CONHECIMENTO CIENTIFICO DO INDIVIDUAL E COMENTÁRIOS FILOSóFICOS - UMA

ANÁLISE DO «TRACTATUS»

 

 

ARLEY R. MORENO

 

 

o Tractatus de Wittgenstein propõe-nos uma teoria dos indiscerníveis, na verdade muito sumária, que nos parece bastante útil em seus resultados, pelo menos para bem situar certos problemas de epistemologia das ciências.

Para bem compreender o alcance de tal teoria, partire­ mos das noções de " propriedades internas" dos objetos e de "estrutura" dos estados de c oisas. O comentário de número 2. 0233 afirma que "Dois objetos de mesma forma lógica - abstraindo suas propriedades externas - se diferenciam mu­ tuamente, somente por serem distintos (verschieden) ". Os objetos possuem "forma" porque eles podem constituir con­ juntos mais amplos, por combinação mútua: os estados de coisas; essa possibilidade, que delimita todos os conjuntos possíveis, constitui a forma dos objetos. Os estados de coisas possuem "estrutura" porque nada mais são de que as possibi­ lidades de combinação de seus elementos - os objetos (2. 0233). As duas noções estão, assim, dentro do mesmo campo de análise, a saber, do possível - i. e., daquilo que pode ser dito e pensado.

Para precisar nossa análise, mas sem levantar o problema que não nos concerne aqui, diremos que os objetos possuem "propriedades internas", definidas precisamente pela forma

- que não deve ser confundida com os vários tipos de for­ mas decorrentes de certas combinações de objetos: espacia­ lidade, temporalidade, coloridade etc. Assim, tanto as pro­ priedades internas dos objetos quanto as estruturas dos estados de coisas podem ser expressas na linguagem.

Verificar a diferença entre as duas noções supõe uma comparação da identidade e da diferença entre os objetos e entre os estados de coisas, em função de suas propriedades internas e de suas estruturas. Pensar um objeto supõe pensar uma conexão de objetos; a autonomia, a individualidade, é função da heteronomia (Unselbstandlichkeit) de cada objeto no estado de coisas. Pensar um objeto individual significa pensar todas as possibilidades de combinação com outros objetos, que ele contem a título de propriedades internas. Enfim, pensar um objeto, é pensar um centro de possibilidades de combinação com outros objetos - ou, o que é uma outra maneira de dizer a mesma coisa, é determinar o conjunto de estados de coisas de que o objeto em questão pode fazer parte. Cada objeto é, assim, um centro de possibilidades de estados de c oisas, i. e., é o conjunto de suas propriedades internas.

Vemos, portanto, que as propriedades internas dos objetos determinam as estruturas possíveis dos estados de coisas. Ora, como vimos, o comentário de número 2. 0233, coloca a indiscernibilidade entre objetos ao nível das propriedades internas, ou forma lógica: à identidade de formas corresponde a identidade dos objetos - afirmação que autoriza a seguinte afirmação equivalente: à identidade de estruturas corres­ ponde a identidade dos estados de coisas. Este princípio de indiscernibilidade não afeta, portanto, as propriedades ditas externas, a "cor" dos objetos, deixando aberta a possibilidade de uma pluralidade de objetos indiscerníveis e empiricamente diferentes - e, como consequência, uma pluralidade de es­ tados de coisas estruturalmente indiscerníveis e empirica­ mente diferentes. Assim, tanto as propriedades internas, quanto as estruturas, não determinam as qualidades empíricas dos objetos e dos estados de coisas.

A diferença entre os objetos pode, portanto, ser esta­ belecida do ponto de vista estrutural: cada conjunto de es­ truturas possíveis caracteriza um objeto e a diferença entre tais conjuntos mostra a diferença entre objetos determinados, que fazem parte de cada conjunto. O problema do conheci­ mento do objeto individual fica, assim, transferido para o campo do conhecimento das estruturas - a não ser que se tome como critério de conhecimento as qualidades empíricas dos objetos, que não bastam, todavia, para caracterizar cada objeto. O conhecimento do objeto individual não pode ser empírico, pois a noção de "objeto" refere-se a estruturas abs­ tratas, circunscritas pela pura possibilidade lógica do que é pensável. O individual pertence, pois, ao domínio puramente lógico, não podendo ser alcançado pelo conhecimento do empírico - domínio das clencias em geral. Note-se que, para Wittgenstein, o objeto é aquilo que é simples (2. 02), logica­ mente indivisível, e o primeiro nível de complexidade, ou composição, é representado pelos estados de coisas. A bar­ reira é intransponível, portanto, entre o conhecimento cien­ tífico e o individual ou simples.

A mesma análise deve, agora, ser feita no que concerne aos estados de coisas: o conhecimento do individual ao nível das estruturas, do complexo. Tomemos, como ponto de refe­ rência, dois objetos quaisquer, indiscerníveis. Assim sendo, teremos conjuntos de estruturas também indiscerníveis, i. e., estados de coisas idênticos. Suponhamos, ainda, para facili­ dade de exposição, que cada um dos conjuntos contenha apenas um elemento, i. e., um só estado de coisas. Teremos, então, dois estados de coisas indiscerníveis, o que pode ser representado da seguinte maneira (indicando-se pelo número

1 os objetos em questão):

 

SI::                                                     S2::

 

(Obs.: o modo pelo qual os objetos se combinam em SI e em S2 é representado aqui pela diferente disposição no papel das " posições" ocupadas por eles, o que não significa, absoluta­ mente, uma interpretação limitadora das diferentes formas possíveis de combinação dos objetos a uma tal disposição num espaço bi-dimensional, mas simplesmente, uma limita­ ção inevitável a toda exposição escrita).

 

Os objetos aqui indicados pelo número 1 correspondem a uma mesma "posição" que é ocupada por objetos empirica­ mente diferentes. Duas observações: 1) o c onhecimento

da posição "1 " é solidário do conjunto formado por Sl e S2; 2) a identidade estrutural supõe o mesmo sistema de posições, i. e., de objetos.

 

Destas duas observações, pode-se explicitar a seguinte afirmação: a indiscernibilidade de dois objetos, i. e., a iden­ tidade de suas propriedades internas, pode ser mostrada pela isomorfia estrutural dos conjuntos de estados de coisas respec­ tivos, o que pode ser exprimido na linguagem pela identidade das proposições elementares respectivas (cf. p. e., 4,21). Ora, na medida em que as proposições elementares são, para Wittgenstein, combinações de nomes (p. e., 4. 23), e estas indicam diretamente os objetos, é ao nível das proposições elementares que podem ser apreendidas as propriedades in­ ternas dos objetos, a saber, pela análise da estrutura lógica de tais proposições, ou mais específicamente, pelo desmem­ bramento das condições de verdade das proposições elemen­ tares: os nomes. E o problema se recoloca, aqui, na ordem da linguagem, uma vez que os nomes só podem ser apreen­ didos em conexão mútua, i. e., em estruturas proposicionais. Assim, como sàmente ao nível das estruturas dos estados de coisas pode ser efetivado o conhecimento dos objetos, das "posições" acima mencionadas, assim também é sàmente ao nível das estruturas proposicionais mais simples, das propo­ sições elementares, que encontramos o "sentido" - ao lado da "denotação" dos nomes: cada proposição elementar é essencialmente V-F (verdadeira-e-falsa).

Todavia, o conhecimento do sentido da proposição ele­ mentar não é ainda redutível a critérios empíricos: o sentido não é redutível ao valor de verdade. O conhecimento do sen­ tido não pode ser matéria do cientista, não é pela experiência empírica que o sentido é determinado, mas sim a priori, pela pura análise lógica da proposição: o sentido é necessário; o valor de verdade efetivo é circunstancial. É pela experiência empírica que os "fatos" serão identificados no mundo, e eles podem possuir uma estrutura mais complexa do que os esta­ dos de coisas, uma vez que estes podem se combinar e formar um fato, e isto indefinidamente (4. 2211).

Nossa exposição tenta ressaltar a relação direta entre os diversos níveis de complexidade, a partir da simplicidade lógica do objeto, e as formas correlativas que toma o conheci­ mento do "individual". Com relação ao conhecimento cien­ tífico, o individual pode ser atingido a um nível bastante elevado de complexidade, e, necessariamente, estrutural. O indivíduo não se caracteriza, entretanto, a esse nível, por uma diferença de estrutura: o as determinações empíricas que decidem. A própria caracterização do "indivíduo" será, assim, resultado de um sistema arbitrário de medidas, de um sistema científico. Mas, outros níveis em que esta noção encontra uma caracterização mais profunda, e essencial, porque necesssária: ao nível das estruturas abstratas dos estados de coisas, que são, por sua vez, o "intermediário" das propriedades internas dos objetos. A simples diferença em­ pírica não é critério suficiente, nem necessário, para estabe­ lecer a individualidade do que é mutuamnte diferente. Mas é ele, todavia, que em última análise, sustenta e se coloca necessariamente na origem de todos os sistemas científicos, que pretendem, mais ou menos explicitamente, aceder ao conhecimento do individual.

Um dos problemas que surge dessa exposição - que nos parece merecer uma conceitualização adequada - é o das relações entre a noção de "indivíduo" e o critério de simplici­ dade. A teoria do objeto, do Tractatus, leva-nos a pensar o logicamente simples como um ponto, que nada mais é do que o resultado de várias possibilidades que se interseccionam. O simples já denota, portanto, uma composição; os elementos que formam esta composição são puras possibilidades, vazias de conteúdo, mas não são, forçosamente, diferentes em qua­ lidade daquilo que compõem: não é o número de tais possibilidades que caracteriza um determinado objeto: há total identidade entre as expressões "o objeto x" e "as propriedades internas de x". O critério de simplicidade parece, aqui, vir do fato de que se trata de puras possibilidades ou virtuali­ dades de estruturas. Assim, o conhecimento necessário e a priori se apoia sobre o simples, i. e., sobre o composto de puras virtualidades.

 

E o mesmo problema se coloca quanto ao conhecimento efetivo do mundo, ao conhecimento científico; os critérios de simplicidade são, aqui, forçosamente diferentes dos ante­ riores, mas o problema é equivalente. Neste caso também, o conhecimento se realiza sobre possibilidades - aquele con­ junto de possibilidades que se realiza efetivamente no mundo. E estas possibilidades efetivas formam compostos: os fatos. E há total identidade entre as expressões "o fato x" e "o con­ junto de possibilidades X, que se realiza". O critério de sim­ plicidade é, aqui, função do nível de análise técnica a que se chegou, e a partir do qual se considera o fato em questão.

Esta análise sumária de algumas teses do Tractatus per­ mite-nos, cremos, colocar nitidamente o problema da possibi­ lidade de um conhecimento científico do individual, das condições em que um tal conhecimento pode ser tentado. É apenas em função do nível de observação a que é submetido o fato a ser conhecido que podem ser construidos os suces­ sivos parâmetros de medida, e, assim, definidos e delimitados, provisoriamente, os horizontes do individual. Cabe ao cien­ tista a tarefa de circunscrever e de explicitar o individual, segundo os critérios internos à problemática conceitual e técnica da sua ciência. Esta tarefa será sempre realizada sob as condições do arbitrário, do gradativo e, por isso mesmo, do histórico. O problema que coloca, portanto, não é o de um pretenso conhecimento da essência do individual, uma vez que este é definido em termos de estrutura, e o caminho em sua direção se faz pela criação de modelos, arbitrários sim, mas que procuram estabelecer isomorfias mútuas, como con­ dição de passagem entre os modelos e de "progresso" em direção do individual empírico.

A situação é clara no caso da ciência, e não menos clara no caso da Filosofia. Se bem que o conhecimento a priori e necessário não seja uma descrição do empírico, ele não pre­ tende aceder às pretensas "essências" próprias à problemática das filosofias tradicionais. Pelo contrário, a atividade filo­ sófica é precisamente uma crítica da linguagem, e descrição de sua estrutura: tarefa concreta, pois parte de proposições e comenta seu sentido e denotação, e, ao mesmo tempo, tarefa desprovida de sentido, pois seus comentários são necessaria­ mente absurdos. Os comentários filosóficos são meta-linguís­ ticos: não fundam sistemas, mas criticam os fundamentos dos sistemas constituídos. E esta tarefa de "esclarecimento" das proposições só pode ser levado a bom termo uma vez que se renuncia, explicitamente, a toda forma de reflexão meta­ física, e se reconhece o caráter absurdo de seus próprios comentários.

 

Se a Filosofia é crítica das ilusões transcendentais da cultura, não pode pretender-se, a si própria, uma forma de conhecimento, pois o conhecer é uma atividade dentro dos limites dados pelo possível, pelo que pode ser pensado e dito sob a forma de proposições significativas. Ao se colocar como crítica de sistemas, como discurso meta-linguístico, a Philo­ sophia se situa fora de tais limites e seu discurso é constituído por pseudo-proposições. É, pois, por um mau uso dos termos que se falaria de um "conhecimento filosófico". "... (A pa­ lavra 'filosofia' deve denotar algo que se coloca acima ou abaixo mas não ao lado das ciências naturais) " (4. 1 11).

O conhecimento científico do individual, enquanto tra­ balho de construção de modelos, cada vez mais próximos das estruturas elementares, está, assim, sujeito aos comentários filosóficos, os quais indicarão a sua adequação (ou não) aos fatos e não a validade dos modelos em si próprios, em seu rigor e precisão. Sejam quais forem os critérios, implicita ou explicitamente, propostos pelo cientista, o problema de sua adequação ou não àquilo que pretendem medir e explicar, é sempre presente e deve ser infatigàvelment colocado. Assim, a estrutura do átomo, a estrutura do fonema, a estrutura do tipo de caráter, a estrutura familial estão sujeitas ao mesmo tipo de comentários filosóficos, ao serem colocados dentro do sistema de que fazem parte e, assim, considerado o grau de adequação que estes mantêm com os fatos. Desta reflexão crítica surgirão, eventualmente, as diversas formas de conhe­ cimento correlativas aos diferentes graus e tipos de adequação. Uma análise classificatória, em função de critérios precisos e operacionais, das diversas gamas que vão do "científico" ao "mítico", passando pelo "ideológico", parece teoricamente possível - análise que nasce onde termina o discurso meta­ linguístico - ou, mais precisamente, e fora do contexto do Tractatus, o discurso meta-sistemático ou meta-estrutural - da Filosofia, e que está, também, sujeita a ele, mas com o qual não se confunde.