A Vocação Política das Ciências Sociais

 

Octávio lanni

 

 


1.    Ciência e política

A maioria dos cientistas sociais reco­ nhece que a pesquisa científica, no campo das ciências sociais, possui im­ plicações políticas. Eles reconhecem que, direta e indiretamente, a pesquisa feita pelo economista, sociólogo, politi­ cólogo, antropólogo, psicólogo e histo­ riador tem conotação política. Também os trabalhos do psicólogo e historiador não escapam a essa conotação. É claro que as implicações políticas são mais evidentes quando se trata da pesquisa sobre um problema do presente, ou situação na qual os homens do presente estão empenhados. Mas também quando a pesquisa tem como objeto uma situa­ ção passada ela pode ter implicações políticas. Quando se diz que cada "ge­ ração" refaz a história do seu país, diz-se inclusive que cada regime político, ou governo, reinterpreta o passado à luz da sua imagem do presente. Às vezes procura-se glorificar o passado, ou uma parte dele. Outras vezes procura-se mostrar que o presente é totalmente novo, apresentando uma ruptura revo­ lucionária com o passado. E assim por diante.

A própria escolha do tema da pes­ quisa frequentemente envolve uma opção política. Essa opção pode ser aberta ou velada. Inclusive pode ocorrer - como ocorre frequentemente - que o cientista não tenha ciência dessa impli­ cação. Aliás, muitas vezes o cientista social nega qualquer relação do seu tra­ balho (ensino, pesquisa, tema, hipótese, problema etc.) com qualquer valor polí­ tico, ou valor extracientífico. Indepen­ dentemente da importância teórica ou metodológica da pesquisa, muitas vezes ela é gerada, desde o princípio, numa atmosfera poiítica. Em certos casos os beneficiários imediatos ou mediatos são os donos do poder político-econômico. Em outros os interesses em causa são os que se acham fora do poder, ou lutam para conquistar o poder. A pesquisa científica pode estar inspirada seja pela conveniência de preservar dado status quo político-econômico, seja pelo inte­ resse em modificá-lo. Com frequência as hipóteses dos cientistas sociais estão empapadas nos interesses políticos dos grupos e classes sociais, ou dos parti­ dos, empresas e governos. Ocorre que a ciência social é uma técnica de poder.

No que diz respeito ao presente, a implicação política da pesquisa começa pela relação que ela estabelece entre o pesquisador e o pesquisado. Quando se trata de pesquisa de campo, na qual o pesquisador entra numa relação face-a-face com o membro do grupo ou classe que se quer conhecer, quase sempre ocorre alguma modificação no pesqui­ sado. Ao realizar uma entrevista, aplicar um questionário, pedir um depoimento, ou obter uma história de vida, o pes­ quisador põe diante do informante ques­ tões e problemas que podem suscitar mudanças no seu modo de ver e avaliar as coisas, as gentes e as suas relações. E pode mesmo alterar, mais ou menos, o seu modo de comportar-se diante de si, dos membros do seu grupo religioso, na fábrica, escritório, fazenda, sítio, sindicato, partido etc. Dependendo da problemática da pesquisa, da forma -pel a qual ela é realizada, da situação sócio-econômica do informante, da sua visão política e do seu horizonte cultural, a pesquisa social pode influenciar ou modificar o m· odo pelo qual ele - como membro de dado grupo ou classe -pensa e age. Se a pesquisa lida com o universo de valores, ideais, relações e dilemas de dada pessoa, família, grupo social ou classe social, ela certamente influencia o modo pelo qual o pesqui­ sado compreende e reage aos próprios problemas materiais, intelectuais, políti­ cos, religiosos, morais, econômicos ou outros. A pesquisa pode propiciar a conscientização de uma condição social de vida. Mas não é certo que essa cons­ cientização seja aquela que corresponde aos interesses mais fundamentais do "objeto" da pesquisa. Não é certo que o relacionamento do pesquisador com o pesquisado é sempre positivo, ou favo­ rável a este. Algumas vezes pode ser neutro o resultado da situação social de pesquisa; outras, pode s er prejudicial ao pesquisado. Aliás, são frequentes os casos em que o próprio pesquisador é afetado pela experiência da pesquisa; como cientista e como pessoa.

Independentemente dos usos extra­ científicos do conhecimento obtido no processo da pesquisa, é inegável que o próprio ato de pesquisar afeta, modifica ou subverte os modos de pensar e agir do operano, funcionário, empregado, caboclo, colono, peão, bóia-fria, migran­ te, imigrante, criança, mulher, adulto, paciente, negro, mulato, mestiço, índio que aparece no projeto do pesquisador como objeto de pesquisa ou informante. Assim, o ato de pesquisar, a situação de entrevista, aplicação de questionário, obtenção de depoimento ou história de vida é, frequentemente, um ato de modi­ ficar o outro.

É claro que o ato de modificar o outro é um ato essencialmente político. Afinal de contas as pessoas não vivem no vácuo, mas trabalham nos quadros das relações de produção e estruturas de poder econômico e político que cor­ respondem - ou não correspondem - aos seus interesses de classe. Ao modi.­ ficar o butro, a pesquisa ajuda ou induz o pesquisado a reelaborar os quadros de referência sobre as suas relações e as suas condições de vida, em termos prá­ tic9s e ideológicos. Quando inserido no processo de pesquisa, o pesquisado pode elaborar novos quadros de consciência sobre a própria situação social, isto é, sobre a sua situação político-econômica. Muitas vezes, a pesquisa é pensada, desde o princípio, com um instrumento destinado a produzir informações e conhecimentos para " ajudar" ou "favorecer" o favelado, o marginalizado, o desempregado, o operário, o caboclo, o negro, o índio e outros. Nesses casos, ela se inicia como uma ação organi­ zada segundo interesses, motivos, razões políticas e econômicas, que se expres­ sam como "humanitários", "morais" ou de outra forma, e se impõem ao pesquisado,. como pessoa, família, grupo so­ cial, classe social. Nesses casos, a pes­ quisa desempenha, direta e explicita­ mente, a função de uma técnica de "mudança social provocada", "reversão de expectativas", "modernização", ou simplesmente manipulação e dominação.

Mas o problema não termina nesse passo. A produção científica, nas ciêncis SOCIaIS, é um processo complexo, que se desdobra além do que. Aparece habitualmente nos termos e na prática do projeto da pesquisa.

O produto do trabalho científico, nas ciências sociais, muitas vezes tende a incorporar-se ao objeto do conhecimen­ to. Isto significa que o conhecimento produzido passa a ser parte da realidade social, como pensamento e prática. Além da modificação eventual que o processo da pesquisa pode provocar no, modo de pensar e agir do pesquisado, o,conheçi­ mento científico pode passar. a çompor o mundo cultural e material dos grupos e classes sociais, ou da sociedade como um todo. No século XX, os pensamen­ tos de Marx, Weber, Lenin, Freu,d e Keynes, p ara mencionar apenas alguns cientistas sociais, passaram a fazer parte da cultura e prática de governantes, partidos, associações, empresas, grupos, igrejas e classes sociais. Não quro,dizer que sempre o encarados da. mesma forma. Ao contrário, são utilizados, desenvolvidos, combatidos, negados, deteriorados. Inclusive m sid· o e conti­ nuam a ser moda, formas de dizer, artifícios de discurso, retórica de salão. Mas são pensamentos que permeiam os tra­ balhos e os dias das gentes, em países dominantes, dependentes e coloniais. As sociedades do século XX, como sociedades capitalistas e socialistas, não. podem ser compreendidas se. a análise não passar pela produção intelectual desses autores, seus seguidores, epígo­ nos e detratores. Sob muitas. formas - científicas, técnicas e ideológicas, -:-:­ essa produção intelectual está · presellte nas decisões, políticas e pesquisas de governos, empresas, partidos, univeJ!si­ dades, instituições de pesquisa e, outras esferas de poder e reprodução, material e cultural.

Como vemos, da mesma forma que operam no processo de "desencantamento do mundo", as ciências sociais também provocam o "desencantamento" do cientista social. Por suas implicações extra-científicas - tanto quanto por suas implicações científicas - as ciências sociais desencantam o mundo social e o cientista social. Provavelmente o mais grave desafio que toda ciência social põe diante do cientista é a descoberta dos conteúdos e implicações políticos da produção científica. Quando o cientista descobre esse fato – ou compreende todas as suas conotações tanto a ciência social como o próprio cientista são  despojados da magia que cerca as coisas do espírito, a atividade intelectual. Ele toma consciência de que é um produtor, adaptador ou imitador de fórmulas científicas, técnicas, ideológicas que servem à reprodução das relações e estruturas político-econômicas. Esse é, a meu ver, o segredo do desencantamento do cientista social provocado pela própria ciência social. Ou o cientista social reconhece e procura controlar as condições e implicações políticas da sua produção intelectual, ou ele se transforma num instrumento – ativo dócil, resignado - dos interesses políticos, econômico s, militares, religiosos e outro s, alheios ou mesmo adversos ao seu próprio trabalho. Penso que o cientista social não pode menosprezar nem as condições nem os usos políticos do seu trabalho. Ao tomar consciência dos conteúdos e implicações extracientíficos do seu trabalho - em todas as fases do processo de produção intelectual o cientista social precisa lutar para que os seus objetivos científicos e políticos não sejam desbaratados nem pelas estruturas burocráticas, ou indústrias de pesquisa, nem pela ilusão da ciência pura.

 

2.          Técnica de poder

No campo das ciências sociais, a pes­ quisa científica não é apenas um mo­ mento no processo de produção intelec­ tual. Ela é também uma técnica de poder. Umas vezes, ela é parte das relações e estruturas de dominação. Outras, é parte da luta para mudar, romper ou refazer relações e estruturas de domina­ ção. Esse duplo caráter das ciências sociais aparece em toda a sua história.

 

Tal vez corresponda ai destino de las ciencias. sociales no sólo el que deban reflejar las formas dominantes de la organización social de su época sino también - como lo han hecho desde que se desprendieron dei pensamento social y político de la Ilustración que deban convertirse en medios importantes para la expresión de las contracorrientes radicales y de la conciencia crítica que estas mismas formas de organización ha orif?inado. Esta relación dialéctica entre las ciencias sociales y la sociedad logra penetrar en los papeles conflictivos y frecuentemente ambiguos que los científicos sociales, como indivíduos, se ven forzados a desempenar en la sociedad moderna[1].

 

No que diz respeito ao seu caráter de técnica de dominação, a pesquisa cien­ tífica tem sido amplamente utilizada pelos governantes, empresas, partidos e igrejas para conhecer os grupos e classes sociais subordinados, dentro e fora do mesmo país. Isso tem ocorrido em vários setores das relações e estruturas sociais, desde a sociologia industrial até à antro­ pologia dos povos colonizados e depen­ dentes. Vejamos o que escreveram Loren Baritz, Robert S. Lynd e Prederick Taylor sobre a pesquisa científica na fábrica, no quartel e na guerra, sempre para controlar, dominar ou modificar assal ariados, subalternos e populações que lutam por emancipar-se das condi­ ções adversas em que vivem.

 

Baritz: By the middle of the twentieth century, industrial social science had become one of the most pregnant of the many devioes available to Ame­ rica's managers in their struggle with costs and labor, government ar.d the consuming public[2].

As part of the bureaucratizaton of virtually every aspect of American life, most industrial social scientists labored in industry as technicians, not as scientists. Not professional concer­ ned with problems outside the deli­ mited sphere which management had assigned to them, not daring to cross channels of communication and autho­ rity, they were hemmed in by the very organization charts which they had helped to contrive. And the usual industrial social scientist, because he accepted the norms of the elite domi­ n ant.in his society, was prevented from functioning critically, was com­ pelled by his own ideology an, ' the power. of America's managers to sUpply the techniques helpful to ma­ n agerii:ll goals[3].

Lynd., These volumes ( The American Soldier) depict scienoe being used with great skill to sort out and, to controI men for purposes not of their own willing. It is a significant mea­ sure of the impotence of liberal democracy t' hat it must increasingly use its social sciences not directly on democracy's own problems, but tangen­ tially and indirect1y; it must pick up he crumbs from private business research on such problems as how to gauge audience reaction so as to put together synthetic radio programs and movies, or, as in the present case, from Army research on how to turn frightened draftees into tough soldiers who will fight a war whose purposes they do not understand. With such socially extraneous purposes controlling the use of social science, each advance in its use tends to make it an instrument of mass control, and thereby a further threat to demo­ cracy.[4]

Taylor: The V.S. effort for peace and freedom in Southeast Asia is getting an assist from a strange source: The psychologists, sociologists and other such behavioral scientists.

In various V.S. financed research projects, the Vietnamese, the Thait, their lives and habitat are being scru­ tinized much as Americans themsel­ ves have long been analyzed. The studies sometimes are resulting in changes in the lives of the Asians; occasional1y, they are resulting in changes in the war....

The aim of Camelot (1 965) was to isolate the factors making for revo­ lutionary change in the developing nations and to identity the way the Communists capitalize on these factors to take over a country or foment a Vietnam-type.war. Chile was the land chosen for the study[5].

 

A forma pela qual ocorreu e continua a ocorrer a burocratização e a industrialização da produção científica nas ciên­ cias sociais tende a transformar a pes­ quisa principalmente numa técnica polí­ tica. Ela pode servir aos fins dos gover­ nantes, militares, empresários e outros, tanto para acelerar a produção de capi­ tal como para aperfeiçoar o domínio sobre grupos, classes e nações. Nessa perspectiva, o cientista aparece como um intelectual que produz conhecimento (em forma científica, técnica, prática ou ideológica) que possibilita "aperfei­ çoar" as relações e estruturas de domi­ nação política e apropriação econômica vigentes em dado país, época, conjun­ tura, regime político etc. Devido às condições de racionalização estabeleci­ das pela reprodução capitalista, o cien­ tista, técnico, assessor e outras classifi­ cações passam a ser as novas categorias de funcionários indispensáveis à conti­ nuidade do processo de reprodução das relações e estruturas capitalistas, nos países dominantes, dependentes e colo­ niais. Em reflexões sobre os intelectuais e a organização da cultura, Gramsci mostra como os intelectuais são inse­ ridos nas estruturas de poder.

Os intelectuais são os "comissários" do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é:

1) do consenso "espontâneo" dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fun­ damental dominante à vida social, consenso que nasce "historicamente'" do prestígio (e, portanto da confiança que o grupo dominante obm, por ausa da sua posição e da sua função no mundo da produção; 2)do apara­ to de coerção estatal que assegura "legalmente" a disciplina dos grupos que não consentem, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa O' consenso espontâneo[6].

Sob vários aspectos, a ciência é uma técnica de dominar, controlar ou modi­ ficar o outro. Esse outro pode ser ope­ rário, camponês, lavrador, empregado, adulto, criança, negro, índio; um, grupo social, classe social, nação. Nesse sen­ tido, também, é que a ciência social faz parte do processo de "desencantamento do mundo", que fascina e incomoda a todo cientista social, antes e depois de Max Weber.

Weber não quis aceitar - em 1918, na Universidade de Munich, quando falou sobre a ciência como vo­ cação - que a política que invadia as aulas e as palavras dos professores de socÍologia, política, economia, história e outras disciplinas não era um elemento totalmente espúrio, mas apenas uma nova m anifestação dos conteúdos e implicações das ciências sociais. Ele queria a ciência livre de preocupações e valores extraordinários, feita em estado de isenção. Lamentava a invasão das salas de aula e do trabalho científico por "seitas de fanáticos" e "profetas", que subvertiam a ética acadêmica e científica liberal que morria exatamente nessa época. Em 1918, a Alemanha havia sido derrotada na guerra, o con­ flito entre nações imperialistas havia lançado soldados, operários e campone­ ses numa situação desesperadora, a luta de classes estava nas ruas, o poder soviético se havia instalado na Russia e o fascismo começava a ser gestado. Mas Weber defendia a independência e a isenção do trabalho científico. no ensi­ no e pesquisa. Queria preservar uma racionalidade ideal nas próprias ciências sociais. Depois de descobrir que as ciências sociais eram parte do processo de racionalização crescente das ações, relações e organizações sociais, Weber julgava indispensável afastar dos am­ bientes científicos aS! "revelações", a "graça" e as "profecias". Queria que as ciências sociais fossem livradas dos en­ cantamentos mágicos, isto é, políticos, para que elas pudessem melhor servir à sua vocação de desencantar o mundo.

 

The increasing intellectualization and rationalization do not, therefore, indi­ cate an increased and general know­ ledge of the conditions one lives. lt means something else, namely, the knowledge or belief that if one but wished one could learn it at any time. Hence, it means that principaUy there are no myisterious incalculable forces that come into play, but rather that one can, in principle, master aU things by calculation. This means that the world is disenchanted[7].

Science today is a "vocation" orga­ nized in special disciplines in the ser­ vice of self-clarification and know­ ledge of interrelated facts. lt is not the gift of grace of seers and prophets dispensing sacred values and revela­ tions, nor does it partake of the con­ templation of sages and philosophers about the meaning of the universe[8].

 

The iate oi our time is characterized by rationalization and intellectualiza­ tion and, above all, by the "disen­ chantment oi the world" [9].

Weber parecia resistir heroicamente a uma realidade que se impunha a tudo e todos, inclusive à sua obra. As exi­ gências das relações e estruturas do capi­ talismo politizavam generalizadamente as relações sociais e os produtos destas relações, inclusive o trabalho científico, na sala de aula e na pesquisa. A própria obra de Weber, construída no mais rigoroso espírito científico, não escapou a essa politização universal das ciências sociais. Em primeiro lugar, uma parte de sua obra foi e continua a ser utilizada, científica e ideologicamente, como uma explicação alternativa à de Marx, quanto às leis e tendências que regem os movimentos históricos do capitalismo. Esse é um debate que transborda das salas de aul,as, ensaios e livros, para localizar-se diretamente na luta de classes, nas contradições entre proletariado e burguesia. Em segundo lugar, uma parte da obra de Weber tem fruti­ ficado - muitas vezes de forma dete­ riorada, é certo - na produção cientí­ fica, técnica e ideológica de cientistas sociais empenhados, cientes ou não, em aprimorar o funcionamento e o rendi­ mento de estruturas capitalistas de dominação política e apropriação econô­ mica.

 

3.         Indústria da pesquisa

Para compreender melhor as princi­ pais implicações políticas da pesquisa científica, precisamos reconhecer que ela envolve um processo intelectual e organizatório complexo; processo esse que supõe recursos administrativos, tec­ nológicos e financeiros, além de hierar­ quias e sub-hierarquias de várias ordens. Mesmo quando o pesquisador trabalha - ao longo das várias fases do pro­ cesso de produção intelectual - mesmo nesse caso o seu trabalho envolve condi­ ções extra-intelectuais importantes. Mas é no trabalho de equipe, nas organiza­ ções de pesquisa, ou na indústria de pesquisa, que o processo de produção intelectual se torna financeira e organi­ zatoriamente complexo e vultoso. Prin­ cipalmente nessas condições, a pesquisa supõe um processo intelectual compli­ cado, mesclado com relações e estrutu­ ras de cunho extra-científico; relações e estruturas essas que podem ajudar ou prejudicar a produção científica original e independente.

Nas universidades, faculdades, insti­ tutos e centros, públicos e privados, a pesquisa social muitas vezes se ajusta a interesses e exigências extra-científicos. Por um lado, devido aos vínculos explí­ citos ou implícitos que se estabelecem com os financiamentos das pesquisas. Na maioria dos casos, os financiadores de pesquisas sociais - em países domi­ nantes, dependentes e coloniais - são governos, empresas, partidos, fundações e outras entidades empenhadas em pro­ gramas direta ou indiretamente relacio­ nados com interesses políticos ou eco­ nômicos. Por outro lado, a própria estruturação burocrática das atividades científicas afeta a independência e a criatividade do intelectual. As razões financeiras, as hierarquias de prestígio, a adesão à moda, a conveniência de pre­ servar e ampliar grupos e estruturas, tudo isso interfere na essência do trabalho intelectual. Algumas vezes essa interferência é bastante negativa. A dis­ torção, ou mesmo inversão, do trabalho intelectual tem sido examinada por vários cientistas sociais. Vejamos o que escreveram Barrington Moore Jr., André Gorz e C. Wright Mills. Eles põem os principais aspectos da relação entre a burocratização do trabalho científico, ou do funcionamento da indústria da pesquisa, com os conteúdos e significados políticos das ciências sociais. E põem inclusive o problema do diálogo entre o cientista e a sociedade.

 

Moore Jr.: At a more detailed levei of analysis one may note that many modem social science research pro­ jects are very expensive affairs. They require the collaboration of a large number of persons with a variety of skills and training. Often their cost exceeds several hundred thousand dollar..,. lt may be unfair to remark that the results are not always in pro­

portion to the costs. Eut it is true that the present situation in socialMills: Entre o intelectual e seu público potencial estão as estruturas técnicas, econômicas e sociais que são propriedade de outros, e por ess es outros operadas[10].

Os meios de comunicação efetiva estão sendo expropriados ao trabalha­ dor intelectual. A base material de sua iniciativa e de sua liberdade inte­ lectual já não está em suas mãos. A lguns intelectuais sentem tal proces­ so em seu próprio trabalho. Sabem mais do que dizem e estão impotentes e temerosos[11].

science ü\ the exact reverse of what prevailed during the great theoretical discoveries in physics in the nine­ teenth and early twentieth centuries. Revolutionary advances were made with limited funds and, by modem standards, crude laboratory equip­ ment. Today, in social science at any rate, the effect of large grants is to give to those in contrai of the allo­ cation of research funds a high stra­ tegic position for determining which problems will be investigated and which will noto Under the present situation the need to be a cooperative member of a research team may do more to stultify original and criticai thinking than direct economic pressure.[12]

Gorz: L' expansion principale des activités de recherche, en effect, porte non pas sur la recherche "indépen­ dante" ou fondamentale, mais sur la recherche directement liée au pro­ cessus de production[13].

 

A burocratização e a industrialização do trabalho intelectual cria vastas e complexas estruturas - públicas e pri­ vadas - que nem sempre beneficiam a pesquisa científica básica e original. Ao contrário, muitas vezes essas orga­ nizações aprisionam o cientista numa trama de fins e meios sobre os quais ele tem escassa ou nenhuma influênci a. Seja qual for a concepção teórica t; a posição política do cientista, as estru­ turas da produção intelectual lhe impõem os seus temas, as suas hipóte­ ses, os seus procedimentos, as suas con­ dições materiais, organizatórias, técnicas e científicas de produção intelectual. Essa mudança essencial das condições e significados da pesquisa científica pode ser comprovada inclusive pela crescente importância do capital privado no tra­ balho intelectual, ou pela crescente asso­ ciação entre capitais privados e públicos em organizações e programas de pesquisa.

A burocratização e a industrialização do processo de produção científi.ca trans­ forma o cientista social num elemento subalterno, ou prisioneiro, de uma orga­ nização complexa, que lhe dita o que e como pesquisar. Em mUItos casos, o cientista deixa de ser um intelectual independente, de pesquisar o que julga relevante; é levado a trabalhar com os temas que lhe dita a organização, os temas que são de interesse da organi­ zação. De certa forma, ele deixa de ser um intelectual para ser um pesquisador, especialista, técnico, assistente, analista, calculista, programador e outras varia­ ções. São tais e tantas as relações e estruturas de intermediação que se inse­ rem na atividade intelectual do cien­ tista, que este nem sempre, ou poucas vezes, consegue decidir sobre o que e como pesquisar. Além disso, é levado a especializar-se numa área delimitada da sua disciplina. Essa especialização pode levá-lo a perder interesse por outros campos do conhecimento, menosprezá-los, ou perder de vista o todo. Toda proposição que lhe sugira uma visão mais global dos fatos, relações, proces­ sos e estruturas incomodam o seu com­ promisso com a objetividade, o rigor da observação, a certeza da quantidade, a operacionalização, a verificabilidade. A burocratização e a por um lado, e as exigências da indústria da pesquisa, por outro, tendem a indu­ zir o cientista social a trabalhar de forma bastante rigorosa sobre problemas secun­ dários ou irrelevantes. Toma-se a pre­ cisão metodológica como sucedâneo da precisão teórica. Essa inversão entre técnica e ciência já havia sido notada na década dos anos trinta, por FIorian Znaniecki, quando discutiu a importân­ cia da indução quantitativa na sociolo­ gia. Depois, também Barrington Moor Jr. abordou a questão.

 

Znaniecki: This influence consists in substituting tabulating technique for intellectual methods, and thus eliminating theoretic thinking from the pro­ cess of scientific research[14].

 

Moore Jr.: The trouble with this pro­ cedure is that it starts with the assumption that the facts of history are separate and discrete units[15].

A verdade é que a crescente burocra­ tização e industrialização do processo de produção intelectual está transfor­ mando o significado essencial do traba­ lho científico. A burocratização das con­ dições de pesquisa nas universidades, faculdades, institutos e centros, públicos e privados, nem sempre tem criado melhores condições de produção intelec­ tual. Devido à divisão social de traba­ lho científico e à conseqüente especiali­ zação do cientista, criaram-se hierarquias e sub-hierarquias que às vezes pouco ou nada têm a haver com as exigências da pesquisa científica propriamente dita. A participação dos cientistas sociais das várias disciplinas - e dentro da mesma disciplina - é hierarquizada segundo critérios funcionais, administrativos, sa­ lariais e outros. Essas divisões e subdi­ visões diversificam e diferenciam os cientistas, especialistas, técniços, auxi­ liares de pesquisa, seniors e juniors, ou professores titulares, adjuntos, livre-do­ centes, assistentes doutores, simples as­ sistentes e auxiliares de ensino, segundo as exigências das relações e estruturas burocráticas, antes do que exigências intelectuais. Conforme sugere André GIcksmann, "esta hierarquia do saber tomou-se uma segunda natureza" do trabalho intelectual[16]. Isto é, por sobre a essencia do trabalho intelectual, que exige uma atividade livre, criativa e crítica, superpõem-se as exigências das relações e estruturas burocráticas, que exigem hierarquia, disciplina e performance.

 

L'éthique et l'idéologie de la classe dominante puritaine ont modelé l'idéo­ logie de la science en accréditant l'idée que l'homme de science doit être ascétique, insensible et inhumain à la maniere de l'entrepreneur capitalite[17].

Nesse contexto é que o prinCIpIO da quantidade se impõe como critério uni­ versal de fazer e pensar. Num mundo dominado pelas leis de acumulação do capital, ou da reprodução capitalista, o princípio da quantidade necessariamente se impõe também ao trabalho científico. Por trás do ascetismo ou fetichismo me­ todológico, que se generaliza nas ciên­ cias sociais, está a generalização da ra­ cionalidade comandada pela produção de mercadoria e lucro, ou mais-valia.

 

En la medida en que la vida contem­ poránea está en gran medida estan­ dardizada por efecto de la concentra­ ción del poder económico Uevada a extremo, en que el individuo es bas­ tant más impotente de lo que se con­ fie,sa, los métodos estandardizados y en cierto sentido desindividualizados, son tanto expresión de la situación efectiva como un instrumento adecua­ do para describirla y entenderIa[18]

o resultado desse processo é a frag­ mentação do objeto das ciências sociais ou mesmo a destruição desse objeto - e a multiplicação de verdades, leis e conceitos sociológicos, econômicos, polí­ ticos, antropológicos e outros sobre um mesmo fato social. A ciência deixa de ser uma forma de conhecimento para tornar-se uma técnica de abordagem de problemas específicos, perfeitamente de­ limitados, suscetíveis de observação obje­ tiva, mensuração etc. É claro que nesse processo perde-se a noção do todo, do fato social total, ou de relações, proces­ sos e estruturas internos e externos. A ênfase do trabalho intelectual tende a concentrar-se sobre os meios de pesqui­ sa e os modos de aperfeiçoar o status quo político-econômico de ocasião; ou as bases políticas, econômicas e cultu­ rais do capitalismo.

 

El método amenaza tanto fetichizar sus asuntos cuanto degenerar él misnw en un fetiche: no en vano predominan en las discusiones de la investigación social empírica - y, en la lógica del procedimiento científico de que ha­ blamos, con todo derecho - las cues­ tiones de método sobre las de conte­ nido; en lugar de la dignidad de los objetos a investigar entra muchas veces como criterio la objetividad de los hallazgos a hacer con un método; y en los trabajos científicos empíricos, la elección de los objetos de la inves­ tigación y el arranque de los estudios se orientan, cuando no por desiderata prático-administrativos, mucho más por los procedimientos disponibles, y, si acaso, por los que haya que desar­ roUar, que por la esencialidad de lo investigado de cihí la índudable intras­ cendencia de tantos estudios empí­ ricos[19].

 

Transferem-se para o trabalho inte­ lectual os mesmos critérios pragmáticos que fundamentam a organização e a efi­ cácia da empresa industrial: racionali­ zação, burocratização, divisão social do trabalho, especialização, hierarquia, dis­ ciplina, performance, economicidade etc. Science is measurament. As relações e estruturas "racionais" que se impõem ao processo de produção científica acabam por conferir uma segunda natureza à ciência. Ao mesmo tempo, a ciência é transformada numa técnica de poder e numa força produtiva, ela entra direta e amplamente na reprodução das relações e estruturas de dominação política e apropriação econômica.

A burocratização e a especialização crescentes, no processo de produção científica, provêm do mesmo processo de racionalização generalizada coman­ dado pela reprodução capitalista. A so­ ciedade capitalista é, cada vez mais e em formas renovadas, um sistema de rela­ ções e estruturas político-econômicas comandadas pelas exigências da produ­ f;ão de mercadoria e lucro, ou mais­ valia. Daí porque a atividade científica se mercantiliza, em todas as suas fases, em seus processos e produtos. E o cien­ tista passa a ser um trabalhador produ­ tivo, na condição de pesquisador, espe­ cialista, analista, técnico etc. Algumas vezes ela é duplamente trabalhador pro­ dutivo. Em um plano, porque produz uma dissertação ou conhecimento, origi­ nal ou macaqueado, que se traduz num livro. Neste caso o livro é uma merca­ doria como outra qualquer. Mesmo que o tenha escrito por diletantismo, ou para revolucionar ciências e filosofias, n as mãos do editor o trabalho intelectual se transforma em mercadoria, produz lucro.

Cuando Milton, por ejemplo, escribía EI Paraíso Perdido, era un obrero improductivo. En cambio, es un obre­ ro productivo el autor que suministra a su editor originales para ser publi­ cados. Milton produjo EI Paraíso Per­ dido como el gusano de seda produce la seda: por un impulso de la natu­ raleza. Después de lo cual, vendió su producto por 5 libras esterlinas. En cambio, el autor que fabrica libros, manuales de economia política por ejemplo, bojo la dirección de su editor, es un obrero productivo, pues su pro­ ducción se halla sometida por defini­ ción aI capital que ha de hacer fruc­ tificar[20].

Em outro plano, o cientista é traba­ lhador produtivo porque o conhecimen­ to (científico ou técnico, prático ou ideo­ lógico) que ele produz, aperf.eiçoa a LI adapta entra direta ou indiretamente no processo de produção, como força pro­ dutiva.

 

Pour le capitalisme, le savoir est ren­ table, il aide soit à l'exploitation direc­ te, soit à la "circulation", done à la fois à l'extraction et à la réalisation du profit[21]

 

A reprodução da sociedade, em suas relações, processos e estruturas político­ econômicos, envolve a reprodução cul­ tural, em geral, e a científica, em espe­ cia!. A atividade do cientista é parte importante do processo de produção cul­ tural, processo este que ganha sentido no conjunto da reprodução social.



[1] Rodolfo Stavenhagen, SociOlogia 'Y Subde8arrollo, Editorial Nuestro Tiem­ po, México, 1972, p. 207. Citação do capo intitulado "Como descolonizar Ias ciencias sociales ?", pp. 207-234. Consul­ tar também: Florestan Fernandes, A Sociologia numa Era de Revolução Social, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1963, Octavio Ianni, Socio­ logia da Sociologia Latino-Americana, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1971.

[2] LoreIl Baritz, The Servant8 of Power (A History of the use of Social Science in Alnerican Industry), John Wiley and Sons, New York, 1965, p. 191.

[3] Loren Baritz, op. cit., p. 194.

[4] Robert S. Lynd, "The Science of lnhuman Relations", The New Republic, 27 August 1949. Citado por C. Wright Mills, The Sociological Imagi­ nation, Oxford University Press, New York, 1959, p. 115. Lynd se refere à seguinte pesquisa: Samuel A. Stouffer, E. A. Suchman, L. C. De Vinney, S.A. Star, R. M. Williams Jr., A. A. Lums­ daine, M. H. Lumsdaine, M. B. Smith, l. L. Janis and L. S. Cottrell Jr., The American Soldier, vol. l (Adjustment during Army !ife) and vol. II (Combat and its aftermath), Princeton Univer­ sity Pres, Princeton, 194.9.

[5] Frederic.k Tàylor, "Know Your Ally", The Wall Street Journal, New York, June 1, 1967, p. 1.

[6] Antonio Gramsci, Os Intelectuais e a Organização da Cultura, trad. de Carlos Nelson Coutinho, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, p. 11.

[7] H. H. Gerth and C. Wright Mills ( Edi­ tors), From Max Weber: Essays in Sociology, Kegan Paul, Trench, Trub­ ner & Co., London, 1949, p. 139. Esta e as duas citações seguintes foram reti­ radas do texto de "Science as a Voca­ tion", pp. 129-156.

[8] H. H. Gerth and C. Wright Mills (Edi­ tors), op. cit., p. 152

[9] Ibidem. p. 155.

[10] Florian Znanieck, The Method of Sociology, Rinehart & Company, New York, 1934, p. 234.

[11]C. Wright Mills, Poder e PoZítica, trad. de Waltensir Dutra, Zahar Edi­ tores. Rio de Janeiro, 1965, p. 153.

[12] Barrington Moore Jr., Political Power and Social Theo1'y, Harper Torch­ books, New York, 1962, pp. 139-140.

[13] André Gorz, "Techniques, techniciens et lutte des classes", Les Temps Mo­ dernes, n9 301-302, Paris, 1971, pp. 141-180; citação da p. 147.

[14] C. Wright Mills, op. cit., p. 155.

[15] Barrington Moore Jr., Political Power and Social Theory, citado, p. 132.

[16] André Glucsksmann, "Nous ne sommes pas tous prolétaires", publicado em Les Temps MOdernes, N°s. 330 e 331, Paris, janeiro e fevereiro de 1974. Citação da segunda parte, publicada no N0 331 de Les Temps Modernes, P. 1361.

[17] André Gorz, "Caracteres de classe de la science et des travailleurs scienti­ fiques", Les Temps Modernes, NQ 330, Paris, 1974, pp. 1159-1177, citação das pp. 1166-67.

[18] Theodor W. Adorno y Max Horkheimer, La Sociedad: Leciones de Socio­ logia, trad. de FloreaI Mazía e Irene Cusien, Editorial Proteo, Buenos Aires, 1969, p. 124.

[19] Theodor W. Adorno y Max Ho rkhei­ mer, Sociologia, trad. de Víctor San­ chez de Zavala, Taurus Ediciones, Madrid, 1966, p. 278. Citação do capí­ tulo "La sociologia y la inventigación empírica", de autoria de Adorno.

[20] Karl Marx, HistoTia CTitica de la Tem'ia de la Plusvalia, 3 vols. trad. de Wenceslao Roces, Fondo de Cultura Economica, México, 1945, vol. l, pp. 285-286.

[21] André Glucksmann, "Nous ne sommes pas tous prolétaires", citado,. Les Temps ModeTnes, NQ 331, p. 1360.