SIGNIFICAÇÃO & METÁFORA: Algumas reflexões sobre as relações entre Literatura e Sociedade[1]

 

 

JOÃO ALEXANDRE BARBOSA

 

 

 

 

1.             .    Desde a segunda metade do século XIX t ornou-se possível discutir a validade das preocupações sociais do poeta.

Por isso, a afirmação de John R. Harrison de que "somente a partir do fim do último século tem havido qual­ quer separação entre as atividades do artista e o estudo da sociedade"[2] aponta para um problema mais complexo.

Na verdade, esta separação é um dado pós-romântico que o se desvincula da crise da significação na literatura. Mais ainda: a questão parece relacionar-se com a própria cons­ ciência pós-romântica do texto literário como objeto verbal, expressando-se pelo princípio da auto-referencialidade que faz da obra um sistema gerador de significações não a partir de suas relações com a realidade mas desde o momento em que suas articulações sofrem a crítica interna de seus funda­ mentos.

Neste sentido, a crítica da realidade passa a ser depen­ dente da crítica da linguagem que o texto literário é capaz de exercer. Em trecho de Octavi· o Paz, pode-se encontrar finamente formulado o problema:

 

"É algo, diz ele, comum a todos os poetas de todas as épocas mas que, desde o romantismo, converte-se no que chamamos consciência poética: uma atitude que não conhe­ ceu a tradição. Os poetas antigos eram menos sensíveis ao valor das palavras que os modernos; em troca, foram quanto ao significado. O hermetismo de Gôngora não implica uma crítica do sentido; o de Mallarmé ou o de Joyce é, antes de tudo, uma crítica e, às vezes, uma anulação do significado. (... ). O poema não tem objeto ou referência exterior; a re­ ferência de uma palavra é outra palavra. Assim, o problema da significação da poesia se esclarece desde que se observa que o sentido não está fora senão dentro do poema: não que dizem as palavras, mas naquilo que se dizem entre elas".[3]

Deste modo, vê-se como a pergunta pelo que nomeia a poesia (título do texto de Octavio Paz) é dependente da ques­ tão de se saber qual o grau de transitividade da obra literária. Ou, para dizer de outro modo, até que ponto é possível refletir acerca da obra enquanto objeto significante e enquanto trân­ sito de significado. Transitividade e intransitividade da obra ou, para usar os termos consagrados por Ferdinand de Saussure, sincronia e diacronia, ou ainda, como prefere Mikel Dufrenne, estrutura e sentido.

De qualquer forma, trata-se de saber em que medida é possível falar de significação do texto literário.

Deixando-se de lado aquelas teorias formuladas no sé­ culo passado e que se fundam em critérios de circunstancia­ lidade (incluindo-se todo o Positivismo C rítico), é possível discernir algumas linhas de reflexão sobre o problema fun­ dadas no que se poderia chamar de critérios de literariedade.

2.             Foi, como se sabe, Roman Jakobson quem, em ensaio de 1919, utilizou-se desta última expressão para designar os objetivos dos estudos literários.

"O objeto da ciência da literatura, dizia ele, não é a lite­ ratura mas a literariedade (literaturnost), isto é, o que faz de uma obra dada uma obra literária"[4]

Tomando-se emprestada a designação jak obsoniana, pode-se dizer que são teorias da literariedade todas aquelas que buscam, pelos estudos das diversas obras, definir a espe­ cificidade do objeto literário, procurando marcar em que difere e como é realizado.

Propensas, como é natural, ao estudo instrínseco do texto literário, estas teorias, no entanto, deixam ver de que modo é procurada a significação do texto literário não mais enquanto elemento externo mas enquanto componente da própria orga­ nização.

Pode-se dizer que, para estas teorias, a significação deixa de ser dada na relação circunstância-autor-obra-Ieitor para ser apreendida através do deciframento das articulações entre significante e significado que vêm a constituir o signo literário específico.

Está claro, todavia, que estas articulações, no que concerne às obras artísticas, à diferença do que ocorre num nível lin­ güístico puramente descritivo, realizam-se através de relações sempre aproximadas de som e sentido - confirmando o que era percebido por Paul Valéry quando ele falava em hesita­ ção entre som e sentido como constituindo o fundamento da operação poética.

Ora, são precisamente estas relações aproximadas que vão definir aquilo que, sobretudo depois do livro famoso e decisivo de William Empson, passou-se a chamar generaliza­ damente de ambigüidade[5]. Ou de plurisignation, como quer Philip Weelwright[6] ou de "informação paradoxal da ambigüidade", na expressão de Gillo Dorfles, ou ainda de "abertura" como prefere Umberto Eco[7]

Em qualquer dos casos, entretanto, está a idéia funda­ mental, já formulada por John Stuart Mill, de que a lingua­ gem utilizada pela atividade literária faz valer aqueles ele­ mentos de conotação que, fugindo ao rigor da denotação, conferem um valor plural, e não unívoco, à expressão lite­ rária[8]

Assim sendo, a significação do texto literário seria deter­ minada pela própria variação semântica imposta aos seus termos pela estruturação ambígua dada aos elementos de organização da obra.

A significação do texto literário estaria assim em fun­ ção da menor ou maior abertura de seus valores conotativos, ampliando a referência e tornando complexa a nomeação da palavra "em estado de dicionário".

Por outro lado, nesta ampliação e neste movimento de tornar mais complexo os valores denotativos residiria a sig­ nificação do texto literário como forma de conhecimento que, numa linha de acentuada tendência aristotélica, preen­ che a maior parte das indagações dos chamados "new f critics" norte-americanos, para os quais a significação do texto lite­ rário é dependente daquilo que ele comunica - como se pode ler em criticos tão diversos quanto Cleanth Brooks[9], Allen Tate[10] ou Kenneth Burke[11]

3.             Desta maneira, através dos exemplos mencionados, pode-se verificar como o conceito de significação do texto literário é, por assim dizer, interiorizado, passando a fazer parte da estrutura mais profunda da obra.

Não é mais o estímulo exterior que preocupa a quem procura captar a significação do texto mas o seu trata­ mento enquanto material da organização da obra.

Sendo assim, prefere-se falar em processo de significa­ ção do que em significação do texto tout court. É o que ocorre, por exemplo, com Roland Barthes quando afirma:

"... entendo sempre significação como processo que pro­ duz o sentido e não este sentido em si".[12]

De modo semelhante, mas a meu ver bem mais rico, o estruturalismo tcheco dos anos 30 e 40, sobretudo através da obra de Jan Jukarovsky, tratou do problema falando em "processo de formação do sentido" ou em "gesto semântico".

Na verdade, num ensaio de 1936, somente agora tradu­ zido para o inglês, o crítico tcheco aborda a função estética, a norma e o valor como fatos sociais, procurando esclarecer a questão do significado do texto literário em suas vincula­ ções com a forma, como se pode depreender do seguinte trecho:

"Na verdade, os elementos formais da pintura são fato­ res semânticos exatamente como os elementos lingüísticos o são na literatura. Porém, por si mesmos, eles não estão presos por qualquer conexão material a um certo aspecto mas, como elementos numa obra musical, eles carregam ener­ gia semântica potencial que, emanando da obra total, in­ dica uma certa atitude ante o mundo da realidade" ( 12 )

A partir de um relacionamento desta ordem, é possível, portanto, procurar elucidar o problema da significação do texto literário sem, por um lado, cair no esvaziamento da­ quilo que, no texto, é comunicação da experiência de uma personalidade, nem, por outro, exarcerbar os vínculos entre

o texto e a circunstância.

É o que se pode ler em trecho bem mais recente:

"A obra de arte, diz Mukarovsky, é, sem dúvida, um signo muito complexo:                                 cada um de seus elementos, cada uma de suas partes é o veículo de um significado parcial. Estes significados parciais acumulam-se até formar o senti­ do geral da obra.     E somente quando o sentido geral da obra está concluído, a obra artística converte-se num testemunho da relação do autor com a realidade e num convite ao indi­ víduo perceptor para que se interesse na realidade, como um todo, sua relação particular, emotiva, intelectiva e volitiva a um só tempo.                                 Todavia, antes que o perceptor chegue a des­ cobrir o sentido geral, deve examinar o processo de forma­ ção deste sentido geral.                      E o processo (... ) é a substância da obra"[13]

4.              Creio que o processo delineado até aqui é suficiente indicação para o fato, sublinhado no início, da dependência entre o separar-se "as atividades do artista e o estudo da sociedade" (Harrison) e uma perspectiva, por assim dizer, de suspeita quanto à significação do texto literário.

Passando-se a ver na circunstância não um condicio­ nante (à maneira do Positivismo Crítico) mas um elemento que, transformado pela linguagem da obra, passa a fazer parte da forma, o estudo das relações entre o texto e a socie­ dade desloca-se do que, em fins da década de 40, o manual de WellekjWarren chamava de "modo extrínseco" no estudo da literatura, para o nível da análise formal.

Mesmo porque é sempre possível estabelecer, de um pon­ to de vista rigorosamente hermenêutico, como faz E. D. Hirsch, distinções entre o significado (meaning) que está numa obra enquanto sistema de linguagem e a sua signifi­ cação (significante) com referência aos valores simbólicos que incorpora e para os quais ela aponta com relação ao espaço cultural e à tradição.[14] No primeiro caso, sempre de acordo com Hirsch, ter-se-ia o campo da interpretação e, no segundo, o da crítica.

A passagem de um momento para o outro, assim como da sincronia para a diacronia, parece ser o eixo da tarefa que pretenda apanhar o texto literário como sistema de con­ vergência em que os espaços interiores e exteriores são, por assim dizer, resolvidos pela instauração de um "espaço lite­ rário" (Maurice Blanchot) que os solda indissoluvelmente.

Entre um e outro, está claro, perpassa o sentido da his­ toricidade que termina por conferir coerência à literatura enquanto sistema sincrônico de obras que, não obstante sua singularidade, se intercomunicam num incesante processo de transmisão de valores que lhes conferem uma razão de ordem cultural.

(Quando utilizo o termo historicidade estou a mil léguas de pensar em historicismo - esta doença infantil do estudo da literatura. Penso, isto sim, no modo pelo qual a História, o sentido da História, é internalizado, 'consumido", pelo texto literário). A isto, A. J. Greimas chamaria de isotopia

ou Lucien Goldmann de homologia.               Não importa aqui, para o caso, a alcunha:                                          importa o que, sob ela, se esconde.

5.             E o que se esconde é o que leva ao fulcro daquilo que estes apontamentos pretendem comunicar, ou seja, inda­ gar pelas possibilidades de um estudo das relações entre lite­ ratura e sociedade.

Não um "método sociológico" de abordagem do texto literário, pois isto seria fugir à arena em que estas reflexões se colocam, passando dos estudos literários para a Sociolo­ gia, mas conservando-se sob o signo da literariedade. tentar pensar o mecanismo de relações entre texto e sociedade.

Está claro que existe uma Sociologia da Literatura, mas esta, como observa Antônio Cândido, "não propõe a questão do valor da obra, e pode se interessar, justamente, por tudo que é condicionamento. Cabe-lhe, por exemplo, acrescenta o ensaista, pesquisar a voga de um livro, a preferência esta­ tística por um gênero, o gosto das classes, a origem social dos autores, a relação entre as obras e as idéias, a influência da organização social, econômica e política etc. É uma dis­ ciplina de cunho científico, sem a orientação estética neces­ sariamente assumida pela crítica"[15]

O que, entretanto, está na mira destas reflexões é algo diverso: não a Sociologia da Literatura mas o modo pelo qual o dado externo, tido antes como condicionante, "impor­ ta, para ainda utilizar as expressões de Antônio Cândido, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto. interno"[16]

Por isso mesmo, o que se fez anteriormente foi vincular a separação das atividades do artista e o estudo da socie­ dade por intermédio da problematização do próprio signifi­ cado do texto que, de exterior, passa a interior através de vários e diferentes approachs críticos.

Ora, nada melhor para tornar mais técnica a questão, do que se pensar, por exemplo, na metáfora - elemento privilegiado como mediador entre o texto literário e a rea­ lidade.

6.             Na verdade, a utilização da metáfora, por um movi­ mento de saturação (semelhante ao da redundância voca­ bular, já estudado por Max Bense, e que se encontra, por exemplo, num poema c omo "No meio do caminho", de Car­ los Drummond de Andrade) pode perder o seu valor original de mediação entre realidades já conhecidas que se revelam numa nova, para se constituir, por si mesma, um procedi­ mento estético enquanto sistema auto-orientado.

Por outro lado, esta direção para si mesma não se efe­ tiva senão sob o risco de uma perda de nomeação, isto é, a metáfora deixando de ser mero elemento mediador, ganhan­ do resistência lingüística, não diz mais do que a relação tenorjvehicle (para usar os termos de r. A. Richards) pode dizer enquanto elemento de um texto específico.

Em casos extremos - como o de João Cabral, por exem­ plo -, a desmontagem da metáfora utilizada pode vir a ser um recurso de articulação entre a construção do texto e a realidade por ele instaurada. Nesse sentido, um recurso retórico tanto quanto a escolha vocabular, ou o uso da rima. Mas cuja singularidade, à diferença dos últimos, está em responder a uma instigação que tem de ver com a própria evolução do poema moderno.

7.              Não é de espantar, por isso, que seja em Baudelaire que se vai encontrar, de modo mais ou menos sistemático, a primeira manifestação moderna de saturação metafórica.

De fato, em meados do século XIX, como já se insinuou, o poeta já não podia apenas utilizar a tradição: ele, para continuar criando, tinha que reduzí-Ia ao nível de consumo poético pela descoberta da crise de seus valores.[17]

A metáfora baudelaireana ainda é possível: a inade­ quação entre linguagem e mundo pode ser resolvida em ter­ mos de spleen, de viagem, de morte, porque na partlha exis­ tencial é o mundo que é vergastado.

E a metáfora, para o poeta, é o açoite privilegiado. Cobrindo o mundo, está salva a linguagem do poema e, com ela, a maldição do poeta é reduzida às proporções do individualismo desajustado.

Para isso, no entanto, é preciso que a metáfora, seja lite­ ralmente um artifício, um recurso retórico, através do qual o mundo não revela senão a face ultrajada e vencida pela lin­ guagem do poema e arte do poeta. O que se pretende não é desmascarar o mundo mas recobrí-Io com a metáfora que lhe deu existência poética e, portanto, o venceu.

"A verdade da poesia - afirma Michael Hamburger - torna-se inseparável do que Oscar Wilde chamou 'a verdade das máscaras".[18]

Quando, por exemplo, Baudelaire retoma a imagem do Cisne como servindo de mediação entre a poesia e a existên­ cia do poeta prisioneiro das contingências,[19] constrói o seu texto através do esquema saturação/individuação (isto é, a imagem romântica à Vigny é repassada pelos valores do poe­ ta urbano e maudit).

Da mesma forma, enquanto Corbiêre e Laforgue se des­ fazem da metáfora poética pela imersão no coloquialismo e na ante-poesia, repercutindo, mais tarde, em Eliot e Pound, mas agora indicando uma outra ordem de problemas, Mallarmé paga o seu tributo à temática do Cisne, transfor­ mando a metáfora romântica em comentário intrínseco do poema.

8.             Assim, o Cisne de Baudelaire, aquele com que o ar­ tista se identificava enquanto preso e incapaz de vôo, não é o de Mallarmé: o deste é o Cisne que deixou de ser simples termo de metáfora e se transformou, por força da memória,

"Un cygne d'autrefois se souvient que c'est lui Magnifique mais qui sans espoir se délivre Pour n'avoir pas chanté la région ou vivre Quand du stérile hiver a resplendi l'ennui",

em consciência de uma ciência realizada no exílio.

Exílio do mundo? Exílio da experiência humana, vivida?

 

Não, antes o da palavra buscada que se esconde por sob a "agonia branca" do "cygne" - homófono de "Signe", signo, palavra.[20]

"Tout son col secouera cette blanche agonie Par l'espace infligée à l'oiseau qui le nie,

mais non l'horreur du sol ou le plumage est pris. Fantôme qu'à ce lieu son pur éclat assigne

Il s'immobilise au songe froid de mépris Que vêt parmi l'exil inutile le Cygne".

É a partir deste interstício entre a metáfora e sua re­ cuperação, por assim dizer, 'falida" que se instaura o poema. Não apenas consciência e canto - mas ciência exilada.

consciência, se se quiser.

Publicado em 1885, o soneto - segundo os editores do poeta - "... talvez nasceu de uma imagem antiga tomada de empréstimo a Gautier nos Émaux et Camées:

"Un Cygne s'est pris en nageant Dans le bassin des Tuileries.[21]

Não importa o rigor das origens: como não ver naquele "cygne d'autrefois" a reminiscência baudelaireana?

A negação do espaço, que está no segundo verso do pri­ meiro terceto, não serve também de comentário à negação da poesia pela ação de Rimbaud?

A inutilidade do exílio do "Cygne" é também a do "Signe": a metáfora da impossibilidade do canto e do vôo, em Baudelaire ou em Gautier, é, pela redundância, a do poe­ ma, do poeta e sua arte.

Por se desdobrar assim em comentário intrínseco, a me­ táfora é reabilitada como processo capaz de "donner un sens plus pur aux mots de la tribu", como está dito em Le Tom­ beau d'Edgard Poe.

9.                                   Desta maneira, as relações entre o poeta e a reali­ dade não apenas se realizam através do poema, por sua me­ diação: antes de chegar à realidade pelo poema, este constrói a sua realidade através da qual, na qual, as "palavras da tribo" são recuperadas intransitivamente, ao mesmo tem­ po que abrem o trânsito para a diacronia. De outro modo, como emergir daquele pesadelo da História que Dedalus/ Joyce, muito mais tarde, consumirá no Ulysses?

A negação pode ser assim uma estratégia de realização: incluindo explicitamente o seu contrário, aquilo que a obra diz está nas dobras de suas oposições.

Quer dizer: deixando de ser uma metáfora do poema para ser uma metáfora para o poema, o Cisne de Mallarmé consome a história do topos na medida mesma em que se consome. E se o seu significado, nos termos mencionado de E. D. Hirsch, pode ser apreendido no espaço do poema enquanto poema, a sua significação somente é esclarecida a partir do relacionamento com a tradição, por assim dizer, moderna.

10   . Todavia, veja-se bem, o que possibilita a significa­ ção não está fora do texto: é a própria discussão interna do topos, agora travestido em tropo, que lhe confere validade. Para dizer tudo: a metáfora é agora a metalinguagem de uma reflexão diacrônica.

Neste sentido, pode-se dizer que o exercício metafórico não é mais apenas uma vinculação entre realidades ante­ riores dando como resultado uma nova: no conjunto do texto, a metáfora é a realidade sobre a qual se discute em termos de poema. E, para a sua discussão, importa tanto nomear quanto sugerir desde que não é de uma possível aura que o seu efeito surge mas de sua própria relevância en­ quanto componente estético do texto. E - o que é sobre­ modo importante - esta relevância não é conferida a partir de um sinal positivo, isto é, o valor da metáfora enquanto

tropo, mas a partir de uma negação de sua viabilidade como instrumento de representação. A sua "relevância enquanto componente estético do texto" é dada assim em termos de recusa de seu valor tópico.

Da mesma maneira que a redundância vocabular pode realizar a configuração de um espaço poético, assim a satu­ ração metafórica (no texto e da tradição por ele recolhida) pode indicar, por negação, a possibilidade de um contexto poético que perdure para além de sua aceitação.

"Je profere la parole, pour la replonger dans son inani­ té" - afirma Mallarmé pela voz de Igitur.[22]

11   . O que o texto instaura, portanto, é uma parole destinada à inanição: inserto na História, na tradição, o poeta repensa, e não apenas replonge, os termos de seu j ogo

- os seus dados que jamais podem abolir o acaso. Mesmo porque a ação de recolocar exige a reflexão sobre um espaço anterior. Mas ele não foge ao seu espaço: a resposta é bus­ cada por entre os restos de linguagem que o procedimento poético definiu como poema. E não é no ensaio, no comen­ tário, na nota, que está a procura: ela se encontra por entre os modos de aproximar-se da própria linguagem do poema.

Por isso, falou-se antes em metalinguagem ou, para ser mais explícito, na própria realização textual como atividade auto-orientada inserta na elaboração do texto.

Não há, contudo, metalinguagem ali onde não está pre­ sente a consciência de uma História que obriga à reflexão acerca dos valores postos em jogo. E, no caso da literatura, sendo de linguagem estes valores, é a própria historicidade da linguagem que, afinal, se discute. Ou, se se preferir, a permanência dos valores da linguagem enquanto instru­ mento hábil de captação da realidade experimentada pelo escritor.

Desconfiando dessa permanência, o escritor não apenas cria o seu texto mas pensa um texto anterior absorvido pela historicidade de sua condição. O eixo de interseção sincro­ nia/diacronia não é mais apenas realizado pelo leitor, pelo crítico, mas sofre a orientação prévia do próprio texto que lhe serve de sustentação. No caso específico do soneto de Mallarmé, a saturação metafórica termina por ser uma estra­ tégia de saturação histórica: a sua decifração pelo leitor requer o trânsito diacrônico para que a sua intransitividade se revele no espaço çonstruído pela reflexão do poeta acerca dos valores da linguagem de que se utiliza.

12    . Desta maneira, dando um salto em direção da diacro­ nia imposta pelo texto, a significação do poema é fisgada na medida em que o seu significado é percebido sincronica­ mente, isto é, por intermédio da desmontagem de sua sin­ taxe figurativa.

Quem lê a figura é o leitor: mas ela só será c ompleta desde que se saiba uma re-Ieitura, isto é, uma decifração daquilo que o poeta codificou em termos não mais de lin­ guagem-objeto mas de metalinguagem.

Está claro que, para o leitor, o texto persiste enquanto uma primeira leitura da realidade pelo escritor mas, a não ser que a critica possa satisfazer-se com a tradução literal, o que interessa é o modo pelo qual esta leitura inclui um sentido da historicidade da própria linguagem de que se serve o escritor. E este sentido, para que se complete o círculo de reflexão logo atrás começado, é metalingüístico desde o momento em que, não abdicando de sua condição, o poeta, através da linguagem, o que procura não está para além daquilo que a linguagem é capaz de dizer num espaço privilegiado historicamente.

É, por isso, importante para o crítico, no caso de Mallar­ mé, não apenas considerar o que há de indicativo acerca de uma crise da literatura nas conferências inglesas de "La Musique et les Lettres", por exemplo, mas sobretudo ver de que maneira este sentido da crise, que não é outro senão o do próprio valor histórico do poema e do poeta, está fun­ dando a própria atividade literária na medida em que esta se requer consciente dos dados postos em jogo.

Na verdade, o que mais parece importar é precisamente aquilo que Paul de Man soube acentuar tão bem:

"... um texto que finge designar uma crise quando ele é, de fato, a própria crise a que se refere. Porque aqui (... ),

o ato de escrever reflete na realidade sobre sua própria ori­ gem (... )[23].

Vê-se, desde modo, a impossibilidade de uma leitura que, partindo de uma decifração do uso da metáfora, como a do exemplo que se procurou concretizar, não chegue a ser necessariamente uma reflexão sobre o modo pelo qual o tropo é consumido historicamente no espaço do próprio poema.

13   . A consideração histórico-social do texto literário é realizada a partir das variáveis de sua significação trata-

das de modo intrínseco enquanto constituintes de um siste­ ma auto-orientado.

Afirmar isto, por fim, é tentar dizer que o estudo do texto literário sob uma perspectiva sociológica só será válido desde que for possível descortinar, por sob as contradições da diacronia, o sistema sincrônico que lhe confere espe­ cificidade.

É o que, vejo agora, muito metaforicamente talvez, estas reflexões procuraram significar.



[1] Este texto, aproveitando algumas análises incluidas em meu A Metáfora Crítica, publicado pela Editora Perspectiva, serviu c omo base para a'lgumas discussões acerca das relações entre Literatura e Sociedade, desenvolvidas no I Seminário Brasileiro de Teoria Literária promovido pela Universidade Federal de Pernambuco, em Outubro de 1 973.

[2] Em The reactiona.ries. Yeats. Lewis. Pound. Eliot. Lawrence. A study of the Anti-Democratic Intelligentsia. New York: Schocken Boods, (1 %7 ), p. 15.

[3] Cf. "Qué nombra! la poesia", em Corriente alterna. México: Sigla veinti­ uno editores, ( 1 %7 ), p..S.

[4] Em "A nova poesia russa". Cito pela trad. franc o de Tzvetan Todorov. em Poétique, 7 ( 1 97 1), p. 290.

[5] Cf. Seven types of ambiguity. Edinburgh: A New Direction Book (1 974 ).

[6] Cf. The burning fountain. A study in the langu<tge of symbolism. Bloomington: Indiana University Press, ( 1 968).

[7] Cf. Símbolo, comunicación y constlmo. Trad. de Maria Rosa Viale. Barcelona': Editorial Lumen, 1 967 e Obra aberta. Forma e jndeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Editora Perspectiva, ( 1 968).

[8] Cf. "The two kinds of poetry", em Mil/'s Essays on Literature and

Society. Ed. with an introd. by J. B. Schneewind. New York: Collier Books, 1 965.

[9] Cf. "Literature as Knowledge", em Essays of four decades. New York: William Morrow & Co., Inc., (1 970) (O ensaoio é de 1 941.

[10] Cf. "Literature as equipment for living", em The philosophy of literary formo Studies in simbolic action. New York: Vintage Books, (1 957).

[11] Cf. "Littérature et signification", em Essais critiques.             Paris: Éditions

du Seuil, (1 964), p. 2W.

[12] Em Aesthetic fwnction, norm anã va lue as social fasts. Trnnsl. from Czech, with notes a.nd afterword by Mard E. Suino. Ann A rbor: The University of Michigan P ress, 1 970, p. 1 02.

[13] Em "O struktur.rlismu", Studie z estetiky. Cf. Milan Jankovic, "La obra como realización de un sentido", em Linguistica formal y cr·itica liti?'rari{J. Trad. de Maria Esther Benitez. Madrid: Comunicación 3, ( 1 970), p. 131.

[14] Cf. "Obj ective interpretation", em VaJidity in interpretation. New Heven: Yale University Press, ( 1 %7), p. 21 1

[15] Cf. "Crítica e sociologia ( tentativa de esclarecimento) ", em Litera tura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. São P aulo: Companhia Editôra Nacional, ( 1 %5 ), p. 5.

[16] Idem. ibidem

[17] Para uma discussão mais acurada do problema, é fundamental a obra Rorna'nticism ami Consciousness. Ec!. by Harold Bloam.                                               New York:

W. W. Norton, (1 970).

[18] Em The truth of poetry                New York: Harcourt, Brace, Jovanovich,

( 1 969), p. 59.

[19] Cf. Mme. E. Noulet, em Mallarmé, Oeuvres Completes.       (Paris): Bi­

bliotheque de la Pléiade, NRF, ( 1 956), p. 1 480.

[20] A idéia de vincular os dois têrmos homófonos está em Renri Peyre, na análise didática que fez do poema em The poem itself. Ed. by Stanley Burshaw. New York: Schocken Books, 1 967, p. 55.

[21] Mondar, Remi e Aubry, Jean G., em Mallanné, Op. cit. p. cit

[22] Oj>. cit o p. 452.

[23] Cf. "Criticism a'l1d crisis", em Blindness & insight. Ess,ays in the rethoric of contemporary criticism. New York: Oxford University Press, 1971, p. 7.