SISMOGRAFIAS: A, DE DERRIDA

 

Hugo Monteiro[1]

 

Resumo: Este texto parte da letra A, da sua importância e da sua centralidade na Desconstrução de Derrida. Em função dessa letra iniciática, indício da “ironia muda” da différance como sincategorema do pensamento de Derrida, tentar-se-á acompanhar o modo como se apresenta à Filosofia Contemporânea como uma espécie de sismo, de abalo e de nova propulsão. Sismografias tenta então reconhecer, na postura e no desenvolvimento dessa letra “A”, a forma como o trabalho de Derrida abala pela base o território dos conceitos, convocando a urgência e a responsabilidade da filosofia, da escrita e do pensamento. Nesse sentido, trata-se aqui de acompanhar as linhas de desenvolvimento de uma letra motriz, que pontuou, do início ao fim e em todas as direções, o pensamento de Derrida como idioma, como revolução filosófica, como sismografia.

 

Palavras-Chave: Desconstrução. Derrida. Différance. Ética.

 

introdução

A Desconstrução, registo do pensamento de Jacques Derrida (1930-2004), afirma-se como gesto de pensar novamente o mundo e o instituído, de repensar o próprio pensamento e a própria vida (BERNARDO, 2021, p. 27), num percurso de singular e vincada ousadia filosófico-literária. Imprimindo uma nova e decisiva radicalidade à experiência do pensamento e da escrita, a Desconstrução surge na filosofia contemporânea como num abalo sísmico: faz tremer as fundações da filosofia; desloca as bases de segurança do discurso filosófico, da sua génese e das suas fronteiras, que reequaciona de lés a lés.

Indício desse abalo sísmico é, desde o início da vida intelectual de Derrida, a marca rebelde da letra “A”, na palavra “différance”, apresentada no que provisoriamente afirmaríamos como um dos textos programáticos da Desconstrução de Derrida, “La différance” ([s.d.], p. 27-69).[2] A inscrição da letra “A”, na palavra “diferença” – différance – corresponde a uma marca gráfica inaudível na língua francesa falada, surgindo então como uma “[...] falta silenciosa à ortografia” ([s.d.], p. 28); um “A” secreto e quase intrusivo, interrompendo ou fragmentando a planura do conceito. O registo desse “A”, ao mesmo tempo discreto e ostensivo, abre a infinita tarefa de repensar a diferença, a alteridade inabsorvível ao alcance de qualquer apropriação hermenêutica ou ao horizonte de qualquer logos, assim ditando a necessidade de toda uma outra ética, de toda uma outra política, de todo um outro desígnio da filosofia, da escrita e do pensamento.

A distinção, graficamente marcada, entre o “e”, de diferença, e o “a”, de différance, diz o intervalo entre, por exemplo, a diferença ontológica, ainda determinada pelo critério da visibilidade, da presença, da propriedade ou do Ser e, por outro lado, o “A”, que sugere a distância irredutível, a promessa sem consumação ou a permanente paixão sem saciedade da alteridade absoluta. Sob reserva, em secreta e discreta ocultação que o retira da fenomenalidade e da “ordem da verdade” ([s.d.], p. 32), esse “A” excede a centralidade do Ser, do conceito ou do sentido no rumo predominante da filosofia ocidental. Na letra tremente de “différance” vive a pluralização ou heteronomização da diferença, mostrando a sua distância face à apropriação egológica, que a anula e assimila na unidade soberana, ainda metafísica, ainda onto-teo-lógica. Na escuta de Heraclito (DERRIDA, [s.d.], p. 60), o qual já se referia a “o uno diferindo de si” (“en diapheron auto”), a différance derridiana preserva, na dobra silenciosa do seu “A” motriz, uma outra trepidação, ou tremor, ou sismo, que ressoa na palavra e que a reengendra, conferindo à nossa contemporaneidade todo um outro chão.

O presente texto intenta acolher o “A” da différance como dom do pensamento de Derrida (BERNARDO, 2019), acompanhando o modo como marca e indicia um excesso, uma errância, uma hipérbole singular e decisiva no pensamento contemporâneo. No primeiro momento (1), meditaremos sobre algumas linhas de irradiação do “feixe”(DERRIDA, [s.d.], p. 29) dessa letra “A”, como letra-palavra a operar no corpus do idioma de Derrida. No segundo momento (2), abordaremos o “A”, “vogal en-cantante da Desconstrução derridiana” (BERNARDO, 2019, p. 50), no modo como introduz o tremor dissociativo na tradicional linearidade do tempo e do Ser, fazendo tremer estruturalmente as bases de toda uma ocidentalidade filosófica, para uma nova, reinventada e inventiva responsabilidade para o pensamento. Sismografia é, aqui, toda a experiência da escrita como “[...] passagem, travessia, endurance” (DERRIDA, 1996, p. 35), em que o “A”, de Derrida, surge como afirmação e paixão do impossível.

 

1 Ductilidades: A, de Derrida

No curso de um dos primeiros textos endereçados a Derrida, recolhido recentemente em livro (2019), Jean-Luc Nancy dá nota de uma palavra cujo sentido linguístico remete a cada um dos traços empregues no desenho de uma letra. Ductus é a palavra, e a sua adoção, por Nancy, surgia no seguimento de uma leitura em que o pensamento da escrita, o pensamento como escrita, colocava em elipse, ou seja, repensava de lés a lés toda a questão do sentido do ser, como toda a questão do sentido, reclamando a sua abertura, pluralidade e inquietude profunda (2019, p. 26). Nancy lia Derrida a partir da afirmação de “plus d’un seul trait”, mais do que um ductus, pluralidade do traço na Desconstrução que, lembremos, enfrenta uma das suas definições aproximativas justamente na elíptica proferição de “plus d’une langue” (DERRIDA, 1988, p. 38): mais do que uma língua, nunca mais uma só língua e nem por sombras a soberana unidade indivisível da monolíngua, territorial, fronteiriça e apropriável.

A língua, “[...] corpo apaixonado pela sua própria «divisão»” (DERRIDA, 2001, p. 20), é pluralidade do traço, multiplicidade do ductus como desenho invisivelmente sinuoso, a vários traçados e a vários excessos. E este ductus inquieto, essa sublinhada capacidade de marcar, traçar, retraçar a língua na língua, desenhando-a e redesenhando-a letra a letra, pondo-a a tremer e em tremor, singulariza Derrida, singulariza-o em excesso e excessivamente, marcando-lhe um espaço próprio de errância na língua, no que Nancy designará mais tarde por “eloquente irradiação” (2019, p. 151-158). Sob o signo do que mal se traduziria por “irradiação”, “raio”, “risco”, “radiosidade”, trata-se de abrir o ouvido filosófico “[...] aos timbres, ritmos, cadências, danças e traços, trações, irradiações, toques ou tarefas que estão fora, que são os seus outros.” (NANCY, 2019, p. 17).

Por aproximação fonética e talvez etimológica, ductus convoca o termo português “dúctil”, de maleável ou moldável, mas também “ao que pode ser reduzido a fios sem se partir”. Ou ainda à palavra “ducto”, designação de vários canais de um organismo biológico, veia ou artéria. Acrescentemos ainda, e remetendo à leitura nancyana da ductilidade plural, a resposta precária in-finita a uma alteridade sem apropriação, mistério absoluto que a cada rastro quase indicia a sua dimensão subterrânea, arqueológica, reticular, muda e invisível mas decisivamente atuante. Falamos já ao “A”, a um “A”, à singularidade do “A” de différance, do A de Derrida, no seu ductus inquieto, inesgotável, mais do que um, sublinhando que começar pelo “A” seria supostamente começar pelo princípio, pela letra primeira, começando por falar de uma letra, a qual, como explicita Derrida, acabará por constituir-se como “[...] uma fuga às normas de conveniência das leis que regem a escrita.” ([s.d.], p. 27).

É uma letra cujo traçado, o ductus do seu desenho e o ducto da sua ação, é uma quase-assinatura da escrita de Derrida, marca idiomática do seu pensamento. Esse “A” iniciático, que não inicial… por hipótese e conveniência do nosso título, esse “A” sísmico é a marca de um “nascimento pela língua” em Derrida (2001, p. 26), rastro inapropriável da língua, a sua língua, o corpo impróprio da sua língua, o ductus, o ducto da língua a escrever-se. Escreve Derrida (2001, p. 42):

E quando dizemos o corpo, nomeamos também não só o corpo da língua e da escrita como aquilo que faz delas uma coisa do corpo. Apelamos assim ao que tão rapidamente se chama o corpo próprio e que se encontra afetado pela mesma ex-apropriação, pela mesma “alienação” sem alienação, sem propriedade jamais perdida ou sem jamais conseguir reapropriar-se.

 

Vários ductus: não mais Um, mais do que (o) um. O tremor desse traçado plural, a ressonância ecoante de um “A”, profere e afirma essa impropriedade, essa não apropriação, “A” ex-apropriante a traços vários e trementes, sísmicos. Antes de Derrida, antes da sua ação sísmica, recuemos por um segundo à miragem soberanista, à ficção de um “A” iniciático.

 

1.1 Princípios

Ao princípio, o A. Ou um A em vez de um princípio. E um A na vez do princípio. Hesita-se o estatuto de um A, na sua ductilidade de vogal dançarina e de letra insinuante… Ele pode ser uma letra, a letra “A”, ainda que não uma letra qualquer. Pode ser já uma palavra, um artigo ou uma preposição, como remeter algebricamente para a primeira – sempre a primeira! – medida de quantidade conhecida. Ou pode substituir a palavra, na proferição de um espanto numa interjeição (Ah!), ainda que coadjuvada pela mudez de uma outra consoante e, nesse mesmo lance, conduzir à interjeição da certeza, do alcance ou do colonial achamento, na história, como na ciência, como na filosofia: - Ah! O “Ah” exclamativo da constatação, da adequação, da certeza apodítica de um sujeito soberano.

Confirma-se a hesitação desse estatuto pela evidência do deslizamento e de pluralização do “A”, o qual carrega ainda consigo a carga simbólica de se tratar da primeira vogal, a letra iniciática, o grau zero do alfabeto ou o passo primeiro da alfabetização como processo, do a-bê-cê ou do A-E-I-O-U em que se arranca, com letras cantadas, o silêncio literário da infância. Mais ainda, falando de um “A” específico: “A”, de Derrida. Do modo como esse “A” marca a assinatura filosófica de Derrida, o seu idioma bem vincado na contemporaneidade do pensamento, das letras, das humanidades que tão finamente repensa, de A a Z.

Sublinha-se a intensidade vigilante desse “A”, na maneira como assedia leitura e escrita numa cadência indomável e dúplice, numa dupla emergência e num duplo movimento. Por um lado, trata-se de encarar, num ímpeto inicial, uma espécie de primeira entrada num dicionário de sombras, do qual o “A” é rebelde letra primeira. Rebelde, na insurgência perante qualquer início, qualquer inaugural fundação, qualquer chão ou qualquer alicerce. Estamos desde logo condenados e já lançados no segundo movimento. Tratar-se-á, nesse segundo movimento, de reconhecer o vínculo desse “A” a uma ironia implícita, ou transgressão evidente. Um “A” que, associado a Derrida, se desadequa do seu lugar originário, da sua primazia, embora recortado na paixão pela origem rasurada, desadequada, fora dos eixos – e que perde por inadequação o seu lugar presumivelmente originário. Ao “A”, de Derrida, ao “A”, marca de água e de silêncio no coração da différance, deixa de convir o lugar e a própria palavra “origem” (DERRIDA, [s.d.], p. 50). Enquanto marca idiomática, o “A” em différance acentua a distinção na diferença e a fuga ou o afastamento na divergência.

É um “A” de descolagem, lugar do que não tem lugar nem origem, mas de onde irradia todo o ter lugar. Onde ressoa o silêncio da origem, a rasura da arkhé na repetição iterativa que é todo o discurso da origem. Um “A” mudo também, ou um desafio a todas as economias discursivas e a toda a filosofia, com o recurso mais do que simbólico à letra primeira do alfabeto, a vogal de abertura como letra do silêncio. Porque, como lembra o filósofo em De la grammatologie (1967a, p. 36), “[...] a voz das fontes não se escuta” na sua distância, assim se emudecendo o nome da “origem” e do “fundamento”, léxico do soberanismo onto-teo-fenomenológico na sua domesticação da diferença; a différance é a originariedade sem origem. O ductus desse “A” reclama uma paixão pela origem perdida, por todo um outro pensamento da origem: uma sempre recomeçada paixão, cujo recomeço rasura e desvia qualquer tentação fundacional, qualquer arquia ou arqueologia, qualquer chão metafísico.

Pesa sobre essa letra “A” o vínculo a um posicionamento primeiro e capital. Soberano. Uma soberania que, como veremos, a letra “A” – essa letra “A” – repensa, sendo o seu ante-primeiro lugar, antes de mais, o luto de uma origem ausente, um ante-primeiro luto. Indício do que, para dizê-lo com Fernanda Bernardo (2019, p. 52), é “[...] decapitação da origem, que o limite nomeia e figura”, que “ecoa no luto do próprio “eu” na sua vertente subjetiva de “ego” ou de “sujeito” ou na sua vertente sociopolítica de “cidadão”. Numa palavra, ecoa no luto do soberano. Estamos perante uma destituição, uma decapitação… já um sismo. Esse A, letra inicial do alfabeto e capital quanto ao seu lugar primeiro e posicional, esse A (por sortilégio letra final em DerridA e sílaba tónica, ou tom resolutivo na proferição do seu nome) designa uma transgressão decisiva no território estanque dos discursos da razão. Caracteriza também o questionamento do princípio condutor da arkhé, de que o “A” em différance é traço rasurante e instante de abertura da escrita como questão, “tática cega” (DERRIDA, [s.d.], p. 33) e lúdica errância para além de qualquer império, subvertendo ordem de razão e razão de ordem, por mais bem-pensantes.

O “A”, esse “A” de différance, esse “A” de Derrida, assinala o rumo de uma outra contemporaneidade, como uma espécie de sortilégio. Marca-se a tal ponto que quase se perspetivaria uma espécie de confrontação, um ímpeto polémico entre um “A” fundacional, arquetípico como letra primeira, e o “A” de Derrida, o “A” de différance, o “A” na vez do início, antes de se instituir como letra originária. Confrontação ou ímpeto polémico, desde que não se ceda à tentação facilitista da pura dualidade oposicional, da lógica binária, dos regimes de sentido, os quais, de Aristóteles à tecnocracia vigente (mesmo no campo das Humanidades), reclamam ao pensamento o critério da ordem sem desvio. O “A” de Derrida, polémico no sabor polemizador investido na crítica exigente, vigilante, sem quartel a todo o instituído, é final da paz podre de um ideal regulador que sempre se mascara como avesso da leitura. Grafa a incursão de uma desordem legente enquanto “falta silenciosa à ortografia”, “ironia muda” ou desvio da “[...] lei que rege o escrito e contém as suas normas de conveniência.” (DERRIDA, [s.d.], p. 27-28).

 

1.2 Contornos: desenhar um tremor

Permitamo-nos insistir ainda no tom dessa ductilidade, dessa inquietude do traço na repetição. Insistamos no tremor do traço, na pluralidade do ductus. Ou ainda no momento em que a pluralidade do traço se desenha, se esboça ou se gatafunha no desenho movente de uma letra. Um “A” desenha-se.

Um “A” retrata também, e retrata-se possivelmente, espectraliza-se no momento – ou espectraliza o momento – trémulo no tempo da sua caligrafia, em que assina, em que sangra, em que significa um pensamento, em que finaliza uma assinatura: Derrida confundindo-se, diz Nancy (2007, p. 18) perante o seu retrato, na “[...] sua assinatura inalterável e iterável, o seu eu assino no lugar e no espaço do eu sou.” E no seu retrato, este sobre o qual medita Nancy, assinado por Valerio Adami, é a caneta que figura no retrato, que se presta a desenhar invisivelmente a sua escrita no desenho, mas que sai, marca de inviolável singularidade, do enquadramento, tal como exorbita de qualquer soberania da mesmidade ou de qualquer pulsão mimética. Todavia, ainda assim, ainda que saindo de qualquer retrato, um “A” desenha-se. E o ato de desenhar, como lembra, Hélène Cixous (1998, p. 37), “[...] é o direito ao tumulto, ao frenesi.”

Falando de uma espécie de desencontro com o desenho e com o ato de desenhar, na sua disciplina desdobrada ou secundada pela capacidade de olhar um desenho, Derrida, para quem a dívida ou o dom, em vez da fidelidade representativa, alimentam a “graça do traço”, no desenho como na escrita (2010, p. 37), sublinha o apelo compensatório de uma outra grafia – a das palavras invisíveis da escrita: “Substituição, portanto, troca clandestina: um traço para o outro, traço por traço.” (2010, p. 45). No desalcance dessas linhas e no seu magnetismo tacteante, irradia a convocação de um outro traço, este da grafia, que é também o traço da assinatura, da contra-assinatura ou, na expressão de Ginette Michaud (2013, p. 85), da contra-(de)signatura.

Esse traço, no curso literal do seu desígnio, o qual traça um carater, inscreve uma letra progressivamente legível, distinta, inconfundível na sua marca caligráfica – designa, desenha um “A”, cada vez mais este “A”. Nem ancorado na arte do desenho, ou sequer consignado às chamadas “artes do visível”, é imensa a travessia desse “A”: na experiência da escrita em Derrida, na marca da convocação/provocação filosófica da arqui-escrita, no silêncio, na invisibilidade, na aneconomia da Desconstrução – de lés a lés este “A” se impõe, se escreve, se insinua, se desenha ou contra-designa. De lés a lés, dedicado, ou recolhido, ou discreto, ou insinuante, recolhe-se na assinatura ou lança-se no torvelinho do tempo. O tracejar do seu traço e o excesso da sua inscrição idiomática são o início sem início – a entrada inicial – de um dicionário de sombras, “memória simultânea” do espaço de errância da Desconstrução. Um “A” que remete, endereça e convoca, mas que, ao mesmo tempo, se põe a salvo da violência apropriadora do discurso, da teoria, da ordem ou da disciplina. Um “A” como rastro do Outro, irredutivelmente Outro, viral no interior do discurso, porém, móvel na palavra, nómada arredio no percurso, vadio ou indomável em cada dobra ou contorno ou linha.

Na obscuridade, desde a densidade da sua noite, a escrita desenha, engendra e redescobre – escreve luminosamente Derrida (1967b, p. 105) – “[...] no deserto um labirinto invisível, uma cidade na areia.” O desenho de uma letra urde-se, ductilmente, na separação e na distância, na solidão que fragmenta a coincidência do encontro e que nutre o desejo que a loco-move, numa certa, e apartada, e fugidia animalidade (1967b, p. 108).

Derrida sublinha a animalidade da letra, a qualidade de uma errância sem domesticação em cada letra, o desígnio da letra que é móvel na escrita, proteiforme no seu corpo variável, no movimento que liberta de cada vez cada letra da sua “literalidade inerte” (DERRIDA, 1967b, p. 109). Assim o “A”, em différance, letra escrita e muda, silenciosa, apartada que está da fala e do tradicional privilégio dos regimes de presença, de totalização e de propriedade, dos quais se constitui como discreta salvaguarda. Forma de marcar, no corpo da letra, uma inquieta excedência sobre a literalidade, esse “A”, de différance, esse “A”, de Derrida, assegura a in-finição de um movimento de referência, sobrevindo de cada vez no pensamento e na escrita e que, na Desconstrução, sublinha um nunca pacificado movimento de transbordo sobre a polarização dialética, sobre o logocentrismo reinante no discurso da tradição filosófica, sobre a unidentidade ou sobre o soberanismo da onto-teologia. No corpo da letra, desde logo e desde o primeiro ímpeto, um questionamento e um desafio a todo o instituído como marca in-finitamente insurgente da Desconstrução enquanto pensamento.

Um “A”, pois, que ilude e declina a sua presença na fala, na phoné, na voz de uma viva voz, apartado e vigilante quanto ao protagonismo dessa voz viva no fonocentrismo da tradição. Nesse “A”, no silêncio que o atravessa, ressoa a muda imposição de uma ousadia, na audácia pensativa e poética que gera e instiga.

Fala-se da incursão de um enigma irresolúvel na história aparentemente linear do sentido, da verdade e do logos. Trata-se também, claro está, de um abalo decisivo da ontologia fundamental, da gesta do ser, da onto-fenomenologia hermenêutica e da sua dedicação à verdade do ser como desvelamento. Derrida anuncia essa incursão do enigma, a enigmaticidade desse “A” deslizante, na palavra “traço”, na afirmação do nunca plenamente presente ou no vazio da presença como proximidade. Herdeiro rebelde do spur nietzschiano ou freudiano, o traço indicia a irredutível exterioridade aberta no coração da escrita como arqui-escrita (DERRIDA, 1967a, p. 103); os limites da presença do Outro, aí mesmo onde ele está, no acontecer nunca plenamente presente da sua chegança.

Há traço onde há experiência, onde há o acontecer como irrupção improgramável da vinda do outro, no rasgão do outro enquanto vulnerabilidade, no indómito aparecer da sua vulnerabilidade – o traço corresponde ao surgimento do “A” da différAnce (DERRIDA, 2013, p. 113-115). A onto-teologia é a história da subordinação do traço, de uma submissão soberanista – a história da anulação da abertura de um “A” – pela elevação do imediato da presença, pela redução à luz do sentido ou ao sentido como luz, pela sublimação ou expiação da alteridade sem domínio, que espreita furtivamente do desenho piramidal desse “A” (DERRIDA, 1967a, p. 104), que esse “A” fende e interrompe. “A”, de Derrida, é então aí mesmo a interrupção nietzschiana de Heidegger – sem esquecer a interrupção da filosofia e do tempo da filosofia pela escrita/pensamento.

O “A” de Derrida surge como o espaço estranho, a parcela maldita que anuncia o modo indizível da sua estranheza, aí, onde as ordens disciplinares e disciplinadas dos discursos instituídos exigiriam a circunscrição nos limites do logos, do theorein, da fenomenalidade sob o critério da visibilidade ou do desvelamento. Trata-se, no “A” de Derrida, de pôr em questão o próprio “A” iniciático ou a lógica do primeiro passo, do gesto soberano apoiado na solidez do fundamento. Trata-se de um gesto de escrita, de problematização e de interrogação da escrita, enquanto experiência, como suspensão do “valor de arkhé(DERRIDA, [s.d.], p. 33). Anárquica, a escrita respira dessa cripta em “A”, em “A” de Derrida e da différance, como quase-conceito da Descontrução, desse momento que se reedita a cada repetição, como se a negação da origem e ao mesmo tempo a paixão da origem se instigassem a cada nova letra e a cada traço de escrita – sempre o “A” em todas as letras; sempre uma origem suspensa e uma morte anunciada. A escrita, ao reclamar a origem como uma espécie de paixão funesta, retoma o instante originário arrastando, nessa retoma, a diferença que o nega como origem realmente arquetípica. Em cada paixão arquetípica, na vez da sua repetição, experimenta-se a falta, o rombo de “[...] qualquer coisa de invisível” (DERRIDA, 1967b, p. 431).

Prossigamos o rastro dessa invisibilidade em três ímpetos, três lances ou três envios. Continuando pelo que se poderia designar por alavanca cega, por silenciosa ductilidade de um “A”, sismicamente alavancado… Se quisermos, numa alavanca sísmica.

 

2 Alavancas

Em “Mochlos” (1990), Derrida alude ao Canto X de Odisseia, em que essa palavra – mochlos – nomeava, em grego, a trave de madeira que, pela mão de Ulisses, cegou Polifemo e libertou os Aqueus do seu forçado exílio por terras dos Ciclopes. A pesada estaca de madeira foi a melhor alavanca, o melhor mochlos ou hypomochlium (DERRIDA, 1990, p. 438), no expediente de Ulisses, capaz de assegurar a transitoriedade da sua passagem pela ilha dos Ciclopes, a mais adequada alavanca, na determinada vontade do Odisseu.

Lembremos que a passagem da expedição de Ulisses é acidental. O encontro dessa ilha fértil, “[...] terra dos Ciclopes arrogantes e sem lei” (HOMERO, 2003, X, 106), dá-se, de acordo com o próprio Ulisses, por ação destruidora de Posídon, Sacudidor da Terra (X, 283). Foi a alavanca poderosa desse urdidor de sismos que submeteu a comitiva à voracidade antropofágica de Polifemo sem lei. A ação de Ulisses, de maneira a salvar-se e aos companheiros do apetite destruidor do poderoso Polifemo, passa pelo improviso de várias alavancas: do tronco de oliveira em brasa, com o qual agride o olho vulnerável do ciclope, à vara comprida de que se socorreu para impelir a nau para fora de alcance do vingativo gigante, que, às cegas, alvejava a embarcação com cumes arrancados de montanha (X, 480-487).

Toda uma cena de temor, de tremor, de alavancagens e de clavas providenciais ante a punição ou benevolência de Posídon, Sacudidor da Terra, pai do temível e cego Polifemo. Mas também toda uma confrontação, que aqui não exploraremos, do triunfo de uma certa sensatez, boa vontade, razoabilidade ou bom senso, face aos traumas inexoráveis decorrentes dos vários provocadores de sismos, dos cegos provocados ou fortuitos arredados da evidência, da faculdade do desvendamento, do triunfo na viagem para uma verdade, uma destinação, uma origem ou um fim: a cena hipotética de uma dominante preponderância da visibilidade e do visível, como do razoável ou do racional, na história e na viagem clássica do pensamento, da filosofia (DERRIDA, 2013, p. 73).

Sublinhe-se, todavia, o tom de uma certa alavancagem que, por hipótese, antes de ser recurso aliado da linearidade de um destino, de uma ideia de razão, de razoabilidade, de logos mecânico, é bengala e alavanca de cego, propulsora ou instigadora, ou, mais modestamente, utensílio de traçagem sismográfica, das mais trementes sismografias. Nessa incidência, que não é mais do que uma insistência no texto de Derrida, uma reiterada paixão pela repetição trepidante desse “A”, acolhida em cada leitura-escrita no ductus incoincidente da différance, que sempre deriva o tom do seu envio (DERRIDA, 1985, p. 74), alertamos para o sublinhado do que chamaríamos três réplicas sísmicas, três tremores de escrita ou três iterações, tendo um dia único por provisório epicentro, por providencial alavanca. Três réplicas, três envios, no fremir de uma única data precisa, em La Carte Postale.

 

2.1 Primeira réplica: a…

Primeira letra, primeira missiva ou primeiro apelo… ou primeira resposta, numa imaginada manhã do dia 9 de setembro de 1977, de acordo com a datação de “Envois”. O dia surge sob a ameaça tormentosa do irreparável, do inapagável, cuja esmagadora definição se desarma no instante em que se torna evidente, convive em aporia com o seu oposto: “[...] au moment même où cet ineffaçable m’apparait comme l’évidence même, la certitude contraire est aussi forte.” (DERRIDA, 1985, p. 85).

O dia furta-se da luz da sua evidência, volvida secreta – e inquietantemente contraditória, e inquietantemente tocante na experiência do seu segredo. Dá-se a ler a própria leitura como instância invisível, aporética, onde os indomináveis se contaminam no mesmo perfume de ausência de poder. Tal aporeticidade denuncia o “fundo noturno”, sem chão seguro, de toda a resposta, mesmo a resposta pretensamente linear ao mais luminoso dos dias claros, se os houver. Ela inquieta a responsabilidade para com o texto e, como tal, toda uma experiência e toda uma ética da escrita-leitura (DERRIDA, 2014, p. 28-29).

Toda uma ética vivificada numa radical ilegibilidade, no silêncio ilegível do mundo que é já escrita, que está no livro onde “tudo (se) passa” (DERRIDA, 1967b, p. 113), sem que esta tecedura textual do mundo signifique qualquer clausura num mundo de papel, ou num regime de sentido, ou na velha ordem do logos. Tal ilegibilidade radical e arqui-originária ressoa no “A” tumular de différance – ela “escreve-se como différance(DERRIDA, 1967b, p. 116). Ela é, como escreve Derrida, em “Ellipse” (1967b, p. 429), “[...] a jubilosa errância do graphein”. Porque o livro é o logro e a ausência de clausura, da quebra da circularidade, de uma impossível unidentidade que continuamente se espaça e sai de si mesma, mostrando o desvio arqui-originário que se inscreve na escrita (DERRIDA, 1967b, p. 430-431), o qual se dá na leitura e se recria a cada repetição.

Como a seu modo dirá Nancy (2005), na impossível literalidade do objecto-livro, essa radical ilegibilidade reclama a leitura interminável, a reescrita, o movimento infinito que não permitirá que o livro se feche sobre si mesmo (p. 37). O ilegível é “[...] o que permanece fechado na abertura do livro.” (p. 41). Daqui se retira, em cada repetição, em cada recitação différante dessa ilegibilidade radical, “[...] uma imensa circulação estelar” (p. 60): o sismo de uma sismografia.

A singularidade da atenção de Nancy sublinha a retraçagem e a retirada do ser, no gesto de Derrida, traduzindo no limiar da leitura, dando à língua a invenção da sua própria linguagem leitora, o que não seria exatamente nem a retirada do ser nem precisamente o dom da sua presença. Antes, a exposição do ser como traço, aparição do seu ausentamento (NANCY, 2019, p. 25); uma reinscrição que, fragmentando o círculo hermenêutico, fraturando em ausência a compreensão e o sentido, interrompe o soberanismo onto-teo-fenomenológico na abertura sem poder de uma elipse. Limite do limite, onde a escrita, na atenção leitora de Nancy, põe a nu uma abissalidade maior do que qualquer velamento do ser, qualquer “caverna filosófica” (p. 27). Na sua metáfora arqueológica ou intersticial, a escrita convoca uma espécie de desejo prospetivo de um centro que se ausenta, que se furta a qualquer pulsão lógica ou espeleológica, como dirá Nancy, de “bulldozer” ou de “caterpillar” (p. 27-28), numa ausência ou vazio que vive no seu próprio-impróprio movimento; escrita-leitura, ou voraz inquietude da différance.

Não há mais a literalidade da leitura ou a ingénua representação da passividade do ato de ler. Toda a leitura, uma leitura-escrita. Toda a leitura: “A”, de Derrida.

Errância, na abertura da escrita e em direção a uma segunda réplica.

 

2.2 Segunda réplica: Alavancas

Segundo envio, datado do mesmo dia 9 de setembro de 1977.

Derrida oculta, deixa em branco o início da missiva, interrompendo esse espaço vazio inicial com uma curiosa declaração de amor, não pela palavra, mas pelo que silenciosamente congemina desde o seu interior. Escreve Derrida (1985, p. 86):

[...] e eu escrevo-te que amo as finas alavancas que passam por entre as pernas de uma palavra, entre uma palavra e ela mesma, ao ponto de fazer bascular civilizações inteiras.

 

Na palavra e no seu interior, quase sexualizando o corpo da palavra, o abalo decisivo, a convulsão nuclear, ao ponto de “fazer bascular civilizações inteiras”. Na palavra, um elemento sísmico, aqui convocado sob a forma de alavanca. Desde o interior da palavra, o elemento ou alavanca que, na palavra, faz tremer, faz tremor e achaca possivelmente a terra inteira: menos um mecanismo, uma mecânica ou uma ferramenta, todavia, abertura que, entre a palavra e na palavra, é rastro da anterioridade do Outro e afirmação da sua vinda ou chegança, ou não fosse a Desconstrução “[...] a chegança do evento e a chegança do chegante” (DERRIDA, 1998, p. 261). Resposta singular, por outro lado, ao que acontece, na singularidade da resposta à experiência do Outro, da singularidade da sua vinda desde a outra margem, da outra margem – de ti (DERRIDA, 1985, p. 86).

Uma palavra ou qualquer coisa, metaforizada sob uma mecânica de alavanca, qualquer alavanca, que, na palavra e desde o seu interior, em si inscrita e de si expedita, faz tremer a terra inteira, na vez e na da sua vinda, na vinda que é toda a vinda. E na vinda que, de novo – estamos no segundo envio, pelo menos –, como nova, inédita na sua reincidência, é toda a decisiva chegança, toda a estrutura do evento vinda de um algures que se diz no singular, que ressoa no plural como letra basculando cada achaque da terra, a cada ritmo e a cada respiração, muitas vozes na mesma letra ou singular-plural no sismo do texto. Desse texto, em específico, no modo como a sua travessia convoca, de través, a travessia sinuosa de todo o texto e de toda a letra.

Pensemos ainda nessa alavanca, nesse mecanismo frágil que, no meio de uma palavra, faz “tremer civilizações inteiras”. Pensemos no confessado amor por essa alavanca sísmica, na sua indeterminação – senão mesmo na sua hesitação tremente, sísmica em si mesma –, na abertura indeterminada da sua “força fraca” (DERRIDA, 2009, p. 34).

Abraçando a responsabilidade de pensar a Universidade, a injunção em responder ao apelo que, talvez hoje mais do que nunca[3], surja como impossível resposta ao que deve ultrapassar o instituído, o imediato, o inamovível e único pragmatismo da nova dogmática que reina sobre os saberes, Derrida insiste na necessária (e, no caso, universitária) reinvenção da responsabilidade (1990, p. 403). O desafio é claro, ainda que implique toda a tenacidade de um sonhar que se sonha em voz alta (DERRIDA, 2003a, p. 31): um repensar da responsabilidade, que, para além do solo ético-político que funda, aprisiona, institui e, necessariamente, domestica pensamento e ação, possa ser antes um tremor de terra, um processo sísmico de urgência, um abalo fundacional. Uma alavancagem que não seja a reprodução de qualquer mecanismo ou o sistémico funcionamento de qualquer alavanca. Como lembra Derrida, a Desconstrução “[...] não é nunca um agrupamento técnico de processos discursivos, ainda menos um novo método hermenêutico trabalhando sobre os arquivos ou enunciados ao abrigo de uma dada e estável instituição.” (DERRIDA, 1990, p. 424). Não se trata de corrigir ou reformar qualquer tipo de técnica ou de dar substância a um outro espectro teórico, reforçando-lhe o teoretismo. Não uma qualquer responsabilidade, uma qualquer ética ou um qualquer direito, mas o direito do direito, abalando decisivamente fundação e fundamento, já que, como escreve Derrida (1990, p. 434):

A resposta não pode ser nem simplesmente legal nem simplesmente ilegal, nem simplesmente teórica ou constativa nem simplesmente prática ou performativa. […] Esta resposta e esta responsabilidade quanto ao fundamento só pode ter lugar em termos de fundação.

 

A atenção quanto a essa fundação remete-nos para o tremor particular da sua insurgência, atendendo, se quisermos, aos moldes da sua ductilidade, do ductus da sua retraçagem. Um tremor particular quando, em vez de um novo fundamento, um outro solo surgido metafisicamente ex nihilo de qualquer novo soberano, deve o seu vigor à inventividade da sua retraçagem: desvio do traço, um novo ductus, instância de sobressalto a partir de um novo ponto de apoio, que irradie a diferença desse novo tremor. A dificuldade, o ponto crítico dessa mecânica sem mecanismo, estará na alavanca, no que se deve entender por alavancagem e na própria palavra que metaforiza o movimento capaz de catapultar a erupção do novo, outro direito (DERRIDA, 1990, p. 436). A duplicidade ou hesitação quanto a essa palavra tem obviamente a ver com a sua vinculação a uma determinada instrumentalidade de feição moderna, a qual poderia validar uma equivocada orientação técnica ou metodológica da Desconstrução, como se esta fosse exterior e posterior ao que se desconstrói (LISSE, 2002, p. 72). Entre “Mochlos” e Mémoires – Pour Paul De Man, Michel Lisse lê uma atitude dúplice de magnetismo e de reserva da parte de Derrida, face à expressão, cuja validade nesse idioma de pensamento dependerá da salvaguarda da intra-textualidade da Desconstrução.

Na sua a-genealogia, a Desconstrução não encontra âncora nem se deixa enraizar na terra firme do conceito, não se basta na delimitação dos limites ou dos géneros. Não recua ao originário e não persegue o sentido último – não recua nem persegue, antes disjunta a linearidade das linhas (do tempo, do espaço), escutando-as na pluralização do tremor, do sismo, do sísmico, de todo o texto para o qual não há alavanca, porque dele irrompe a alavanca: a “desligadura”, a “disjunção”, a “dissociação” (LISSE, 2002, p. 75), o excesso irredutível de um “A” que (se) endereça. Toda a leitura é interminável. Nas “finas alavancas” que irrompem das palavras, a evidência da não inteireza do sentido, a desintegração do constructo e, por outro lado, a auto-desconstrução como vivência e afirmação do próprio texto, que se estende em in-finitas ressonâncias: “[...] texto a perder de vista – e a fazer perder a vista!” (BERNARDO, 2019, p. 66). Por outras palavras, a fina alavanca que provoca e convoca o pensar, para além de si mesma, é a alavanca do impossível (p. 84).

Sublinhe-se o timbre de Derrida, a acentuação do seu traço precisamente aí, quando o turbilhão do texto nos lança, em quase solavanco, para a rumorosa dedicatória do texto, no texto, na sua travessia e no interno acionar das suas alavancas, no mais acidentado dos envios. Referimo-nos ao curso de um endereçamento – pour –, de uma dedicatória – à – que o inunda, dedicando-o à própria dedicatória, num cântico longo, repetido na in-finita abertura da reincidente vogal: “A”. A viagem do texto, o seu tremor ressoante, surge por hipótese catapultado pela in-finita abertura da vogal, que endereça, que respira na pulsação deslizante de um desejo, que se lança ao mais turbulento dos caminhos, que neles se enxerta, se abissaliza, se segmenta. Nunca nenhum texto é estrutura polida e sem beliscadura. Ele ostenta saliências, amolgadelas, relevos (DERRIDA, 1985, p. 87). Nada nele se pré-anuncia, se antecipa ou se prevê – antes, faz-se marcar pelo improviso ou pela precipitação, fugindo à economia do tempo: “Não um tempo homogéneo, uma plana quantidade de tempo, mas um ritmo de aceleração.” (DERRIDA, 2007, p. 26). Escuta-se a derridiana intimidade entre tempo e catástrofe, ou a solidariedade entre o curso e a interrupção, na estrutura catastrófica de toda a viagem, experiência… texto (DERRIDA; MALABOU, 1999, p. 16).

 

2.3 Terceira réplica: a…

E estamos já no terceiro envio, terceira réplica sismográfica desse dia 9 de setembro, marcado no diário.

Aqui, incidindo a atenção da leitura nesse “A” arrastado, extenso, ora mudo, ora acentuado, mas traço da matinalidade de um pensamento em “A”, vogal de onde “tudo começa” (DERRIDA, 1985, p. 91). E uma letra que, no seu traço idiomático, é uma letra solitária. Singular e essencial solidão de uma letra, de todas as letras marcadas pela manhã desta letra “A”, da sua intransmissibilidade sem mimesis, sem transferência e sem simetria. Evento de intangível singularidade, que nela se salvaguarda como o ouriço do bestiário de Derrida (2003b, p. 8), murada solidão resguardada até ao sismo, nem que este da palavra se alavanque: “[...] eu faria tremer a terra inteira para isso.” (DERRIDA, 1985, p. 94).

Como formular a solidão desse “A”? A voragem tempestuosa dessa sua salvaguarda, mas também, e por paradoxal que se afigure, da sua abertura ao mundo e ao todo do mundo, a tudo quanto é mundo, que quer fazer estremecer, respondendo-lhe? O que dizer, no tremor ressoante dessa terceira missiva, terceira réplica, nova loucura do dia, designado 9 de setembro, quando descobrimos a inexorabilidade da solidão da língua? Ou, para dizê-lo com Nancy (2019, p. 23), quando sob o nome “escrita” salta-nos a evidência de que a “linguagem está só”, apartada da pretensa palavra viva, furtada do presente vivo?

Marca do pensar como começo sem começo, sem origem, na rasura da soberania e do solo soberano, o tremor de terra e de toda a ficção do fundamento assombra a Desconstrução, na sísmica grafia de um “A” pluralizado. Oscilação decisiva do Ego, da ipseidade, mas também abalo do chão seguro do conceito, do telos e do ser, a experiência sísmica – que é a experiência da escrita – é, para Derrida, “[...] a situação típica, arquetípica, arqueológica da Desconstrução” (2012, p. 48). O mundo como horizonte, o próprio mundo na frágil in-finitude do Outro, outro-mundo[4], configuram e alavancam a dúctil divisibilidade, fratura e fragmentação das coisas e do mundo: “[...] ao mesmo tempo, corpo e solo tremem.” (2012, p. 49).

Letra tumular, letra exposta e secreta, indomesticável ductus no seu traçado, um “A” é o erguer de uma pirâmide (DERRIDA, 1979, p. 60), hesitação de cifra secreta na sua tremente estrutura. A mais solitária inviolabilidade ou o absoluto de uma separação na relação, como o que possibilita a sua aproximação dissimétrica e a síncope fragmentadora de uma continuidade, elíptica, como um cartão-postal tremendo no continuum de um corpus filosófico: “[...] eu faria tremer a terra inteira para isso”.

A incondicionalidade, respiração e morada de um “A” que alavanca o pensamento hiperbólico de Derrida como pensamento da excecionalidade, do evento, do outro como absolutamente outro, e, como tal, furtivo e sísmico face a qualquer soberania apropriante – reclama e proclama uma outra ética, uma outra singularidade, um outro direito que é, também, um outro direito à filosofia e à literatura, cujo vulto irrompe em cada sismo e em cada réplica de um abanar de alicerces, que se reacende em cada traço de leitura-escrita. Um abanão que, no ductus imprevisível de um “A”, capaz de produzir, instigar, escrever roturas, convive ao mesmo tempo com o ducto, o canal, a caverna de onde, como dirá Derrida ( apud BERNARDO, 2019, p. 25): “[...] os arquivos mais escondidos e mais esquecidos podem emergir, reaparecer constantemente e operar através da história.”

Nada desse tremor revela, tudo nesse tremor propaga. Ensaiar escutar o apelo que ressoa da sua sismografia, de certa forma no avesso de um mundo que (Derrida dixit) impõe “[...] mais linearidade, cursividade, planura”, passa pela fidelidade (im)possível à repetição encantatória, ou terrível, ou imprevisivelmente abrupta, de sismo em sismo, que ergue o amor para com uma repetição que abre, no porvir, a mais secreta e mais antiga das palavras (DERRIDA, 1992, p. 139). A escuta que se impõe na assinatura desse nome que sangra, e na vez da sua oscilação: o “A” tremente, secreto, sangrento, plural; o “A” filosófico, poético, político, literário – cada um, nenhum, mais do que um, mais do que o Um. O “A”, de Derrida.

 

Considerações finais

Uma das mais expressivas marcas de singularidade do pensamento de Derrida está no modo como se dá por inteiro, desde o seu primeiro ímpeto, desde a introdução inaugural desse “A” mudo e sísmico. Apesar de corresponder, naturalmente, ao tom e à natureza de cada problema e de cada interrogação, a Desconstrução não conhece “fases” marcadas ou “viragens” de orientação, quer ético-políticas, quer de qualquer outra feição (DERRIDA, 2004, p. 12-13). Da sua formulação se deduz o feixe de implicações, de enredos, de réplicas de um pensamento, o qual, hoje mais do que nunca, convoca e instiga a responsabilidade do pensar, com o mesmo ímpeto desse “A” hiperbólico.

Desde os seus primeiros títulos, em finais dos anos 60 do século XX, o debate com uma tradição onto-teológica, com a soberania do sujeito indiviso, ou com a perseverança de uma metafísica da presença no rumo especulativo contemporâneo, marca o que já Levinas reconheceu como o rasgão de toda uma outra via para o pensamento (LEVINAS, 2004).

A irradiação inventiva de um A – de um A, de Derrida – nutre a resistência para com uma economia da interpretação ou para com a rigidez dos limites do conceito, em nome de todo um outro pensamento do evento, do mundo, da hospitalidade, da justiça, da democracia, do ambiente, do animal etc.

Justamente, sublinhamos: etc. Um imenso etc. (MONTEIRO, 2014, p. 67), assumido como marca precária e conclusiva para o que reiteradamente engendra uma responsabilidade para com o que acontece, para com o que surge sem antecipação, para uma radicalidade sem programa que nimba a própria palavra “experiência” (BERNARDO, 2006, p. 300).[5]

Sísmica, a abertura de um “A” reclama o apelo de uma reinventada ousadia perante todas as urgências, todos os males do tempo, todas as responsabilidades impostas ao pensamento e à escrita. Hoje, como sempre, o “A”, de Derrida, como constelação diferente para a urdidura de todo um outro abecedário.

 

Seismographies. A, by Derrida

Abstract: This text departs from the letter A, in its importance and its centrality in Derrida's deconstruction. From this initiatic letter, a sign of différance’s "mute irony" as a syncategorem of Derrida's thought, we will try to follow the way in which it presents itself to Contemporary Philosophy as a kind of earthquake, a quake and a new propulsion. Seismographies tries therefore to recognise, in the posture and development of this letter "A", the way in which Derrida's work shakes up at its base the domain of concepts, , summoning up the urgency and responsibility of philosophy, of writing and of thought. In this sense it is intended to follow the lines of development of a leading letter, which marked, from beginning to end and in all directions, Derrida's thought as an idiom, as a philosophical revolution, as a seismographie.

 

Keywords: Deconstruction. Derrida. Différance. Ethics.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 01/6/2021

Aceito: 29/9/2021

 



[1] Professor na Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto (ESE/IPP), Porto – Portugal. Pesquisador do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (IF/FLUP), Porto – Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3924-497X . E-mail: hugomonteiro@ese.ipp.pt.

[2] Apesar de várias tentativas de tradução em língua portuguesa, recorrendo ao neologismo “diferância” ou “diferência”, optamos por conservar o filosofema, na verdade intraduzível, na sua forma original, seguindo o critério filosófico de algumas das opções de tradução mais recentes, nomeadamente Bernardo (2019).

[3] Mais ainda, atendendo ao efeito pandémico e sindémico da Covid-19, revelando as brutais e estruturais desigualdades e desequilíbrios, que, para lá de meros sintomas, surgem como a sustentação de um mundo de injustiças, que é preciso fazer tremer pela base.

[4] No sentido da leitura derridiana do verso de Paul Celan, “Die Welt ist fort, ich muss dich tragen”, em cujo fio se repensa toda a ideia de mundo como outro-mundo, assim como a obrigação ética de meditar de novo a “coabitação” do mundo. Para uma abordagem profunda da questão: Derrida (2008); Bernardo (2021).

[5] Para além do sentido controlado de “ensaio”, ou de “teste”, a palavra “experiência”, do latim experiri, permite ainda acolher o sentido de “provação”, do que se sofre, do que não se antecipa, do que não se vê em antecipação.