado (casou-se ou  foi horrivelmente   aciden­ tado). Certamente,  se  não  forem  satis­ feitas as condições de identificação pelo contexto situacional, o destinatário sem dúvida reagirá, para compreender inte­ gralmente a oração, perguntando: "Qual Mário?"  ou  "Que  rapaz?".   Dessa   forma, um índice lingüístico pode estar acom­ panhado de um esclarecimento mais detalhado,   cuja   realização   será  do   tipo:

(10)     )    Mário,     o     filho      do compadre, casou-se.

(11)  Meu   sobrinho   Mário   casou-se.

(12) Aconteceu um  horrível  acidente com o rapaz que mora na minha casa.

 

Enfim,   tal   tipo   de   argumento   pode ser chamado "operador descritivo".

 

4.2.2.

O argumento  tipo-2,  de  acordo  com Irena Bellert, corresponde àqueles que servem  para   indicar   todos   os   "objetos" ou "indivíduos" aos quais se aplica um predicado lógico. São reconhecidos na estrutura  de  superfície   por  quantificado­ res  como   "todos",   "cada"  e  outros  tipos de formadores. As frases (1 3)-(1 6) são exemplos em que ocorre tal tipo de argumento:

(13) Todos os membros do partido aprovaram o nome do candidato.

(1 4) Cada empregado deve ter  seu próprio seguro.

(15) Os  alunos  podem  matricular-se até fevereiro.

(1 6)   Meus  pais  são  jovens.

Em vista dos exemplos  acima,  a  pri­ meira  observação  a   ser  feita   diz  respeito à possibilidade de deslocamento do quantificador  na  superfície,  podendo mesmo aparecer como determinante do verbo. Assim, o exemplo (17) será uma perfeita paráfrase de (1 3), com  argu­ mentos de mesmíssimo valor:

(1 7) Os membros  do  partido  aprova­ ram unanimemente o nome do candidato.

Observe-se,   ainda,   que   o   argumento da  frase  (1 6}  é  do   tipo-2   porque   tem um   valor   distributivo,    pois   a   juventude se aplica a cada  membro  individual  refe­ rido   pela   expressão   descritiva    "pais": Meu  pai   é  jovem,   Minha  mãe   é   jovem. O  exemplo  (1 6)  não  pode  ser  confun­ dido com o exemplo (18): Meus pais compraram uma casa.

Neste,    o   índice   descritivo    "meus   pais" é representado como um argumento do tipo- I,  pois tem um valor   único,   por meio do qual se identifica tão   somente um objeto, ou seja, um grupo de indi­ víduos tomados como um todo.

Os  exemplos  (1 5)-( 1 6)  evidenciam, por outro lado, que não necessaria­ mente a presença de um quantificador explícito    na    estrutura   de    superfície.    É a interpretação do valor subjacente à expressão do argumento que permite depreender   a   referência   à   totalidade.   E é essa mesma interpretação do valor subjacente que deve ser levada em conta quando da análise de "aparentes" ope­ radores   descritivos    (tipo- I),  como    em (1 9)-(20):

 

(18)      O homem  é mortal.

(19)      O rato pertence à família dos roedores.

 

Por certo, subjacentemente   às   expres­ sões "o homem" e   "o rato" nos exem­ plos acima, ocorrem operadores que indicam a totalidade:   "todos   os   homens são   mortais";   "todos   os   ratos   pertencem à família dos roedores". Mas observe-se que tal interpretação   se   dá   em   função do predicado lógico aplicado ao argu­ mento. A mesma interpretação não seria possível   para   o   argumento   do   exemplo (2 1):

 

(2 1)   O    rato    escondeu-se    atrás.    da geladeira.

 

Ao argumento tipo-2 podemos cha­ má-lo "operador total".

 

4.2.3.

Finalmente, o tipo-3 , tal como foi caracterizado por Irena Bellert, corres­ ponde à determinação do argumento também por quantificadores, mas de outra  espécie.  Estes  são  representados, na estrutura de superfície da frase por­ tuguesa, por numerais, pronomes inde­ finidos (não  todos)  e  artigo   indefinido (sete jovens, muitos estudantes, alguns professores,  poucas  pessoas,  um colega).

O argumento tipo-3 é usado, portanto, para   mdIcar   apenas   um    certo    número de "indivíduos" ou "coisas", de quanti­ dade definida ou indefinida.

A este tipo de argumento  podemos pois chamá-lo "operador múltiplo-par­

c:ial", que 'pode ser do sub-tipo quân­ tIco-determmado, como em:

 

(22)    Cinco    pessoas    estiveram    hoje

aqui.

(23)    Um menino chorava copios mente.

 

ou do sub-tipo quântico-indeterminado, como em:

 

(24)    Poucas pessoas estiveram hoje aqui.

(25)    Vários meninos choravam copio­ samente.

 

Nas situações concretas do discurso, entretanto, argumentos do sub-tipo quântico-indeterminado podem estar acompanhados de uma expressão que explicite o número preciso, a qual neu­ tralizará    valor   quântico-indeterminado do argumento, como mostra o exemplo

(26):

 

(26)    Poucas        pessoas,        exatamente cinco, estiveram hoje aqui.

4.3.1.

É também possível (e, certamente, desejável) estudarem-se os tipos de pre­ dicadores depreensíveis no padrão lógi­ co-semântico. Uma primeira visão da generalidade  dos   predicadores   haveria de levar-nos a uma distinção entre duas grandes classes: a dos descritivos e a dos atributivos. Os  descritivos  seriam aqueles que indicam ação, movimento, processo   psicológico,    etc.,   relativamente a  ull).  argumento.   Os   atributivos   seriam os  que  indicam  propriedades,   qualidades ou estados relativamente a um dado argumento.

Os exemplos (27)-(29) ilustram as ocorrências   com   predicadores    descriti­ vos:

 

(27)     O herói  lutou  bravamente.

(28)     Todos  os  cachorros  correm   atrás de gato.

(29)     Alguns alunos pensavam com propriedade.

 

Os exemplos (30)-(3 3) ilustram as ocorrências   com   predicadores    atribu­ tivos:

 

(30)     Aquele  rapaz  tem  valor.

(3 1) Algumas meninas eram simpá­ ticas.

(32)     A Terra parece redonda.

(33)     Todos  os  marginais  estão presos.

 

Percebe-se  claramente   diferença formal entre os  dois  tipos  de  predica·· dores: o  segundo  é  marcado  pela  pre­ sença de um formador atributivo, repre­ sentado em português pelos verbos copulativos,   enquanto    primeiro    não tem tal marca.

 

4.3.2.

Um    papel     semântico    importante     é

desempenhado   pelo   formador    negativo 'não', determinante do predicador[10]. Assim,       nas       frases       contraditórias,       a

adição  do  formador  negativo  transfor­ ma-as em tautologias. Vejamos alguns exemplos:

(34)     (a)   Estes    meninos    são    adultos.

(contradição)

(b)  Estes  meninos  não  são

adultos. (tautologia)

(35)     (a) O  irmão  mais  velho  de

Pedro   é   m ais   novo

que Pedro. (contradição)

(b) O  irmão  mais  velho  de

Pedro   não  é  mais  novo

que Pedro (tautologia)

Inversamente, a  adição  de  um  form dor negativo a uma  frase  tautológica acarreta uma contradição. Assim:

 

(36)     (a)   Este  menino   é  uma  criança.

(tautologia)

(b)  Este   menino   não   é   uma

criança. (contradição)

(37)     (a)  Os   fiatelistas   colecionam

selos. (tautologia)

(b)   Os filatelistas não colecionam

selos. (contradição)

4.3.3.

Pode-se afirmar, entretanto, que as características   dos   predicadores    descri­ tas  nos   sub-itens   acima   em  nada  afetam a seleção deste ou daquele tipo de argu­ mento. Mas, a presença de propriedades semânticas particulares nos predicadores, como as relacionadas ao tempo, espaço, duração do processo, etc., pode  ser  deci­ siva  quanto  à  seleção  ou  restrição  deste ou  daquele  tipo.  Assim,  algumas  ativi­ dades são vistas como necessariamente prolongadas no tempo, outras não; este contraste é normalmente apresentado em termos de processo "continuativo" e{	}· processo   "momentâneo",    respectiva­ mente[11]. Por exemplo, dormir, é um predicador continuativo, acordar é mo­ mentâneo.    Uma    prolongada     atividade, ou estado, ocupa necessariamente uma porção do tempo; daí ser possível deter­ minar um verbo continuativo com um expoente que  precise  a  duração.  Faz sentido, portanto, o que se  exprime  em (38), mas não o que se exprime em (39):

 

.          por   três   dias

(38)     Ele  dormIU         até sábado

(39)  até   sábado'"' Ele acordou { por três dias }[12] .

Por  outro  lado,  a  forma   negativa   de um  verbo  momentâneo  pode   identificar um estado contínuo, admitindo, pois, a construção com tal tipo de expoente. Daí fazer sentido a frase (40):

(40)     1 até sábadoEle  na_ o  acordou  r por  três  dias Observe-se, entretanto, que, se a ex­

pressão complemento de um predicador momentâneo for representada por um operador múltiplo-parcial, do sub-tipo quântico-indeterminado, tal predicador adquirirá um  valor  "iterativo",  identifi­ cando um prQcesso que é repetido em espaços de tempo. Assim, acordar re­ presenta, no exemplo (41), um valor iterativo: um expoente que especifique a duração' como é o caso do exemplo (42):

 

(42)    Ele  esmurrou  o  adversário  até  o

89   assalto.

 

Com relação  ao  valor  iterativo  que podem apresentar os predicadores mo­ mentâneos,  uma  restrição  deve   ser  feita: se o predicador momentâneo indicar "mudança   de   estado",   el não   poderá ser  usado  iterativamente  quando   um objeto  específico  ("operador  descritivo") está envolvido, como em (43):

(43)     * Ele  quebrou  o  vaso  até  as  5

h da  tarde.

 

Mas   se  estiver  tal   predicador  seguido de um argumento tipo-2 ou tipo-3 ("ope­ rador total" ou  "operador  múltiplo-par­ cial"), então poderá ser empregado ite­ rativamente, como em (44)-(45):

 

(44)    Ele  quebrou  todos   os   vasos   até as 5 h da tarde

(45) Ele quebrou  vários  vasos  até  as 5 h da tarde.

 

Enfim, com relação ao emprego do "operador   total"   nesta   construção,    cabe a  seguinte  nota:  dada  a  agramaticalidade do   uso  do  quantificador  cada  nesse   tipo de  frase,  como  mostra  o  exemplo   (46), seu valor semântico será expresso, na estrutura de superfície, através do des­ dobramento sintático do argumento,


(4 1)  Ele   acordou,  alguns   dias

t vários    sábados como   bem   ilustra   exemplo   (47):l

Ele  quebrou  cada  vaso  até os predicadores  tipicamente  itera­ tivos, como esmurrar, poderão ser acom­ panhados de operador descritivo mais as   5 h da tarde .

(47)    Ele quebrou vaso por  vaso  até as 5 h da tarde.

4.4.

Há, ainda,  a  possibilidade  de  carac­ terizar os predicadores de acordo com o número de argumentos que admitem

Conforme assinalamos no item 4 1 . toda construção  de  tipo  lógico-seniâqtico se na base  de  uma  relaçãmínima entre um Argumento  e  um  Predicadpr. Mas  deixamos  entrever que  podemos  ter, numa proposição, dois ou mais  Argu­ mentos. Daí a fórmula de . proposição sugerida: Pr  + Argn, em que n 1. Há, o  obstante,  ulimite  teórico' 'd,e 'argu­ mentos. Em português, por exem,plo, podemos  ter  verbos  d 1,  de  2,  de , 3   ,e até mesmo de 4 argumentos, respectiva­

mente   ilustrados   nas   frases   abaixo: ·

 

(48)  Pedro   caiu.

(49)  Pedro  comprou   tecidos. 

(50)    Pedro ofereceu alguns livros à namorada.

(5 1)   Pedro      comprou     do    João um livro para a Clélia[13].

Entretanto, muitos predicaclores · são flexíveis quanto ao número , de . argu­ mentos, como comprovam os   dois   exem­ plos acima com o predicador . comprar. Também    com    quebrar,    afundar,    incen­ diar, etc., podemos ter, por exemplo, os

seguintes    tipos    de    concatenação. ·  com argumentos:

(5)                       a) Mário quebrou a  janela  com uma pedra.

(b)    Uma  pedra quebrou a  j anela.

(c)    A j anela  quebrou.

(53)     (a) Os  inimigos  afundaram  o navio  com  um  tiro  de canhão.

(b)    Um  tiro  de  canhão  afundou o navio.

(c)    O  navio  afundou.

(54)      (a) Um rapaz incendiou o  depó­ sito com um cigarro aceso.

(b)    Um   cigarro   aceso   incendiou o depósito.

(c)    O depósito  incendiou.

 

5.1.

 exemplificação    acima,    como    todo o item 4 . 4 ., serve-nos   como   ponte para a apresentação do terceiro padrão de­ preendido na estrutura profunda, o "sin­ tático-semântico".  Como  vimos,   este padrão   se   caracteriza   por   processos  for­

mativos a  que  propusemos  o  nome  geral de "formações por concatenação". chamamos a   atenção,   no   item 2. 1.,  para o . caráter das relações semânticas dos sintagmas nominais (argumentos do 29 padrão) com o verbo ou sintagma verbal (predicador do 29 padrãó). Ora,  na  des­ crição    lingüística    do    padrão     sintático­

-semântico    deve-se,    portanto,     proceder a abstrações do papel específico desem­ penhado   por   cada   sintagma  nominal   de

uma   dada   proposição.   Esta   tarefa   con. . ,duzirá à observação de que os papéis desempenhados por tais sintagmas estão em  estreita  relação   com  o  próprio  cará­ ter semântico dos verbos com que se associam.  A  "formação  por   concatena­ ção"    corresponde,    pois,    a    constituir uma  proposição  em  que   se   estabelece uma  interdependência  semântica   sintáos sintagmas nomi­tíca entreoverbo enais, cuja escolha e opcionalidade são determinadas   pelo   próprio   verbo.   É   oque  nos  evidenciam  os  exemplos  (53)

(55 )     acima   arrolados.    Se   conferirmos a cada argumento  (Sintagma  Nominal) um  rótulo   "casual"  - de  acordo  com a teoria de Fillmore - em  conformi­ dade com o papel semântico que desem­ penhe (Agentivo para instigador do pro­ cesso verbal; Objetivo para objeto ou coisa atingida pelo processo verbal; Instrumental para nome de força  ou objeto inanimado causalmente envolvido na ação expressa pelo verbo, etc.), tere­ mos determinado o traço de construção característico de qualquer um daqueles três verbos, isto é, a forma como se con­ catenam, sintática e semânticamente, os argumentos passíveis de ocorrer com aquele tipo de predicador. Seria o se.­ guinte o traço de construção: [

O  (1)  (A)  l.  Isto  significa  que  tal  tipo

de verbo deve ter um caso Objetivo, e pode ter facultativamente um caso Ins­ trumental  (I)  e  um  caso  Agentivo . (A). Em outros termos: predicadores como quebrar, afundar ou incendiar são verbos que se concatenam com três casos (Ob­ jetivo, Instrumental e Agentivo) ou com dois casos (Objetivo e Instrumental) ou com um caso (Objetivo)[14]

As descrições lingüísticas deste padrão estrutural ' deverão conduzir a um  con­ junto  finito  de  casos   universais   que estão presentes em cada língua  parti­ cular� Não se trata de investigar os "casos"� . portanto, como "funções se­ mânticas de  afixos flexionais  nos  nomes ou , as relações de dependência que se mantêm  entre  afixos  nominais  específi­ cos e propriedades léxico-gramaticais de elementos 'vizinhos"  (Fillmore,  1968, p. 2). Enfim, o  "caso"  não  é  examinado como uma categoria da estrutura de superfície, ; tal como é apresentado nas gramáticás do grego e do latim (caso nominativo, genitivo, acusativo, ablativo, etc:) e ' sim como um estudo dos  impor­ tantes e formais universais lingüísticos.

'Dt;Ssa ' forma,   o "casos"  constituem verdade�ras "categorias encobertas", na medida ' em que se apresentam como propriedades semântico-gramaticais des­ providas de realizações morfêmicas ma­ nifestas, mas que "têm   uma   realidade que' pode  Ser  observada  na  base  de  res­ trições ' seletivas    possibilidades   trans­

formacionais"   (Fillmore,    1968,   p.    3).

Daí  Serem  vistas  as "relações  casuais" como  relações  sintáticas,  semanticamente :.relevantes,  envolvendo  os  nomes  e  ils estruturaS  que  os  contêm,  e  formando

um conjunto finito específico.

 

5.2.'

, A' ahálise das relações   casuais entre os ' : siMàgm.as nominais e o sintagma verbal " na estrutura profunda permite

'desd:ibrir o modelo único subjacente a toda série de frases superficialmente diferentes. Tomemos, por exemplo, as frases (56)-(59) com estruturas sintáticas superficiais específicas:

(56)     Os meninos começaram a correr

,  "     "   por um  caminho  sem fim.

(57)    ' Acabou  de  correr  mar  adentro.

(58)       Bandos de camponeses haviam corrido as ruas da cidade.

(59)     As ruas da cidade haviam sido corridas por b andos de campo­ neses.

 

As   diferenças   entre    estas    quatro frases são patentes. Vejamos  algumas: quanto ao sujeito, ora está claramente expresso,   ora   oculto;   além  disso,   se   ele é  ativo  nas  frases  (56),  (57)   e   (58),  na frase  (59)  não  o  será;  o  verbo  auxi­ liar   varia   de   exemplo    para    exemplo, com conseqüente variação do  valor aspectual;   também   se   observa    varia­

. ção entre os tempos pretérito perfeito c pretérito mais-que-perfeito;  o  comple­ mento é preposicionado numas frases e diretamente  relacionado  ao  verbo   nou­ tras,  com  conseqüente   variação   de funções: complemento adverbial, com­ plemento  direto   e   complemento   agente da   passiva;    aliás,   a   própria   voz   verbal se  manifesta  como  ativa  nas  frases  (56)­

(58) , e como passiva na frase (59 ) .

Embora  outras   diferenças   mais   pos­ sam ser apontadas na estrutura de  super­ fície,  a  análise  das  relações  semânticas entre  os  sintagmas  nominais   e  o   verbo, em estrutura profunda, de mostrar a identidade estrutural dessas quatro frases. Assim, em todas elas um sintagma nominal (não importa se expresso ou  se oculto na estrutura de superfície) que

funciona  como  agente  - instigador  que é da ação verbal; outro sintagma nominal que assinala a direção exten­ sional do verbo - funcionando pois como  direcional.  Por  isso,   podemos falar de uma arquifrase  subjacente  a essas quatro frases realizadas, cuja estru­ tura  pode  ser  assim   representada: (SNag + SV + SNdi) ou [

Di, Ag  l.

6.

Uma   vez   analisados   os   três   padrões de representação semântica por nós propostos,   cabe    uma    abordagem    final do problema da equivalência semântica entre frases. O problema, que pode ser colocado a partir  das  frases  (56)-(59) acima, é o seguinte: se apontamos uma mesma arquifrase subjacente às  quatro frases, quer isso dizer que elas são semanticamente   equivalentes?   respos­ ta correta deverá ser esta: as  duas  pri­ meiras, (5 6) e (57), são semanticamente equivalentes quanto ao terceiro padrão (sintático-semântico),   mas    não    quanto aos demais;   as  duas  últimas,  (58)  e (59),  são  semanticamente  equivalentes com relação a todos os padrões.

Assim,  a  equivalência  semântica   pode ser relativa a um padrão particular, com exclusão  dos  demais,   ou  simultaneamente a  dois  padrões,  ou,  de  forma  total,  aos três   padrões.    Vejamos,    inicialmente, estes dois exemplos:

 

(60)    Aquele         celibatário          coleciona selos.

(6 1)  Alguns   solteiros   são  filatelistas.

 

Com respeito a estas duas frases, pode-se dizer que  são  semanticamente  equiva­ lentes relativamente ao padrão referen­ cial-semântico, mas  não  aos  demais.  De fato,  em   relação   ao   primeiro   padrão, uma vez consideradas as regras de im­ plicação (p. ex ., filatelista  colecionar selos), vamos encontrar os mesmos com­ ponentes semânticos nos termos corres­ pondentes de uma frase à outra. Mas o mesmo  não  se   pode   dizer   com   relação ao   segundo   e   terceiro   padrões.   Assim, na  análise  do   padrão   lógico-semântico, logo deparamos com um "operador des­ critivo" em (60) e um "operador múl­ tiplo-parcial" em (6 1), além de se apre­ sentarem ambas  as  frases  com  um  núme­ ro  diferente  de  argumentos;  já   na   aná­ lise do padrão sintático-semântico, per­ cebe-se não ser o mesmo o papel repre­ sentado  pelos   sintagmas   nominais   nos dois  exemplos:  basta  notar  o  papel  ativo de  celibatário em   (60),   em   contraposi­ ção ao papel estático-descritivo de solteiros em (6 1), além de um "caso"  a mais representado em (60).

Pensemos, agora, nas duas seguintes frases:

 

(62)    Todos os alunos aclamaram o professor.

(63)    Todos os funcionários censura­ ram o diretor.

 

Quanto a estas duas   frases,   pode-se dizer que não apresentam qualquer equi­ valência semântica com relação ao pri­ meiro padrão, que os itens lexicais correspondentes de uma à outra apre­ sentam pouquíssimos componentes se­ mânticos em comum; mas são semânti­ camente equivalentes quanto aos padrões segundo e terceiro, já  que os  mesmos tipos de operadores, e predicadores também de mesmo tipo, aparecem em ambas, desempenhando os Sintagmas Nominais correspondentes    mesmo papel semântico com relação aos  verbos, que aliás apresentam o mesmo traço de construção.

Enfim, observemos as   duas   frases abaixo :

 

(64)    Alguns      funcionários       censura­ ram o colega.

(65)    Alguns  empregados   reprovaram o companheiro.

 

Nelas se nota, primeiramente, uma cor­ respondência semântica  termo   a  termo, de tal forma que os itens lexicais que ocupam a mesma posição   nas   duas frases apresentam os mesmos compo­ nentes semânticos; podemos dizer, por isso, que  são  sinônimos.  Os  operadores são também correspondentemente do mesmo tipo ("múltiplos-parciais" e "des­ critivos"), apresentando os verbos as mesmas características semânticas ("des­ critivos",   "continuativos",   etc.).   Enfim, o traço de construção é o mesmo  para ambos os verbos, que selecionam "casos" idênticos. Pode-se dizer, portanto, que estamos diante de uma equivalência semântica total, uma vez que se dá com relação aos três padrões subjacentes.

7.

Em síntese, eis  os  pontos  fundamen­ tais de nossa análise:

a)       um nível de representação semântica  tem  o poder   explicativo   que se espera de uma teoria lingüística.

b)       Na representação semântica de uma frase,  deve  considerar-se  o  conteú­ do semântico original exterior à frase e

° conteúdo semântico relacional, resul­ tante das relações específicas que os nomes e os verbos mantêm entre si no interior da frase.

c)       A estrutura sintática do modelo gerativista padrão reduz-se a  uma  estru­ tura intermediária, entre a estrutura profunda (semântica) e a estrutura de superfície (morfofonológica), sendo cons­ tituída de regras sintagmáticas  de regras transformacionais (V. gráfico re­ presentativo).

d)       Na estrutura profunda distin­ guem-se três diferentes padrões de re­ presentação  semântica,   caracterizados pela presença de regras formativas com diferentes graus de complexidade (V. gráfico representativo).

e)             Da   semelhança    das    frases   da língua, com  vistas  a  qualquer um desses padrões, resulta o problema da equiva­ lência semântica, que tanto pode ser relativa a um, a dois ou  aos três padrões, isto é, tanto   pode   ser   p arcial   como total.


152

 

 

Gráfico Representativo:

 

 


3.

ESTRUTURA  DE  SUPERFíCIE

(regras  morfofonológicas)


frase realizàda


 

 

 

 

 

2.

(regras    transformacionais)

ESTRUTURA INTERMEDIÁRIA

(regras    sintagmáticas)

 

 

 

 

 

1.

Representações    Semânticas

ESTRUTURA  PROFUNDA

 


Padrão referencial­ semântico


Padrão lógico­ semântico


Padrão sintático­ semântico


\-I_{ -(regr.   form lexical)            (regr form p/modaliz.)          (regr.  form p/concat.)

 


 

Definições externas

-  - Definições

internas


r     Operador descrit.

-- Operador

- Argumentos               total

- Operador múltiplo­ parcial


Relações caSUaiS


_ Atrib.- Predl· cadores {- Descr.


TELMO      CORREIA     ARRAIS    153

 

 

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[1] Para   uma   visão   pormenorizada   das idéias dos vários autores de ambas as correntes, consulte-se Michel Galmiche (1975), que faz um  balanço  crítico  de tais orientações teóricas de modo bem abrangente.

[2] Chomsky (1972, p. 75-76) aponta a "obscuridade" e a "confusão" como os véus que cobrem este domínio, confor­ me se depreende desta passagem: "A good part of the critique and elabora tion   of   the   standard   theory   in    the past  few  years  has  focussed  on  the notion  of  deep  structure  and  the  rela­ tion  of  semantic  representation  to syntactic  structure.  This  is  quite   natu­ ral.  No  area  of   linguistic   theory   is more  veiled  in  obscurity   and   confu­ sion,   and   it   may   be   that   fundamentallv new ideas and  insights  will  be neected    fo substantia progres to    be made   in   bringing   some   order   to   this domain."

 

[3] Lakoff desenvolv cada   uma   dessas noções, mas deixa em aberto, declara­ damente,    questão   da   existência   de outros  elementos  da  representação semântica de que se deva dar conta.

[4] McCawley   explica   que   emprega  referi?em  conexão  com  o   'referente   intencio­ nal'  de   um   sintagma   nominal,   e   não com  seu  'referente  real',  ou  seja,   os índices  correspondem  a  itens   no   quadro do universo mental do  falante  não  a coisas reais no universo.

[5] Cf.   Charles   Fillmore   (1968,    p.   24-25 ; 1969,   p.  115-116 )    Don   Lee   Fred  Nilsen (1972, passirn).

[6] o mesmo ocorre com a  expressão "estrutura profunda", que para alguns corresponde   ao    componente    sintático da frase, enquanto para  outros  cor­ responde ao componente semântico ou sintático-semântico.

[7] Trata-se,    na     superfície,     das tradicio­ nais  "orações  de  verbo intransitivo sem sujeito".

[8] Os   "casualistas",   por   exemplo,    expli­ cam  tais  construções  como  um  verbo  + um  caso   nacional   agentivo,   transfor­ mado em  zero  numa  asserção  sobre  o tempo. ( Cf. Ivan POldauf, 1970, p. 124 >.

[9] Note-se que o argumento não coincide necessariamente com os  termos  que ocupam  a  posição  do  sujeito   grama­ tical.

[10] A  análise  desse  e  de  outros  formado­ res é desenvolvida por Geoffrey Leech <1969,    p.    44-59 ).

[11] Cf.,      por      exemplo,      Charles      Fillmore (1969, p. 112 e segs. ).

[12]  anteposição     do   asterisco     à frase indica sua agramaticalidade.

[13] Os  argumentos,    sintaticarrierit  conca­ tenados em funções diversas com <> predicador, apresentam-se em ; número finito.    11:   ilusório    pensar-se que, ·   com' argumentos em desempenho de uma mesma   função pod ter-s um ilimitado. Assim, a frase

(52) Pedro   comprou   uma    borracha, dois lápis, três livr:>s, alguns cadernos, . . ,

é tão   somente   o   resultado   na   superfí­ cie  de   uma   transformação   por   supres­ são e conseqüente coordenação dos elementos de função idêntica. Em profundidade, teríamos :

(a)                    Pedro    comprou    uma    borracha'. ,

)    Pedro      comprou      dois     lpis. Etc..

 

[14] Convém   não   confundir   a    concatena­ ção em estrutura profunda com a concatenação  em  estrutura   de   super­ fície,  esta  também  passível   de   descri­ ção. :EJ certo, entretanto, que a con­ catenação   em   estrutura   de   superfície tem  grande  dependência  da  concate­ nação   em    estrutura    profunda,    uma vez que dela deriva. Pode-se observar, assim,    na   construção    em    que    ocorre o  Agentivo,  que  este  é   automatica­ mente  o  Sujeito  na   estrutura   de superfície ; na construção que n,ão tem Agentivo  e  sim   Instrumental,   este assume   a   posiçã d Sujeit na  'super­ fície  enfim,   na   construção    em    que não Agentivo ou Instrumental; 'o Objetivo torna-se automaticamente . o Sujeito   na   superfície   (Cf.   FilImore, 1968, p. 33) .