LIV ROS

 

 

GIRARD, René. La violence et le sacré.

Paris, Grasset, 1972.

 

 

UMA TEORIA DA CULTURA

 

UBALDO PUPPI

 

 

A TEORIA

 

O livro de René Girard parece situar-se à primeira vista entre a retórica, a ciência e a Filosofia. A verdade, aqui, está no meio. Sob roupagem insinuantemente literária, que de­ nuncia as origens intelectuais do autor e a escolha do trata­ mento dado às mediações que o conduzem ao objeto, a intenção e o método são estritamente científicos. A hipótese levantada - original e audaciosa - é coerentemente estrutu­ rada e, tanto quanto o pode ser, comprovada. Cada um dos três últimos aspectos merece, porém, um esclarecimento com­ plementar.

A teoria, como a polêmica nela inspirada, revela uma força intuitiva incomum, destinada por isso mesmo a ser ou desdenhada e postergada, ou a exercer, a curto ou longo prazo, verdadeira revolução na concepção do homem, da socie­ dade e da cultura, e na renovação das ciências humanas ora em curso. Não sendo dono do tempo para prever o sucesso ou o abandono da hipótese, só resta ao leitor competente discutí-Ia, pô-la à prova mediante fatos por ela ainda não considerados, ou propor uma hipótese mais satisfatória. Contudo, é preciso reconhecê-lo, num sentido a de Girard é a mais satisfatória de quantas já vieram à luz; refiro-me ao seu alcance fundacional. O que nela há de mais perturbador é precisamente que, numa época em que a fragmentação do saber é quase uma lei epistemológica, ela explica bem demais o fenômeno unitário e global da cultura.

Estruturalista no sentido mais amplo da palavra, o autor reconhece mais pelo lado negativo (formativo) o valor do estruturalismo de estrita observância. "Espécie de retirada estratégica, importante pelas ilusões que dissipa, pelas distinções que opera, esse estruturalismo torna-se esterilizante se se faz dele um absoluto", diz Girard em outro lugar. De acordo com essa tomada de posição, não segue nenhum dos modelos formais contemporaneamente clássicos; tampouco regride para aquém deles. Não reduz previamente o material tratado a um conjunto de puras diferenças abstratas, não manipula com o simbolismo lógico-matemático, nem isola leis de organização estrutural. Permanece axiomático, mas todos os seus c onceitos básicos são operadores estratégicos, sem qualquer compromisso ingênuo ou bastardo com o per­ ceptivo e o vivido. Fiel a seus pressupostos científicos, cons­ trói de modo discursivo - e mesmo prolixa a redundante­ mente - um modelo teórico que governa e preside toda a sua prática racional.

 

Lidando com textos, com a linguagem, com a "simboli­ zação", nem por isso resigna-se aos limites de um sistema significante no rastro de Saussure, de Barthes ou de Levi Strauss. No ato mesmo do discurso elabora e estrutura os sentidos remotos e radicais descobertos por interpretação dos sentidos próximos e imediatos. A interpretação, no caso, sendo totalmente solidária da hipótese teórica, dela sempre depen­ dendo e a ela incessantemente conduzindo.

 

A hipótese subjacente à interpretação serve de argumento ao autor para recusar que seu procedimento seja considerado como uma hermenêutica. A razão disso não comporta ambi­ guidade: "há hermenêutica na medida em que a questão permanece sem resposta". Se a resposta, - sempre tentada (e escamoteada), sem jamais ser encontrada, por todas as hermenêuticas anteriores, - é enfim desvelada por Girard, então ele tem razão de dizer que sua solução "desconstroi todas essas hermenêuticas". "A tese não constitui pois uma nova hermenêutica". Nem basta "o fato que ela seja accessível através dos textos para julgá-la como tal". Aliás, o critério epistemológico que permite distinguir entre a her­ menêutica e a tese do livro é explicitado logo a seguir, não sem também contrapor esta última às demais ciências que abordaram o mesmo objeto com o mesmo objetivo (também escamoteados). A hermenêutica, com efeito, teria sempre um "caráter teológico ou metafísico, em todos os sentidos que se possa atribuir a esses termos". Sua tese, pelo contrário, "responde a todas as exigências de uma hipótese científica, o que não se com as teses psicológicas e sociológicas que se querem positivas mas que deixam na sombra tudo o que os teólogos e os metafísicos sempre deixaram na sombra, delas não sendo afinal de contas senão sucedâneos invertidos".

uma tentação da facilidade, que consistiria em emba­ ralhar os conceitos de ciência e de hermenêutica, recusando separá-los na obra de Girard. Pode ser perguntado porém se, numa atitude simetricamente oposta, não é ele próprio que estaria recorrendo a uma solução de facilidade, ao descartar-se sumariamente da hermenêutica. Não me parece de todo certo que "só" haja hermenêutica na medida em que não resposta, que a hermenêutica deva ter "sempre" um caráter "teológico" ou "metafísico", e que ela seja portanto incom­ patível com a hipótese científica. Efetivamente existem her­ menêutica ambíguas, como existem hermenêuticas legitima­ mente filosóficas, estas últimas sendo melhor definidas como reflexão interpretativa que começa procedendo do sentido patente para o sentido latente de uma linguagem primeira e se completa pelo chamado círculo hermenêutico, por sua vez valorizante do vivido. Não haveria lugar também para uma certa hermenêutica científica, solidária de uma hipótese teórica?

Reconhecendo os direitos da hermenêutica filosófica, autonomamente ou em composição com a ciência (exemplo Ricoeur, intérprete de Freud), G. Granger chama a atenção para "a existência de uma outra atitude hermenêutica", cien­ tífica agora. Esta hermenêutica, concebida como um "sis­ tema significante" está presente na psicanálise "pelo menos como possibilidade", e corresponde "a uma visada não de reflexão mas de objetivação". A possibilidade postulada por Granger recobre, em parte sim e em parte não, a prática efetiva de Girard. Esta não se alinha com os sistemas signi­ ficantes, nem, ao contrário de Freud, "postula uma forma qualquer de inconsciente", como tampouco "deixa um resíduo opaco qualquer". Alinha-se antes com as explicações "ener­ géticas", mas como tal permanece insuficiente sem a atitude hermenêutica objetivamente; sem esta, a teoria seria pura­ mente abstrata e vazia e nem sequer poderia ser elaborada como hipótese explicativa, operatória, estratégica.

Os conceitos fundamentais da hipótese sendo todos ope­ ratórios, como vimos, Girard chega a eles por uma prática hermenêutica sobre textos: daí retoma dialéticamente ao "fato empírico" mediante uma interpretação sobre textos, mas escoimada do "círculo hermenêutico", que é o que incon­ fessadamente parece perturbar o autor. Se a prática hermenêutica global implica, de uma parte, a busca do sentido latente sob o sentido patente e, de outra parte, o círculo hermenêutico, este constituindo o que efetivamente a caracte­ riza como prática global, a só adoção da primeira parte da prática hermenêutica a reduz a uma "clínica" hermenêutica. Clínica sem prática, recorrendo uma vez mais a Granger.

Aqui, a clínica hermenêutica está, por um lado, associada à hipótese científica e, por outro lado, dissociada do círculo hermenêutico. Aqui, a teoria distingue-se, quer das herme­ nêuticas ambíguas, que ela desconstrói, porque lhes falta a hipótese teórica, quer das hermenêuticas filosóficas, que ela deve respeitar, porque estas suprem pelo círculo hermenêu­ tico a inviabilidade de um equivalente de hipótese científica.

A resposta à questão: "há uma hermenêutica científica?", nos termos em que a coloco, bem poderia ser a tese do livro de Girard, apesar de expressões suas do teor das acima citadas. Pouco importa, de resto, a manutenção da palavra "herme­ nêutica", cujo pasado histórico pode torná-la suspeita, o que aliás me parece irrelevante; o que está em jogo é o liame que faz a hipótese depender totalmente do que chamo clínico hermenêutico, e jamais de qualquer outro recurso metodológico próprio de modelos formais no sentido estrito, de explicações puramente energéticas, de sistemas significantes. Uma outra diferença entre a hermenêutica científica proposta por Granger e a usada por Girard, reside nisto que a primeira é concebida como independente embora indispensavelmente complementar de uma explicação energética, ao passo que a segunda é acionada de modo complementar mas não inde­ pendente de uma explicação energética.

 

* * *

A comprovação da hipótese levanta uma dificuldade ine­ rente à perspectiva do autor acerca da hermenêutica; dificul­ dade, se não contornável de todo, pelo menos melhor circuns­ crita pela correção proposta acima. "A teoria tem isto de paradoxal que ela se pretende fundar sobre fatos cujo caráter empírico não é verificável empiricamente".

De fato, ela não evita a impossibilidade de ser testada pela realidade senão pelo recurso à interpretação. É o que aliás Girard não pode deixar de reconhecer: "não temos acesso ao acontecimento fundador senão ao termo de uma série de vaivens entre documentos sempre enigmáticos e que constituem ao mesmo tempo o meio em que a teoria é elaborada e o lugar de sua verifcação". O descrédito, porém, em que ele próprio lançou a hermenêutica, o leva a procurar na analogia com o transformismo a garantia da cientificidade de sua proposta. Só podemos obviamente concordar que, tanto no seu caso como no caso do transformismo, "é preciso pro­ ceder por hipótese". Mas, precisamente, a aproximação entre " os restos fósseis dos seres vivos" e "os textos em nossa pró­ pria hipótese", é forçada.

No transformismo, são os próprios fatos anatômicos com­ parativamente estudados que surgerem a hipótese, e é a hi­ tese que supre os elos desconhecidos e ainda não dados. O

que equivale a dizer que no transformismo são os próprios fatos constatados que, - num momento de feed back das motivações, o momento Darwin, - motivam o conceito de evolução, e portanto a hipótese mesma; ao passo que em Girard é a interpretação objetivante dos textos que, - num mesmo momento de implicação recíproca das motivações, o

momento Girard, - motiva o conceito e o fato: o fato no conceito operatório mediante o texto, e portanto a hipótese também. Torna-se inevitável concluir então na direção de uma hipótese hermenêutica. Suas condições de possibilidade e sua validade dependem das condições de possibilidade e da validade de uma clínica hermenêutica de cunho científico.

Na dependência dessas características gerais, e na verdade essenciais, a hipótese tem a seu crédito outros critérios parti­ culares, de coerência e de alcance explicativo. "Ela permite uma definição rigorosa dos termos fundamentais" que, mais uma vez e uma vez por todas, estão associados à clínica her­ menêutica. "Não deixa de lado nenhum dos temas principais; nenhum resíduo opaco permanece"; "não recorre jamais às muletas tradicionais da 'exceção' e da 'aberração'." "Permite organizar e totalizar a massa enorme dos fatos com uma real economia de meios". Dá conta "dos dados aparentemente mais opacos".

 

* * *

Os três blocos de esclarecimentos revelam uma filosofia implícita, mas incoercivelmente canalizada pelo controle do critério científico, com pontos de passagem flagrante para a ontologia. Isso se deve ao alargamento do conceito de ciência, sem incidir em compromissos com a filosofia ou com a ideo­ logia da ciência. Ao leitor filósofo ou aberto à filosofia, de prolongar suas indicações para além de uma epistemologia das ciências, sem abandonar uma eventual - fatal na pers­ pectiva de Girard - revisão desta última.

De qualquer modo, Girard propõe em substância uma nova concepção do ser do homem e, em decorrência, dos temas que lhe dizem respeito. Para isso ampara-se na psicologia da "double bind" em estreita correlação com o teor da hipótese, desenvolvendo uma descrição que poderiamos classificar de fenomenológica em sentido amplo e não-husserliano, e chamar de análise existencial, não por repetição de Heidegger, mas porque culmina apontando para um horizonte ontológico, de natureza hermenêutica: ontologia trágica implicada no com­ portamento-violência do homem. Apesar disso e por isso mesmo, aproxima-se do "melhor Freud, que não é freudiano", e que a psicanálise elude. Mas aquela análise existencial se polariza exclusivamente como análise social do comporta­ mento. Sob esse prisma concorre com Marx, no que este "tem de melhor e que tampouco é marxista". Se, por esses exemplos, a ambição de Girard parece não ter limites, por limites enten­ dendo aqui as ciências atualmente constituídas, ela não pro­ vém de extrapolações incontidas, mas do alcance mesmo de sua teoria.

 

 

DOS ANTECEDENTES A TEORIA

O itinerário de Girard neste seu segundo livro se situa entre um primeiro publicado e um terceiro já prometido. O anterior, "Mensonge romantique et vérité romanesque", datado de 1961, trata amplamente do estatuto da literatura. O outro, que faz o interesse deste artigo, constrói uma teoria da religião e da cultura primitivas. O prometido e "en chantier" versará sobre outra vertente religioso-cultural, o judeu-cristão. Do primeiro para o segundo, há aprofunda­ mento e nova orientação na visada do autor, e como que o encontro de uma definição de interesses. Do segundo para o terceiro haverá uma ampliação em direção à "religião e civili­ zação ocidentais e cristãs" (a expressão, que não é de Girard mas recobre perfeitamente a sua, nada tem de um slogan ideológico. Tudo leva a crer que a ele desconstruíra o slogan).

A primeira dessas passagens o faz remontar do romance moderno à tragédia. Ésquilo, Sófocles, Eurípedes parecem ter sido a ocasião determinante de seus novos interesses, ou estes a ocasião para deter-se naqueles. O fato é que, para a compreensão da tragédia grega, busca apoio nos dados da etnolo­ gia. Mas, se a crítica literária contemporânea desconhece o sentido da inspiração trágica, a etnologia nem sequer o coloca como questão. A crítica literária não se interessa senão pela tragédia; o mito permanece, para ela, um dado imprescríp­ tiveI em que não deve sequer tocar. A ciência dos mitos, pelo contrário, deixa a tragédia de lado; ela se crê mesmo na obrigação de mostrar a seu respeito uma certa desconfiança". Ora, precisamente a inspiração trágica toma o mito como tema, denunciando a verdade que ele ao mesmo tempo repre­ senta e oculta.

 

A tragédia, celebrada perante a comunidade, tem algo a ver com o rito sacrificial, do qual toma o lugar quando este entra em declínio. Em vez de "um templo e de um altar sobre o qual será realmente imolada uma vítima, tem-se agora um teatro e um palco sobre o qual o destino dessa vítima (o catharma) purgará os espectadores de suas paixões e provo­ cará uma nova catharsis individual e coletiva". A tragédia grega situa-se pois em um período de transição entre uma ordem religiosa arcaica e a ordem mais "moderna", estatal e judiciária, que vai sucedê-la.

Leitura trágica do mito e reprodução dessacralizada do rito, a tragédia manifesta sua origem religiosa. Todo o pro­ blema concentra então em torno do religioso primitivo, que se exprime objetivamente nos mitos e nos ritos, e cuja "gê­ nese, função e estrutura" devem ser procuradas. Devem ser procuradas porque a intuição de Girard não tem precedentes nem modelos a seguir: "Não temos nem guia nem modelo; não participamos de nenhuma atividade definível. Não nos podemos reclamar de nenhuma disciplina reconhecida. O que queremos fazer é tão estranho à tragédia ou à crítica literária quanto à etnologia ou à psicanálise".

uma origem real que os mitos, a seu modo, não cessam de rememorar, e os ritos, a seu modo, não cessam de come­ morar. Deve tratar-se de um acontecimento que exerceu sobre os homens uma impressão, não indelével, posto que eles acabam por esquecê-lo, mas de qualquer modo muito forte. Essa impressão se perpetua por intermédio do religioso e de todas as formas culturais. o é pois necessário, para disso se dar conta, postular uma forma qualquer de inconsciente, seja individual, seja coletivo.

O pensamento mítico se refere sempre ao que se passou da vez primeira. E se o sacrifício tem um lugar tão decisivo na comemoração ritual, é porque o acontecimento original é normalmente a destinação de uma vítima emissaria à morte. Exigência que não passou desapercebida do Freud de "Totem e Tabú". A impressionante unidade dos sacrifícios sugere tra­ tar-se do mesmo tipo de imolação em todas as sociedades. O que não quer dizer que a imolação tenha tido lugar uma vez por todas e se tenha refugido numa espécie de pré-história. Excepcional na perspectiva de toda sociedade particular, da qual marca o começo ou o recomeço, este acontecimento deve ser completamente banal em uma perspectiva comparativa.

 

Se tal acontecimento existisse, dir-se-á, a ciência o teria descoberto. Falar assim é não levar em consideração uma carência verdadeiramente extraordinária dessa ciência. A presença do religioso na origem de todas as sociedades hu­ manas é indubitável e fundamental. De todas as instituições sociais, o religioso é a única à qual a ciência jamais conseguiu atribuir um objeto real, uma função verdadeira. Dai a origi­ nalidade de Girard ao afirmar que o religioso tem o meca­ nismo da vítima emissária por objeto, sua função sendo a de perpetuar ou renovar os efeitos desse mecanismo, isto é, de manter a violência fora da comunidade.

 

É preciso, portanto, não reduzir esse acontecimento a uma espécie de caso limite mais ou menos ideal, a um con­ ceito regulador, a um efeito de linguagem, a qualquer mágica simbólica sem correspondência com o plano das relações con­ cretas. Ele deve ser considerado ao mesmo tempo como origem absoluta (passagem do não-humano ao humano) e como origem relativa (origem das sociedades particulares).

 

Se o acontecimento fundador da vítima emissária expulsa da comunidade a violência generalizada e recíproca, dando origem à sociedade, às diferenças culturais, à paz, à ordem, resta que ele mesmo resulta de um ato de violência unânime, que não parece criminoso porque o próprio mecanismo da vítima emissária o reveste de caráter sagrado. O decifra­ mento do religioso primitivo leva a uma concepção da violên­ cia humana, do sagrado e da atitude do homem face à vio­ lência e ao sagrado. São os três títulos a seguir, a partir do último.

 

ATITUDE DO HOMEM FACE A VIOLÊNCIA E AO SAGRADO

 

O sagrado se recorta sob o fundo da violência. Mas os homens não adoram a violência enquanto tal: não praticam

o "culto da violência" no sentido da cultura contemporânea, adoram a violência enquanto ela lhes confere a única paz de que jamais possam usufruir. Só são capazes de se reconciliar a expensas de um terceiro que, encarnando por transferência­ coletiva a violência nefasta, será objeto de veneração pelos benefícios que propicia após sua expulsão. É a violência, por isso mesmo sacralizada, que expulsa a violência. Ha pois uma violência ilegitima e uma violência legitima, esta instaurando um espaço de não-violência que possibilita as condições e a vigência da Polis.

O desejo de violência, jamais extinto, obedece a um me­ canismo relativamente constante, e é mais difícil de ser con­ tido do que desencadeado. Desencadeado, adquire a forma de represálias intermináveis que, se não fossem aplacadas a tempo, provocariam a destruição da comunidade. O jogo "completo" da violência inclui, porém, essa reciprocidade vio­ lenta como crise sacrificial - perda das diferenças ou indi­ ferenciação - e a sua resolução. No paroxismo da crise, a violência tende a transferir-se para uma vítima substituta: crime coletivo da unanimidade violenta. Nas condições nor­ mais da vida em sociedade, esta se protege do desejo de vio­ lência de dois modos: por interdições, para sustar as ameaças de represália, sempre pronta a recomeçar; pelo sacrifício, que é uma transgressão ritual da interdição, mas benéfica por sua função: preventivo de toda violência à maneira de um exu­ tório.

 

A partir da primeira resolução da crise sacrificial se cons­ titui o sistema sacrificial que repousa sobre uma dupla subs­ tituição: "a primeira é fornecida pela violência fundadora que substitui uma vítima única a todos os membros da comu­ nidade; a segunda, só e propriamente ritual, substitui à vítima emissária uma vítima sacrificável". A instituição ritual tira da violência fundadora uma técnica de apaziguamento catár­ tico; catarse menor, deriva da catarse maior do crime coletivo.

No sacrifício, por conseguinte, não há nada a expiar; por ele a sociedade visa desviar para uma vítima relativamente indiferente, uma violência que expõe ao risco de abater-se sobre seus próprios membros, aqueles que a todo preço ela entende proteger. Deve-se pois inverter os termos da com­ preensão habitual: a religião o é o motivo do sacrifício; o sacrifício, sob sua forma primeira ou derivada, em todo caso como fato primordial e ponto culminante de todos os rituais, é que está na origem da religião.

Desviando-se de modo duradouro para a vítima sacrificial, a violência perde de vista o objeto inicialmente visado por ela, havendo mesmo um certo desconhecimento sem o qual o sacrifício perderia sua eficácia. Nesse desconhecimento, a teologia do sacrifício é evidentemente primordial. Em vez de negar abstratamente a teologia, o que dá no mesmo que aceitá-la docilmente, é preciso reencontrar as relações confli­ tuais que o sacrifício e sua teologia dissimulam e apaziguam ao mesmo tempo. Nessas "relações conflituais" se reconhece o círculo vicioso da vingança.

Nossa inaptidão em atribuir uma função real ao sacrifício e às outras formas rituais, assim como a importância da etno­ logia e das ciências religiosas a seu respeito, provém do fato que o círculo vicioso da vingança não existe para nós. A di­ ferença entre uma sociedade tal como a nossa e uma sociedade primitiva está em que aquela não possui propriamente ritos e sacrifícios, e esta não possui sistema judiciário. Mas ali a justiça desempenha o mesmo papel que aqui o sacrifício: justiça e sacrifício poem um paradeiro à escalada da vingança, ao aniquilamento puro e simples, que passa a ser denominado também de violência essencial.

 

Não é a partir dessa justiça que estaremos em condições de atribuir uma função real ao sacrifício, e se não compreen­ demos essa função real, isso se deve a duas razões: "a primeira é que não sabemos absolutamente nada acerca da violência essencial, sequer que ela existe; a segunda é que os próprios povos primitivos não conhecem essa violência senão sob uma forma quase inteiramente desumanizada, isto é, sob as apa­ rências parcialmente enganosas do sagrado". Reencontramos os dois conceitos básicos que resta expor: a violência e o sa­ grado.

 

 

o SAGRADO

 

"O sagrado é tudo o que domina o homem tanto mais seguramente quanto o homem se crê mais capaz de domi­ ná-lo". O que está "sob as aparências parcialmente enganosas do sagrado", é "o jogo da violência em seu conjunto". Dis­ sipando as "aparências", Girard denuncia sob o sagrado, "a violência mesma, mas escondida, dos homens, violência posta como exterior ao homem e confundida desde então com todas as outras forças que pesam de fora sobre o homem".

Entre outras coisas, mas secundariamente, o sagrado é também: as tempestades, os incêndios de floresta, as epide­ mias, que aterram uma população. A sexualidade faz parte do conjunto das formas que jogam com o homem com uma desenvoltura tanto mais soberana quanto o homem pretende jogar com elas. As formas mais extremadas da violência, que são coletivas, não poderiam ser diretamente sexuais, pois não há sexualidade verdadeiramente coletiva. Uma leitura do sa­ grado fundada sobre a sexualidade elimina ou minimiza sem­ pre o essencial da violência, ao passo que uma leitura fun­ dada sobre a violência fará sem prejuízo algum à sexuali­ dade o lugar, considerável, que lhe compete em todo o pensa­ mento religioso primitivo. Tentou-se crer que a violência é impura porque se relaciona com a sexualidade. Só a propo­ sição inversa se revela eficaz sobre o plano das leituras con­ cretas. A sexualidade é impura porque se relaciona com a violência.

É o jogo completo da violência que revela "a gênese e a estrutura de todos os entes míticos e sobrenaturais". Isso, porque eles passam por ser a encarnação de toda violência. "Duplo monstruoso" em dois sentidos: o herói mítico ou a divindade incorpora e funde em si não somente toda violência maléfica, toda má-reciprocidade, assimilando mesmo as dife­ renças familiares e culturais às diferenças naturais; mas ainda o maléfico e o benéfico, isto é, a "boa" e a "má" violência, o que bem entendido constitui a monstruosidade primeira e essencial.

O processo de sacralização passa por dois momentos opos­ tos e sucessivos. Ao primeiro momento, encarnação de uma violência exclusivamente maléfica, segue-se imediatamente o outro, ativamente benéfico. A violência unânime, com efeito, tem um caráter fundador. O presumido culpado é tido então por responsável dessa fundação. Por isso mesmo é fasto e objetivo de veneração pública após ter sido expulso como monstro nefasto. Isolados pela interpretação, na divindade esses dois momentos são telescopados e juxtapostos.

o Sagrado é pois o absoluto da violência; une em si todos os contrários, não porque defira da violência, mas porque a vio­ lência parece diferir de si própria: ora refaz a unanimidade em torno dela, ora destrói o que tinha edificado. Os deuses encarnam a violência, exterior e transcedente quando a ordem reina, imanente de novo quando a má-reciprocidade reaparece na comunidade: maus no interior da comunidade, tornam-se de novo bons quando expulsos. Quando os homens negligen­ ciam os ritos e transgridem as interdições, provocam, literal­ mente, a violência transcendente a voltar. E toda visitação divina será vingadora; os benefícios só virão após a partida da divindade. Embora lhe deva tudo, a comunidade não pode conviver na intimidade do sagrado, mas precisa mantê-lo a uma distância ótima. Excessivamente próxima do sagrado, a comunidade é por ele devorada; afastada demais, perece. Isso quer dizer que os homens não podem viver na violência, tampouco no esquecimento da violência.

 

 

A VIOLÊNCIA ESSENCIAL

 

Na perspectiva sociológica do livro, o homem se encontra numa das duas situações: estado de paz social ou estado de violência coletiva, de crise sacrificial. O primeiro é explicado pela catarse do sacrifício, o segundo pelo desejo mimético. A hipótese da violência fundadora se articula com o tema do desejo mimético.

Nesse contexto deve ser entendido que "nada é mais banal que a primazia da violência do desejo". A partir daqui come­ çam as interpretações. O desejo violento pode ser tachado de sadismo, masoquismo, etc., se aí vemos um fenômeno pato­ lógico, isto é, um desvio face a uma norma alheia à violência. A pressuposição subjacente a essa interpretação é que existe um desejo normal e natural,.desejo não-violento, do qual a maioria dos homens jamais se afasta muito. Mas, se a crise sacrificial é um fenômeno universal, podemos. afirmar que a pressuposição é errônea. No paroxismo da crise, " a violência é ao mesmo tempo o instrumento, o objeto e o sujeito uni­ versal de todos os desejos".

Por isso mesmo e nesta última situação, pode ser afirmado que o homem é presa de um "instinto de violência", Sem dú­ vida, é legítimo empregar o termo instinto a propósito de animais providos individualmente de mecanismos reguladores que nunca vão até a morte do vencido. Seria porém absurdo recorrer a esse mesmo vocábulo para designar o fato de o homem estar privado de mecanismo semelhante. A idéia de um instinto que induzisse o homem à violência - instinto ou pulsão de morte, em Freud - não é senão uma posição mítica que impele os homens a por a violência fora deles próprios, dela fazendo um deus, um destino ou um instinto, do qual não mais são responsáveis e que os governa de fora.

Uma outra via se oferece à pesquisa. No desejo analisado por Girard não há apenas um objeto e um sujeito; um terceiro termo, o rival, que merece a primazia: sistema triá­ dico polarizado sobre o rival. O rival deseja o mesmo objeto que o sujeito; o sujeito deseja o objeto porque o próprio rival o deseja. Assim, ao desejar tal ou qual objeto, o rival o desig­ na ao sujeito como desejável.. O rival torna-se o modelo do sujeito, não tanto no plano superficial dos ademanes, das idéias, etc., mas sobretudo no plano mais essencial do desejo.

Satisfeitos seus desejos primordiais, e mesmo antes, o homem deseja intensamente, mas não sabe o quê, pois o que deseja é o ser, do qual se sente privado e que um outro alguém lhe parece possuir. O sujeito espera desse outro que ele lhe diga o que é preciso desejar para adquirir este ser. Mas não é por palavras, é por seu próprio desejo que o modelo designa ao sujeito o objeto desejável. E se o modelo, suposto dotado de um ser saturado, ainda deseja alguma coisa, esta só pode ser um objeto capaz de conferir uma plenitude total. O desejo é essencialmente mimético.

O mimetismo do desejo se manifesta como rivalidade, embora nem o modelo nem o discípulo estejam dispostos a re­ conhecer que se votam à rivalidade. Ainda que tenha encora­ j ado a imitação, o modelo se surpreende com a concorrência de que é objeto. Quanto ao discípulo, se crê condenado e hu­ milhado: pensa que seu modelo o julga indigno de participar da existência superior de que desfruta.

 

É pela situação do discípulo que é preciso definir a si­ tuação humana fundamental. Ele se através da rivalidade incompreendida e da falsa imagem que ela lhe devolve, e que ele atribui ao modelo. Cada vez que o discípulo crê encontrar o ser diante de si, esforça-se em atingi-lo desejando o que o outro lhe designa; e ele encontra cada vez a violência do de­ sejo adverso. Por um atalho simultâneamente lógico e demente, se convence rapidamente que a violência é o sinal mais seguro do ser que sempre o elude. A violência e o desejo são desde então ligados um ao outro. Reencontramos a esse nível a ontologia heracliteana: "a violência é pai e rei de tudo". A violência vem a ser o significante do desejável abso­ luto, da auto-suficiência divina, da totalidade que não mais apareceria como tal se cessasse de ser impenetrvel e inacces­ sível. O sujeito adora a violência e a odeia.

 

Esse desejo mimético é o motor da crise sacrificial. Num estágio de indiferenciação (crise das diferenças), os antagonistas transformam-se em duplos, e não há duplo que o contenha uma monstruosidade. Os duplos o todos inter­ cambiáveis, sem que sua identidade seja reconhecida. For­ necem pois, entre a identidade e a diferença, o meio termo equívoco indispensável à substituição sacrificial, à polarização da violência sobre uma vítima única: exatamente aquilo de que precisavam os antagonistas para chegar ao mal menor da reconciliação que é a unanimidade menos um da expulsão fundadora. É o duplo monstruoso, são todos os duplos mons­ truosos na pessoa de um só, que são erigidos em objeto da violência unânime. O duplo monstruoso na pessoa da vítima emissária apresenta-se na sequência e no lugar de tudo o que fascinava os antagonistas nas etapas anteriores da crise; substitui-se a tudo o que cada um deseja ao mesmo tempo absorver e destruir, encarnar e expulsar.

 

Compreende-se agora toda a extensão da hipótese de Girard. A progressão fatal dos efeitos do desejo mimético destruiria a comunidade se não houvesse a vítima emissária (para resolver a crise) e a mimesis ritual (para impedi-la de desencadear-se de novo).

 

Resumindo, distinguimos três niveis na progressão da violência essencial, cada um correspondendo a uma crise. Começando como crise mimética, a violência essencial incoa­ tiva suscita pelo jogo da rivalidade os "irmãos inimigos", os "gêmeos da violência", os duplos monstruosos. Como crise das diferenças, crise dionisíaca propagando-se num crescendo sem fim, ela desintegra toda a ordem social, fundindo os valores religosos ("deus" e "não-deus") e culturais e familiares na indistinção com o biológico e o natural. Finalmente, como crise sacrificial, desdobra-se em crise fundadora e em crise sacrificial propriamente dita. É a partir deste segundo tipo de crise sacrificial - quando o sistema ritual chega à usura

- que todo o jogo da violência essencial ameaça repetir-se.

 

UMA TEORIA DO DEVIR CULTURAL

 

A intuição de Girard - denunciada na e pela estrutu­ ração da obra - põe de novo, em uma perspectiva não mais religiosa ou filosófica mas especificamente sociológica, a ques­ tão do devir cultural.

 

A hipótese da violência fundadora não explica apenas todas as formas mitológicas e rituais, estende-se a toda a cul­ tura humana. ( Uma certa cultura humana, embora ainda atual?). Se o mecanismo original de toda "simbolização" é concomitante, como quer coerentemente Girard, ao mecanismo da vítima emissária, é evidente então que não há nada nas culturas humanas que não se enraize na unanimidade vio­ lenta, que não seja tributária em última análise da vítima emissária. Mas é bem entendido num sacrificial alargado que todas as formas culturais se incluem. Lá onde a imolação ritual não mais existe ou jamais existiu, surgem outras insti­ tuições que lhe tomam o lugar e que permanecem vinculadas à violência fundadora. É o caso de sociedade como a nossa ou como as da Antiguidade tardia que tinha eliminado a prá­ tica das imolações rituais. Há mais do que uma correlação estreita entre de um lado essa eliminação e de outro lado o estabelecimento de um sistema judiciário: o segundo fenô­ meno deriva do primeiro.

Além das instituições religiosas, do processo de "simboli­ zação" e portanto da linguagem mesma, do sistema judiciário, são devedores das mesmas origens o poder político, a arte de curar, o teatro, a filosofia, a antropologia... Se nenhum deles tomado isoladamente é probante, sua convergência é impres­ sionante. Sobre ou sob uma diversidade aparentemente extre­ ma, descobre-se a unidade, não somente de todas as mitologias e de todos os rituais, mas da cultura humana em sua totali­ dade, religiosa, "profana" e anti-religiosa, e essa unidade das unidades está inteiramente suspendida em um único meca­ nismo sempre operatório porque sempre desconhecido, aquele que assegura espontâneamente a unanimidade da comunidade c ontra a vítima emissária e em torno dela.

 

A sociedade humana não começa portanto com o medo do "escravo" diante do "senhorio"; tampouco com um "con­ trato social", explícito ou implícito, enraizado na " razão", no "bom senso", na "benevolência mútua", o "interesse bem compreendido", etc. Começa com o religioso, como bem viu Durkheim, cuja intuição ambígua deve receber seu acaba­ mento. A evocação de Durkheim é sintomática. "Uma ciência que chega finalmente a se constituir, diz Girard alhures, não mais despreza seus antecessores; neles descobre intuições es­ senciais; não os exclui de uma história que reconhece suas continuidades como suas rupturas".

 

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Sucedendo ao processo arcaico de sacralização, está em curso desde a antiguidade tardia um processo "moderno", e inverso, de dessacralização. De um e de outro, pela comum origem em que banham, o livro de Girard representa o mo­ mento de maior acuidade "crítica". Ainda uma vez "crítica", isto é, inspirando-me no autor, instauração, no discurso, de uma crise cultural, equivalente ilustrado da crise sacrificial, na qual Girard aparece como efetivo sacrificador, mas tam­ bém como possível vítima de uma certa comunidade científica, uma certa comunidade filosófica, uma certa comunidade teológica.