A ESTRUTURA FORMAL DA ARGUMENTAÇÃO DE SÃO PAULO E AS SUAS POSSIVEIS RELAÇõES COM A LóGICA ESTó ICA

 

 

JORGE CESAR MOTA

 

 

Aos meus caros e inesquecíveis mestres Professores Lívio Teixeira e João Cruz Costa

 

 

Todos quantos se interessam pelos estudos bíblicos estão a par do fato de que um grande número de exegetas e críticos tem procurado, com maior ou menor sucesso, pelo menos um século, demonstrar a evidência de elementos estóicos na forma, no estilo, no vocabulário e até mesmo nas idéias de alguns dos autores do Novo Testamento[1]. A discussão desse problema tão importante e tão amplo re­ foge, naturalmente, pelo menos em parte, aos objetivos de uma revista dedicada a questões filosóficas. Contudo, ele é aqui mencionado porque, em primeiro lugar, o tema do pre­ sente artigo é, de certo modo, aparentado com aquela ques­ tão e, depois, porque pretendo começar dizendo estranhar o total silêncio dos especialistas sobre a matéria que é objeto deste estudo. É verdade que duas coisas poderiam ocorrer no caso: ou a bibliografia, aliás, não pequena, a que, por um motivo ou outro, não tive acesso é exatamente aquela na qual o assunto é discutido; ou então, o silêncio se explica pela inconsistência e desrazão da minha hipótese. A publi­ cação deste trabalho evidencia que não estou de acordo com a segunda alternativa. Apesar das imperfeições próprias de um estudo ainda incompleto, pareceu-me conveniente pu­ blicá-lo precisamente para ter oportunidade de receber as críticas construtivas dos especialistas e dos estudiosos dos campos envolvidos, aos quais, desde já, agradeço a cola­ boração.

Muitos anos decorreram desde que a idéia surgiu na minha mente pela primeira vez. Seguia, então, o curso de Lógica ministrado pelo professor Gilles G. Granger, na Uni­ versidade de São Paulo. A coincidência, nas minhas leitu­ ras, do exame dos textos doxográficos dos megáricos e estói­ cos com o dos do apóstolo Paulo, nas suas epístolas e nos discursos que dele Lucas registrou nos Atos dos Apóstolos, despertou, no meu espírito, a viva impressão de notável se­ melhança entre o formalismo lógico que aquelas escolas socráticas contrapunham ao de Aristóteles e, em geral, a estrutura da argumentação do apóstolo dos gentios.

o presente estudo é, na sua modéstia, uma tentativa de resposta ao desafio do prof. Granger que, na ocasião, me estimulou a empreender a pesquisa. Apresentei-o, primeira­ mente, como parte de um curso monográfico sobre o estoi­ cismo que ministrei na disciplina de História da Filosofia, sob minha responsabilidade, na Faculdade de Filosofia, Ciên­ das e Letras de Assis.

 

A hipótese de trabalho

 

A hipótese de trabalho que proponho oferece oportuni­ c.ade para a pesquisa em dois campos distintos, que se ca­ racterizam nas seguintes proposições:

1)            Existem, de fato, na linguagem retórica e epistolar de São Paulo, elementos claros e suficientes para se suspei­ tar da influência da lógica megárico-estóica no discurso religioso (para usar a terminologia de Boschenski) desse

.apóstolo.

2)            Existem, além disso, circunstâncias na vida de Saulo de Tarso, anterior ao seu ingresso no ministério apostólico,

,que lhe poderiam ter possibilitado amplamente o conheci­ mento do formalismo lógico difundido pela stõa.

3)             Tivesse ou não o discípulo de Gamaliel conhecido 'Üutro instrumento formal de raciocínio, como em especial o de Aristóteles, além do método rabínico e do de Crísipo; tivesse ele, por consequência, tido ou não, oportunidade ou necessidade de escolha entre eles, optando pela forma estói­ ca; é inquestionável o grande auxílio que lhe poderia prestar (j sistema estóico no seu discurso teológico, em virtude da natureza e do conteúdo da mensagem que se propôs trans­ mitir a um mundo então extraordinariamente influenciado pelo estoicismo, mensagem que consistia, basicamente, na interpretação da história do seu próprio povo - o povo de Israel - narrada na Sagrada Escritura, e dos acontecimen­ tos ocorridos nos seus próprios dias em torno da vida, morte

·e ressurreição de Jesus Cristo, de quem ele se confessava

.servo e se proclamava apóstolo.

 

Fontes

 

Hans von Arnim, Stoicorum veterum fragmenta, Teub­ ner, 1903-1905. 3 volumes.

C. J. de Vogel, Greek philosophy, a collection of texts with notes and explanation, voI. lII: The hellenistic Roman period, Leiden, 1959.

H. Diels, Do:r:ographi Graeci, Berlin, 1879; 3.a edição,

1958.

A. C. Pearson, The Fragments of Zeno and Cleanthes,

London, 1891.

Cícero, (Séc. I A. C. ) De Fato

Paradoxa stoicorum De natura deorum Academica

De divinatione

Seneca (Séc. I D.C.)

Ad Lucilium epistolarum moralium De vita beata

Naturales questiones

Epicteto (Séc. I D. C. ) Diatribai Egxeirídion

Sextus Empiricus (Séc. III D. C. )

Pyrroneion Hypotyposeon Pros Mathematikous

Pros Logikous

Diógenes Laércio (Séc. III D. C. )

Bíon kai gnõmon tón ' en philosophíae eudokimesánton

Biblia Hebraica, edito Rudolf Kittel, Stuttgart, 16.a ed.,

1973.

Novum Testamentum Graece et Latine, edit. E. Nestle,

16.a edição, 1954. Stuttgart.

The Greek New Testament, Edit. Kurt Aland et all, 2.& edição, 1969, Stuttgart.

A Bíblia Sagrada, trad. João Ferreira de Almeida, Socie­ dade Bíblica do Brasil, Rio, 1951.

La Bible de Jerusalem, Paris, 1973.

The Holy Bible, Revised Standard Version, New York.

1953.

A lógica estóica

 

o estoicismo, como se sabe, durou do século III A. C. ao século II D. C., cinco séculos, portanto, ou pouco mais, mas não permaneceu o mesmo, nas suas ênfases, no decorrer desse período. Na primeira fase (sécs. IlI-lI A. C.), a Es­ cola, fundada por Zenão de Citium, e mantida em alto nível por Cleanto e especialmente por Crísipo - considerado o segundo fundador da Stôa - preocupou-se principalmente com os problemas relacionados com a física, a moral e a ló­ gica, o que não aconteceu com os períodos seguintes. O Médio (II-I A. C.), cujos principais nomes são: Posidônio e pané­ cio, e o Novo (nos primeiros dois séculos da nossa era), com Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio, nos quais as questões de ordem moral constituiram a sua maior preocupação.

O período áureo da lógica e stóica foi, pois, o mais an­ tigo, cujos mestres haviam recebido e desenvolveram os tra­ balhos de Eubúlides, Diodoro e Filo, da Escola Megárica, incompreensivelmente logo desaparecida. O mais ilustre nome dessa primeira fase foi, sem dúvida, Crísipo (277-204 A. C. ). "Se os deuses algum dia se interessassem pela lógica - diziam os seus contemporâneos - seria a de C rísipo que haviam de escolher". Desgraçadamente, de quanto escreveu esse filósofo, o mais fecundo escritor da antigüidade - a sua obra chegou a 705 livros ! - tudo se perdeu, salvo umas Lógica Zetêmata (Pesquisas Lógicas) que se acharam entre papiros encontrados nas escavações de Herculanum[2]. Aos biógrafos e comentadores desse autor devemos tudo o que hoje se sabe dele. Quanto à importância das suas idéias para o nosso estudo, basta lembrar que Diógenes Laércio chegou a dizer que, sem ele, a Stôa não teria existido.

Como é nosso objetivo pesquisar a influência da lógica estóica na estrutura formal da argumentação do apóstolo Paulo, é evidente que não caberia neste artigo qualquer es­ forço de exposição e explicação de todo o sistema, e muito menos qualquer tentativa de desenvolver cálculos proposicio­ nais, que seria inteiramente artificial, pelo anacronismo da experiência. Entretanto, torna-se necessário fazer breve re­ ferência aos seus rudimentos básicos e mais elementares. Parece óbvio que a esquematização especulativa, elaborada sobre esses fundamentos, que constituiram, no seu conjunto, um modelo precursor da lógica proposicional moderna, estava ausente dos programas escolares vigentes no Império Ro­ mano no primeiro século da nossa era, sendo reservada aos estudos superiores seguidos pelos especialistas. Os historia­ dores da educação sublinham, entretanto, a importância da obra pedagógica de Crísipo, considerado um dos mais ge­ niais educadores dos tempos antigos, cuja influência se es­ tendeu ao longo dos séculos por todo o período helenístico, sobretudo no tocante à didática da linguagem e da gra­ mática.

Não cabe aqui, também, discutir as razões pelas quais o formalismo lógico dos estóicos prevaleceu sobre o dos peri­ patéticos, que veio a recuperar o seu prestígio em plena Baixa Idade Média, praticamente a partir de Abelardo (1079- 1 142).

Deixando de lado os evidentes reflexos da influência estóica até mesmo no pensamento de muitos dos primeiros padres da Igreja, é fácil respigar, aqui e ali, ao acaso, sinais da presença dos filósofos do Pórtico entre os primitivos cris­ tãos. Ao narrar, por exemplo, o processo da sua conversão, o maior filósofo do cristianismo antigo, Justino, cognominado

o Mártir, conta como foi precisamente um estóico que ele foi procurar primeiro, na sua desesperada ânsia de conhecer o caminho da verdadeira sabedoria.[3] A famosa escola de Alexandria, segundo Eusébio já em funcionamento nos dias de São Marcos, teve como primeiro diretor ( pelo menos é esse o mais antigo dos nomes que chegaram até nós) a Pantene, do 2.° século, estóico convertido, mestre de Cle­ mente de Alexandria, seu sucessor na Escola, e um dos mais cultos dos apologistas cristãos. Este último considerava Crísipo, e não Aristóteles, o verdadeiro mestre da Lógica.[4]

A partir do séc. lI, nota-se uma tendência para o sincre­ tismo das duas lógicas. Galeno, (131-201 ), a quem devemos importantes comentários tanto sobre Aristóteles c omo sobre C rísipo, é um exemplo desse sincretismo, particularmente no vocabulário. O mesmo autor acima citado[5] disso al­

guns exemplos, entre eles o de Galeno denominar "inde­ monstráveis" os modos da l.a figura.

Graças a Boécio, (480-525), passaram para a Idade Mé­ dia os resultados finais da lógica estóica sobre os cálculos das variáveis proposicionais. Mas um longo e profundo si­ lêncio de cinco ou seis séculos interrompe todas as pesquisas no campo da lógica. Pelo menos, dentro dos limites do nosso escasso conhecimento dessa época, muito pouco estudada até agora, por dificuldades de várias espécies.

Como seria de esperar, os escolásticos voltaram sua aten­ ção para a lógica conceptual, obviamente preferida. Bos­ chenski sugere que, mesmo quando emprenderam investiga­ ções em torno da lógica proposicional, fizeram-no provavel­ mente em conseqüência dos estudos dos Tópicos e talvez tam­ bém da Hermeneia, e nunca como desenvolvimento da an­ tiga lógica estóica. Segundo esse mesmo historiador, a Idade Média conheceu uma única lógica, que era a que todo o Baccalaureus artium tinha de saber usar com segurança. Aliás, ninguém ingressava na Faculdade de Teologia sem esse título.

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É verdade que, já no final do séc. VIII (785), uma das mais representativas figuras do renascimento carolíngio, cuja obra, no sentir de Émile Bréhier, "teve real importância na direção intelectual de toda a Idade Média", a saber, Alcuino, encarregado por Carlos Magno de organizar os estudos no Império Franco, atribuiu à lógica, entre as sete art� liberais, importância excepcional: a Física correspondia ao Gênesis, a Moral aos Livros Sapienciais e a Lógica aos Evangelhos"[6].

Assim também, Raban Maur (780-856), atribui à dialé­ tica, com a qual aprendemos as diferentes formas de racio­ cínio, o papel de instrumento para a legítima compreensão da Escritura.[7]

É, contudo, somente nos séculos XI e XII, com a divulga­ ção, entre os clérigos e leigos, de muitas obras de Aristóteles, até então desconhecidas, entre as quais uma boa parte do Organon, sobretudo, as Segundas Analíticas, que a dialética passa a ocupar indisfarçavelmente o lugar de destaque nos estudos escolásticos porque é ela que vai imprimir orienta­ ção às pesquisas teológicas. É verdade que notáveis lógicos como Berenger, na famosa disputa em torno das definições dogmáticas da santa eucaristia, do batismo, da imortalidade da alma, etc., se valeram de recursos fornecidos pela mesma lógica aristotélica utilizada pelos adversários. E contudo, em plena Idade Média, homens de incontestável honesti­ dade intelectual e sincero amor à verdade, como Pedro Da­ miani, no começo do séc. XI, e Guilherme de Ockam, no co­ meço do séc. XIV, reconheceram a necessidade de se recor­ rer a uma lógica diferente da do Estagirita para se discuti­ rem as coisas relativas a Deus e às ligações que Ele mantém com o mundo que criou. É de fato interessante que Ockam se tenha valido, não poucas vezes, da lógica dos estóicos. E Robert Holkot, também no séc. XIV, não teve dúvida em afirmar: "Oportet ponere unam logicam fidei".

Mesmo quando se retomam as investigações no âmbito da lógica proposicional, é pouco provável, segundo opina Boschenski, que tivesse sido por influência estóica, a qual dormira também um longo sono de muitos séculos.

Todavia, é conveniente oferecer aos eventuais leitores deste artigo menos familiarizados com esses problemas, al­ guns dados mediante os quais lhes seja possível compreen­ der a diferença fundamental entre a lógica aristotélica e a megárico-estóica.

Parece que foi Victor Brochard o primeiro a tentar rea­ bilitar a lógica dos estóicos que chegou a ser, até, ridicula­ rizada por críticos de renome como K. Prantl, que não teve dúvida em caracterizá-la, na sua História da Lógica, como "um formalismo imbecil" e "uma imensa estupidez". Bro­ chard mostrou que a Lógica de Aristóteles se baseava fun­ damentalmente em conceitos e termos, ao passo que a estóica lidava basicamente com proposições que se referiam a acon­ tecimentos. Aristóteles, coerente com a sua metafísica, toda edificada sobre as idéias de substância e da organização hierárquica do mundo em classes, fez naturalmente a sua ciência trabalhar com termos ou conceitos. O verbo com o qual invariavelmente as proposições se formavam era o verbo ser. Se se diz, por exemplo: "Todos os homens são mortais", logo se percebem nessa simples proposição, que pode fun­ cionar como premissa de um raciocínio silogístico, conceitos, termos, substâncias, classes. A Lógica dos megáricos e dos estóicos não estava interessada em classificar os seres nas suas espécies e gêneros respectivos. Também não se propu­ nha colocar-se ao serviço de qualquer espécie de dogmatismo, como aconteceu com a do estagirita que acabou ditando até as normas do raciocínio teológico e bíblico. Com uma admi­ rável antecipação e uma visão realmente genial das funções de um verdadeiro instrumento de trabalho científico, como é a lógica proposicional hoje, Zenão e Crísipo, seguindo as pegadas de Eubúlides e de outros megáricos, formalizaram a lógica em torno das proposições que exprimiam aconteci­ mentos ou tatos: "Se o sol brilha, então é dia. Ora, o sol brilha, logo é dia."

O argumento, isto é, "um sistema composto de pre­ missas e conclusão" que lembra o silogismo aristotélico, pode ser falso ou verdadeiro, segundo o indicar a c onclusão ou qualquer das premissas. A conclusão pode não ser evidente e ser entretanto considerada válida por uma razão inteira­ mente estranha à estrutura do próprio argumento. O exemplo que Sextus Empiricus nos oferece neste caso é o seguinte: "Se Deus lhe disser que este homem será rico, ele será rico. Ora, este Deus disse-lhe que este homem será rico. Portanto, este homem será efetivamente rico".[8] Sextus diz que a conclusão é aceita não por causa da força do argu­ mento em si, mas devido à fé no que Deus afirmou.[9] Mais adiante, voltarei a este exemplo.

A dialética estóica, segundo se depreende de Crísipo, trata do discurso ( TO ÀfKTÓV), no qual a palavra essencial é o verbo.[10] Na lógica aristotélica, o verbo (sempre o verbo ser) tem sempre uma função copulativa e predicativa e visa a designar uma noção geral resultante da inclusão ou exclu­ são, total ou parcial, de indivíduos, e spécies e gêneros. Não assim na dialética estóica, na qual se unem os dois elemen­ tos - separados em Aristóteles - a cópula e o predicado: unem-se indissoluvelmente exprimindo um acontecimento, e jamais qualidades classificatórias.

As proposições, na dialética estóica, formam também silogismos, como na aristotélica, mas estes têm, nelas, fun­ ção inteiramente diversa, como logo se percebe do que acaba de ser dito.

 

Paulo de Tarso

 

Calcula-se que Saulo tenha nascido entre os anos 5 e 10 D. C., sendo, portanto, cerca de 9 a 14 anos mais jovem do que Jesus, cujo nascimento deve ter-se dado entre 7 e 5 A. C.. O futuro "apóstolo dos gentios" era judeu, natural de Tarso, onde estudou aos pés de Gamaliel (At 22,3) e onde formou o seu espírito.

Tarso foi a principal cidade da Cilícia na antigüidade, e conservava ainda nos dias de Paulo o mesmo prestígio. Situada às margens do Cnidos, chegou a ser um dos mais importantes centros comercias e culturais da Asia Anterior. Fundada pelo legendário Sardanápalo, de acordo com uma antiga tradição, segundo outra por Senaqueribe (Eusébio, eran. 1), os gregos chamaram a si esse privilégio quando a transformaram na mais notável palis de toda a região. Dion Crisóstomo (Or. XXXIII) e Libanius (Or. XXVIII 620) con­ tam que, para os tarsenses do período da dominação grega, foi Perseu ou Hércules o fundador da cidade. Fato curioso é que o primeiro desses nomes corresponde também ao de um heroi assírio (Herod. VI 54) relacionado com a mitologia e a religião de muitos lugares da Asia Menor; e o segundo era também o deus tírio a quem se atribuia a fundação de muitas colônias. Esse curioso sincretismo legendário refle­ te, 5em dúvida, o caráter cosmopolita de Tarso desde os mais remotos tempos. De fato, pela sua privilegiada localização, veio essa cidade a desempenhar sempre um papel de lide­ rança, qualquer que fosse o domínio político a cujo serviço estivesse. O seu nome figura na famosa inscrição do obe­ lisco negro de Shalmaneser, como uma das grandes cidades conquistadas por esse rei, e chegou a ser a capital ocidental do vasto Império Assírio. Sob os selêucidas, mudaram-lhe o nome para Antioquia-sobre-o-Cnido, por causa de Antíoco IV Epifanes, que em 170 A. C. a reinaugurou como cidade grega. Por iniciativa desse rei, levas de judeus foram transferidas dos lugares em que viviam para as cidades da Asia Menor, inclusive Tarso. Quando Pompeu conquistou a Cilícia em 66 A. C., Tarso ficou sendo a capital da Província. Nesse tem­ po, contava já com uma elevada porcentagem de judeus resi­ dentes. Antonio, como se sabe, recebeu nessa bela e rica libera civilas a visita de Cleópatra, que se admirou do seu luxo e esplendor.

Quando Saulo nasceu, Tarso era uma cidade movimen· tada e culta, em cujas instituições se refletiam as variadas e tão diferentes heranças da sua evolução, das quais, sem dúvida, a famosa universidade era a mais notável. O geó­ grafo Estrabão (t 25 A. D. ), contemporâneo de Paulo, diz que a universidade de Tarso era então, em alguns aspectos, superior às de Atenas e Alexandria (Str. XIV. 5. 13). Nesse tempo era já Tarso o mais importante centro estóico de estu­ dos filosóficos do mundo. Aliás, desde as origens do Pórtico, um grande número de sucessores de Zenão de Citium eram originários de Tarso, como o homônimo do fundador da Es­ cola, que C rísipo, cujos pais eram também tarsenses, elegeu para seu substituto. De lá vieram também Antípater, Herá­ clides e Atenódoro, este último mestre e preceptor do Impe­ rador Augusto. Era na Universidade de Tarso que o governo de Roma ia buscar os preceptores dos príncipes e dos futuros líderes do Nomen Romanum, e todos eles eram estóicos. É bem possível que Paulo, quando menino, tenha cruzado mui­ tas vezes com Atenódoro nas ruas da sua cidade.[11]

A.         Puech, no capítulo de sua História da Literatura Grega Cristã dedicado a Paulo, afirma que "Saulo, cognomi­ nado Paulo, provinha de uma família judáica, inatacável na sua ortodoxia, "fariseu filho de fariseus" (At 13,9), mas cida­ dão romano, nascido em Tarso, capital da Cilícia, cidade completamente helenizada, cidade "universitária", podemos dizer, a qual produziu um grande número de homens ilus­ tres, retóricos, filósofos, sábios de toda a espécie [cf. Boehlig., H., Die Geisteskultur von Tarsus im augusteischen Zeitalter, 1913], foi, desde o começo, bem preparado para vir a ser o traço de união entre o cristianismo palestino e o mundo helê­ nico e latino".[12]

Igualmente Adolfo Deissmann[13] reconheceu que Paulo foi um "helenista para os helenistas porque a língua e a alma do Helenismo haviam chegado até ele com o ar de Tarso". Mas eu estou certo de que Saulo não respirou essa atmosfera tão favorável só nas ruas, nas praças, no ambiente em que viviam todos, incluindo os estrangeiros, mas como partici­ pante das atividades normais de um jovem da sociedade cons­ tituída de cidadãos livres, educando-se para ser judeu entre os judeus, como queria certamente a sua família, e grego en­ tre os gregos por vocação divina (Gl 1, 15,16).

Não se pode esquecer o fato que Kierkegaard citou[14]

de que circulava entre os judeus, na década de 60 A.D., o moto: "Maldito o que cria porcos, maldito o que ensina. a seu filho a sabedoria grega". Mas nem todos os verdadeiros judeus se amedrontavam com tais fulminantes anátemas, como temos visto, e Paulo revelará mais tarde, em suas ati­ tudes e palavras, as quais lhe custaram não pequenos abor­ recimentos entre os "fundamentalistas" judaizantes do cris­ tianismo primitivo, o espírito aberto que respirou em seu lar, à sombra do Taurus.

Dois fatos de inegável evidência corroboram a opinião, que defendo, de que Paulo recebeu esmerada educação ju­ dáica e helenística em Tarso. Esses dois fatos são: primeiro, a sua cultura e erudição, transparente em algumas das suas cartas e dos seus discursos, e, segundo, a sua cidadania ro­ mana. Victor Tcherikover, abundantemente documentado, mostrou que a cidadania romana era alcançada pelos filhos dos judeus que se matriculavam, mediante pagamento de de­ terminada taxa, nos gymnasii, nome genérico das escolas de educação física e também das academias de filosofia que funcionavam nos edifícios daquelas.[15] Sobre a ampla edu­ cação de Paulo, opinam também favoravelmente Bultman[16] e Theodoro Zahn.[17]

Em que pese a opinião de Stauffer,[18] não creio que fosse necessário ao jovem judeu abandonar as tradições de seus pais nem ser infiel à orientação espiritual rabínica para que pudesse freqüentar as escolas gregas, como um verda­ deiro éphebo. É certo que, como assinala o mesmo autor, muito da dialética paulina tinha raízes rabínicas, mas, como pretendo a seu tempo demonstrar, é fora de dúvida que o apóstolo dos gentios aprendeu também a usar a dialética estóica.

Exemplo elo quente da penetração da cultura helenística entre os judeus são alguns dos chamados livros apócrifos ou pseudo-epígrafos, principalmente o IV Livro de Ma­ cabeus, escrito por um judeu formado na Lei e nos Profetas (18, 10. 13-19), mas detentor de uma sólida educação grega que se manifesta no vocabulário, no estilo, no método e na temática do seu livro. O que mais de perto nos convém res­ saltar, todavia, é a sua indisfarçável dialética estóica. E, entretanto, IV Macabeus é uma espécie de homilia escrita para os judeus.[19]

Ignoramos se Paulo teria conhecido este livro. De qual­ quer forma, a semelhança de estilo e de argumentação indi­ cam que o menos que se pode inferir é que ambos os auto­ res beberam das mesmas águas.

Tinha, pois, razão o apóstolo quando afirmou ao tribuno de Jerusalém: "Sou judeu, cidadão de Tarso, cidade não pouco célebre da Cilícia" (At 20,39).

No ano 33 ou 34, Saulo assistiu ao martírio de Estêvão (At 7,58; 8, 1) e participou, de certo modo, da sua execução porque se dispos a vigiar as túnicas dos apedrejadores que delas se desembaraçavam para com maior agilidade realiza­ rem a sua triste tarefa. Muitos autores têm relacionado esse fato com a conversão de Saulo ao Evangelho que perseguia, pouco depois, quando, a caminho de Damasco, aonde se diri­ gia com o propósito de descobrir cristãos e levá-los presos a Jerusalém, se defrontou, segundo repetidas vezes contou, com o Cristo ressurreto. A forte impressão causada no ânimo do fanático perseguidor pelo desassombrado testemunho do proto-mártir do cristianismo explicaria psicologicamente muito do processo da sua conversão. Pode ser, pelo menos em parte, que essa teoria seja verdadeira. Porém, o que não se pode deixar de ter em mente na presente pesquisa, é o próprio conteúdo do discurso daquele diácono eleito pelos demais discípulos, juntamente com outros seis, para se en­ carregar da " assistência social", como hoje diríamos, para que os apóstolos pudessem dedicar-se inteiramente ao "minis­ tério da Palavra". o instrumento mediante o qual se operou a extraordi­ nária transformação espiritual do sábio fariseu não foi ape­ nas a serenidade e a paz com que Estêvão enfrentou a morte que lhe deram os inimigos do Evangelho que pregava, mas também o teor do seu discurso. Esse pormenor não pode ser esquecido. A reiteirada referência que o mártir fez aos fatos e aos acontecimentos históricos do seu povo, que era tam­ bém o daqueles que o perseguiam, e a interpretação daque­ les fatos e acontecimentos como atos poderosos de Deus, ambas feitas por Estêvão não só com piedade religiosa, mas com coerência e limpidez cristalina ao mesmo tempo, cairam como um clarão noético na inteligência de Saulo e ficaram martelando a consciência daquele homem que sabia tão bem raciocinar com a relação lógica dos "indemonstráveis" ( àva7rÓoe:tK'tOt). Com os estóicos havia ele aprendido que ser capaz de relatar os fatos históricos não significava necessariamente conhecê-los. O conhecimento só advinha da sua correta interpretação e compreensão. Tal conheci­ mento verdadeiro dos acontecimentos correspondia a maior proximidade de Deus, a uma como que maior afinidade com Ele, porque nada ocorre fora do âmbito da sua vontade, e o "querer os acontecimentos como eles se dão", como escrevu Epiteto (Encheir. 8) - (Mais literalmente e no seu con­ texto: "Não peças que as coisas aconteçam como desejas, mas deseja que aconteçam como são") - implica em viver em comunhão com Deus, pois era esse, no fundo, o sentido do aforismo de Zenão: "Vive em harmonia com a nature­ reza". Crísipo disse a mesma coisa. E o mesmo Zenão considerava a natureza como divina. (Stob., Égl. II 132; Cic., t.as Acad. XLII).

Por outro lado, Paulo teria reconhecido a lógica estóica na forma de argumentar de Estêvão, cujo nome, como os dos outros diáconos, era grego e, de acordo com a informa­ ção dada por Lucas (At 6, 8- 1 1 ), el8 fazia parte do grupo de helenistas de Jerusalém, e possivelmente da sinagoga deles. Nada mais sabemos de Estêvão, mas é sintomática a relação que Paulo, no discurso em sua defesa perante o tribuno de Jerusalém, fez entre o mártir de nome gentílico e a comis­ são que recebeu de Cristo no caminho de Damasco: "Vai, porque hei de enviar-te aos gentios de longe" (At 22,20. 21).

Não creio abusar da imaginação sugerindo que a argu­ mentação de Estêvão, calcada em relacionamento de fatos históricos, produziu grande impacto no espírito de Saulo, e foi isso que, provavelmente, no momento oportuno, levou o apóstolo dos gentios a utilizar a mesma forma de raciocínio na prédica e na correspondência pastoral. Aliás, no fundo, como na forma, a argumentação de ambos é idêntica. Nem Paulo nem Estêvão se defenderam definindo doutrinas, ape­ lando para a força dos conceitos exatos ou para a ortodoxia dos seus dogmas. Limitaram-se a recordar a história do povo de Israel e a relacioná-la com Cristo. Como bem disse Sabatier[20] a respeito do discursto de Estêvão, "as grandes épocas da história do seu povo forneceram-lhe as grandes

divisões do seu sermão". Algo semelhante vamos encontrar também em Paulo.

Mas não foi apenas a lógica dos eventos citados pelo diácono em sua defesa que causou a transformação total do pensamento e da vida de Saulo. Foi o grande evento da sua própria vida: o encontro pessoal com o Cristo ressurreto no caminho de Damasco. O clarão tão forte que o cegou temporariamente veio acompanhado da própria voz de Jesus: "Saulo ! Saulo ! Por que me persegues?" De Damasco, aonde chegara não mais como perseguidor, partiu para a Arábia, onde permaneceu três anos em meditação (At 22, 10ss; 26, 12ss; Gi l, 18ss). Depois, foi a Jerusalém para e star com Pedro e Tiago, irmão do Senhor, por quinze dias, e logo par­ tiu para a sua cidade natal (At 9, 30).

O texto de Lucas deixa cair o silêncio sobre o que acon­ teceu durante os longos catorze anos decorridos até o seu aparecimento entre os apóstolos para, com segurança e base nas Escrituras, e também pelo que aprendeu dos discípulos de Cristo que contactara, lutar por uma interpretação no seu entender mais legítima do mesmo Evangelho que antes perseguira e que, agora, se tornara a própria razão de ser da sua vida: "Para mim o viver é Cristo" (Flp 1,21); "Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim" (GI 2,20).

Foi em 48 ou 49 que Paulo esteve nessa reunião com os demais apóstolos (At 15). Fizera antes a sua primeira via­ gem missionária, em cujo itinerário estava Tarso. A se­ gunda, logo após a conferência de Jerusalém, levou-o de novo para a Cilícia (49-52) (At 15,40-51), de onde partiu para o norte até Troas. Deu então o passo de consequências histó­ ricas incalculáveis: penetrou na Europa, levando consigo o Cristianismo. Chega até Atenas onde discute com filósofos estóicos e epicureus (At 17).

Por volta de 51, começam a aparecer as epístolas de Paulo. As duas primeiras nesse mesmo ano, 1.8 e 2.8 aos Tessalonicenses. Retoma a Jerusalém em 52 e parte para a sua terceira viagem missionária (53-58). Vai a Éfeso e a Corinto. Escreve aos Coríntios três cartas, uma das quais se perdeu, e aos Filipenses e aos Romanos.. É provável que a que escreveu aos Gálatas date dessa mesma época. Tiago, "o irmão do Senhor", está em Jerusalém, à testa da comuni­ dade local. Por esse tempo, escreveu Tiago a sua epístola aos judeus convertidos da diáspora. Paulo foi preso por ocasião da festa do Pentecostes, em Jerusalém, e foi levado para Cesaréia, em cuja cadeia permaneceu dois anos (58-60), ao cabo dos quais, tendo, perante Festo, apelado para César - recurso a que a sua condição de cidadão romano lhe dava direito - foi levado prisioneiro a Roma, onde ficou até 63, quando alcançou a liberdade, embora por pouco tempo. Na prisão, escreveu as epístolas aos Efésios e aos Colossenses e o comovente bilhete a Filemon. Nessa altura, Pedro escre­ veu a sua primeira carta, e Marcos compôs o Evangelho que traz o seu nome, porém, que é, na realidade, uma síntese dos sermões que ouvira daquele apóstolo. Paulo retoma a Éfeso em 65, ano em que Sêneca se suicidou por sentença imperial. Alguns estudiosos admitem que a l.a carta a Timóteo e a endereçada a Tito datam desse tempo. É possível que os Evangelhos de Mateus e de Lucas, bem como os Atos dos Apóstolos tenham sido escritos nesse mesmo ano.

Não é improvável que São Paulo tenha então conseguido ir à Espanha, como sempre desejou (Rm 15,28). Em 67 é novamente levado preso para a capital do Império, e alí, tal­ vez com São Pedro, é, segundo a tradição, martirizado.

 

São Paulo e as formas canônicas do

silogismo estóico[21]

 

Os resultados da pesquisa feita sobre o glossário mais característico dos textos estóicos e o vocabulário de São Paulo, para o que me vali principalmente das anotações de B. Mates, na sua Stoic Logic, e de Jean Brun, em Les Stoiciens, e da Ooncordance to the Greek Testament, de W. F. Moul­ ton e A. S. Geden,[22] da Hand-Konkordanz zum griechischen Neuen Testament de A. Schmoller e da Exhaustive Concor­ dance Df the Bible, de James Strong, - não cabem num tra­ balho da natureza deste, mas espero publicá-los noutra opor­ tunidade e noutro lugar. Igualmente foge ao interesse desta revista o estudo comparativo dos processos paulinos e estói­ cos de exposição argumentativa, como, por exemplo, o em­ prego das perguntas e dos paradoxos. Como ilustração, men­ ciono o caso da semelhança entre o texto de Sextus Empi­ ricus anteriormente citado[23] e três paralelos de São Paulo (1 Co 1,8.9; 10,13; 2 Co 1,18-20).

No passo de S. Empiricus, o raciocínio leva à conclusão certa e indiscutível de que certo homem virá a ser rico. Trata-se de um dos textos estóicos nos quais se argumenta com vistas ao porvir.

Haveria muito que dizer sobre esses lances de antecipa­ ção do futuro encontradiços nalguns textos estóicos - e muitos já o têm feito com mestria. Entendo que tal pes­ quisa seria de interesse não só científico, mas também teo­ lógico, em particular no que toca ao problema da predesti­ nação em São Paulo.

Interessa-nos aqui, porém, a referência ao caso citado por Sextus Empiricus por duas outras razões. Por um lado, pela interferência de Deus como argumento lógico e, por Dutro, pela peculiaridade dessa intervenção divina manifes­ tada no vocabulário usado. Em ambos os aspectos, descobre D pesquisador uma surpreendente afinidade com textos pau­ linos. Tanto mais surpreendente quando se constata a abso­ luta ausência de contato ou dependência entre os mesmos escritores. O que aí se nota, é, sem dúvida, uma fonte co­ mum de inspiração no processo lógico com base, evidente­ mente, nalguma metafísica ou teologia. O estudo pormeno­ rizado dessa questão particular nos levaria para longe de­ mais dos objetivos deste trabalho. Será suficiente indicar dois ou três pontos de maior relevância, em relação aos dois aspectos mencionados.

O texto de Sextus Empiricus ilustra o caso de certeza a

.que o raciocínio leva sem que exista, para tanto, nenhuma força nas premissas da argumentação. A tranqüila conclu­ são a que se chega é oferecida pela singela afirmação con­ tida numa das premissas de que o anunciado fato futuro constitui uma promessa de Deus, ( à,\,\' fK Tij<; TOV BfOV 7r[UT€W<; )

 

É preciso não esquecer que, para o sábio estóico, só o presente tem realidade. O passado e o futuro não existem realmente, um porque já não é, o outro porque ainda não é; mas, para Deus, tanto um como outro estão dissolvidos no eterno presente, que só ele conhece. Por isso, no estoicismo, () Destino e a Providência se identificam. Portanto, a pro­ messa de Deus é a garantia do conhecimento do futuro e da tranqüila esperança da sua realização.

Os textos de São Paulo acima citados são os seguintes: ·'0 qual (Jesus Cristo) vos confirmará também até o fim, para serdes irrepreensíveis no dia de nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados para a comu­ nhão de seu Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor". (1 Co 1,8. 9 ). "Não veio sobre vós tentação senão humana; mas fiel é Deus que vos não deixará tentar acima do que podeis, antes com a tentação dará também o escape para que a possais supor­ tar." (1 Co 10,13). "Antes, como Deus é fiel, a nossa pala­ vra para convosco não foi sim e não. Porque o Filho de Deus, Jesus Cristo, que entre nós foi pregado por nós, [... ] não foi sim e não, mas nele houve sim. Porque todas quan­ tas promessas ha de Deus, são nele sim. " (2 Co 1, 18-20).

Ora, a despeito de a teologia de São Paulo ser total­ mente diversa da do estoicismo, há nesses textos citados de um e de outro autor, algo idêntico: a certeza das coisas fu­ turas que predizem depender exclusivamente da promessa de Deus, o qual é fiel. O locus classicus da teologia paulina nesse respeito está em Rm 4, 18: "Como está escrito: Por pai de muitas nações te constitui" (a Abraão) perante aquele no qual creu, a saber, Deus, o qual vivifica os mortos, e cha­ ma as coisas que não são como se já fossem. O qual (Abraão), em esperança, creu contra a esperança, que seria feito pai de muitas nações, conforme o que lhe fora dito [... ] e não du­ vidou da promessa de Deus. " (Rm 4, 17-20). A clareza do texto dispensa qualquer comentário.

O segundo dos aspectos acima mencionados é de natu­ reza lingüística, e o fato de ambos os autores terem usado o mesmo idioma facilita o estudo.

O substantivo 7ríanç (gen. 7ríaT€(, ) que aparece no texto citado de Sextus Empiricus é o mesmo que se encontra também no Novo Testamento, em 24 dos seus 27 livros. Treze são as epístolas de Paulo, e em todas o termo ocorre, nada menos que 138 vezes das 234 em que é empregado. quatro vezes o termo se refere a Deus no sentido de fide­ lidade: fidelidade de Deus. Todas provêm da pena do após­ tolo Paulo, em dois versículos da epístola aos Romanos (1, 17 e 3,3).

O adjetivo 7'WTÓ, (fiel) aparece em 19 livros do Novo Tes­ tamento (dos quais 10 são epístolas de Paulo, 64 vezes ao todo; dessas, 33 por São Paulo. Apenas 8 vezes se usa o termo em referência a Deus e 5 em referência a Jesus Cristo, sendo Paulo responsável por 4 no primeiro caso (em l.a e 2.a Coríntios e l.a Tessalonicenses) e 2 no segundo (em 2.a Tes­ salonicenses e 2.a Timóteo).

Examinemos os textos. Em 1 Co 1, 8. 9, Paulo afinna que os crentes a quem a carta se dirige serão confinnados por Jesus Cristo para serem irrepreensíveis no dia do Senhor. Em resposta à possível pergunta: Que garantia teremos de que isso acontecerá? Paulo diz apenas: "Deus é fiel", IItUTó, Ó 0eó,.

Em 1 Co 10, 13, tendo advertido os leitores de que nin­ guém deve imaginar-se isento de cair em tentação, con­ fiando nas suas próprias forças, acrescenta que Deus não deixará que alguém seja tentado acima de suas forças, e o ajudará para que possa suportar a tentação. E lembra-lhes, como garantia: Deus é fiel.

Em 2 Co 1, 18, Paulo empenha a sua palavra de que era verdadeira a sua pregação, e o seu procedimento para com os coríntios era sincero e coerente, no sentido de que entre o teor da mensagem e o comportamento do mensageiro não havia contradição, pois não havia falsidade nem ambigüi­ dade naquele de quem a sua pregação falava, a saber, Jesus C risto, o Filho de Deus, porque Deus é fiel e cumpre todas as suas promessas. É interessante notar que tanto Paulo como Empiricus empregam a mesma palavra para promessa:

braYYfÀía.

Plummer, no seu excelente comentário à 2.a epístola de Paulo aos Coríntios, classifica este argumento de "ethical congruity", e cita a paráfrase de Crisóstomo: "Não duvideis do que procede de Deus, porque o que é de Deus, não pode ser falso.[24] Creio que, por um lapso, Plummer, que nou­ tros casos assinala paralelismo da fonna e da linguagem de Paulo com a estóica, não o faz aqui.

 

* * *

 

As fonnas canônicas do silogismo estóico são:

1)            Se o primeiro, o segundo; ora, o primeiro, portanto, o segundo.

(Modus ponendo ponens).

2)             Se o primeiro, o segundo; ora, não o segundo; logo, não o primeiro.

(Modus tollendo tollens).

3)            Não simultaneamente o primeiro e o segundo; ora, o primeiro portanto, não o segundo.

(Modus ponendo tollens).

4)            Ou o primeiro, ou o segundo; ora, o primeiro; por­ tanto, não o segundo.

(Modus ponendo tollens).

5) Ou o primeiro, ou o segundo; ora, não o segundo, portanto, o primeiro.

(Modus tollendo ponens).

A luz do que até agora ficou dito, passemos sem de­ mora ao exame de alguns textos do apóstolo. Não entrare­ mos, evidentemente em questões exegéticas e hermenêuticas mais extensas e profundas, exceto na medida · em que for isso necessário à compreensão da própria argumentação de São Paulo. Os textos foram escolhidos com o propósito de ilustrar o emprego de cada uma das formas canônicas da ló­ gica estóica.[25]

 

1)            GI 2,17: Se nós, que procuramos ser justificados em Cristo, nós mesmos somos também achados pecadores, é porventura Cristo ministro do pecado? De maneira nenhuma !

 

O texto traduz o enfático "NÃO !" apostólico, reagindo contra a inferência que desvirtuava totalmente o verdadeiro sentido da sua mensagem, mas que os seus críticos preten­ diam, sofismando, apresentar como legítima. A mensagem, entretanto, era na verdade muito simples e muito clara. Está resumida no versículo anterior, no qual o apóstolo ex­ põe seu pensamento assim: "Sabendo, que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, terrws também crido em Jesus Cristo, para sermos justifica­ dos pela fé de Cristo, e não pelas obras da lei; porquanto pelas ob ras da lei nenhuma carne será justificada. O ho­ mem é, segundo São Paulo, justificado pela graça de Deus em Jesus Cristo, mediante a fé, e não pelas obras da lei. Se Deus, pois, nos oferece, em Cristo, a justificação, carecerá de sentido qualquer esforço nosso de pretender alcançar a misericórdia de Deus através de nossas boas obras (subenten­ dida a prática da lei). Pior do que isso: se o fizéssemos, seríamos "separados de Cristo", diz São Paulo (GI 5,4). Existe total antagonismo entre, de um lado, a graça e a fé, e, de outro, as obras da lei: C risto teria morrido debalde (GI, 2,21).

Ora, é absurdo concluir da doutrina de Paulo que C risto se torna "ministro do pecado", pois aqueles que ele justifica continuam pecadores por serem dispensados de cumprir a lei para a sua justificação. Aliás, a própria mensagem apostó­ lica, central desta epístola, como também da que foi endere­ çada aos Romanos, implica no fato de que os que vivem em C risto, na medida em que dele mais se aproximam, se reco­ nhecem pecadores, e por conseguinte, sentem-se, em cons­ ciência e com humildade, necessitados, sempre, da graça e da misericórdia de Deus.

O paralogismo, que o apóstolo repele, pode ser formu­ lado da seguinte maneira: [se nós ( pecadores) procuramos ser justificados em Cristo (e o somos porque ele deu a sua vida por nós e ressuscitou para nossa santificação) e entre­ tanto somos achados pecadores (porque não cumprimos a lei) ] = p, segue-se que [Cristo é ministro do pecado] = q. Temos, pois, o seguinte:

[ ( (p. q). p) q]

O apóstolo respondeu a esse falso raciocmlO com estas palavras: De maneira nenhuma ! -- [ ( (p. q). p) q]

O êrro do raciocínio não reside na forma, mas na maté­ ria do silogismo. O preconceito judaizante que animava Pedro e seus companheiros cegava-os para a compreensão plena do significado do acontecimento, no tempo histórico do rei Herodes e de Pôncio Pilatos, da encarnação do Verbo, que é um ato da graça de Deus, da vida, morte e ressurrei­ ção de Jesus Cristo, pois continuava exigindo dos conversos a obediência à lei.

2)             Essa teologia é condenada por Paulo, pois que le­ vava à "aniqüilação da graça de Deus": "Não aniqüilo a graça de Deus; porque, se a justiça provém da lei, segue-se que Cristo morreu debalde. "

[A justiça provém da lei] = p e [Cristo morreu por nós] = q são duas proposições incompatíveis. Ora, se se aceita como verdadeira a primeira proposição, nega-se a se­ gunda. Temos, pois, aqui um exemplo da terceira forma canônica: Não simultaneamente o primeiro e o segundo; ora, o primeiro, portanto não o segundo. Modus ponendo tollens: [ ('"'-' (p. q). p) --q]

3)                                   1 Co 15, 12. 13: Ora, se se prega que Cristo resuscitou dos mortos, como dizem alguns dentre vós que não ressurreição de mortos? E, se não há ressurreição de mor­ tos, também Cristo não ressuscitou.

Temos, no versículo 13, outro exemplo da primeira for­ ma canônica: [Não há ressurreição] = p. [Cristo não res­ suscitou] = q

[ « p::J q). p)::J q]

Há, portanto, incoerência em se pregar que a nossa es­ perança se baseia na ressurreição de Cristo, e que Cristo de fato ressuscitou (como Paulo irá demonstrar no capítulo 15 desta mesma carta), e, ao mesmo tempo, afirmar que não há ressurreição de mortos (como está no versículo 12). Te­ mos, pois, aqui um bom exemplo da segunda forma: [Cristo ressuscitou] = p: [os mortos ressuscitam] = q.

Como não percebem os coríntios, a quem o apóstolo alude no texto, que existe absoluta incompatibilidade entre a afir­ mação de p e a negação de q? [ ( (p::J q).,-.q)::J '->p]: Se o primeiro, então o segundo; ora, não o segundo; portanto, não o primeiro. Modus tollendo tollens.

4)              GI 3,18. 19: Se a herança provém da lei, já não provém da promessa: mas Deus, pela promessa, a deu gra­ tuitamente a Abraão. Logo, para que é a lei? Foi ordenada por causa das transgressões, até que viesse a posteridade a quem a promessa tinha sido feita.

 

Muitos objetavam ao conteúdo da pregação de Paulo o seguinte: Se a justificação vem exclusivamente da graça de Deus, sem as obras da lei, para que a lei? Paulo responde (GI 3,24) que ela nos serviu de paidagogos (palavra que, no original, significa o servo, ou escravo, que mantinha na dis­ ciplina a criança entregue aos seus cuidados, e a levava ao mestre). Assim, a lei teve a mesma função: disciplinava os

que criam na promessa feita a Abraão e guiava-os ao autor da promessa.

Ora, a promessa é feita a Abraão primeiramente, e de­ pois a todos os que crêem, e por isso é o velho patriarca chamado o "pai dos crentes" (Rm 4, 11; Jo 8,39). Estes, os que crêem, não são os que são escravos da lei, mas os que, crendo, vivem na liberdade dos filhos de Deus (Gl 3, 26-4,9). Pela promessa, Deus fez a Abraão seu herdeiro, gratuita­ mente. Portanto, a na promessa, e não a prática da lei, é o instrumento mediante o qual ele, como todos os que crêem, recebem a herança prometida. Logo, [a herança pro­ vém da promessa] = p e [a herança provém da lei] = q se excluem mutuamente. Por conseguinte, [ « pWq. p):: '-q]: Modus ponendo tollens.

5)             Rm 6,15-16: Não sabeis vós que a quem vos apre­ sentardes por servos para lhe obedecer, sois escravos daquele a quem obedeceis, ou do pecado para a morte ou da obe­ bediência para a justiça?

Por meio desta linguagem metafórica, Paulo responde aos detratores da sua doutrina. Estes sofismavam defen­ dendo o próprio "interesse" de se aproveitarem da liberali­ dade da doutrina da graça de Deus que acabaria por esque­ cer tudo e tudo perdoar, a fim de, tranqüilamente, retorna­ rem à ignomínia da sua ominosa existência anterior ao seu conhecimento de Cristo, e coonestarem a sua vida de impie­ dade. Sofismavam também para impugnar, argumentando ab absurdum, a doutrina apostólica de que, uma vez abun­ dando o dom da graça de Deus sobre todos quantos por ela são alcançados, todos serão justificados perante Ele (Rm 5, 1-21). Paulo resume tal raciocínio nestes termos: "Que concluiremos? Permaneceremos no pecado para que se mul­ tiplique a graça?" (Rm 6, 1), e também nestas palavras: "Pecaremos porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça?" (Rm 6,15).

B.        . H. Dodd, no seu admirável livro sobre esta epístola, escreveu este feliz comentário: "Paulo disse o suficiente para nos convencer de que não está inventando uma teoria ou dando asa a que se fantasie em torno do que ele ensina sobre a salvação por intermédio de Cristo. Ele se mantém fiel à experiência e aos fatos. Tranqüilamente, pressupõe que seus leitores entendam o que ele quer dizer com a ex­ pressão: "viver e mover-se alguém numa nova esfera de vida"[26].

Viver na nova esfera de vida significa participar do corpo de Cristo, não apenas como membros da comunidade, que é a Igreja, mas individualmente, na participação pes­ soal da vida, morte e ressurreição do Senhor, de que o batis­ mo é sinal. Portanto, em ambos os casos - tanto por sermos membros do corpo de Cristo (por que morremos e ressuscitamos com ele), como por estarmos integrados, por essa mes­ ma e única razão, na comunidade dos crentes - é inconcebível que possamos pretender aproveitar-nos da infinita misericórdia de Deus revelada em Cristo para permanecer­ mos no pecado.Podemos formalizar a alternativa, suben­ tendida no texto, desta maneira: Viveremos para o pecado, por uma das seguintes razões: ou porque estamos sob o im­ pério da lei ou porque vivemos debaixo da jurisdição da graça. Ora, fica, certamente, eliminada a segunda. Logo, permanece a primeira. A enfática negativa de Paulo - tJ.� yÚOLTO, leva-nos a esta conclusão. Temos, pois, no versículo 15, outro exemplo da 5.a forma canônica: [ ( (pWq). r-q) =:lp]. Modus tollendo ponens.

6)        Paulo destrói, assim, o raciocínio faccioso e oportu­ nista dos que torciam as suas palavras. Agora, no verso 16, ele reafirma, mediante o uso da adversativa �'TOL . -l/, o que no v. anterior dissera. Formalizando o silogismo, te­ mos: "Sois escravos daquele a quem obedeceis: ou do pecado para a morte ou da obediência para a justiça". O silogismo enquadra-se na 4.a forma canônica: Vós não podeis ao mesmo tempo servir ao pecado, que leva para a morte, e à justiça que conduz à vida: ou a um ou ao outro desses senhores tereis de servir. Ora, se escolhestes o pri­ meiro (com a agravante do sofisma ! dizemos nós) sois dele escravos, e, por conseguinte, não possuis a liberdade que experimentam os servos da justiça nem compreendeis o que significa viver na nova esfera de vida. Assim temos: [ ( (pWq). p) =:l�q]. Modus ponendo tollens.

7)              1 Co 4, 21: Que quereis? Irei ter convosco com vara ou com amor e espírito de mansidão?

Trata-se, neste caso, de argumentação não sobre ques­ tões teológicas, mas pastorais. O apóstolo, nesta carta, cen­ sura os coríntios por se terem afastado dos padrões de vida cristã: dissensões constantes, contendas por causa da lide­ rança da comunidade, retorno de alguns aos antigos costu­ mes pagãos, à idolatria, à avareza, à maledicência, à prosti­ tuição. A situação era tão grave que, numa carta anterior (da qual, infelizmente, não nos resta senão, talvez, um pe­ queno trecho hoje incluido na atual 2.a carta ( 2 Co 6, 14-7, 1), Paulo se dirigira à Igreja em termos enérgicos e duros, do que muitos se queixaram. Pelo que o apóstolo ficou sa­ bendo, temiam em Corinto a sua anunciada visita... Escre­ ve-lhes então: Que esperam de mim? Que lhes os parabéns? Que os elogie? Ou que ao menos fique em silêncio, fingindo que nada sei? Que apareça aí, numa visita social e cordial, como um pastor bonzinho, "em amor e espírito de mansidão"? É evidente que não é isso que Paulo entende por autêntico ministério pastoral: o verdadeiro pastor usa também a vara, quando necessário. Eles que contassem, portanto, com a justa reprimenda.

A argumentação de São Paulo culmina com esta após­ trofe em forma interrogativa, tão de seu vezo: (Wl.fTf; (Que quereis? ) O deixa a resposta a quem a pergunta se dirige, mas o contexto mostra que só uma podia ela ser: 'fV páf38w (oom vara! ).

Por conseguinte, temos, neste caso, outro exemplo da quinta forma canônica: [ ( (pWq). --q):=J p].

 

* * *

A hase teológica do raciocínio dos estóicos e de São Paulo: semelhanças e diferenças

 

Na sua História da Filosofia, Émile B réhier,. diz que as raízes do pensamento estóico eram semíticas. Com efeito, a idéia de um Deus todo poderoso que governa o destino dos homens e das coisas está longe de ser helênica. O deus das orgias místicas de Dionísio, o deus que Aristóteles concebia imóvel e distante dos seres humanos, e o deus idéia pura de beleza e perfeição racional absoluta, mas sem bondade mo­ ral, de que Platão fala nos seus diálogos, diferem todos do deus dos estóicos. Zenão - escreve Bréhier - é antes de tudo o profeta do Logos, e a filosofia é para ele e seus segui­ dores, a ciência das coisas divinas e humanas, isto é, de tudo o que é racional, vale dizer, da natureza. A filosofia dos es­ tóicos não pretendia eliminar o dado sensível em favor da Razão, mas, ao contrário, procurava levar a Razão a "tomar corpo nele". E ajunta Bréhier, aliás um dos mais claros expositores da filosofia do Pórtico: "Onde Platão acumula diferenças para fazer-nos sair da caverna, o estóico não en­ xerga senão identidades. Enquanto, na Bíblia, a história humana é, em si mesma, um drama divino, os mitos e as lendas dos gregos permanecem à margem da história dos homens. Assim, também no estoicismo, é precisamente nas coisas sensíveis que a razão adquire a plenitude da sua rea­ lidade, ao passo que, no platonismo, o inteligível fica à mar­ gem do sensível."

Essa penetrante análise das raízes religiosas do pensa­ mento estóico, abre-nos o caminho para a compreensão do fundamento da sua lógica, assim como a dialética de Platão e a lógica de Aristóteles tinham seu fundamento nas suas respectivas concepções metafísicas. Como escreve o mesmo Bréhier no livro que tenho citado freqüentemente sobre a teoria dos incorpóreos, o "exprimível", o ÀfKTOl', que está na base de toda formulação dialética estóica, "é o atributo ou o acontecimento, seja com o sujeito, seja sem o sujeito."[27] "O exprimível não é qualquer espécie de representação racio­ nal, mas unicamente a do fato e do acontecimento. Como tal, ele forma a matéria de toda a lógica"[28]

Neste ponto, em que sublinhamos a grande semelhança entre as bases sobre que se construiam os raciocínios lógicos tanto dos estóicos como do apóstolo Paulo, torna-se neces­ sário assinalar uma grande diferença. Os estóicos[29] falavam, é bem verdade, da ação de Deus no mundo, mas a imanência na qual se processava aquela atividade divina ne­ nhum caráter redentor possuia. Portanto, nenhuma rela­ ção nem semelhança existia entre essa divina atividade e os atos da graça de Deus, de que está cheio o Novo Testamento.

Num belíssimo trabalho sobre a paternidade de Deus[30], insiste Paul Ricoeur em afirmar que o filósofo, quando reflete sobre a religião, deve confrontar-se antes com o exe­ geta do que com o teólogo". "... a exegese - diz ele - exorta-nos a não separar as figuras de Deus das formas do discurso nas quais essas figuras aparecem. Entendo por forma de discurso - continua - a narrativa ou a saga, o mito, a profecia, o hino e o salmo, o texto sapiencial, etc. " O professor Ricoeur investiga um problema diferente daquele de que aqui se trata, mas o princípio que ele estabelece é absolutamente válido para a nossa pesquisa. Ele termina o parágrafo dizendo: "Não indagamos o que é que, por abs­ tração teológica, a Bíblia diz sobre Deus, mas sim como é que Deus surge nos diversos discursos que estruturam a Bíblia".

Apliquemos este método à nossa leitura dos textos pau­ linos. Tomemos, por exemplo, as palavras que Paulo proferiu na sinagoga de Antioquia da Pisídia (At 13,16-41). Convidado a dizer ao povo ali reunido "alguma palavra de consolação", o apóstolo pronunciou uma exortação que de fato, outra coisa não foi senão a narrativa de episódios da história do povo de Israel interpretados conforme, aliás, as melhores tradições proféticas do Velho Testamento - como atos de Deus. Descontando-se os trechos contextuais ou de citações paralelas do Velho Testamento, encontramos nos versículos 17-23 e 30-32 (dez versículos apenas) nada menos que 14 diferentes verbos de ação relacionando acon­ tecimentos da história com atos de Deus. Deus ('€KÀ€yop.aL) escolheu os pais, ( ó",6w ) exaltou o povo, tirando-o ('€�áyw ) do Egito; agüentou a conduta dele ( Tp07rOq>oP€w) no deserto; destruiu (Ka(JaLp€w) sete nações e deu-lhe (KaraKÀ"IpOOOT€W ) por herança a terra delas; organizou o povo como nação, começando com o governo dos juízes que Deus lhe deu (OOKÉú», e mais tarde instituiu a monarquia dando-lhe (idem) Saul por rei, que logo afastou (p.dJíaT"IP.L), substi­

tuindo-o por Davi, que ele levantou ('ry€Ípw ), de cuja des­

cendência levantou (idem) a Jesus para Salvador, ao qual, tendo-o os homens crucificado e sepultado, Deus ressuscitou (ibid) dos mortos. Paulo termina fazendo uma síntese do seu argumento, começando com estas palavras: "E nós vos anunciamos que a promessa que foi feita aos pais, Deus a cumpriu ( €K7r€7rÀ�pú>P.€v) a nós, seus filhos, ressuci­ tando (àV(laTáaLç ) a Jesus.

Duas coisas transparecem dessa leitura. De um lado, nota-se que Paulo atribui à ação direta de Deus os aconte­ cimentos da história de Israel; por outro, percebe-se que, na estrutura do seu discurso, ele seguiu simplesmente a tra­ dição da Lei e dos Profetas, cujos textos cita para apoiar a sua interpretação[31]

o Prof. G. Ernest Wright, num dos seus melhores li­ vros - God Who Acts - cujo subtítulo define a obra - Biblical Theology as �ecital - escreve, a propósito da mes­ ma passagem acima citada, que os eventos a que o apóstolo São Paulo se refere correspondem àqueles que os israelitas compreendiam como atos de Deus[32]

Para G. von Rad, também, a revelação de Deus dá-se através de palavras e de atos divinos que se fixam historicamente como acontecimentos de natureza particular."[33] Do mesmo modo, Edmond Jacob[34] afirma que, na revelação divina dos livros canônicos dos hebreus, inutilmente se buscarão dogmas ou proposições metafísicas; em seu lugar, encontrar-se-ão eventos carregados de história e de sentido.[35]

 

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Teologia do Velho Testamento. O substrato judáico.

 

a)       O cerimonial.

Os dias e festas sagrados são um fenômeno universal em todas as religiões, desde as mais "primitivas" até às de mais elaborada estrutura social e mais racionalizado siste­ ma doutrinário. A criteriosa análise fenomenológica dessa importante esfera da história das religiões, realizada pelos mais notáveis pesquisadores, desde Frazer e Max Müller até van der Leeuw e Mircea Eliade, leva-nos à conclusão de que as festividades de que a Bíblia dá notícia, tanto do Velho

-como do Novo Testamento, têm um conteúdo e significado

sui generis.

As periódicas festividades religiosas em Israel obedeciam a um ritual de que parece ser modelo a estrutura do livro de Deuteronômio, cujos primeiros onze capítulos são uma parênese e uma exposição dos acontecimentos do monte Si­ nai.[36] Por meio desses atos litúrgicos, a revelação sinaítica conservava toda a sua atualidade ao longo do tempo, repe­ tindo-se em cada sucessiva geração, e tornando-se contem­ porânea de todas elas.[37] O acontecimento transformava-se "num mito de um drama litúrgico no qual os grandes fatos da salvação se tornavam "acontecimentos" que o povo vivia como história contemporânea"[38].

Apesar da tentativa de "exegese histórica" dos mitos he­ lênicos feitas por alguns intérpretes de Homero, sobretudo por Palaiphatos, com apoio nos estudos iniciados por seu mestre Aristóteles, nenhuma semelhança podemos observar entre a natureza das festas olímpicas e outras solenidades dos diversos cultos de mistérios dos povos helênicos[39] e as características das divisões do tempo sagrado dos judeus. O mesmo se pode dizer em relação à vida religiosa do povo romano comparada com o judaismo bíblico. São, no meu modo de sentir, convincentes os argumentos de George Du­ mézil em defesa da tese de que, ao se instalarem no Lácio, os homens que criaram Roma traziam consigo 'uma herança religiosa considerável" que entretanto não se pode explicar por sua história. Mas - diz Dumézil - "a partir daí, tudo é história".[40] Contudo, nada há, nessa relação entre a re­ ligião e a história desse povo extraordinário que possa com­ parar-se com a religião e a história do povo hebreu, que se identificaram na mensagem dos profetas e dos apóstolos. Como judiciosamente observa H. H. Rowley, da Universi­ dade de Manchester, mesmo a própria Lei que, no canon, ocupa lugar distinto do dos livros históricos, não era fruto da especulação dos seus sábios e legisladores, mas resultado da experiência histórica do próprio povo. Na realidade, nota o Dr. Rowley, o caráter histórico está presente nas três divisões da Bíblia hebráica[41]

Em Israel, mesmo quando, no nome e no ritual das fes­ tas, se mantinham as marcas de suas raízes semíticas do período arcáico, ligadas a influências dos povos vizinhos, de sentido agrícola e pastoril, o seu mais profundo significado era, entretanto, a recordação dos atos de Deus na sua histó­ ria. Igualmente, o dia sagrado por excelência - o shabbath

- deve ser guardado, segundo o Deuteronômio, porque o

povo precisava lembrar-se de que tinha sido escravo no Egito e Deus o tinha tirado de lá "com mão forte e braço esten­ dido" (Dt 5,15).

A Páscoa (14- 15 de Nizan) comemorava a libertação do povo da opressão de Faraó (Ex 12). A Festa do Pentecostes ou das Primícias (Nm 28,26) foi associada pelo judaismo posterior com a dádiva de Lei de Deus. A Festa dos Taber­ náculos lembrava os 40 anos de existência nomádica pelo deserto, a caminho de Canaã. William R. Irwin, da Univer­ sidade de Chicago, insiste em que "the Hebrew cultic drama portrayed not alone the cosmic triumph, but also the 'great works of the Lord' in Egypt and in the wilderness and in Canaan", e lembra, a propósito, os "lenghty historical sur­ veys" dos Salmos 78, 105, 106, etc.[42]

As outras festas menores comemoravam igualmente fa­ tos da história sagrada do povo judeu. Assim a Hannukkah lembra a rededicação do templo por Judas Macabeu. O re­ gistro relativo à celebração do ano do jubileu, que se dedica ao repouso sabático da terra após "sete semanas de anos" (Lv 25,8), termina com estas palavras: "... porque os filhos de Israel são meus servos pois eu os tirei da terra do Egito" (Lv 25,55). E asim por diante. O mesmo se verifica no tocante ao Decálogo, cujo prefácio, incluído no 1.0 manda­ mento, reza: "Eu sou o Senhor teu Deus que te tirei da terra do Egito: Não terás outros deuses diante de mim." (Ex 20,2; Dt 5,6).[43] 

 

b)        A língua hebráica

 

Em razão das suas peculiaridades, a língua dos profetas se prestava, como nenhuma outra, à comunicação da sua mensagem. No hebráico, o verbo é mais importante do que o substantivo, e, por vezes, este mesmo tem de ser traduzido por uma forma verbal. A ssim, por exemplo, ocorre com DBR (dabar) palavra, que tem um duplo sentido básico. Pode referir-se ao significado profundo da palavra, à sua rea­ lidade anterior ou pode referir-se ao evento dinâmico no qual aquele sentido interior se torna manifesto. Com muita inte­ ligência, receberam e traduziram esse termo os que se encar­ regaram da Septuaginta, e o mesmo se pode dizer no caso do Novo Testamento, nas citações das Escrituras, pois nesses dois monumentos da literatura religiosa, dabar (no singu­ lar) se traduz por logos (palavra), mas, no plural (debarim) por egéneto (aconteceu), aoristo de gínomai. Assim o que está no hebráico literalmente: "A palavra do Senhor veio (a mim) " se traduz em grego: Ó,\6yo,> TOU Kup[ou iyf.V(TO

7rpÓÇ !'-€ O.., isto é, a palavra do Senhor aconteceu.[44] O Dr. Torrance lembra que palavra, no segundo sentido citado, equivale a "história", como no latim res gestae[45]

O grego do Novo Testamento, a KOtv�. é uma língua muito diferente da dos diálogos de Platão e prestava-se muito melhor às intenções dos apóstolos e evangelistas. Mas estes não tiveram dúvida em aumentar ainda mais essa di­ ferença, modificando o sentido das palavras, empregando-as como veículo de conteúdo hebráico. Isto se torna particular­ mente significativo no emprego do vocábulo logos, principal­ mente em São João. No começo do seu esplêndido comen­ tário ao Quarto Evangelho, C. H. Dodd lembra aqueles versos do Fausto de Goethe onde o herói da tragédia luta com o texto grego do Evangelho de São João: No princípio era o Verbo, acabando por escolher o termo ação. "No prin­ cípio era a Ação". Não sei se Goethe teria em mente o rela­ cionamento deste começo do Evangelho com o começo da Bíblia hebráica onde a Palavra de Deus cria o universo: "E disse Deus: Haja luz... ", etc. Ou se pensou numa exe­ gese do texto inicial de João combinado com o verso 14: "E o Verbo se fez carne ( lTap� iY€I/€TO). "A Palavra acon­ teceu... ".

Mas foi, segundo o evangelista, o que realmente houve. A Palavra de Deus encarnou e irrompeu na história huma­ na. No Credo, a frase sob o poder de Pôncio Pilatos identi­ fica o momento preciso.

 

c)       Dialética e teologia

 

No seu livro sobre Paulo, já citado neste trabalho, diz Martin Dibelius que o apóstolo nenhum conflito via na coexistência do profético testemunho direto com a dialética teológica. Tratando da questão do batismo e da eucaristia nos escritos do apóstolo dos gentios, diz Dibelius que Paulo, partindo do Deus da história, em quem criam os judeus, relacionou a vida religiosa do cristão com o ato histórico de Deus operando a salvação em Cristo, e, assim, impediu que a piedade degenerasse em misticismo ou se reduzisse a me­ ros atos formais de culto litúrgico.[46]

Dom Miguel de Unamuno, que tantas vezes na sua ex­ tensa obra aludiu ao apóstolo e o citou nas suas cartas, em­ bora nunca tivesse feito qualquer comparação entre a estru­ tura formal da argumentação de Paulo e a dos estóicos, todavia, não deixou de observar, com muita argúcia, em La Agonia deZ Cristianismo, que a dialética "terrível" e "agô­ nica" do apóstolo das gentes não se compadecia com qual­ quer lógica baseada em conceitos[47]. Doutra feita, indagou se era a extensão que fazia a diferença entre um artigo e um ensaio, ou entre este e um sistema. "Que diferença

- escreve D. Miguel - entre uma epístola de São Paulo

apóstolo, que é um artigo de periódico (grifo meu), e a Suma de Santo Tomás, que é um sistema?"[48] Um artigo de periódico ! No sentido em que Unamuno o toma, o artigo de jornal reflete o caráter temporal, histórico, da temática da existência, do diário, do journaZ. A Suma se constrói toda sobre conceitos e definições.

Ao finalizar o seu interessante e bem feito livro sobre o gemo grego na religião, escrevem Gernet e Boulanger qúe o Cristianismo se aproveitou de toda a evolução reli­ giosa do helenismo sem contudo vir a ser o resultado dessa evolução. Graças ao elevado valor moral e espiritual da re­ ligião cristã, ao ardor com que seus apóstolos a difundiram, e também graças à invencível intransigência destes, o Cris­ tianismo se converteu rapidamente na religião do mundo greco-romano.[49]

Eu creio, porém, que, além dos fatores enumerados por esses autores, seria preciso acrescentar o que MareeI Simon com tanta clareza e exatidão escreveu sobre o fato da res­ surreição de Cristo, sobre cuja realidade não compete ao historiador tratar, mas que "Tudo o que o historiador pode e deve consignar e afirmar é que qualquer coisa se passou sem a qual todo o desenvolvimento ulterior do Cristianismo teria sido impossível"[50]. E, além disso, não se poderia deixar de mencionar a forma utilizada pelo maior dos mis­ sionários do primeiro século na apresentação da mensagem. É verdade que o A. afirma que São Paulo, "o maior dos dou tores do Cristianismo primitivo", definiu a religião de C risto para o mundo helênico (p. 353), mas seria necessário escla­ recer de que definição se trata. Ela certamente não se pode confundir com o ( Áóyo, TOV 't{ fam) de Aristóteles ou com alguma espécie de oratio naturam rei aut termini signi­ ticationem exponens que iria encher uma boa parte do tem­ po dos doutores da escolástica[51]

Kant, no Le Conflit des Facultées, sublinha esse mesmo aspecto da argumentação do apóstolo. Ao referir-se ao capí­ tulo 15 da 1.a carta aos Coríntios, em que Paulo apresenta uma série de provas da ressurreição de Jesus Cristo, Kant diz que, em última análise, o que realmente levou o apóstolo a aceitar o fato da ressurreição de Cristo, foi a fé. Sem ela, dificilmente teria ele aceitado a realidade do acontecimento. No entanto, diz o filósofo da Crítica da Razão Pura que a ar­ gumentação de Paulo se funda no fato "histórico": "... lui a fait accepter la croyance historique à une chose publique­ ment connue qu'il admit de bonne foi comme vrai."[52]

A própria palavra pela qual é conhecida no Novo Tes­ tamento a mensagem de Cristo - Evangelho (em grego, boas novas) - tem um tom jornalístico, de noticiário. Mas um noticiário que faz presente o passado e antecipa o futuro. A escatologia é um dos capítulos mais importantes da teo­ logia do Novo Testamento. O presente era o caminho do cristão em trânsito - semper viator.

Paulo não era um filósofo que reunia discípulos em torno de si para a discussão de questões relativas à teoria do conhecimento, mas um evangelista, um noticiarista da parte de Deus, que anunciava a vinda do Reino de Deus, o qual nos leva a "condenser le passé et le futur dans un temps nouveaux, ou il nous faut simultanément être attentif au Jésus de Nazareth et au Seigneur glorieux", como diz Roger Mehl em La condition du Philosophe Chrétien[53]

"A fé está ligada a uma duração temporal - diz o mes­ mo autor - a qual tem sua tensão própria; ligada a uma história que não se pode esquecer (ibid.) Mas essa mensa­ gem veio a concentrar-se numa doutrina, isto é, num dogma, não no sentido moderno da palavra - um conjunto ou sis­ tema de verdades inertes - mas, como bem se expressou ainda o mesmo autor (p. 115), a expressão de uma ordem, de uma vontade, inseparável do próprio ato do querer. O dog­ ma é, antes de tudo, um decreto. É a vontade de Deus para nós, a exigência divina a respeito da pessoa, a exigência que o homem não pode reconhecer a não ser que se engage ao serviço da mesma exigência. (Ibid. p. 114).

A Revelação é, pois, esse dogma, esse decreto que não se pode compreender se o abstraimos do ato da Revelação, a qual não é um discurso sobre Deus, mas sim o próprio ato de Deus.

 

Conclusão:

 

Ao chegar ao fim deste estudo, permita-se-me uma refe­ rência pessoal. Jamais poderei esquecer a visita que, em companhia de Júlio Ferreira, Roberto Rios e Valdo Galland, fiz a Karl Barth, na tranqüilidade do seu escritório, em sua casa, em Basiléia, numa nevosa manhã de domingo, em Janeiro de 1952. Era a primeira visita, disse-nos ele, que recebia de latino-americanos. Cada um de nós levava enga­ tilhada uma série de perguntas sobre questões teológicas, naturalmente. Um dos meus desejos era ouvir a Barth falar, de viva voz, sobre a Bíblia e a revelação, tema por ele tantas vezes tratado na Dogmática e nos Comentários exegéticos. Voltou-se para a estante que estava atrás de si, repleta de clássicos gregos e latinos, padres da Igreja, filósofos e teó­ logos, poetas e romancistas de muitas nacionalidades. A Bíblia - disse-nos - entre livros como aqueles, simplesmen­ te, era como um deles, um livro humano. A Bíblia e a Re­ velação divina são duas coisas distintas. Elas coincidem s omente quando a Revelação se dá, como um acontecimento no espírito do leitor das Escrituras, enquanto a leitura se processa. Quando a mesma Palavra de Deus que caiu na alma do escritor bíblico ecôa, ela mesma, na alma daquele que o lê, e Deus fala aqui e agora ao coração do homem tão realmente c omo falou na antiguidade, então, dá-se o acon­ tecimento da Palavra de Deus.

Hoje, retomo os volumes da sua monumental Dogmática, o seu revolucionário comentário da Epístola de Paulo aos Romanos, a sua brilhante análise da história do pensa­ mento protestante - Kant, Rousseau, Leibniz, Hegel, etc. - e vou encontrando por toda parte aquela idéia caindo da sua pena. No comentário exegético, ou na simples leitura da Bíblia, vive com o texto até que este desaparece e ele se defronta com a própria palavra de Deus. É o segredo do seu método exegético. A Palavra de Deus é ato de Deus, é acontecimento, é criadora de história.[54] "Os profetas anun­ ciam e os apóstolos pregam a Cristo, não como cronistas, mas como testemunhas". Não falam somente de Cristo, mas em Cristo. Não porque tivessem conhecido a Cristo como se pode conhecer a Platão, mas porque "aprouve a Deus revelar seu Filho nee" (GI 1, 15,16)[55] O encontro com Cristo é um "acontecimento ético": é um encontro de Deus concreto com o homem concreto em Jesus Cristo. Tal entrevista não se no vazio, mas num quadro determinado pelo caráter inconfundível dos dois parceiros que se defrontam. Como conseqüência a própria ética não se acha em face de um dado geral impossível de exprimir no plano particular, mas pode e deve tornar-se ética especial.[56]

A reconciliação entre Deus e o homem é uma história. Quem pretender conhecê-la, deve conhecê-la como tal. Quem quiser referir-se a ela, deve contá-la como história. Quem quer que pretenda conceber a reconciliação como verdade supra-histórica ou a-histórica, jamais a compreenderá. Ela é certamente uma verdade, mas uma verdade que se passa num acontecimento histórico e na história se manifesta.[57] Os dois acontecimentos fundamentais interdependentes que transformaram a história humana foram a morte e a res­ surreição de Jesus Cristo[58] Na morte de Cristo, Deus reencontra o homem e o homem a Deus. Na ressurreição de Cristo, aquele duplo acontecimento é anunciado, e, pelo Es­ pírito Santo agindo em nós, torna-se um acontecimento pre­ sente incessantemente para nós[59].

A comunidade das testemunhas desses acontecimentos, isto é, a Igreja, tem também a sua história, é também acontecimento. Está de tal modo presente na história do mun­ do que, sem ela, esta nenhum sentido teria[60].

Interessante é o que diz o grande teólogo sobre o estoi­ cismo nos dias de São Paulo. Se se quiser - escreve ele,[61] compreender o keryssein neo-testamentário, é preciso, pelo menos, lembrar a presença do fenômeno estóico na mesma época. Os estóicos tinham também uma mensagem divina, mas transmitiam-na com palavras de sabedoria humana. É a eles que se refere Paulo aos Coríntios e aos Filipenses quando diz que não lhes pregou com palavras de sabedoria humana. A mensagem apostólica era na verdade uma nar­ rativa, uma história. Por mais singelos que fossem, e por mais chocantes para a mentalidade helenística, ele dizia que deles não se envergonhava, porque eram o poder de Deus (Rm 1,16). Jesus C risto, como pessoa, como entidade histórica, era "sabedoria e poder de Deus" (1 Co 1,24).

Num belo estudo sobre a dinâmica da tradução, Jules Laurence Moreau[62] dedica um capítulo à questão da ina­ dequabilidade dos diversos tipos de lógica existentes, desde a clássica aristotélica até o positivismo do círculo de Viena e o Tractatus Logico-Philosophicus, à análise das questões relativas à teologia bíblica, que se coloca essencialmente no nível da história, inadequabilidade essa aparentemente reco­ nhecida, quanto ao último caso, pelo próprio Wittgenstein, que admite que o seu sistema se presta às questões científi­ cas e não aos problemas da vida, que não teriam sido sequer tocados por ele (o seu sistema), mesmo quando todas as questões científicas tivessem sido resolvidas.[63]

Mostra Moreau que, no plano metalingüístico, o hebrái­ co revela um caráter de "event-counsciousness" que é funda­ mental para a lógica da história". E essa deve ser a que norteará os pesquisadores da história social e religiosa dos hebreus e dos cristãos dos tempos bíblicos.

Os leitores de Marc Bloch estarão lembrados de uma aguda observação sua de que "uma iluminação interior bas­ tará ao puro deista para crer em Deus. Mas não para crer no Deus dos cristãos". "Porque o Cristianismo" - escreve ele - "já o tenho dito mais de uma vez, é por essência uma religião histórica. Quero dizer com isso que é uma religião cujos dogmas primordiais repousam sobre acontecimentos. Lêde de novo o vosso Credo: Creio em Jesus Cristo... que foi crucificado sob Pôncio Pilatos... e ressurgiu dos mortos ao terceiro dia"[64]

Certo. Mas penso que o grande mestre dos Annales se equivocou ao escrever esta frase com que termina esse pará­ grafo acima citado: "Aí estão os fundamentos do começo da fé". Porque, a rigor, para o cristão, para Paulo, por exemplo, o começo estava nos acontecimentos narrados no Velho Testamento, sem os quais, na realidade, a vida, a mor­ te e a ressurreição de Jesus Cristo ficariam sem sentido. Porque o milagre espantoso da ressurreição de Jesus não foi em si mesmo o fundamento da fé daqueles que são cha­ mados "filhos de Abraão". Ela foi, por assim dizer, com a descida do Espírito Santo no Pentecostes, o último dos acon­ tecimentos da história da salvação que constituiram a base dos demais artigos do mesmo Credo: a Igreja, a comunhão dos santos, a remissão dos pecados, a ressurreição do corpo, a vida eterna. Blaise Pascal sintetizou isso nas palavras iniciais do pequeno manuscrito que os que prepararam o seu corpo para a sepultura encontraram preso à sua roupa, junto ao coração: "Deus de Abraão, Deus de Isaque, Deus de Jacó, não o dos filósofos e dos sábios. Deus de Jesus Cristo"[65]

"Não podemos deixar-nos seduzir, diz o Catecismo Ho­ landês, pelos santinhos e gravuras da 'História Sagrada' do séc. XIX, com as nuvens, os raios, os triângulos no céu ! É no labutar e no falar de homens que Deus nos deu a sua Revelação única"[66].

E assim, mediante o testemunho moderno, não apenas dos teólogos, mas dos exegetas, como quer Paul Ricoeur,

amparados no rigor da pesquisa científica aplicada à Bíblia, do Velho como do Novo Testamento, podemos não somente perceber qual a forma de estrutura lógica preferida pelo apóstolo Paulo na sua sólida argumentação, como também as razões profundas por que assim procedeu. A lógica de Aristóteles como a dos estóicos tinham a sua base metafísica. O Evangelho de Paulo baseava-se numa concepção teológico­ exegética da História vista à luz das narrativas dos histo­ rioógrafos do Velho Testamento e da hermenêutica dessas narrativas trabalhada pelos profetas hebreus.

 

Essa base, segundo entendo, justifica plenamente a opção feita pelo apóstolo dos gentios do formalismo lógico de Crísipo.

 

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[1] NOTA: Os números entre colchetes remetem à bibliografia, no final do artigo.

[85 ] p. 84; [ 47 1 pp. 1 9ss e 1 94ss; [90] vol.1 pp. 288ss; [89] pp. 685S;

[95] p. 1 75;      [41 ] p. 36;      [98 1 pp. 37s5; 261s; 343 5;       [ 74 ] pp. 63, 1315; Schmidt, K. L., Der Apastel Paulus und die antike Welt ( Vortrage der Bibliotek Warburg), 1 924-25, p. 6055., {1Jpud [74] loc. cit.; [24] vol. I.pp. 65s5; 7055; 1 0655; [22] passim; [4] p. 1 50; St George Stock, in Hastings Dict. ai the Bible, vol. IV 5/V Staics; Lighfoot, Philippians (Excurw5 50bre São Paulo e Sêneca); [ 79] pp. 93 -1 65, passim; [ 37] pp. 1 5-45. Ver ainda: Les A ctes de Paul et ses Lettres apacryphes. Introduction, textes, tra'C!uction et commentaire par Léon Vouaux, PaTis, 1913; Commentaire du Nauveau Testament: Pierre Bonnard (Philippiens). 1 950; Charles Masson ( Colossims), 1 949; Jean Héring (I Corinthiens ), 1 949; P. M. J. Lagrange, Epilre (lUZ R07nlltlS, Paris, 1 950.

Qualquer leitor atento de Sêneca e de Epiteto descobrirá interessantes coincidências entre o pensamento desses conhecidos filósofos estóicos e do apóstolo São Paulo. Tratar-se-á de mera coincidência ?                         A ética estóica parte do pressuposto epistemológico de que o conhecimento não consiste num simples saber teórico, que se pode reter na memória, mas antes num saber vital que impele a vontade e se encarna na vida, autên · tica e vi gorosamente.   A.                                          Schmekel               (Die hellenist-rom. Philosophie Gros"Se Denker) ) assim definiu o sábio estóico: "O sábio possui um saber perfeito e, com ele, a energia' para pô-lo em prática, como conseqüência." Apud [1 1 1 ] p. 332.    É interessante notar o procedimento literário ele São Paulo na maneira de coordenar o conhecimento ela eloutrina e a viela moral elo cristão na relação quase de causa e efeito. A segunela vem a ser, na realielade, ele acorelo com a teologia paulina, conseqüênci·a natural da primeira. Observa-se isso claramente na própria estrutura elas epís­ tolas, nas quais o apóstolo trata, em primeiro lugar, elos fundamentos el ou­ trinários e teológicos, para, em seguid<r, passar às questões ele ordem ética. Note- se, por exemplo, em Romonos a forma conjuntiva causal com que

o escritor faz a ligação das duas partes da carta ( Rm 12, I ). Ver tam­

bém, Ef 4, 1.

[2] [9] p. 83.

[3] Ver o Diálogo com o judeu Tryphon.

[4] cf [7-A] p. 92.

[5] Ibid. p. 1 25.

[6] Grabmann, Geschichte der scholastischen Methode, vol. I p. 1 94.        Apud [1 6] p. 47.

[7] De Inst. Cleric. L. III § 16.

[8] A dv. Math.VIII 31 0-31 4.

[9] [70] pp. 61 -62.

[10] [ 1 8] p. 69;     [ 15 1 pp. 1 9-22.

[11] [ 56-A] p. 17.

[12] [ 80] vol. I pp. 1 7855.

[13] [36] p. 4 1.

[14] Apud Lowrie, Kierkegaard, vol. I p. 1 67.

[15] [ 10 1 ] 11P. 3 1 2s5; 35055; 51 155; 5265S.

[16] [23 ] 11P. 1 30-131;          [24 1 I p. 67 e 22955.

[17] [ 1 1 0] vaI. I pp. 5055.

[18] [98] pp. 35-36.

[19] [79] pp. 21 655.

[20] [89] pp. 21 -22.

[21] [ 1 1O] vol. I pp. 53 e 7 1.

[22] S/r. 19.5

[23] cf. (8).

[24] p. 35.

[25] Sextus Empiricus, Hyp. Pyrr1h. II 1 57ss; Adv. Math. VIII 224 ss.: Diógenes Laércio, Vitae VII 79-81.

[26] [41 ] p. 95.

[27] [15 ] p. 22.

[28] [ 15 ] p. 23.

[29] cf. [44 ]

[30] [83 -A] p. 233.

[31] [39]; [42].

[32] [ 1 1 3) p. 76.

[33] [82) vol. II p. 357.

[34] [ 581 pp. 1 50ss.

[35] Veja-se, por exemplo, Dt 26,.5ss e o prefácio ao Decálogo ( Ex 20,1 -2; Dt 5, 1 -6).

[36] [85-A 1 p. 207ss.

[37] [82] vol. I p. 1 94.

[38] Weiser, A., Die Psalmen, Gottingen, 1 9SO,p. 18. Apud [8S-A] p. 200.

[39] Ver Buffiere. Felix, Les Mythes d'Homere et la Pensée Crecque, Pa­ ris, 1956, pp. 228 ss.'; G. van der Leeuw, Fenomenologw de la Reli­ gion, §§ 34, 52, 56, 64 e 85. Sobre a ausência de sentido ou de mensagem "históricos "nas festas religiosas dos povos he1enos, ver. P. Maxlme Schüll, Essai sur la formation de l,a pensée grecque, passim.

[40] La Religion Romaine Archa"ique, Paris, 1 %6, p. 141.

[41] [87-A).

[42] [57 1 pp. 1 745S.

[43] Ver sobre este tema, [76-A] vols. 111 e IV, passim; [73 1 PI>. 1 39- 1 43.

[44] Ver sobre essa questão [5 -A] bem como [1 1 ] que o primeiro citado critica.

[45] [I m-Al

[46] [37] p. 1 23.

[47] La Agon ia eLeI Cristianismo, O. C. XVI p. 519.

[48] En tomo a la lengua espaíiola, O.C. VI p. 67 1.

[49] [1 4] p. 3 54 (da ed. mexicana. FCE).

[50] Apud Jean Remy Palanque, Em/>ire Universel de Rmne, na Hisloire Un Í1l(' ysel1e (Pleiade), di reção de R. Grousset e E. G. Léonard, vol I p. 101 7.

[51] Encontro, num tratado de lógica norte-americano - Lionel Ruby, Logic

- An Introduction, Chicago, 1 960 - entre os exercícios em torno do problema das definições, um sobre a que o Paulo teria oferecido da fé, em Hb 1 1, I: "A fé é o firme fundamento das coisas qUe se esperam, e a prova das coi sas que soe não em". Acontece, porém, que, com cer­ teza, não foi São Paulo quem escreveu a epístola aos Hebreus...

Atribui-se a Orígenes a opinião de que só o Espírito Santo sabe quem era o autor daquele livro do Novo Testamento.

[52] Na tradução de ]. Gibelin. Vrin, 1 955, pp. 43 -44

[53] Roger Mehl, La Condition du Philosophe Chrétien.

[54] [ 6] voi. 1. p. 139.

[55] id o p. 1 44.

[56] id o vai. XV p. 26.

[57] id. XVII p. 1 64.

[58] ibid. p. 328.

[59] id o p. 1 65.

[60] id o vol. XIX p.

[61] id o vo1. XX p. 213

[62] [7 1 ] pp. 1 32- 139.

[63] [ 1 12] 6. 52.

[64] [8] p. 6. Sobre a questão da "historicidade" da ressurrelçao de Cristo, de que Paulo trata em I Co 1 5,1 -8, ver (49-A) loco cit.; Karl Barth, Credo, p. 125 ss; O. Cullmam. K. Ba'rth, et ali., C01nprendre Bultmann, Paris, 1970, passiln; sobre toda a questão do problema histórico ou mítico, ver R. M ehl, Trai t é de Socioloqie du Protestantisme, Neuchatel, pp. 76-97.

[65] Morris Bishop, Pascal, The Life of a Genius, New York, 1 936, pp. 1 72- 1 73. A conhecida edição dos Opuscules e dos Pensées, de Léon Brunschvicg, insere o texto nos Opúsculos sob o n.O 1 3 da 2.a parte ( pp. 1 42-1 43).

[66] Catecismo Holandês, p. 65.