ESPERANÇA E OBJETIVIDADE: UMA CRÍTICA DA CIÊNCIA

 

 

RUB EM A. ALVES

 

Não será verdade que toda ciência, no final, se reduz a um tipo de mitologia? (De uma carta de Freud a Einstein em 1932).

 

 

 

As ciências que se instauraram no mundo Ocidental têm tendido a classificar a religião como uma forma de falsa cons­ ciência e como uma fôrça conservadora. "A religião é a consciência-de-si e o como-sentir-se do homem que ou ainda não se encontrou ou que voltou a perder-se"[1] nos diz Marx. Ela é a flor com que o homem cobre a corrente que o aprisiona de forma que, não mais vendo a corrente, êle se imagina num jardim. E jardins não devem ser destruidos. Jardins devem ser cultivados, preservados, defendidos. Em decorrência disto, a religião teria uma função permanentemente conservadora: os homens "devem reconhecer e aceitar como uma concessão aos céus o próprio fato de serem êles dominados, controlados, possuídos".[2]

Dentro de certos limites êste diagnóstico é correto. En­ tretanto, creio que é necessario fazer a Marx uma reserva crítica muito próxima daquela que êle fez a Feuerbach. Não se pode falar de uma essência do homem, em abstrato[3] De forma idêntica, não se pode falar de uma essência da reli­ gião, como se ela fôsse um fenômeno simples, permanente­ mente idêntico consigo mesmo, exercendo sempre as mesmas funções.

É verdade que a religião é frequentemente dominada pelos sacerdotes[4]. Mas é necessário ter em mente que os profetas que se levantam contra os sacerdotes - também falam em nome da religião. Seria possível identificar sacerdotes e pro­ fetas? A sociedade nunca o fez. Por que? Por estupidez? Não creio. Antes, por ter ela um agudo senso de discriminação entre amigos e inimigos. Os sacerdotes se movem pelos cor­ redores e salas dos palácios. Os profetas são aprisionados em calabouços. O fenômeno religioso é ambíguo e ambivalente. A própria religião reconhece êste fato.

Ela se refere a deuses e demônios, à fé e à idolatria  o que indica que ela se dá conta das dinâmicas contraditórias que se movem no seu próprio meio. É verdade que a religião tem se prestado a uma função sacralizadora do status quo, sendo assim a ideologia de uma ordem que se estabeleceu pelo poder. Mas é verdade também que a religião, em nome dos ideais de justiça, de fraternidade e amor, tem sido uma fonte de críticas proféticas de ordens instauradas, seja de direita, seja de esquerda[5]. A "esperança do Reino de Deus", qualquer que seja a forma que ela tenha assumido, tem sido sempre um horizonte de expectativa sob cuja luz as rotinas coerci­ tivas do cotidiano que caracterizam todas as ordens sociais estabelecidas se revelam como um absurdo, um negativo a ser negado.

As ciências em geral e as ciências do comportamento humano em particular, entretanto, não têm aplicado a si mesmas a mesma crítica que elas lançaram contra a religião. Os cientistas tendem a operar a partir da "pressuposição hu­ mana mas elitista de que os outros crêem por causa de neces­ sidades enquanto que êles crêem em decorrência dos ditames da lógica e da razão.[6] Uma vez aceita tal pressuposição, torna-se impossível perceber que, num mundo que aparen­ temente se secularizou, a ciência passou a desempenhar, em grande medida, as funções dantes desempenhadas pela reli­ gião tradicional em decadência. É minha hipótese que a ciência se constitui, num mundo em que as religiões tradi­ cionais perderam a sua respeitabilidade, numa "alternativa funcional" ou num "equivalente funcional" da religião.[7] Pesquisas realizadas indicam que uma porcentagem signifi­ cativa de cientistas do comportamento consideraram, num período anterior de sua vida, tornarem-se clérigos de uma religião ou outra[8]. Por que abandonaram a religião e se "converteram" à ciência? A resposta mais fácil seria que êles romperam com a falsa consciência, disseram adeus às suas ilusões e ingressaram na instituição que detém o monopólio dos métodos de se ver corretamente.

Parece-me, entretanto, que tal explicação é altamente ideológica e... religiosa. Na verdade, um convertido religioso explica sempre nestes têrmos a sua própria experiência ! Temos de considerar uma outra hipótese: de que a substi­ tuição da religião pela ciência tenha sido algo semelhante à troca de uma mágica fraca por uma mágica forte, de uma mágica destituida de status e progressivamente marginali­ zada, por uma mágica que dá status e que ocupa o lugar central da sociedade.

Uma das ironias da história é a alternância das funções que certos ítens culturais exercem. Como K. Mannhein observa, universos simbólicos que num certo período histórico funcionaram de forma utópica passam a exercer, no período que se segue, uma função conservadora.[9]

Explosões carismáticas se domesticam em rotinas burocráticas, profetas se metamorfoseiam em sacerdotes, revolu­ cionários, uma vez que no poder, se tornam conservadores. A ciência, sem dúvida alguma, exerceu, uma função altamente crítica e revolucionária quando do seu surgimento. Sua me­ tafísica, seus métodos e suas alianças sociais colidiam fron­ talmente com aqueles da ordem hierárquica, religiosa e estática dominante. Entretanto, uma vez demolido êste mundo, a ciência perdeu, progressivamente, o seu gume crítico. O seu poder manipulador cresceu na razão inversa do seu poder questionador. Com o advento da civilização utilitária e pragmática, a ciência, como especialista na manipulação de coisas e pessoas, tornou-se numa peça indispensável deste todo. A nossa sociedade não se tornou mais científica por ter mais cientistas, observa Paul Goodmann. O contrário é a verdade. Temos mais cientistas hoje que durante todo o resto da história porque os interêsses econômicos conseguiram co­ locar a ciência a seu serviço. A sociedade não se tornou mais científica. A ciência se transformou numa função explo­ rável.[10]

Estou sugerindo, segundo linhas já indicadas por Freud, que é perfeitamente possível inverter os "papéis" que religião e ciência têm representado no "script" histórico-social criado pela ciência: a ciência pode muito bem ser vista como um fator funcional e legitimador das ordens instauradas, e a reli­ gião pode ser exatamente um fator disfuncional e portanto, ainda que num nível simbólico, crítico da realidade.

 

Segundo Freud, a religião nasce fundamentalmente de uma recusa, por parte da consciência, em aceitar a "realidade". É ela um ato de rebelião pelo qual o princípio do prazer nega à realidade instaurada o status de realidade, substituindo-a por um mundo imaginário que realmente represente os im­ pulsos eróticos reprimidos pela civilização, mundo êste que passa a funcionar, para a consciência, como realidade.[11] Ora, tal atitude da consciência -a que Freud denominou neurose - e as construções que dela emergem, são segundo o pai da psicanálise, fundamentalmente disfuncionais frente à sociedade. Por isto, elas devem ser reprimidas ou pela fôrça ou voluntariamente. "Na obra da civilização", êle nos diz, tanto impossível operar sem o controle das massas por uma minoria, quanto dispensar a coerção". Os arranjos da civi­ lização estão em direta oposição às exigências do amor. As massas, "preguiçosas e destituidas de inteligência", não se apercebem disto. Por isto "não serão convencidas por meio de argumentos acêrca da inevitabilidade da repressão dos ins­ tintos".[12]

Em outras palavras: elas não se ajustarão, não se tor­ narão funcionais, voluntariamente. Êste resultado se conse­ guirá pela mediação de uma liderança esclarecida. Existe um grupo que abandonou a religião e o comportamento disfun­ cional que ela implica e se ajustou adequadamente às regras da civilização: os cientistas. "A civilização tem muito pouco a temer das pessoas educadas e dos que trabalham com os cérebros. Nelas os motivos religiosos são substituídos, sem problemas, pelo comportamento civilizado i. e., o comporta­ mento segundo as regras do princípio da realidade e pelos motivos seculares. Além disto estas pessoas são, elas mesmas, veículos da civilização.[13]

O que Freud nos diz é extremamente interessante porque êle inverte o que é frequentemente afirmado. Diz-se que a religião, por ser uma construção da imaginação e uma fuga da realidade, é essencialmente alienante e produz um compor­ tamento funcional e conservador.

A ciência, ao contrário, por se dedicar à análise objetiva do real, é o pressuposto para o pensamento e o comportamento críticos. Segundo o pai da psicanálise, a verdade é exatamente o oposto. Somente o pensamento não objetivo, isto é, que se recusa a manter-se dentro dos limites do dado e toma a imagi­ nação como o seu horizonte de referência, pode ser disfun­ cional. Somente o neurótioo tem coragem para agir em opo­ sição às regras estabelecidas. Concluiríamos que uma trans­ formação qualitativa da realidade (em oposição à sua mera expansão quantitativa) exigiria que o pensamento desiderativo, não objetivo, estabelecesse os pontos de referência imagi­ nários para a ação. O pensamento objetivo, ao contrário, por se manter dentro dos limites do dado, não tem, enquanto tal, condições para se referir a um possível que seja descontínuo em relação ao atual. A ciência, assim, não se tornou conserva­ dora e funcional por acidente. É o próprio espírito da ciência, tal como foi definido na civilização Ocidental, que faz com que ela seja necessàriamente funcional.

Esta última afirmação necessita ser elucidada. Comece­ mos destacando três das facetas mais importantes, a nosso ver, do espírito da ciência. São elas: (1) o dogma da objeti­ vidade, (2) o dogma da estrutura matemática do objeto e 3) o dogma da verificabilidade.

(1)            o dogma da objetividade afirma que o conhecimento é um ato pelo qual a consciência reflete ou reduplica o objeto que é dado exteriormente e independente dela. Duas pressupo­ sições de natureza metafísica aqui se escondem. A primeira refere-se à natureza da realidade: ela é dada, independe da consciência, e é autônoma, isto é, contém em si a lei do seu próprio ser.

Parece-me que tais pressupostos são adequados para qua­ lificar o universo físico. Estrelas, eclipses, pedras, vulcões - estas são realidades que existem quer queiramos ou não. O ato de tomar delas consciência em nada altera a sua presença no universo. Muito antes que o homem tivesse surgido e muito depois de haver êle desaparecido, a sua presença esteve e estará aí, indiferente e não alterada pelo nosso olhar.

A segunda pressuposição tem a ver com o conhecimento. O que é conhecer? Se a realidade é dada, independe da cons­ ciência e é autônoma, conhecer é nada mais que um ato de voluntária submissão da consciência ao objeto. O objeto é ativo. A consciência passiva. O dado impõe-se. A consciência ajusta-se.

Exige-se, portanto, que a consciência que observa coloque a si mesma entre parêntesis; que a lógica que lhe é imanente - a lógica do princípio do prazer e das emoções - seja reduzida ao silêncio. E isto porque a lógica da imaginação, como Sartre muito bem observa,[14] é a lógica da magia: ela pressupõe que a realidade poderia ser qualitativamente diferente do que ela é. A esperança de que a realidade possa ser qualitativa­ mente diferente do que é, assim, nenhum fundamento real possui. A realidade é fria e determinista, indiferente às aspi­ rações da vontade. Se encontramos tal esperança na cons­ ciência, portanto, isto se pode dever a uma pertubação no ato cognitivo. O ideal da consclencia científica, assim, é a consciência totalmente receptiva, passiva, que só registra e trabalha o objeto e as suas determinações.

(2)      Percebeu-se desde o início, entretanto, que tal cri­ tério é insuficiente. A consciência apreende, como perten­ cendo ao objeto, uma série de informações que embora pare­ çam provir dêle, na realidade não se referem às suas determi­ ções. Ao olhar para uma flor ela me parece colorida, tem um perfume, contém um néctar adocicado, e quando o vento passa por ela ouço um leve ruido. A ciência se apressou a indicar que tais qualidades não pertencem realmente ao objeto. Não são qualidades da coisa. São antes interpretações psicológicas, traduções mentais de outras qualidades mais fundamentais. Gosto, cheiro, som, cor, não existem no objeto mas na mente. Estas são "qualidades secundárias", que devem ser desprezadas. Variam de pessoa para pessoa. Não são abertas à verificação intersubjetiva. O que importa são as qualidades primárias  que constituem o substrato mesmo do objeto - e o que as caracteriza é o fato de serem passíveis de ser representadas matematicamente. "O livro da filosofia", observava Galileo, "é o livro da natureza, livro que aparece aberto constantemente diante dos nossos olhos, mas que poucos sabem decifrar e ler, porque está escrito com sinais que diferem daqueles do nosso alfabeto, em triângulos e quadra­ dos, --em círculos e esferas, em cones e pirâmides".[15] O objeto de que fala a ciência moderna não é, portanto, a cópia colorida que os sentidos não dão, mas antes uma construção matemática. Ê no campo das relações matemáticas que, se­ gundo o espírito da ciência, encontramos a essência do objeto, da qual as qualidades secundárias não são bem expressões e nem revelações, pois não há meios de se induzir, a partir destas últimas, a estrutura matemática do objeto. Para todos os efeitos práticos e metafísicos, as qualidades secundárias podem e devem ser colocadas entre parêntesis, como não per­ tencendo ao objeto.

Não se trata simplesmente de medir a natureza. A medida, em si, não explica. Explicar é descrever as relações funcionais que permanecem constantes entre as diversas variáveis que interferem num fenômeno.

Que é que isto significa para a metafísica da ciência? Se a estrutura da realidade é matemática, a realidade é um sistema fechado, auto-explicativo e totalmente determinado. Não há lugar para o imprevisível, para o não esperado, para o novo. Nas palavras de Laplace, uma inteligência que conhe­ cesse num momento dado do tempo "todas as fôrças por meio das quais a natureza é animada e as posições respectivas das entidades que a compõe, abarcaria numa mesma fórmula os movimentos dos corpos maiores do universo e aqueles do mais leve átomo: nada seria incerto para ela, e o futuro, como o passado, estaria presente diante dos seus olhos". As incógnitas da equação só são incógnitas para o sujeito que ainda não a resolveu, porque dentro da lógica da equação as incógnitas estão rigorosamente determinadas.

Se assim é, estamos diante de um universo em que o fu­ turo pode conter uma nova configuração de uma identidade estrutural imutável.

Compreende-se, assim, a afirmação de Thomas S. Kuhn de que a "ciência normal não tem por objeto descobrir novi­ dades de teoria e de fato e, quando bem sucedida, não as encontra".[16]

Sobre estes dois pressupostos constrói-se o critério de verificação. Uma hipótese é verificada se e somente se ela nos permite prever o comportamento da coisa no futuro. O critério da verificação assenta-se sôbre o pressuposto da continuidade e da uniformidade do real: a forma e os limites do experimentado, no presente, determinam a forma e os li­ mites do experimentável, do possível em resumo, do futuro. Isto exige que a ciência seja radicalmente futurológica e radicalmente anti-autópica.

As ciências do comportamento se construiram a partir da inveja dos filósofos sociais frente aos cientistas da natureza.

No sentido de construir uma ciência que se aproximasse em exatidão das ciências da natureza, tomaram emprestados os seus métodos e, consciente ou inconscientemente, os seus pressupostos metafísicos acêrca da natureza do real. Nas palavras de Albert Camus, "métodos implicam metafísica; inconscientemente êles revelam conclusões que frequente­ mente afirmam não conhecer ainda".[17] Assim, "na medida em que as ciências sociais tomaram como seus modelos as ciências físicas elas contêm a pressuposição (domain assup­ tion) de que pessoas são coisas”[18]. A natureza da explicação do comportamento das pessoas identifica-se com a natureza da explicação do comportamento das coisas. Toma-se por assentado que, como na natureza, a "coisa" humana é um continuo uniforme, fechado e auto-explicativo, que se move em consequência de uma lógica imanente na qual não há lugar para interrupções e saltos, de sorte que o futuro é o resultado do "desenvolvimento" do passado e do presente.

O título do último livro de B. F. Skinner é muito suges­ tivo: Beyond Freedom and Dignity[19] (tradução para o por­ tuguês, O mito da Liberdade). Deixando de lado o desenvolvi­ mento do argumento de Skinner (não posso discutir os seus pressupostos dentro dos limites deste trabalho), parece-me que o seu título se prestaria bem como moto da ciência que se institucionalizou no Ocidente. A pressuposição de que o objeto se move por meio do uma lógica inconsciente, seja no nível natural, seja no nível humano conduz, inevitavelmente

- me parece - a uma destruição da vontade como fator criador. Na melhor das hipóteses, quando a vontade parece assumir uma eficácia histórica, é porque ela coincide ou ex­ pressa os elementos realmente motores da realidade - que não são, de forma alguma, êles mesmos, de natureza volicional, mas antes estrutural e inconsciente.[20] Chegamos, assim, à conclusão de que ao critério epistemológico de objetividade corresponde, inevitavelmente o critério psicológico de ajusta­ mento. Em outras palavras: a objetividade, longe de ser uma atitude neutra, ao postular a autonomia do real face aos valores, exige uma submissão da consciência aos fatos e à sua lógica imanente, elevando-os, desta forma, à condição de valores. A ciência tenderia, assim, ainda que conscientemente o negue, a uma sacralização da realidade. Não mais faz uso de um transcendente como o seu "God-term"[21], e se en­ contra prisioneira de um "God-term" imanente. Ainda que não o deseje, funciona como religião. Parafraseando aquilo que Camus disse de Marx, sinto-me tentado a dizer que, des­ truídos os deuses transcendentes, a religião se transformou em ciência. "Na vida intelectual das sociedades", observa Leszek Kolakowski, "a maquinária das velhas crenças se enferruja, novos mitos vêm a existir, criados em massa a partir do progresso técnico e das realizações científicas".[22]

Poderíamos concordar com Philip Rieff? Penso que sim. "A ciência tem os seus próprios mistérios e entusiasmos; ligada por um cordão umbelical à tecnologia, a ciência se move ao sabor do poder na sociedade. Pelo menos os clérigos têm uma tradição de hostilidade ao estado que está por detrás deles. De suas consolações transcendentais o sentimento reli­ gioso tem pelo menos a possibilidade de criticar a ordem social, enquanto que as energias científicas, por meio de uma fácil transformação da objetividade que é necessária à ciência em 'neutralidade-face-a-valores' ou 'independencia-de-valores' são facilmente recrutadas para servir aos propósitos da socie­ dade, quaisquer que sejam êles".[23] Invertem-se as posições. A ciência tem negado sistematicamente às representações reli­ giosas status de conhecimento do real. E o faz de forma coe­ rente com suas pressuposições acerca do que é conhecer. As várias 'ciencias' da religião, que são elas se não, em última análise, esforço para desvendar o significado real da religião, significado êste que se encontra em estruturas psíquicas, so­ ciais, econômicas, etc., elas mesmas ocultas à consciência reli­ giosa?

A religião é considerada "a priori", como pressuposto de investigação, como uma linguagem que ignora sôbre que ela fala. Ora, a ciência exige que a linguagem, como expressão de conhecimento, se "ajuste" à realidade experimentada, isto é, que a cada sinal corresponda algo, no campo dos fenômenos. Nas representações religiosas nada disto encontramos. Os símbolos religiosos não são reduplicações de fatos mas antes construções da imaginação. E a imaginação é uma negação do objeto imediatamente dado, em nome das emoções e da vontade. Não podemos entretanto nos deter no que foi dito. Como sugeriu S. Kierkegaard, a significação tem a ver com o como que acompanha silencioso o falar.[24] É necessário per­ guntar, como sugeriu Wittgenstein, acêrca dos "acôrdos silenciosos"[25] que se encontram por detrás da linguagem. Sugerimos que na ciência, o acôrdo implica numa sacralização do dado. Desejo sugerir que a linguagem religiosa, ao con­ trário, contém sempre um protesto contra a sacralização do dado, uma recusa em aceitar como realidade a ordem instau­ rada , como "coisa" acessível à observação. E que, portanto, ela é sempre uma crítica de uma ordem destituida de signifi­ cação, e um perguntar sôbre uma outra ordem, não dada e não extraível da experiência imediata. A religião é uma ex­ pressão de esperança. Nas palavras de Ernst Bloch, "onde está a esperança, aí está a religião.[26] Mas a esperança em nada se assemelha às projeções futurológicas, peculiares à ciência, que se assentam sôbre o pressuposto metafísico da uniformidade e continuidade do real, e da sua resistência à criatividade e à liberdade - que a linguagem religiosa pre­ servou sob a forma mítica da crença no milagre. Como Feuerbach observou, a crença no milagre é a crença no poder da imaginação,[27] ou seja, a esperança da emergência do ines­ perado e do novo, a confiança no poder da vontade - não apenas como epifenômeno de infraestrutura determinística - uma aspiração pela utopia que, segundo Mannheim, se transforma em comportamento crítico e transformador.

Não posso apresentar tais reflexões sob a forma de con­ clusões. Na verdade elas não o são. São antes a forma como certas "suspeitas" estão tomando corpo em minha mente. Incapazes de ignorar as funções latentes da ciência e a sua evidente contradição com as intenções conscientemente con­ fessadas pelos cientistas, êstes têm tendido a resolver o pro­ blema transferindo a responsabilidade para a política. "Nós, cientistas, produzimos conhecimento puro, neutro. O seu uso é algo que foge à nossa responsabilidade e função". Sugiro que não é bem assim. A ciência se tornou conservadora e comprometida com as tendências mais desumanas de nossa civilização não em decorrência de acidentes históricos, mas em decorrência da própria metafísica da ciência.

É necessário entender o que a ciência diz, no seu silêncio, ao falar sôbre a religião. Pois êste silêncio revela o espírito daquela que fala. E é necessário entender os "acôrdos silen­ ciosos" que se escondem e se revelam na linguagem religiosa, quando ela fala sôbre "coisas" que não podemos entender.

Talvez, para surpresa nossa, perceberemos que o "ópio" se[28] revela como visão profética reprimida, pronta a explodir. E, talvez, que a fria e objetiva linguagem da ciência, tão ciosa do seu status, se revele como a linguagem de uma nova classe sacerdotal, tão bem descrita nas palavras de Max Weber:

"Especialistas sem espírito, sensualistas sem coração.

 

Esta unidade imagina haver atingido um nível de civili­ zação nunca dantes alcançado".[29]



[1] Man & Engels, On Religion (New York, Schocken Books, 1 %4), p. 41

[2] Ibid., pp. 44-45

[3] Ibid., pp. 41 -42

[4] Não estou pensando no sacerdote como um clérigo. Tenho em mente a categoria sacerdote, tal como usada como Leszek Kolakawski. "Sacerdócio", diz êle, "não é simplesmente o culto do passado contemplado através de olhos contemporâneos, mas a sobrevivência do passado sob uma forma não t rans formada. f:le é, assim, não apenas uma certa atitude inteJ.ectual para com o mundo, mas na verdade, uma forma da existência do mundo, ou seja, a continuação de uma realidade que não mais existe". "The Priest and The Jester", em The Modern Polish Mind (ed. Maria Kuncewicz) (New York, Grosset & Dunlap, 1 963 ), p. 326

[5] Em outras palavras, creio que a religião t em, em ocasiões distintaos, tido funções ora ideológicas ora utópicas, no sentido que K. Mannheim a estes têrmos. Ver K. Mannheim, Ideologia e Utopia ( Rio de Janeiro, Editora Globo, 1 954), pp. 1 79 e 5S.

[6] Alvin Gouldner, The Coming Crisis of Western Sociology (N ew York,

Avon Books, 1 971 ), p. 26.

[7] Ver R. K. Merton, Oon Theoretical Sociology (N ew York, The Free Press, 1 967), pp. 87-90.

[8] A. Gouldner, op. cit., p. 24. Referindo-se aos fnndadores da sociologia êle afirma: "Who and what is the sociologist ? In the end, ali of them made it clcar that they were oent on establíshing a new religion, a relígion of hwnanity, and that they believed its priesthood would be sociologists. In short, the sociologist was first conceived as a kind of priest". Temos de nos perguntar se o apêlo do marxismo se deve, em ultima análise, à combinação de rigor de análise com paixão religiosa. Creio que temos de considera'r a observação de Camus de qUe "Marx foi o único a entender que uma religião que não abraça a transcendência deveria ser chamada propiamente de política". ( The Rebel) (New York, Vintage Books, 1 956), p. 1 96.

[9] Mannheim, op. cit.! p. 230 e ss

[10] Paul Goodmann, "La Moralidade de la' Tecnolo"o-ia Cienti fica", em Testimonium, XII (Montevideo, Uruguay).

[11] Ver S. Freud. "Animais, Magic and the ommipotence of Thought", em Totem and Taboo, (New York, Vintage Books, 1 946), pp. 98- 1 29 e The Fufure of an Illusion ( Garden City, NY, Doubleday & Co., 1 %4).

[12] Ibid., p. 5-6

[13] Ibid., p. 63 -64.

[14] Jean-Paul Sartre, The Psychology of Imagination (New York, W<rshington Square Press, 1 968), p. 1 59.

[15] Galileo Galilei, carta de janeiro de 1 641

[16] Thornas S. Kuhn" The Structure 01 Scient ific Revolutions (Chicago, The University of Chicago Press, 1 96 ), p. 52.

[17] Albert Camus, The Myth 01 Sisyphus, op. cit o p. 9.

[18] A. Gouldner, op. cit., p. 50.

[19] B. F. Skinncr, Beyond Freedo11l and Dignity (N ew York, Alfred Knof,

1 971)

[20] Quando a Ciência colocou entre parêntesis o elemento vontade e intenção, ela não fez uso apenas de um arti fício metodológico. Esste ato de se colocar entre parêntesis assenta-se sôbre a convicção de que, em última instância, a vontade não faz diferença. Importam as grandes estruturas, que se movem pela força de um<:/ dinâmica própria imanente" indi ferente­ mente à consciência que dela tenhamos. Aceitos tais pressupostos metafí­ sicos, a ciência tem, coerentemente, de se declarar radicalmente anti-hu­ manista. São muito significativos os trechos que se seguem, considerando-se as origens diveras de onde provêm: "As filosofias metafísica e teológica ainda Í<rzem senti r a sua influência hoj e somente no sistema de estudos sociais. Elas devem ser desaloj adas desde refúgio final. E isto será levado, especialmente, através da interpretação de que o movimento social é necessariamente subordinado a leis físicas invariáveis, ao l:nvés de ser governado por uma espécie de vontade". Augusto Comte, Cours de Philosophie Positive, 4.a edição, vol. IV (Paris, 1877, p. 267). "A primeira regra e a mais fundamental é: Considere os fa tos sociais como coisas". Emile Durkheim, The Rules of Sociological Method ( New York, The Free Pr-ess, 1 964), p. 14. "Não importa o que êste proletário diretamente imagina, e nem mesmo o proletariado inteiro. O que importa é o qUe é e o que se verá obrigado historicamente a fazer por esta realidade". Marx, (A Sagrada Família). "Uma outra razão pela qua-l esta hipótese foi a primeira a fazer possivel uma sociologia 'científica' foi que a redução das relações sociais a relações de produção... ofereceu uma firme base para a concepção de que o desenvolvimento das formações socia·i s é um pro cesso de história natural (m/ ênfase) "Lenin, What the 'Friends of the People' Are", Selected Works (New York, International Publishers, 1 943, voI. XI, p. 421 ). "A small part of the universe i s enclosed within a human skin. It would be foolish to deny the existence of that private world, but it is also foolish to assert that hecause of its privacy i t is of a different nature from the world outside. The difference is not in the stuff of which the private world is composed. but in its aoccessibility". "A scientifc analysis of behaviour disposesses autonomous man and turns the control 'he has bepn said to exert over to the environment". B. F. Skinner, Beyond Preedom and Dignity (New York, Knopf, 1 971 ), pp. 191, 205.

[21] Citado por Philip Rieff:           refere-se a um conceito último, uma Primeira causa, a um tempo fundamental à experiência e inacessível à ela

[22] L. Kolawski, op. cit., p. 325

[23] Philip RieH, Freud: The Mind of the Moralist ( Garden City, Ny, Doubleday, 1 96J ), p. 327.

[24] Soren Kierkegaard, Concluding Unscientific Post-script (Princeton, Prin­ cepton University Press, 1 968), p. 181

[25] Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1 961 ), p. 70, § 4. 002

[26] Ver Ernst Bloch, Mcm on His Own (New York, Harper & Row, 1 971 )

[27] Ludwig Feuerbach, The Esse/lce of Ch1"istianity (N ew York, Harper &

Row, 1 957), p. 1 30.

[28] K. Mannheim, op. dt. p. 22 1: "Mesmo quando interiorizada, a experiência extática constitui um perigo para' a ordem vigente, pois está sempre na iminência de se expressar exteriormente, e a disciplina e a repressão constantes transforma-na. em quietismo".

[29] Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism (New York, Charles Scribner's Sons, 1 958), p. 1 82.