CR íTICA IDEOLóGICA E DOSTOIÉVSKI
BORI S SCHNAIDERMAN
Ao se abordar este tema, surge logo uma pergunta insi diosa, uma verdadeira "pedra no caminho": a crítica ideoló gica, compreendida como a crítica da ideologia existente numa obra, não será antes problema da história das idéias e não dos estudos literários como tais? As idéias de uma obra não funcionarão simplesmente como "material"? O estudo da literatura não será o estudo da estruturação de todos os ele mentos, inclusive as idéias, e não o estudo destas propriamente, compreendidas como idéias explícitas ou implícitas? E se eu não dou primazia ao conteúdo numa obra literária, posso acaso iniciar o estudo desta, concentrando-me nos elementos conteudísticos?.
Ao mesmo tempo, não é verdade que toda obra é, em essência, ideológica? Mas o fato de geneticamente eu ter sempre um elemento de ideologia afeta por acaso a necessidade de estudar primeiramente todos os elementos intrínsecos de uma obra, na qualidade de "materiais"? Não será importante, mesmo hoje em dia, a afirmação feita em 1936 pelo crítico polonês Manfrede Kridl: "A assim chamada ideologia não tem existência independente numa obra de literatura; não existe nesta da mesma maneira que fora dela, na 'vida', na filosofia ou no jornalismo. Por conseguinte, ela deve ser examinada em sua configuração específica, digamos literária, isto é, em sua função literária"?[1]•
Estas perguntas nos levam, porém, a um campo muito vasto de discussão e, para restringí-Io, vamos colocar de iní cio as dúvidas entre parênteses. E levemos a discussão para o "grosso modo", para a aceitação inicial de conceitos discutí-
veis, como se fossem válidos, para tentar precisá-los depois. É um caminho que parece viável na abordagem de um tema específico, como o nosso.
* * *
Já se escreveu mais de uma vez que a crítica ideológica tem sido importante para ajudar realmente a desvendar o mundo de Dostoiévski, e isto. nos coloca diante de um para doxo: o escritor-ideólogo por excelência tem sido provavel mente o menos apreensível para a crítica munida sobretudo de instrumental ideológico. Existem estudos excelentes sobre a estruturação dos romances de Dostoiévski; a estilística trouxe a sua contribuição importante, mas justamente a crítica ideológica, e no país do próprio escritor, onde este tipo de crítica se tem exercido com a maior intensidade e persis tência, debate-se até hoje com o problema que a obra dos toievskiana apresenta sob este ponto de vista.
Será isto uma conseqüência do fracasso da crítica ideo lógica como tal? Ou precisamos investigar as condições espe cíficas deste fracasso em relação a Dostoiévski? Parece que, no caso, houve predomínio de análises marcadas por posições ideológicas de momento, a obra do escritor foi utilizada como arma ideológica num ou noutro sentido, e os trabalhos que ajudam a compreender melhor Dostoiévski, inclusive como ideólogo, são aqueles que tratam da ideologia em função da obra em conjunto, enfim, trabalhos que vêem nas idéias de Dostoiévski materiais essenciais para a estruturação de seus romances e contos.
Saudado desde a sua primeira obra, o romance Gente Pobre, como o escritor humanista por excelência, um repre sentante da assim chamada Escola Natural russa, com seus "ensaios fisiológicos", que, paralelamente a um caminho se guido no Ocidente, chamavam a atenção para as condições desumanas da vida do povo, Dostoiévski desiludiu muito depressa os que fizeram esta leitura unilateral de sua obra e suscitou a indignação dos que viam na literatura um veículo para o protesto, impossível sob outra forma. Com efeito, para quem procurava na literatura um meio de despertar a cons ciência moral do povo, ou pelo menos da sua camada mais suscetível a isto, um romance como O Sósia (o segundo que publicou), com a sua ambigüidade fundamental, com a mul tiplicidade de caminhos que apresenta, e que tornam impos sível enquadrá-lo num julgamento unívoco, só podia aparecer como algo monstruoso e disforme, um exemplo de como não se deveria fazer literatura.
E, ao mesmo tempo, para esta crítica, Dostoiévski não podia deixar de constituir um enigma. Poucos escritores tinham a sua sensibilidade para o social, era impossível deixar de reconhecer que os problemas cruciais da Rússia eram por ele escalpelados como jamais se tinha feito. E a par disto, em cada obra, aquela multiplicidade de caminhos, aquele emaranhado de ideologias, sem que o autor dissesse: "O ca minho é este". Ou, quando o dizia, colocava na obra um per" sonagem que distorcia aquelas idéias que se conheciam como o credo explícito do escritor, a ponto de tomar muitas vezes difícil afirmar o que se pretendia como verdade e o que se apresentava como caricatura.
Se isto provocou polêmicas acirradas em vida do autor, a discussão continuou após a sua morte, sempre havendo uma facção que tomava determinado Dostoiévski, o seu Dostoiévski, como bandeira.
O filósofo V. Solovióv - que, apesar de bem mais jovew que o romancista, chegara a ser um companheiro das su;ls "andanças místicas" dos últimos anos de vida - deu a tônica de um culto a Dostoiévski, em três discursos proferidos em sua memória. "Os homens de fé criam vida", afirmou, "são aqueles que se denominam sonhadores, utopistas, iurodívie[2]
- são os profetas, os homens verdadeiramente melhores, os dirigentes da humanidade. Estamos hoje aqui para lembrar um destes homens"[3]•
Não tardou a reação a semelhantes afirmações. N. C. Mikhailóvski, um dos dirigentes da intelectualidade revolu cionária russa, publicou o ensaio "Um talento cruel"[4], onde se frisam os aspectos de sadismo do romancista e se reconhece a capacidade de Dostoiévski de uma visão profunda da psique humana, visão esta que traz, no entanto, das profundezas o que pode haver de vil, jamais as qualidades dignificantes.
E isto numa época em que os russos precisavam de alguém que lhes mostrasse os caminhos da luta pela verdade e pela justiça.
De modo geral, as duas obras citadas aqui marcaram os polos entre os quais se debateu, com pequenas variações, a crítica dostoievskiana nos anos seguintes. Ora aqui, ora ali, aparecia alguma observação mais interessante, mas de modo geral o esquema bipolar não variou. Os simbolistas russos, aceitaram Dostoiévski como um mestre e precursor, ao lado de Vladímir Solovióv. Com efeito, apesar das origens fran cesas, o simbolismo russo logo encontrou raízes nacionais para a sua reação ao positivismo, ao naturalismo e ao mate rialismo vulgar, tão freqüentes na literatura dos fins do século passado. Dostoiévski foi apresentado, com insistência, como o Apóstolo, o Profeta, o Vidente. Isto não obstou a que alguns simbolistas chegassem a apontar aspectos realmente importantes de Dostoiévski, como foi sobretudo o caso de Viatchesláv Ivanov, mas de modo geral o romancista passou a ser pretexto para uma pregação irracionalista e palavrosa; os aspectos que hoje parecem mais contingentes de sua obra, particularmente uma visão messiânica da Rússia, que aparece com tanta freqüência no Diário de um escritor, foram apre sentados como a sua grande mensagem.
Nas décadas de 1910 e 20, era freqüente dar-se ênfase às contribuições psicológicas de Dostoiévski. Saíram então de zenas e dezenas de estudos psicanalíticos de sua obra. Com efeito, para quem tenha penetrado no mundo do escritor, é surpreendente a sua visão aguda neste sentido. Torna-se quase inacreditável, por exemplo, que certas páginas de Niétotchka Niezvánova, com sua visão clara do erotismo infantil, ou conto como O pequeno herói, tenham sido es critos muito antes da existência de Freud. A penetração que Dostoiévski faz no mundo dos sonhos e das fantasias é outra faceta que o aproxima surpreendentemente da psicanálise. Não importa que alguns tenham procurado em obras ante riores a raiz de semelhante argúcia no trato destas questões. Mesmo fazendo-se apelo a E. T. A. Hoffmann e à literatura popular, continua surpreendente a visão aguda de Dostoié vski. Mas, apesar disto, parece magra a contribuição da crí tica psicanalítica para a compreensão de sua obra. E o próprio ensaio freudiano, "Dostoiévski e o parricídio"[5], se apresenta considerável interesse para o conhecimento da psicanálise, pouco acrescenta para um compreensão real do escritor. Depois de tanta insistência na "psicologia de Dostoiévski", soou muito oportuna a advertência de Adorno em suas Notas de literatura: "... na medida em que há nele psicologia, trata-se de uma psicologia de natureza inteligível, de essência, e não dos homens empíricos, tais como os que se movem no mundo".[6] Portanto com toda a sua agudeza psicológica, Dostoiévski é, antes de tudo, o escritor que dá corpo e voz às idéias, que faz viver, em carne e sangue, o inteligível. Mais uma vez coloca-se a questão, e com mais força depois de Adorno: como se tornou possível que a crítica ideológica fosse a menos capaz de compreendê-lo? O problema é candente, mas, para tentar explicá-lo, temos de continuar a investigar, ainda que sumariamente, as condições em que ela trabalhou.
É verdade que várias obras marcadas pelas limitações da crítica ideológica da época (e a crítica que propunha a psico logia como fundamento de qualquer análise, e não apenas num setor bem delimitado, c omo Freud operou em seu famoso
artigo, parece ser realmente ideológica), apresentaram, ao mesmo tempo, graças à qualidade de seus autores, alguns ele mentos valiosos para a c ompreensão de Dostoiévski. Foi sem dúvida o que aconteceu c om o livro de Gide.[7]
Não é por acaso que ele vem sendo reeditado até hoje. Se nele encontramos generalizações ridículas sobre o "espírito russo"; se, embora a partir da p. 169, ele se volte contra a tendência francesa de reduzir tudo a uma fórmula e ver em Dostoiévski apenas a "religião do sofrimento", Gide não consegue deixar de pagar seu tributo a esta visão da obra dostoi evskiana, chegando a supor que um espírito orgulhoso jamais compreenderia o escritor russo (p. 80); se com freqüência demasiada sente-se aquilo que ele declara explicitamente, em relação a Dostoiévski - que na obra deste procurou, como as abelhas de Montaigne, aquilo que mais convinha ao seu mel (p. 206); quantas formulações de seu livrinho precioso são uma verdadeira antevisão do que a crítica dostoievskiana mais recente vem explorando: a complexidade do mundo criado pelo escritor russo, a impossibilidade de enquadrar sua obra numa ideologia determinada, a polivalência e pluralidade de tudo o que saiu de sua pena etc.,.
A Revolução de Outubro, que foi acompanhada de tão grandes transformações em toda a vida cultural russa, provo cou também uma reviravolta nos estudos dostoievskianos. De início, percebe-se com freqüência certa perplexidade. Aquelas contradições na vida e na obra, aquele martirológio revolucionário e uma atuação muitas vezes reacionária, como explicar tudo aquilo?
Um documento conservado no Museu-residência F. M. Dostoiévski, em Moscou, o "Atestado N.O 626", reflete bem esta desorientação. Fornecido à dvorianka[8] Iecatierina Pietrovna Dostoiévskaia, afirma que ela é "esposa de Fiódor Fiódorovitch Dostoiévski, filho do famoso escritor russo Fiódor Mikhái lovitch, velho revolucionário, preso em 1849, no reinado do czar Nicolai Pávlovitch, devido a manifestação 'criminosa' contra o regime imperial e histórico, ao lado de outros revo lucionários, e que foi condenado à morte por fuzilamento. Já no local da execução, no momento de ser dada ordem de
atirar, a sentença foi atenuada. Condenaram Fiódor Mikhái lovitch Dostoiévski a quatro anos de trabalhos forçados. · Faleceu em 188 1, no dia 28 de janeiro, levando consigo um ativo defensor dos desvalidos, mas deixando-nos seus inapre ciáveis trabalhos, tão necessários para a ulterior reeducação da humanidade. Respeitando profundamente a memória do camarada F. M. Dostoiévski, pedimos não causar dificul dades a seus parentes diretos, os netos, rebentos do lutador pela liberdade dos homens".[9]
Transcrevendo o documento, o autor da comunicação publicada em Vopróssi litieratúri não esconde um sorriso de ironia diante de tão estrambótico atestado. Mas, ao mesmo tempo, é o caso de se perguntar: a lembrança do destino estranho de Dostoiévski, dos anos passados na Casa dos Mortos e, sobretudo, daqueles momentos diante do pelotão de fuzilamento, não terá contribuído, num nível mais elevado, para o grande interesse por Dostoiévski nos anos que se se guiram à Revolução?
Publicaram-se então materiais importantíssimos que estavam inéditos. Alguns deles são absolutamente indispen sáveis para um conhecimento adequado de Dostoiévski. Por exemplo, o capítulo que fora excluído de Os demônios pelo próprio escritor, aquele episódio em que Stavróguin, depois de ter violentado uma garotinha, aguarda quieto o suicídio desta por enforcamento, lança uma luz violenta e difernte sobre o romance todo, este fica muito mais uno e estruturado.
Paralelamente, foram saindo estudos importantes sobre a obra do escritor. O que se fez então foi tão importante que permitiu a D. S. Mirsky afirmar, em 1931, no prefácio ao livro de Edward Hallett Carr sobre Dostoiévski, que tudo o que se fizera no campo, antes de 1921, se tornara mais ou menos obsoleto.[10]
Já nos primeiros anos após a Revolução, começaram a sair os importantes estudos de Leonid Grossman, que culmi naram em seu livro de 1925, A Poética de Dostoiévski[11] Nesta obra, Grossman estuda o estilo e a construção de Dostoiévski e proclama, ao contrário das afirmações tão cor rentes de que ele "escrevia mal" e tinha "estilo pesado", que foi sobretudo um grande artista e que era um absurdo deixar de lado este aspecto essencial de sua obra, a fim de procurar nela apenas a psicologia e a filosofia. Trata-se de um estudo realmente magistral que não teve a justa repercussão no Ocidente devido em grande parte às dificuldades que pas saram a surgir pouco depois na União Soviética, para a divul gação das obras consideradas formalistas. O estudo foi mais tarde refundido, sobretudo no sentido da maior articulação dos elementos estéticos com uma visão histórica do fenômeno literário, sendo publicado com o título de "Dostoiévski artista" na coletânea com que a Academia de Ciências assinalou o reinício na U. R. S. S., em âmbito oficial, de estudos sérios da obra de Dostoiévski.[12]
Na década de 1920, surgiram outros estudos fundamentais para uma compreensão da obra do romancista. Os dois mais importantes situam-se no campo oposto ao de uma crítica estritamente ideológica. Em Problenws da obra de Dostoié vski, Mikhail Bakhtin[13] expõe sua concepção do romance polifônico ( do qual Dostoiévski seria o representante mais completo), isto é, o romance em que não há uma voz bem definida que articule tudo, de acordo com as concepções ideo lógicas do autor, mas aparece multiplicidade de vozes, cada personagem expõe sua ideologia, sem que uma delas preva leça sobre as demais, o que se reflete em todos os níveis da obra, desde os macro até os microelementos. Iúri Tinianov publicou seu importante ensaio "Dostoiévski e Gógol – Para a teoria da paródia"[14], onde se destacam os elementos paro dísticos da obra de Dostoiévski e se mostra como os persona gens dostoievskianos, muitas vezes, não existem apenas como tais, como indivíduos definidos psicologicamente, mas reme tem a outro texto, falam por alusões, enfim, trazem à tona um mundo muito mais rico que a mera reprodução da reali dade empírica imediata.
Obras c omo estas abrem caminhos novos para a com preensão de Dostoiévski e permitem a exploração em inúmeras direções. Uma crítica ideológica que parta da cons tatação desta c omplexidade essencial do romancista russo, que assimile os elementos fornecidos por Grossman, Bakhtin e Tinianov, ainda tem muito a nos dizer. No entanto, estes caminhos já delineados têm sido trilhado poucas vezes, e poucas vezes também os resultados obtidos estão à altura das premissas c olocadas tão agudamente· por estes trabalhos ini ciados na década de 1920.
Com o ostracismo em que caiu o movimento formalista russo e as perseguições que atingiram todos os que tiveram algum contacto com ele (mesmo os que não o aceitaram e procuraram discutir criticamente, mas com elevação, os seus trabalhos), todos os estudos literários russos sofreram tre mendo retrocesso.
Quanto aos estudos dostoievskianos, isto se refletiu numa tendência de aceitar como indiscutível a concepção de que D ostoiévski foi um grande escritor, mas cuja obra se ressente do reacionarismo de suas concepções políticas. As contradições que marcam tudo o que deixou seriam responsáveis por debilidades inclusive de ordem literária. Assim, por exemplo, no 1.0 volume do Dicionário Enciclopédioo, publicado em 1953 pela Grande Enciclopédia Soviética, lê-se no verbete sobre o escritor: "Nos romances de Dostoiévski se refletem, por vezes com doentia agudez, algumas contradições da vida social no período da instauração do capitalismo na Rússia. No entanto, a visão de mundo falsa e reacionária limitava as possibilida des artísticas de Dostoiévski e determinou sua influência negativa sobre alguns escritores russos e estrangeiros". O conceito exposto neste verbete anônimo encontra-se em nu merosos artigos, ensaios, histórias da literatura e mesmo livros com ambição teórica, que se publicaram no período estalinista. Depois de 1956, quando ocorreu certa liberaliza ção da vida cultural, muitos estudiosos se voltaram para a obra de Dostoiévski, tentando uma abordagem que não esti vesse viciada por este viés unilateral, e a crítica mais dogmá tica atacou essas tentativas, sempre na base do mesmo cha vão. A coletânea publicada em 1959 pela Academia de Ciências, e à qual já me referi, c onstituiu um passo importante para se tornar a estudar Dostoiévski com toda a seriedade. Desde então, revistas e publicações especializadas soviéticas têm divulgado interessantes materiais sobre ele.
Mas a crítica ideológica, em sentido estrito, continua a manifestar-se de modo tal que a obra dostoievskiana parece apenas um elemnto utilizado a favor desta ou daquela posi ção de momento. Recentemente, provocou grande escândalo a publicação de um artigo de A. Mazurkévitch[15] onde Dostoiévski aparece como alguém que "pregava a submissão impotente, uma resignação de escravo e um auto-sacrifício obtuso" e, ao mesmo tempo, 'enxertava na literatura instintos
zoológicos" e até "estimulava as chagas do capitalismo". Na imprensa soviética, diversos comentaristas voltaram-se indig nados contra esta manifestação extremada do "sociologismo vulgar", tão freqüente nas décadas de 1920 e 30, e sobretudo estranharam que semelhante trabalho tivesse encontrado abrigo numa coletânea destinada a professores secundários, aos quais o guia improvisado chega a aconselhar que não "dêem muito lugar aos textos" de Dostoiévski em suas aulas.
Houve uma verdadeira onda de artigos em que se procu rava combater a apresentação dualista de Dostoiévski como um ficcionista genial e, ao mesmo tempo, um pensador reacio nário. Teve grande repercussão um artigo de M. Khrápt chenko, em que este dizia: "A opinião de que a c oncepção
de mundo do escritor, em todas as suas manifestações essen ciais, era conservadora, não corresponde à realidade"[16]
O livro de Augusto Vidal sobre Dostoiévski, publicado na Espanha[17], encontrou repercussão muito favorável na Rússia. "Podemos acaso contentar-nos com afirmar: Dos toiévski foi reacionário e obscurantista? Nós respondemos a esta pergunta com outra: será justo ceder Dostoiévski à reação?" E estas perguntas do ensaísta espanhol condizem bem com o clima que se criou na Russia em torno de Dostoié vski. É verdade que este escreveu contra o socialismo e o mo vimento revolucionário russo em geral. Agora aparecem, porém, numerosos articulistas que lembram: mas que socia
lismo era aquele? Na realidade afirmam eles, Dostoiévski se voltava contra o socialismo pequeno-burguês, o positivismo estreito e o extremismo anarquista, tão freqüente na Rússia de seu tempo. E este extremismo anarquista é aproximado
das atuais tendências de estrema-esquerda, da contracultura e do maoísmo da juventude ocidental, de modo que, de ini migo, Dostoiévski passa a aliado, na luta justa e na posição considerada correta no momento. Como uma das conse qüências desta nova posição, ocorreu fatalmente uma valori zação de Os demônios, romance que durante muitos anos foi considerado um panfleto contra-revolucionário, indigno de um verdadeiro artista. Este entusiasmo por uma revisão da obra dostoievskiana chegou a tal ponto que I. Kariákin defi niu o romancista como "objetivamente, um aliado do mar xismo"[18], mas semelhante exagero encontrou os seus críticos.
Aonde nos pode levar esta nova concepção da obra de Dostoiévski? Se a visão dualista de um grande escritor, apesar de suas contradições e sua concepção reacionária, sem um exame aprofundado destas contradições, era bem simplificadora, não é menos simplista a vIsao que nos apresentam agora. Diante dela, como explicar certas páginas do Diário de um escritor, caracterizadas por um chauvinismo grão-russo simplesmente intolerável à leitura e repassadas de ódio ora ao ocidental em geral, ora ao judeu, ora a outras populações do Império? Como harmonizar um Dostoiévski "positivo" poli ticamente, com a sua visão messiânica da Rússia? Quanto mais a crítica engajada em posições políticas de momento se dedica ao escritor, em busca de um aliado, menos compreen síveis se tornam certos aspectos de sua obra. Não será o caso de a própria crítica ideológica explorar, em seu campo espe cífico, as novas possibilidades abertas pelos importantes estu dos russos que têm aparecido a partir da década de 1920?
Chegando a este ponto, ressurgem as dúvidas iniciais. Estamos tratando de "crítica ideológica", mas não chegamos a definir o seu campo de ação, e o próprio emprego do conceito não ficou muito claro. E, mais uma vez, aparece a pergunta: serão as idéias simples materiais? Comentando a concepção de "material" dos formalistas russos, o teórico polonês Manfred Kridl, já citado, e que acompanhou os trabalhos daquele mo vimento com simpatia e espírito crítico, lembra que, se realmente a obra literária resulta da estruturação de "materiais", estes não são materiais inertes e sim matéria viva, o que im plica obrigatoriamente uma dialética entre a estruturação da obra e os materiais nela empregados. E esta formulação, que se aproxima da visão que Iúri Tinianov e Roman Jakobson expressaram em fins da década de 1920, nos coloca diante de
um problema complexo. Idéias são materias, porém materiais vivos, e como tais devem ser tratadas. E o estudo literário é um estudo da estruturação das obras, que é um processo mul tiforme, variegado, de contornos imprecisos, devido à própria natureza do "material".
Nada disso, porém, anula a diretriz traçada há pouco, de que nenhum estudo "ideológico" da obra de Dostoiévski pode deixar de se apoiar nos resultados alcançados pelos trabalhos de Tinianov, Grossman e Bakhtin. Como fazer isto? Novas perguntas somam-se às iniciais. No caso, convém lembrar uma formulação de Iúri Lotman; em seu último livro afirma que os estudos literários antes se apressavam a responder e hoje estão aprendendo a perguntar.[19]
Mas, de indagação em indagação, a imagem de Dostoié vski, a princípio recortada grosseiramente em branco e preto, vai se colorindo de matizes cada vez mais opulentos e variados, cada vez mais fascinantes em suas contradições e esfumaçamenta.
[1] Apud Victor Erlich, Rusron Formalism, Haia, Mouton, 1 955, p. 1 59.
[2] Plural de iurodívi, nome que se dava na Rússia a mendigos insanos, que vaogavam pelo país, e aos quais o povo atribuía qualidades de vidente.
[3] V. S. Solovióv, Tri riétcll v pámiat F. M. Dostoiévskovo (Três discursos em memória de F. M. Dostoiévski), Moscou, 1 884, Apud N. C. Mikhailóvski, Litieraturno-critítcheshe stat'i (Artigos crítico-literários), Moscou, Goslitizdat ( Editora Estatal de Obras Literárias), 1957, p.p 64 1, 642.
[4] ]estóki talont, ob. cit., p. p. 181 -263.
[5] Tradução inglesa: "Dostoievsky,md Parricide", in Sigmund Freud,
Collected Papers, VaI. V, Londres, Hogarth Press, 1953.
[6] Theodor W. Adorno, Natas de literatura, Barcelona, Edicianes Ariel, 1 962, p. 47.
[7] André Gide, Dastaievski, Paris, Gallimard, 1 970. Primeira edição: Plan,
1 923, mas parte dos materiais do livro data de 1 908.
[8] Mulher de condição nobre. Embora da'tado de 5 de maio de 19 19 e tendo o carimbo do Comitê Executivo dos Deputados Operários, Camponeses e do Exército Vennelho, da cidade de Sadovsk, do governo da Táurida (Criméia), o documento ainda utiliza este tenno.
[9] Segundo nota infonnativa de G. Kógan, diretor do Museu- residência de
F. M. Dostoiévski de Moscou, publicada em Vopróssilitieratúrj, (Proble mas de literatura), N.o 3 de 1 965, p.p. 252, 253.
[10] Edwar Hallett Carr, Dostoievsky, Londres, Allen & Unwin Ltd. 1 931
[11] Leonid Grossman, Poética Dostoiévskovo,_ publicação da Academia Estatal de Ciências da' Arte, Moscou, 1 925.
[12] Leonid Grossman, "Dostoiévski - khudójni", in Tvórtchestvo F. M. Dostoiévskovo (A obra de F. M. Dostoiévski ) Moscou, 1959. Traduzido por mim para o português: Dostoiévski artista" Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira S. A., 1 967.
[13] Problêmi tvórtchestva Dostoiévskovo. Foi refundido e saiu em 1 963 com o título de Problêmi poétiki Dostoiévskovo (Problemas da Poética de Dostoiévski).
[14] " Dostoiévski i Gógol (k teórii paródii ) ", in A rkhaísti i n ovátori, Lenin grado, 1 929, obra reimpressa pela Wilheim Fink Verlag de Munique, em 1 967.
[15] A. Mazurkévitch, "Problemas da preparação metodológica do professor para um estudo panorâmico da obra de F. M. Dostoiévski", na coletânea Povichênie vospitátielnoi,.óli lit!emtú,.i ( Elevação do papel educativo da Iiteratura-) _ Kiev, 1 972. Minhas citações baseiam-sem em resenhas e
comentários sobre o artigo, publicados em 1 973 na revista Vop,.óssi litiemtú,.i.
[16] M. Khráptchenko, Dostoiévski i ievó litieratúrnoie nasliédie (Dostoiévski e sua herança literária), Comunist, 1 971, N.o 16, p. 1 09 (minha citação é indireta). O órgão em que o trabalho foi publicado influiu provavel mente na gra'l1de repercussão do artigo.
[17] Augusto Vida 1, Dostoievski, Barcelona, Barrai Editores, 1972.
[18] Num artigo na revista Naúka i relíguia (Ciência e Religião), N ° 10 de 1 97 1, citado por r. Seleznióv em "Postigaia Dostoiévskovo" (Apreendendo Dostoiévski ), Vopróssi litieratúri, N.o 8 de 1 973, p. 224.
[19] Iúri Lotman, A náliz poetítcheskovo teksta (Análise do texto poético ), Leningrado, Editora' Prosviechchênie (Instntção), 1 972, p. 6.