PARA UMA ETHICAL TURN DA TECNOLOGIA: POR QUE HANS JONAS NÃO É UM TECNOFÓBICO

 

Jelson R. de Oliveira[1]

 

Resumo: O objetivo do presente artigo é contrapor à acusação de tecnofóbico, erroneamente dirigida a Hans Jonas, a sua proposta de uma ethical turn da tecnologia, cujas bases estariam na capacidade ética de impor contenções ao avanço utópico do progresso técnico, algo que leva a ética da responsabilidade ao polêmico conceito de “heurística do temor”. Para tanto, parte-se de um exame sobre o projeto jonasiano de uma filosofia da tecnologia, cuja terceira perspectiva seria valorativa, sendo esta a que ele melhor desenvolveu. A partir daí, analisa-se qual seria o valor da tecnologia, com base no ponto de vista da vida (nos seus quatro âmbitos: presente e futura, humana e extra-humana) para então se examinar, estrategicamente, a posição de Gerard Lebrun, para quem Jonas estaria entre os filósofos tecnofóbicos. O intuito, nesse caso, é demonstrar a incoerência de tal interpretação, precisamente porque o pensador francês, com grande atuação no Brasil, confunde a proposta da reorientação ética (no sentido de um poder desde dentro da técnica) com a imposição de um poder exterior, de cunho paralisante.

 

Palavras-chave: Tecnofobia. Hans Jonas. Ethical turn. Responsabilidade. Heurística do temor.

 

Introdução: a filosofia da tecnologia proposta por Hans Jonas

Por um infeliz equívoco, o nome de Hans Jonas foi acrescentado entre os partidários da tecnofobia, considerada, do ponto de vista conceitual, não apenas como o medo dos objetos e processos tecnológicos, mas, sobretudo, como uma aversão ao próprio desenvolvimento tecnológico e uma hostilidade em relação àquilo que ele representa, no que tange aos destinos da vida humana sobre a Terra.

As razões para esse fato devem-se, no geral, a uma leitura apressada e incompleta dos argumentos jonasianos. Um exame cuidadoso de sua filosofia, principalmente aquela que se desenvolve em torno da fenomenologia da vida e alcança os problemas éticos e bioéticos em torno do princípio responsabilidade, tanto em sua versão teórica (1979) quanto em sua perspectiva prática (1985), faz ver que, longe de uma tecnofobia, o que Jonas propõe é uma ethical turn da tecnologia. Em função desses aspectos, o objetivo do presente texto é propor um caminho para esse exame, usando como referência precisamente os argumentos que lhe dirigiu Gérard Lebrun, os quais dão oportunidade, não apenas para criticar seus limites, todavia, sobretudo, de explicitar a proposta de Hans Jonas – não para defendê-lo, note-se bem, ociosa tarefa, mas para compreendê-lo melhor.

Embora Jonas não tenha desenvolvido necessariamente uma filosofia da tecnologia, ele a pronunciou como um projeto a ser desenvolvido. É o que se lê já nas primeiras páginas de Technik, Medizin und Ethik: afirmando a importância filosófica da questão da técnica como “[...] um problema tanto central quanto premente de toda a existência humana sobre a terra” e que, por isso, “[...] já é um assunto de filosofia e é preciso que exista alguma coisa como uma filosofia da tecnologia” algo que “[...] é bastante incipiente e é preciso que se trabalhe ainda sobre ela.” (TME[2], 25). A seguir, o próprio Jonas apresenta o que poderíamos chamar de as três bases desse projeto: “[...] em uma ordem sistemática, os três temas indicados, que podem servir como esquema básico da filosofia da tecnologia à qual aspiramos, referem-se à ‘forma’, ao ‘conteúdo’ e à ‘ética’.” (TME, 26). Em outras palavras, um tal projeto, de três capítulos, deveria ser capaz de analisar e descrever o modo de apresentação e os poderes e patrimônios objetivos que fornece para a vida humana, para, então, refletir sobre seu valor, do ponto de vista da urgência ética abordada por Jonas, ou seja, a proteção da vida.

Fato notável é que esse texto, publicado em sua primeira versão precisamente no mesmo ano[3] em que veio a lume Das Prinzip Verantwortung (1979), anuncia brevemente os argumentos centrais das duas primeiras questões (a forma e o conteúdo), deixando em aberto o problema ético. Ao tratar da questão formal, Jonas começa por separar dois tempos para a técnica: a época pré-moderna e a época moderna, retirando dessa diferenciação os elementos centrais que caracterizam a tecnologia como o modo moderno de apresentação da técnica. Para a análise descritiva do seu conteúdo material, Jonas volta-se “[...] às formas de poder, coisas e objetivos que o homem moderno recebe da técnica” (TME, 40), realizando uma espécie de análise histórica do fenômeno, que parte da mecânica, passa pela química, pela eletricidade, pela cibernética e pela biotecnologia, cobrindo, assim, os últimos três ou quatro séculos dos avanços tecnológicos, terminando por demonstrar como, em seu último estágio (o biotecnológico), a tecnologia assume a tarefa de “[...] desenhar nossos descendentes” (TME, 50) e, com isso, recoloca a questão antropológica em trilhos metafísicos: qual a “imagem do homem” que servirá de modelo para essa tarefa. Jonas termina bastante pessimista quanto ao papel da filosofia: “[...] a filosofia, confessemo-lo, está lamentavelmente despreparada para essa tarefa, a sua primeira tarefa cósmica.” (TME, 50).

 

1 O valor da tecnologia do ponto de vista da vida (presente e futura, humana e extra-humana)

            Resta evidente que essa última afirmação já deixa prenunciado o motivo central da análise valorativa realizada por Jonas, em um texto posterior, cuja primeira versão é de 1982.[4] Não se trata, contudo, de um simples adiamento: na verdade, bem ao contrário, podemos afirmar que o tema da ética foi precedente no tratamento da Filosofia da Tecnologia por Jonas e, talvez, o único que ele de fato tenha desenvolvido a contento, já que contorna toda a proposta de Das Prinzip Verantwortung, a obra magna que fez a fama de Jonas e lhe rendeu um lugar especial na ética contemporânea. Nesse livro, embora a técnica não seja enfocada do ponto de vista da análise descritiva de sua forma e de seu conteúdo (uma falta de que um leitor atento não demora a se dar conta), ela é o motivo central do livro, no que tange às suas consequências éticas ligadas à crise ambiental, ao esgotamento dos recursos, ao aquecimento global e à extinção das espécies. Jonas, em 1979, unido a muitas vozes que adiantaram a gravidade da situação, traz o problema ambiental para o campo da ética.

Se é verdade que, até então, o meio ambiente havia sido tratado sob o viés de certo utilitarismo antropocêntrico, baseado no debate da proteção da vida sob os interesses e fins humanos, a partir de meados dos anos 70 daquele século, o ambientalismo assumiria a questão ética precisamente ao reconhecer o direito das gerações futuras a um ambiente saudável e, mais precisamente, o valor intrínseco das formas de vida. Isso fez com que o debate ambiental assumisse a causa ecológica como justamente uma questão que tinha a ver com as relações entre os vários seres que coabitam o planeta. Como bem mostra Gudynas (2019, p. 31), a “[...] construção de uma ética para a natureza” foi resultado de vários debates ao longo das décadas de 70, 80 e 90, cujos marcos são a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, em 1972; a publicação da Estratégia Mundial da Conservação, em 1980; a criação da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em 1987; e, finalmente, a Cúpula da Terra, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992. Foi só a partir desse último evento e do seu documento final que a questão ética entra definitivamente na pauta ambiental e, mais do que isso, que o meio-ambiente é pensado como um desafio ético que leva essa área do saber para além dos muros intra-humanos nos quais ela esteve fechada, desde sua invenção, entre os gregos antigos.

            Jonas não esteve alheio a essa movimentação teórica. Toda a sua filosofia parte da constatação de um desequilíbrio entre as forças da tecnologia desenvolvidas nos últimos anos e o crescente perigo que elas passavam a representar para todas as formas de vida, por meio da destruição dos seus habitats naturais. A tecnologia, amparada no uso excessivo das máquinas de produção e no consumo exacerbado de bens e serviços, amparada, portanto, na exploração dos recursos naturais em fase de esgotamento, principalmente na queima de combustíveis fósseis, deveria, segundo o filósofo, ser tratada com mais seriedade, do ponto de vista de seus impactos. Em nenhuma das linhas de seus textos Jonas expressa qualquer elemento de diabolização da técnica ou mesmo de que todos os processos históricos nela amparados deveriam ser simplesmente cancelados. O que ele propõe é que a tecnologia deveria ser levada ao tribunal da crítica – uma utilidade que nenhum filósofo poderia deixar de reconhecer, depois de Kant. A crítica, para Jonas, deveria ser levada a cabo, a partir de uma questão valorativa, ou seja, de uma pergunta sobre o seu valor, no que tange às garantias das condições da vida humana e extra-humana, do presente e do futuro.

Ora, é precisamente isso que ele desenvolve na obra de 1979 e que desdobra em sua aplicação, nos campos da bioética em 1985. De um lado, a questão sobre a tecnologia aparecia como pano de fundo de um problema ético cuja gravidade era premente (a questão ambiental) e, de outro, como motivação para discussões a respeito da reivindicação de liberdade absoluta, por parte dos agentes tecnológicos que pretendiam, desde então, reformar a vida. Nos dois casos, o que preocupa Jonas é que a tecnologia se encontrava em ação, amparada em uma utopia do progresso técnico cujos olhos pareciam vendados e cujo entusiasmo escondia a seriedade da tarefa, suas consequências e seus perigos. Nada estranho que, aos olhos desses entusiastas, defensores do mero laisser aller do impulso tecnológico, qualquer argumento que pudesse provocar algum atraso na corrida desenfreada e – como mostramos em trabalhos anteriores[5] – também sem rumo e sem objetivos pré-determinados.

Ao propor que “[...] não nos deixemos ser possuídos por nossas máquinas” e que, para isso, seria preciso “[...] trazer o galope tecnológico sob um controle extratecnológico” (JONAS, 2013, p. 61), Jonas aparece como um percalço para aqueles que acreditam piamente que o avanço tecnológico é mesmo o destino humano e a única atividade séria a ser realizada neste planeta, depois que “Deus morreu” e, com ele, se esgotaram os sentidos de todas as ações éticas. Jonas, nesse caso, aprendeu com seu mestre Heidegger que a vontade de poder se revelou como vontade técnica emente lá onde o homem perdeu as antigas referências; agora, o que lhe cabe, é apenas exercer seu poder, mobilizado por uma “vontade de ilimitado poder” (TME, 34) que transforma o mundo em mera ocasião desse exercício. Tendo, antes, destituído a natureza de qualquer teleologia, a tecnologia moderna não vê problema em continuar atuando. Jonas propõe, nesse caso, não o total cancelamento da ação, mas um exame sério de suas premissas e a evocação de possíveis “freios voluntários”[6] (PR, 21), onde o perigo se torna evidente e o risco leva à hipoteca do futuro.

Ao tratar de um “poder sobre o poder”, Jonas não está compreendendo outra coisa senão que a ética é parte (ou deveria ser) da atividade tecnológica, ou seja, que uma coisa não existe (ou não deveria existir) sem a outra. Ora, ele sabe de antemão que um tal apelo ao “pathos da responsabilidade”, à modéstia no uso dos poderes e na prudência em relação à sua aplicação é uma voz sempre de novo “[...] abafada pelas bênçãos dos sucessos imediatos” e soa como “[...] dissonante ao ouvido da grandiloquência do poder.” (PR, 308). Em outras palavras, Jonas tem consciência de que suas propostas podem ser mal compreendidas e mesmo recusadas, com a veemência daqueles que professam sua fé no progresso tecnológico. Ainda mais quando levamos em conta que sua proposta vai além dessa contenção ética do impulso utópico, para propor uma “futurologia comparativa” apoiada em uma “heurística do temor[7]” (PR, 71). Esses dois conceitos são centrais na ética da responsabilidade: de um lado, trata-se de desenvolver a capacidade de previsão futura das consequências dos atos presentes, a fim de avaliar os seus possíveis impactos; de outro, de dar preferência para o prognóstico negativo, isto é, para o pior cenário, com o intuito de evitar que o mal imaginado se torne um mal real.

 

2 A virtude da previsão e a orientação ética da tecnologia

Jonas trata a capacidade de previsão das consequências dos atos tecnológicos como a virtude mais urgente de nosso tempo. Segundo ele, para prever o futuro, seria necessário reunir informações de todas as áreas da ciência, contar com o apoio de todos os campos da tecnologia, seus instrumentos, processos e poderes, o uso de teorias de probabilidade, técnicas de avaliação de parâmetros, análise recursiva de eventos, implementação de algoritmos, análise de múltiplos paradigmas e outras estratégias que necessitam amplamente da inteligência artificial, de novos sistemas produtivos, de novos materiais e outras formas de uso, desenvolvidas de forma inter e transdisciplinar. Assim, bem amparados, inclusive contando com certa criatividade que Jonas associou à ficção científica, seria possível imaginar o futuro.

Embora seja quase sempre difícil definir com precisão o que seria o bem desejável, fato é que a utopia tem o poder de confirmar as ações do presente, das quais brotam as consequências futuras e, além disso, dado que ela está amparada em uma esperança futura, sempre desenha positivamente o futuro.[8] Em outras palavras, se imagino o futuro como algo sempre bom, isso quer dizer que as ações do presente não precisam de avaliação ética, uma vez que, por si mesmas, conduziriam o ser humano para uma situação utopicamente desejável. A utopia confirma a ação do presente e anula a necessidade da ética, portanto. Jonas recusa essa ingênua posição, bastante comum entre os agentes tecnológicos. Conforme o filósofo judeu-alemão, dada a grandiosidade do perigo trazido pelos novos poderes da tecnologia, seria eticamente mais adequado dar preferência ao prognóstico negativo, ou seja, imaginar o mais adequadamente possível o mal que pode brotar, no futuro, das ações do presente. Uma tal imaginação colocaria em xeque justamente o bem desejado, por meio de um mal imaginado, o qual deveria conduzir a uma modificação das ações do homem no presente, antes de sua execução, com vistas a evitar o mal imaginado.

Mais uma vez, não é de tecnofobia que estamos falando, ou seja, Jonas não está anunciando um medo da técnica; bem ao contrário, conta com o seu poder para, agora, desenhar o futuro sob o ponto de vista do que deve ser evitado. Caberia a ela, por isso, com a heurística do temor, eliminar a esperança ingênua presente na utopia do progresso técnico[9], em função de um olhar mais realista daquilo que ela mesma pode produzir. Porque deve evitar o mal, o temor poderia ser um instrumento dessa que é uma ética da emergência, escrita já com um pé na catástrofe, a qual, desde aqueles anos 1970, vem dando evidências da sua gravidade. O problema, nesse caso, é o que fazer com a técnica, a fim de reposicioná-la eticamente, e não necessariamente um mero convite para certo regresso ao mundo das cavernas.

O temor, assim, não tem a palavra final no campo da ética, todavia, é apenas uma estratégia heurística, ou seja, um procedimento cujo objetivo é fazer com que a imaginação cientificamente amparada das consequências negativas possa mobilizar o sentimento de responsabilidade e impedir a ação causadora. Essa noção retira a responsabilidade do âmbito do ex post pacto, quer dizer, da mera imputabilidade da ação e a eleva à ideia de previsibilidade, cujo horizonte é o futuro, o não feito, o que não pode ou não deve ser realizado. Ou seja, para Jonas, a projeção do mal possível implica uma nova forma de consideração ética que, no geral, deve conduzir à modéstia: o “apelo a fins modestos” diante dos possíveis (já previstos ou prováveis) efeitos danosos da utopia tecnológica, deve inspirar o uso dos poderes.

Note-se, com isso, que Jonas critica não a tecnologia em si mesma, mas a sua reivindicação de liberdade absoluta diante da ética. Tal questão é desenvolvida de maneira mais detida no capítulo 5 de Technik, Medizin und Ethik, cujo título é precisamente “A liberdade da pesquisa e o bem público”, isto é, em que medida a pesquisa tem em vista o bem da sociedade. Nesse texto, o que se questiona é o direito à liberdade como um “[...] direito [que] parece ser incondicionado, quer dizer, não limitado pelo possível conflito com outros direitos” (TME, 101), ou seja, com os interesses, por exemplo, da sociedade como um todo ou das demais forma de vida ou mesmo das gerações do futuro. Ao reivindicar a liberdade absoluta e ilimitada, a tecnologia mal tenta encobrir os distintos interesses que a mobilizam, e que incluem feedback intelectual daqueles que usufruem de suas possibilidades de aplicação (geralmente entusiasmados aprovadores de qualquer iniciativa que traga algum benefício); o potencial aplicativo que passa a orientar as suas ações; os financiamentos externos, seja na forma de dinheiro público, seja de patrocínios que esperam por compensações posteriores.

Dessa feita, a pretensa liberdade reivindicada esconde interesses que nem sempre estão de acordo com o bem público que deveria orientar a sua ação. De acordo com Jonas, a tecnologia, aliada à ciência e nela apoiada, deveria garantir os critérios de veracidade e responsabilidade, como normas internas e próprias dessa atividade, a fim de que “a ciência”, afinal, e a própria tecnologia, pudessem se constituir como “uma ilha moral” (TME, 103). No fim, “[...] já́ não é uma questão de boa ou má́ ciência, mas de bons ou mais efeitos da ciência” (TME, 105) – e é precisamente sob esse viés que a tecnologia deveria ser avaliada eticamente. Esses argumentos fazem ainda mais sentido, quanto temos em conta campos tão distintos como aqueles da biologia nuclear, da biologia sintética ou da edição genética, onde a problemática da liberdade da pesquisa se apresenta de forma mais evidente e urgente, dado que estaríamos diante de exemplos claros e inquietantes (TME, 112), nos quais realidades novas podem se emancipar de seu criador, deixando para trás perguntas não respondidas sobre o que fazer, em caso de insucesso do experimentos. Em outras palavras, como se tratava de um poder inédito na história humana, os novos poderes exigem uma ética nova, capaz de alcançar os desafios que advém desses novos poderes, não para impedi-los, mas para ajudá-los a fazer melhor o que se propõem.

Observe-se como, portanto, bem lida, essa tarefa não carrega nenhum elemento tecnofóbico, muito contrário, pretende refletir sobre o estabelecimento de regras capazes de conduzir o avanço técnico para o que realmente importa: o bem comum. Como é esse o fim de toda a ação ética e, principalmente, da política, o seu abandono não poderia ser feito sem que também fossem abandonadas as cláusulas pétreas da civilização. Dessa forma, a reivindicação de liberdade ilimitada não seria mais do que um modo de negação da ética e da política e um completo desligamento da atividade tecnológica de seu dever público.

 

3 Gerard Lebrun e a acusação contra Jonas

Entre os autores que, no Brasil, contribuíram para o equívoco que associou a filosofia de Hans Jonas à tecnofobia está Gerard Lebrun. Em que pese sua inquestionável competência e sua enorme contribuição para a filosofia brasileira, não se pode desculpá-lo pela confessada pressa que o levou a anunciar Hans Jonas como tecnofóbico, no seu famoso texto Sobre a tecnofobia, de 1996.[10] Esse texto, detidamente inspirado nas críticas de Bernard Sève[11] a Hans Jonas e, antes mesmo, em Jean-Pierre Séris[12], começa por acusar os pensadores da bioética de alimentarem discursos que “[...] estigmatizam uma irresponsabilidade do ‘progresso técnico’.” (2006, p. 481).

Ao mencionar estigma, Lebrun falsifica o argumento pela via da simplificação, fechando os olhos para a necessária tarefa imposta pela bioética, desde o seus primórdios, embora mais adiante no seu texto, peça tranquilidade a seu leitor e afirme: “[...] nada neste livro minimiza os perigos que esta ou aquela intervenção tecnológica ‘arriscada’, poderia trazer para a biosfera ou para vida animal” (2006, p. 482), deixando em aberto que riscos seriam esses. Apelando para o princípio da autoridade, acusa os bioeticistas de análises vagas na defesa do interdições imprecisas, contra as quais seria necessária uma “crítica da razão técnica” (2006, p. 482), algo com que, como vimos anteriormente, Jonas certamente concordaria. Por ter lido Jonas de segunda mão (ou pelo menos influenciado por outrem) – ele mesmo confessa, em nota de rodapé, quando afirma utilizar “[...] abundantemente dois artigos de Bernard Sève” (2006, p. 483). Segundo Lebrun, Jonas estaria entre aqueles que passam facilmente do maravilhamento ao medo, inculcando-o nas mentes puras e desprotegidas da sociedade. Jonas seria “um dos mais conhecidos” desses arautos do medo, enganadores e semeadores da calamidade, “[...] em favor de um controle indispensável do ‘progresso técnico’.” (2006, p. 483).

Essa última frase deixa transparecer a fragilidade com o que Lebrun passa do seu próprio argumento ao argumento jonasiano: nem todos os que estão preocupados com o progresso técnico ilimitado promovem o medo da técnica ou consideram a tecnologia algo diabólico, a ser evitado com cruz, alho e estaca de madeira. Como já vimos, Jonas pretende que à tecnologia seja imputada uma orientação ética ou, em outras palavras, que ocorra uma ethical turn, quer dizer, uma virada ética da tecnologia, o que significaria inculcar-lhe a obrigação com o bem comum, exigir-lhe apoio na formulação de estratégias e instrumentos ecologicamente adequados e contar com seu empenho para compensar e, quando possível, corrigir os danos provocados por séculos de ação irresponsável.

Abordando a obra de Jonas (2006, p. 483) “[...] muito elipticamente (mas muito respeitosamente)”, Lebrun levanta argumentos cuja “única finalidade” seria, segundo ele, exemplificar atitudes tecnofóbicas, eminentemente expostas na proposta de um “poder sobre o poder”. Para tanto, ele cita uma passagem de O princípio responsabilidade, na qual Jonas apela para a restrição e a renúncia à utopia como forma de combater o sistema de exploração da natureza que vem levando aos enormes danos ambientais nas últimas décadas. Um leitor atento haverá de verificar com facilidade que a ética de Jonas é uma ética da contenção, da modéstia, da restrição e da renúncia, precisamente lá, e somente lá, onde a tecnologia tenha se transformado em uma ameaça para a vida na terra. Ao usar Jonas como exemplo da atitude tecnofóbica, Lebrun perde a fineza teórica que lhe é característica, optando por descontextualizar e simplificar, onde era preciso mais ruminação.

O equívoco original de Lebrun é não ter separado com precisão o que seria uma atitude tecnofóbica e aquilo que podemos chamar de uma exigência de reorientação ética (ethical turn) da tecnologia proposta por Jonas. Ao confundir as duas coisas, o filósofo não só comete um erro e uma injustiça contra o autor de O princípio responsabilidade, mas parece reivindicar o direito à liberdade ilimitada do progresso técnico – algo que, dadas as evidências históricas, só pode ser levado adiante por má-fé ou por ignorância, atitudes que vêm legitimando o negacionismo climático e tantas outras atitudes criminosas que levam, neste mesmo instante em que escrevo este texto, a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado brasileiros abaixo, sob fogo, contando com o patrocínio do atual governo federal.

Embora assevere o contrário, Lebrun trata os argumentos jonasianos com certo desdém (“[...] em vez de ridicularizar essa pedagogia fóbica, tratemo-la de forma justa”, chega a propor na página 486, como quem dialoga sem acreditar na chance do diálogo, dado que a premissa inicial parece já irredutível). Segundo ele, seria preciso dar voz aos utopistas, reconhecidos como aqueles que acreditam que todos os efeitos perversos do progresso seriam tratáveis, ou seja, remediados por novas tecnologias. Nesse caso, longe de uma neutralidade, os utopistas acreditam que a tecnologia deve seguir o seu caminho, para ser capaz de neutralizar as feridas que ela mesma faz sangrar – um argumento frontalmente oposto a Jonas, para quem a tecnologia abre muitas feridas, para as quais nunca encontrará solução, a começar pela enorme perda da biodiversidade que leva o planeta à sua sexta onda de extinção da vida, agora mais rápida do que no passado e promovida por uma única espécie. Lebrun (2006, p. 486), quanto a isso, tem sua própria posição: “[...] impossível não ser assim, caso se admita que o progresso, em princípio ilimitado, só pode se tornar (provisoriamente) nefasto em razão de bloqueios causados por este ou aquele sistema de conversões sociais, e que, uma vez livre desses entraves, ele realizará todas as suas façanhas.”

Em outras palavras: a ética, e seu campo específico, a bioética, Jonas e todos os outros seriam empecilhos para tecnologia e, nesse caso, devem ser considerados exatamente como os causadores dos bloqueios que impediriam o sucesso da tecnologia no tratamento dos danos causados. Um tal argumento, obviamente, contrasta com as evidências trazidas pela própria tecnologia, quanto, por exemplo, ao aquecimento global: estudos mostram concretamente que, muitas vezes, ou quase sempre, os danos da natureza são irreparáveis. Tais exemplos não são, conforme ironiza Lebrun (2006, p. 487), apenas “[...] água ao moinho das Cassandras.”

Lebrun (2006, p. 487) afirma que Jonas teria anunciado que a única saída para os perigos da técnica seria que “[...] a humanidade (entenda-se: os governos, as instâncias internacionais) consiga retomar o controle da força demoníaca que já escapou amplamente a seus usuários”, algo que, segundo ele, seria “de espírito platônico”, na medida em que dá aos usuários a missão de frear a intervenção técnica, impondo-lhe limites, embora não tenham eles conhecimentos suficientes do que poderá advir como resultado das intervenções técnicas. Ora, nem Jonas acha que esse seria um papel unicamente dos governos, nem pensa ele que a técnica é uma força demoníaca e nem que a tecnologia é um poder indomável. O problema, mais uma vez, não é por quem ou de que forma a tecnologia poderia ser questionada, contudo, o próprio fato de que isso seja aventado, porque, segundo o próprio Lebrun (2006, p. 503) realça, “[...] a técnica, tendo manifestado a vontade de potência que a anima, procura varrer toda instância capaz de refrear seu desenvolvimento”, isto é, é próprio da atitude técnica recusar qualquer medida ética e, acrescentemos, a melhor maneira de fazê-lo é acusando o argumento ético de ser tecnofóbico. É por isso que Lebrun acaba por, estranhamente, propor um reexame da hierarquia, que ele caracteriza como “obsoleta”, entre o técnico e o ético.

Ao concluir que, levando-se em conta o imperativo proposto por Jonas, se acabaria por paralisar a iniciativa tecnológica, Lebrun simplifica, mais uma vez o argumento jonasiano, aparentemente invalidando a própria possibilidade de que a ética tivesse alguma função diante da técnica. Para ele, Jonas teria anunciado a total ignorância dos riscos futuros, quando é justamente do contrário que se trata. Tudo acontece como se Jonas tivesse esquecido precisamente aquilo que ele mais é: ambiguidade da ação humana, ainda mais incrementada pelo poder tecnológico, mote principal que passaria a reivindicar o exame ético.

O que parece passar despercebido é o fato de que, para Jonas, um tal controle ou regulação tecnológica seriam impostos pela própria técnica: por ignorar esse fato, Lebrun acaba aludindo a “graus de competência”, a “comitê de sábios” e “especialistas em ética” que deveriam “[...] exercer uma censura sobre pesquisas que tecnicamente falando, não são de sua alçada” (2006, p. 489) e que, afinal, “[...] a ética dos filósofos não tem o monopólio das preocupações contra os perigos do ‘progresso’” (2006, p. 490), algo que caberia, afinal, também aos próprios agentes da tecnologia e da ciência. Na verdade, a formulação de Jonas nunca teve em vista a formação de algum conselho de sábios que estivesse julgando as ações tecnológicas acima de tudo e de todos. Pensar algo assim seria, no fundo, desmerecer a atividade ética, como alguma coisa absolutamente ociosa diante da presença atuante e das decisões tecnológicas.

Isso, obviamente, não passou despercebido de Lebrun (2006, p. 490), o qual acaba por afirmar que “[...] será a técnicos que nos dirigiremos para reciclar resíduos, criar motores não poluentes, energias alternativas.”. Por negligência, os tecnófobos fechariam os olhos para as consequências positivas da ação técnica e para as possibilidades de reparação de danos presentes na própria atividade técnica, na medida em que reduziriam sua ação a uma luta (embora bem intencionada) contra os fatores de risco. Portanto, o exagero do medo os levaria a negligenciar as boas possibilidades da ação técnica. Nessa perspectiva, como mau conselheiro, o medo impediria “[...] designar convenientemente seu adversário.” (2006, p. 495). Por essa medida, segundo Lebrun (2006, p. 490), seria “[...] forçoso reconhecer que um pensamento como o de Jonas nos deixa sem fio de Ariadne nesse labirinto.”

No fim, a tecnofobia começaria “[...] quando se atribuem à ‘Técnica’ responsabilidades indevidas, que ela evidentemente não possui”, ou seja, quando se lhe exige que sejam incluídos, em seus desígnios, as exigências éticas – justamente o que Jonas propõe. Mas esse argumento é logo combatido pelo próprio autor, ao reconhecer que a “crítica da razão técnica” deveria levar à autolimitação “[...] operada principalmente pelo técnico que reflete sobre sua prática” (2006, p. 495) e que, em consequência, não conceberia técnica como “um monstro a domesticar” Lebrun, afinal, retoma, quase sem saber, o próprio argumento jonasiano. Aparentemente, nada mais do que a leitura apressada de Jonas teria levado Lebrun àquela associação pelo mero motivo de que Jonas se referiu ao medo, ao mencionar os riscos, e tratou da ética como medida de contenção à reivindicação de liberdade absoluta da tecnologia. Daí em diante, o que Lebrun concluiu não está em Jonas e, ao cabo, ao que parece, nem no próprio Lebrun.

Ao final, a projeção da tecnofobia sobre Jonas não é outra coisa senão uma daquelas formas de caricaturização previstas por Jean Greisch: uma tal posição, escreve ele, “[...] é caricaturada, se alguém apresentar Jonas como uma das muitas Cassandras que nos alertam contra as consequências prejudiciais do progresso, inspirando-nos um medo paralisante.” (GREISCH, 2006, p. 120).

 

Considerações finais

Nathalie Frogneux (2007, p. 187) apela a Aristóteles para definir a função do medo, em Jonas, como uma “virtude de substituição” a fim de expressar a correta ideia de que “Jonas não fala do medo como virtude, mas ‘como o melhor substituto da virtude e da verdadeira sabedoria’.” (2007, p. 188). A vantagem do medo seria, assim, a saída da mera ignorância do perigo e da atitude imprudente, mobilizando a ação em vista da recusa daquilo que é previsto heuristicamente. Frogneux assinala o detalhe que escapa àqueles que veem nessa tese uma tecnofobia aberta: que o medo “[...] não é, porém, o todo da ética” e que “Jonas insiste nisso: ele não preconiza nem o medo por si só, nem um ‘princípio de temor’, mas lembra da dimensão heurística que permite mobilizar o ‘princípio responsabilidade’.” (2007, p. 188). Essa ideia foi notada também por Marijane Lisboa, no seu texto sobre o “Medo”, no Vocabulário Hans Jonas (2019, p. 181).

Isso significa que o acento principal do conceito de “heurística do temor” não deveria ser sobre o temor/medo, mas precisamente sobre a heurística, ou seja, sobre sua função estratégica. É aí que reside a questão central da ética proposta por Jonas e é a partir dela que podemos avaliar a sua pertinência teórica e eficácia prática. Longe de evitar e manter algum tipo de aversão ou hostilidade ao desenvolvimento tecnológico, como eticista, Jonas pretende considerar os riscos que os novos poderes carregam e os danos que vêm causando ao todo da vida sobre o Planeta, a ponto de colocar em xeque a própria existência da humanidade no futuro. Se a questão, conforme levantada por Lebrun, é saber quem pode ou deve, detectado o perigo, impor freios à ação tecnológica e qual a legitimidade dessa ação, isso não deve ser impetrado meramente por uma força exterior à tecnologia, contudo, como uma responsabilidade que lhe é própria. É essa precisamente a lição daquela ética: o que ela propõe é uma virada ética, uma reorientação da ação tecnológica em vista do bem comum, o que, cada vez mais, é a garantia da continuidade da vida humana e extra-humana.

Por fim, vale lembrar que a posição de Jonas está amparada em uma avaliação da técnica como uma “vocação humana”, algo que, em última instância, parte de uma análise ontológica e fenomenológica do evento técnico, cujas raízes remontam à pré-história humana, quando foi necessário ao ser humano, “o mais frágil e perecível dos seres” (para lembrar de Nietzsche), desenvolver uma forma de relação com o mundo ao redor e, para isso, contou com o apoio de instrumentos capazes de ampliar suas capacidades e potencializar suas performances. Nessa medida, não faria nenhum sentido temer aquilo que serviu de condição para a existência humana até aqui. Antes disso – mais uma vez – seria preciso que esse poder fosse orientado eticamente.

 

 

TOWARD AN ETHICAL TURN OF THE TECHNOLOGY: WHY HANS JONAS IS NOT A TECHNOPHOBIC

 

Abstract: The purpose of this article is to counter against the accusation of technophobic, wrongly directed to Hans Jonas, his proposal for an ethical turn of technology, whose bases would be on the ethical capacity to impose restraint on the utopian advance of technical progress, something that leads to the ethics of responsibility to the controversial concept of “heuristic of fear”. To do so, we started from an examination of the Jonasian project of a philosophy of technology, whose third perspective would be valuable, which is the one he developed best. From there, we will analyze what would be the value of technology from the point of view of life (in its four spheres: present and future, human and extra-human) and then strategically analyze the position of Gerard Lebrun for whom Jonas should be placed among technophobic philosophers. Our aim, in this case, is to demonstrate the inconsistency of such an interpretation, precisely because the French thinker with an important presence in Brazil, confuses the proposal of ethical reorientation (in the sense of a power from inside of the technique) with the imposition of an external power, of a paralyzing type.

 

Keywords: Technophobia. Hans Jonas. Ethical turn. Responsibility. Heuristic of fear.

 

Referências

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Recebido: 06/6/2021

Aceito: 19/9/2021

 



[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2362-0494. Email: jelsono@yahoo.com.br.

[2] Neste texto, usaremos as siglas convencionais para a citação da obra de Jonas: TME, para Técnica, Medicina e Ética; PR, para O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.

[3] A primeira versão expressa mais claramente, pelo seu título, o projeto de uma Filosofia da Tecnologia: Toward a Philosophy of Technology, The Hastings Center Report 9/1, 1979. Uma versão é publicada em 1981, em alemão: Philosophisches zur modernen Technik (Reinhard Low et al. Fortsehritt ohne Mab? Civitas Resultate, Munique, R. Piper.

[4] Technology as a Subject for Ethics, Social Research, v. 49, n. 4, 1982; e, em uma versão alemã: Technik, Ethik und biogenetische Kunst. Betrachtungen zur neuen Schöpferrolle des Menschen (I), Die Pharmazeutische Industrie, v. 46/47, 1984.

[5] OLIVEIRA (2018, 2020).

[6] Essa expressão, bastante ligada à pretensa tese da tecnofobia jonasiana, também deve ser analisada cuidadosamente: note-se que os freios não são impostos de fora para dentro, mas, precisamente por serem voluntários, esses freios seriam impostos pela própria tecnologia sobre si mesma, na medida em que ela assumisse as premissas éticas que devem orientar o uso do seu poder. Só assim, exercido com responsabilidade, o poder poderia minimizar (embora, na maioria das vezes, sem evitar completamente) os riscos advindos de sua atividade. Por isso, cabe ao cientista a virtude da “previsibilidade”: ele deve prever o mais adequadamente possível as consequências de suas ações, realizando um balanço entre aquilo que Jonas chama de responsabilidade positiva e negativa: o “exercício negativo” da responsabilidade ocorre quando o cientista deixa de fazer algo em função de seus perigos, enquanto a “responsabilidade positiva” se dá quando ele, depois de analisadas as consequências, conclui que vai “[...] servir, com a pesquisa, a fins benéficos, promotores da vida” (TME, 89), porque a tecnologia e a ciência em geral, como toda ação humana, são marcadas pela ambiguidade, tanto podendo ser usadas para o bem quanto para o mal: “[...] todo poder é poder para ambas as coisas e amiúde provoca ambas sem a vontade de quem o exerce.” (TME, 89). Tal ambiguidade, aliada à magnitude dos novos poderes, torna a previsibilidade um dos valores centrais da ética do futuro proposta por Jonas.

[7] Preferimos aqui a tradução de Euristik der Fucht por “heurística do temor”, ao invés do que foi feito na edição brasileira pela professora Marijane Lisboa, que preferiu “heurística do medo”. A ideia é acentuar o temor como atitude de respeito frente ao grandioso e descartar precisamente a atitude passiva e paralisante, a qual, muitas vezes, o medo parece provocar. O temor, nesse caso, traduziria melhor, no nosso ponto de vista, a intenção de Jonas: não se trata de simplesmente não fazer, mas de fazer bem, o que implica uma correta avaliação das consequências. O temor, assim, está ligado à prudência e à moderação, atitudes próprias daquele que se responsabiliza pelo que faz. Vale lembrar que a distinção proposta por Geneviève Hébert, entre os termos franceses peur e crainte, pode ser inspiradora. Segundo a opinião de Greisch (2006, p. 43), “[...] la crainte est intelligente, la peur est stupide, la première connaît ses raisons, la seconde est ‘sans pourquoi’, etc. Nous pourrions continuer l’énumération des traits différentiels, en y incluant même la ‘crainte de Dieu’ qui, selon les proverbes de la Bible, est le commencement de la sagesse.”

[8] É oportuno lembrar que O princípio responsabilidade dedica várias análises para contrapor a responsabilidade (e com ela, o temor) à esperança, tal como desenvolvida por Ernest Bloch. Sobre esse tema, cf. ZAFRANI (2014).

[9] Esse argumento foi por nós aprofundado em outro trabalho sobre a relação entre o temor e a utopia: OLIVEIRA, 2014.

[10] O texto foi publicado no livro A crise da razão, organizado por Adauto Novaes (São Paulo: Companhia das Letras, 1996). Usamos aqui a edição das obras de Lebrun no volume A filosofia e sua história (2006).

[11] “Hans Jonas et l’éthique de la responsabilité” (Esprit, out. 1990) e La Peur comme procedé heuristique (HOTTOIS, G. [ed.]. Aux fondements d’une éthique contemporaine, H. Jonas et H. Engelhardt. Paris: Vrin, 1993; versão brasileira traduzida por Marcelo Gomes e publicado por Adauto Novaes, no seu Ensaios sobre o medo. São Paulo: Senac São Paulo; Sesc SP, 2007). Este último texto tem por objetivo precisamente avaliar a eficácia heurística e a eficácia política do medo, considerado por Sève como um “ponto obscuro” do pensamento jonasiano, sem fazer qualquer referência à pretensa tecnofobia de Jonas. Greisch (2006) alude ao artigo de Hans Achterhuis, publicado na obra organizada por Gilbert Hottois e Marie-Geneviève Pinsart, Hans Jonas, nature et responsabilité, no qual o autor trata da mesma questão: “[...] celle de savoir si l’heuristique de la peur peut conduire à la sorte de responsabilité qu’il recherche, au lieu d’être celle du philosophe-roi ou de l’écologiste-roi à l'égard de ses sujets.” (ACHTERHUIS, 1993, p. 45). Mais uma vez, nenhuma palavra sobre tecnofobia.

[12] Séris trata da tecnofobia no prefácio de seu livro La Technique (Paris: PUF, 1994).