MARX TEM UM MÉTODO DIALÉTICO PRÓPRIO?[1]
Resumo: Este artigo procura responder à pergunta se Marx possui de fato um método dialético próprio. A argumentação está dividida em três partes. Na primeira, procura-se mostrar que as críticas de Marx ao método absoluto de Hegel poderiam ser tomadas por este como meras explicações sobre o seu próprio método. Na segunda parte, tecem-se algumas considerações sobre o que é o método dialético de Hegel, a partir das figuras da imediaticidade e da imediaticidade mediada. Na última parte, apresentam-se três exemplos de como Marx pratica, em sua crítica à Economia Política, exatamente aquilo que criticou no método dialético de Hegel.
Palavras-chave: Hegel. Marx. Método dialético. Ideia de liberdade.
Para Marcos Lutz Müller, in memoriam
Introdução
Neste artigo, eu gostaria de responder à pergunta se Marx tem, de fato, um método dialético próprio. Meu objetivo é apenas lançar algumas dúvidas sobre a distinção entre as formas idealista e materialista do método dialético (Arndt, 2020). Minha argumentação está dividida em três partes. Na primeira, eu pretendo recordar como Marx, de maneira alusiva, em alguns de seus escritos, se dirigiu criticamente ao método dialético de Hegel. Minha tese é de que Marx não apresenta um método alternativo à dialética hegeliana. Na segunda parte, eu gostaria de abordar o que é o método dialético, para Hegel, a partir das figuras de imediaticidade e da imediaticidade mediada, tematizadas no capítulo “A ideia absoluta” da Ciência da Lógica. Eu defendo a tese de que Marx está errado, quando afirma que a dialética hegeliana possui uma “forma mistificada”.[3] (MEGA II,10, p. 17).
Lá onde Marx esperava estar criticando a dialética hegeliana, veremos que o próprio Hegel poderia tomar as críticas dele como meras explicações do seu método especulativo. Partindo da constatação de que (1) Marx não possui uma dialética própria e (2) de que é infundada a crítica de Marx à “forma mistificada” da dialética hegeliana, eu gostaria de defender a tese, na terceira parte, de que a crítica de Marx à Economia Política só é compreensível, filosoficamente, ao pressupor o método dialético de Hegel. Eu pretendo demonstrar essa tese, por meio de três exemplos – extraídos da crítica de Marx à Economia Política, n’O Capital – que ilustram como ele interpreta determinadas relações do modo de produção capitalista, as quais estariam em conformidade com o método dialético de Hegel.
1 “DAS BESTEHENDE ZU VERKLÄREN”
No prefácio de 1873 à segunda edição d’O Capital, Marx afirma que o seu “método dialético” é o “oposto direto” (direktes Gegentheil) do método de Hegel. Para ele, Hegel fez do “efetivo” (Wirklichen) apenas uma “manifestação externa” (äußere Erscheinung) do “[...] processo de pensar, que sob o nome de ideia ele transforma em um sujeito autônomo.” Para Marx, “inversamente” (umgekehrt), “[...] o ideal não é nada mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do ser humano.” (MEGA II,10, p. 17). Ele não explica, contudo, o que seria esse “material” sem o ideal “transposto e traduzido na cabeça do ser humano”, pois, mesmo quando nós fazemos alguma referência a um objeto que está diante de nós, p. ex. uma cadeira, nós estamos sempre fazendo uso de uma palavra, ou seja, trata-se de algo externo, o qual é apreensível pela mediação de uma forma do pensar. Tanto Hegel, em sua filosofia do Espírito Objetivo, como Marx, em sua crítica da Economia Política, têm, porém, como referência “material” externa, as relações sociais que, contudo, desde o princípio já estão transpostas e traduzidas na cabeça do ser humano.
Ainda no prefácio, Marx afirma que há quase 30 anos criticou o “lado mistificador da dialética hegeliana”. Para ele, a “[...] mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não o impediu, de modo algum, que ele [Hegel] tenha sido o primeiro a apresentar, de modo abrangente e consciente, suas formas gerais do movimento.” Em seguida, Marx apresenta a sua crítica: “Ela, [a dialética], está com ele [Hegel] de cabeça para baixo. É preciso virá-la do avesso para descobrir o núcleo racional dentro do seu invólucro místico.” (MEGA II,10, p. 17) O marxismo costumou associar, de maneira simplificada, as “formas gerais do movimento” à história: a dialética seria imediatamente visível no movimento real da história. Convém, no entanto, ressaltar que o pronome “suas” – “suas formas gerais do movimento” – se refere à própria dialética. Ou seja, mesmo para Marx, Hegel foi o primeiro a expor as formas gerais do movimento do próprio pensamento dialético. Não há então propriamente uma referência a algo exterior ao pensamento. Para que a “história de todas as sociedades anteriores” se apresente como a “história da luta de classes” (MEW 4, p. 462), é necessário, antes, partir de um conceito específico de capital, o qual, por sua vez, pressupõe um método dialético. Em outras palavras, para ver a história de maneira dialética, é preciso partir de uma perspectiva determinada – de um método dialético.
É por isso que a reconstituição da gênese histórica do modo de produção capitalista é narrada apenas no penúltimo capítulo d’O Capital: “A assim chamada acumulação originária” pressupõe a formulação do conceito de capital, o qual, por sua vez, funciona como fio condutor da reconstrução histórica do modo de produção capitalista (MEGA II,10, p. 641-685). Hegel também procede da mesma maneira: a filosofia da história mundial, narrada nos §§ 348–360, forma a última parte da Filosofia do Direito e pressupõe a apresentação da ideia de Estado enquanto “totalidade da liberdade ética.” (GW 27,1, p. 23; GW 14,1).
Muita tinta também já foi gasta para tentar explicar o que seria “virar” a dialética do “avesso” (umstülpen) ou colocar de pé o que está de “cabeça para baixo” (Müller, 1982, p. 17-41; Grespan, 2002, p. 26-47). De maneira precisa, Müller (1982, p. 26) assim resume o significado dessa operação de Marx de virar a dialética hegeliana do avesso:
Virando do avesso a realidade invertida, alienada do capital, “enquanto figura objetiva consumada da propriedade privada” (31), a contradição, que estava do lado de fora, transforma-se no seu verdadeiro interior, na pérola racional desta realidade, e o que estava por dentro, a unidade resolutiva e integradora das contradições, revela-se como o seu exterior aparente, o seu envoltório não só místico, mas mistificador.
Nesse procedimento de Marx, há, porém, uma confusão entre determinações lógicas do pensamento e categorias da Economia Política.[4] A ideia absoluta de Hegel é identificada imediatamente com o conceito de capital, como se ela fosse um “[...] sistema cifrado das relações sociais capitalistas.”[5] (MÜLLER, 1982, p. 41). De acordo com Hegel, a contradição é uma “categoria” lógica, ou mais precisamente, uma determinação pura do pensar. É impossível ver ou apalpar uma contradição. O que é apreendido por meio da crítica à Economia Política são relações ou processos sociais contraditórios.
A contradição, enquanto uma determinação lógica do pensar, é tematizada por Hegel, na Lógica da Essência, a segunda parte de sua Ciência da Lógica. Assim como n’O Capital de Marx, também na Filosofia do Direito de Hegel desaparece aquela “unidade resolutiva e integradora das contradições”. A efetividade do direito aparece, para Hegel, como luta por direitos, ou seja, como colisão entre as esferas do direito.[6] Do mesmo modo, o trabalhador e o capitalista se defrontam como “[...] extremos de uma relação de produção.” (MEGA II,1, p. 217). A fim de que a relação do trabalho assalariado possa ser continuamente reposta, é preciso que as condições objetivas de trabalho se defrontem com o trabalhador como capital. A contradição, ou oposição, entre capital e trabalho permanece como uma “[...] pressuposição necessária constante para a produção capitalista.” (MEGA II,4.1, p. 80).
Nos dois casos, trata-se de colisões no âmbito da efetividade finita. Por isso, segundo Marx, o conceito de capital não pode ser considerado como a “[...] encarnação de uma ideia eterna” e a “[...] forma dialética da apresentação só é correta quando ela conhece os seus limites.” (MEGA II,2, p. 91). Hegel não discordaria dessa afirmação. Para ele também, as relações sociais tematizadas no âmbito da filosofia do Espírito Objetivo são relações finitas: “Mesmo o espírito mais alto e glorioso é, enquanto princípio de um povo particular, um princípio limitado sobre o qual o espírito do tempo passa adiante.” (GW 26,1, § 164 A.).
No parágrafo seguinte do prefácio de 1873 d’O Capital, é possível saber um pouco mais sobre o que seria esse “núcleo racional”. Marx afirma que “[...] de acordo com sua essência” – portanto, em seu “núcleo racional” – a dialética é “crítica e revolucionária” e “não se deixa impressionar por nada.” A forma supostamente “mistificada” da dialética hegeliana parece “aclarar” ou “transfigurar” (verklären) o “existente”. Já na sua “figura racional” (rationellen Gestalt), ela – a dialética de Marx – seria um “[...] incômodo e um horror para a burguesia e para os seus porta-vozes doutrinários, porque, no entendimento positivo do existente, ela inclui, ao mesmo tempo, o entendimento de sua negação, do seu declínio necessário.” O núcleo racional ou a essência crítica da dialética seria justamente o entendimento da negação do existente: “[...] ela apreende cada forma que veio-a-ser no fluxo do movimento, portanto, também de acordo com o seu lado passageiro.” (MEGA II,10, p. 17).
Marx precisaria, entretanto, explicar melhor por que a dialética hegeliana “aclara” ou “transfigura” o “existente”. Hegel tinha como objetivo “conceituar e apresentar” o Estado como algo “em si racional” e “instruir” não sobre como o Estado “deve ser” e sim como ele “deve ser compreendido”. (GW 14,1, p. 15). Para Marx, Hegel teria caído na “[...] ilusão de apreender o real como resultado do pensar […] que se move para fora de si”, enquanto o método correto de partir das categorias abstratas até as mais concretas seria, na verdade, a forma de reproduzir o mundo concreto enquanto uma “totalidade do pensamento” ou um “concreto do pensamento” – e de modo algum o “processo de surgimento do próprio concreto”.
Hegel traz, na verdade, um método para compreender conceitualmente a realidade, de maneira que esta se apresenta também como uma totalidade reproduzida pelo pensamento. Assim como Marx, ele era também consciente de que o “método teórico” precisa ter em mente (vorschweben) a “sociedade” como “[...] pressuposição constante da representação” (Vorstellung). (MEGA II,1, p. 36-37). Nos seus manuscritos preparatórios para as suas preleções, Hegel chama atenção para a “[...] diferença do princípio enquanto tal e a sua aplicação, isto é, introdução, execução na efetividade do espírito e da vida.” (GW 18, p. 153). Comentando a famosa e polêmica dupla sentença de Hegel do prefácio à Filosofia do Direito – “O que é racional, isso é efetivo; e o que é efetivo, isso é racional” (GW 14,1: 14) –, Jaeschke (2016, p. 252) aponta para uma “diferença ontológica” entre a “razão efetiva” e as “configurações e contingências que se mostram na superfície” do mundo real.
Se, tanto para Hegel como para Marx, há uma diferença (que só pode ser desde sempre para o pensamento) entre o mundo prático e o “concreto do pensamento”, é possível concluir que uma suposta dialética materialista também precisaria de alguma forma “transfigurar” o “existente”, ao reproduzi-lo como “totalidade do pensamento”. Em sua crítica a Hegel, Marx utiliza o verbo verklären, o qual, além de “aclarar” ou “transfigurar”, também pode significar “tornar algo mais bonito” ou “deixar algo aparecer como mais bonito e melhor”. A dialética hegeliana deixaria o existente aparecer como algo melhor do que ele realmente é.
Marx, no entanto, não apresentou uma alternativa de como reproduzir o existente como totalidade do pensamento, sem “transfigurá-lo”. Ele cai, além disso, em uma aporia, pois, se a sua dialética materialista fosse imediatamente o movimento real da história, ela se confundiria justamente com o “processo de surgimento do próprio concreto”, ou seja, ela seria alvo de sua própria crítica a Hegel. Em carta a Engels, de 14 de janeiro de 1858, Marx escreveu que, caso tivesse tempo novamente, ele “[...] teria um grande prazer, em 2 ou 3 páginas impressas (Druckbogen), em tornar acessível ao senso comum o racional (das Rationelle) do método que Hegel descobriu e ao mesmo tempo mistificou.” (MEGA III,9, p. 25). 2 ou 3 “Druckbogen” corresponderiam a algo entre 32 e 48 páginas de um livro. Ou seja, não passava pela cabeça de Marx escrever uma obra alternativa à Ciência da Lógica de Hegel. Pelo número de páginas, seria possível imaginar que ele teria uma crítica apenas ao capítulo final da Lógica de Hegel – “A ideia absoluta” (GW 12, p. 236-253). Vejamos então como Hegel apresenta lá o seu método dialético.
2 O restabelecimento da imediaticidade ou a imediaticidade mediada
No prefácio de 1831 à Ciência da Lógica, Hegel afirma que a filosofia em geral tem de lidar com objetos concretos – como Deus, Natureza e Espírito –, mas a Lógica se ocupa desses objetos, em sua “completa abstração” (GW 21, p. 13). Mas o que seria se ocupar desses objetos em sua completa abstração? Para Hegel, o conteúdo da Lógica é “[...] a apresentação de Deus, como ele é em sua essência eterna antes da criação da natureza e um espírito finito.” (GW 21, p. 34) Quem abstrai desses objetos concretos precisa também os pressupor. Ao abstrair desses objetos concretos, nós encontramos as determinações abstratas do pensar – formas puras do pensar, como Ser, Relação, Igualdade, Diferença, Contradição etc. Hegel nos lembra de que as determinações abstratas do pensar são desde sempre conhecidas por nós, por meio do uso comum da linguagem (GW 21, p. 10). É por isso que Hegel defende que a filosofia não precisa criar nenhuma terminologia nova[7] (GW 21, p. 11). Filósofo ou não, nós estamos sempre fazendo uso de formas abstratas do pensar, a fim de pensar e se situar no mundo. Quando se afirma, p. ex., que a corrupção contradiz valores democráticos, se está fazendo uso da “categoria” contradição. Para emitir tal juízo, ninguém precisa saber o que é uma contradição enquanto tal. A tarefa da Lógica é justamente elevar à consciência o uso dessas determinações abstratas do pensar, que nós desde sempre utilizamos de maneira instintiva (GW 21, p. 16).
De acordo com Hegel, o início da Lógica é algo “imediato”, um “contemplar suprassensível interior” (übersinnliches, innerliches Anschauen). O Ser, enquanto primeira categoria da Ciência da Lógica, é algo “encontrado previamente” (vorgefundenes) (GW 12, p. 239). Marx emprega a mesma expressão übersinnlich (suprassensível), para justificar o começo de sua apresentação, a partir da forma mercadoria (MEGA II,2, p. 36). Entretanto, diferentemente da mercadoria, que é uma coisa exterior (Ding), o Ser é um “contemplar interior” (innerlich). Apesar de ser algo encontrado previamente, o Ser não é uma “representação” (Vorstellung) e nem um “imediato da contemplação sensível”. Ele é tematizado como um objeto do pensamento. Enquanto uma “relação abstrata consigo mesmo”, o Ser é uma universalidade abstrata (GW 12, p. 239).
Essa mesma argumentação é utilizada por Hegel, de sorte a justificar o começo da Filosofia do Direito com a categoria de pessoa: a pessoa é a “[...] relação simples consigo mesmo em sua singularidade.” (GW 14,1, § 35). Enquanto algo abstrato, o Ser é, como a forma mercadoria e o conceito de pessoa, “pobre em si” (GW 12, 240), porque, assim como essas duas determinações concretas do pensar, ele marca apenas o início da apresentação e pressupõe todo um conjunto de determinações conceituais mais concretas.
Como a universalidade abstrata e imediata é “pobre em si” ou “insuficiente”, ela possui em sim mesma o impulso de prosseguir em seu processo de determinação conceitual. A universalidade simples e abstrata, ao ser uma determinação insuficiente, contém em si mesma a sua negação. Por isso, o que é imediato é já algo mediado. A universalidade abstrata contém em si mesma uma outra determinação, a qual se mostra como o negativo do imediato (GW 12, p. 245). Todavia, a segunda determinação do método dialético, a negação da universalidade abstrata, “mantém e conserva” em si mesma a primeira determinação: o que é mediado (das Vermittelte) se apresenta como o outro do imediato.
Nessa perspectiva, a segunda determinação é já uma terceira: a determinação que medeia (Vermittelnde), pois o que é mediado conserva o seu outro, o que é imediato e positivo. Ele é, assim, o outro de um outro (GW 12, p. 245). Enquanto determinação negativa da dialética, o que é mediado põe, portanto, o que é imediato de maneira mediada. Enquanto o outro do outro, o negativo é a relação negativa consigo mesma (GW 12, p. 246). Ele é o “pensar da contradição” e o “momento essencial” do procedimento lógico-conceitual – a dialética posta nela mesma (GW 12, p. 245). Mas, enquanto relação negativa consigo mesma ou o outro do outro, a terceira determinação mediadora é o “negativo do negativo”. Ao conservar o que é positivo e imediato, ela repõe a primeira imediaticidade como uma imediaticidade mediada. A terceira determinação é, desse modo, “a contradição que se suspende” (der sich aufhebende Widerspruch). Ao restabelecer a primeira imediaticidade, o negativo do negativo se apresenta como o que é positivo, idêntico e universal (GW 12, p. 247).
À primeira vista, pode parecer algo conservador restabelecer a realidade imediata, através do pensamento dialético. Nós encontramos, entretanto, esse mesmo procedimento do pensar conceitual no capítulo 21, “Reprodução simples”, do Livro I d’O Capital de Marx: se, no capítulo 4, “A transformação do dinheiro em capital”, a “[...] separação entre o produto do trabalho e o trabalho, entre as condições objetivas de trabalho e a força subjetiva de trabalho, era de fato o fundamento dado do ponto de partida do processo capitalista de produção”, agora, o que “[...] inicialmente era apenas ponto de partida é produzido sempre de novo pela mediação da mera continuidade do processo, da reprodução simples, e perpetuado (verewigt) como resultado próprio da produção capitalista.” (MEGA II,10, p. 510). A primeira imediaticidade – a condição para o processo de produção capitalista, a separação entre força de trabalho e as suas condições objetivas de trabalho – é reposta e restabelecida continuamente pela mediação do processo de produção capitalista.
De acordo com Hegel, o restabelecimento da primeira imediaticidade como imediaticidade mediada forma um “círculo” (GW 12, p. 249), ou seja, um “sistema da totalidade” (GW 12, p. 250), no qual a progressão da determinação conceitual, partindo das formas mais simples e abstratas do pensar em direção às mais concretas, conserva o começo na apresentação do seu resultado: o progresso da determinação conceitual é, ao mesmo tempo, um processo regressivo de fundamentação do que foi imediatamente dado (GW 12, p. 251). Ao tematizar a totalidade das formas abstratas do pensar, a filosofia tematiza as próprias condições do seu modo de proceder, por meio de conceitos. Ela pode se afirmar como um saber sem pressuposições, e o que é sem pressuposições não é condicionado por nada. Por isso, o método dialético de Hegel é uma ideia do incondicionado, e o que é incondicionado é absolutamente livre.[8] “Método absoluto” é um método do saber sem pressuposições, porque tematiza a si mesmo. Ele é, ao mesmo tempo, uma “ideia absoluta”, enquanto ideia lógica da liberdade que percorreu todas as determinações abstratas do pensar conceitual.[9] A autossuficiência do pensamento dialético se realiza, porém, apenas no interior da esfera lógica. Diante do mundo exterior, a ideia do conhecimento dialético está encerrada em sua subjetividade (GW 12, p. 253). Por conseguinte, o método absoluto é, antes de tudo, um ponto de vista filosófico que traz uma ideia da liberdade enquanto método de apreensão conceitual do mundo efetivo.[10]
A mediação do método dialético como forma de apreender conceitualmente a efetividade traz o “[...] impulso da perfectibilidade” da ideia lógica da liberdade.[11] (GW 18, p. 182). Disso decorre que a dialética hegeliana também não pode deixar se impressionar por nada (MEGA II,10, p. 17), no sentido de que a pura e perfeita autodeterminação da ideia lógica de liberdade não pode ser encontrada no mundo efetivo, o qual, por sua vez, permanece sendo essencialmente contraditório.[12] Não se trata, no entanto, de trazer um princípio de perfectibilidade para a interpretação da realidade. Conforme Hegel, a perfectibilidade, enquanto princípio, traz apenas uma concepção indeterminada de mudança em direção a um fim melhor e mais perfeito (GW 18, p. 182). O método dialético é, antes, o resultado inseparável da ideia da liberdade, que forma para Hegel o “[...] princípio condutor do desenvolvimento.” (GW 18, p. 184).
Pressupor o método dialético deve, portanto, formar o ponto de partida, não somente (1) para apresentar um conceito de capital – e, a partir deste, a gênese histórica do modo de produção capitalista e a necessidade de sua superação – mas também (2) para apresentar uma ideia de Estado ético, que forma, por sua vez, o fio condutor para reconstituir a história mundial enquanto “[...] progresso na consciência da liberdade.” (GW 18, p. 153). Partir do método dialético implica necessariamente “aclarar” ou “transfigurar” o “existente”, deixá-lo parecer algo melhor – isto é, em abrir horizontes de expectativas –, com base em uma ideia da liberdade. Em seguida, eu gostaria de ressaltar três exemplos de como o “progresso na consciência da liberdade” aparece – ainda que implicitamente e de maneira turva – na crítica de Marx ao modo de produção capitalista.
3 Três exemplos vagos de progressos na consciência da liberdade
Em sua Filosofia do Direito, Hegel afirma que o “[...] método de como, na ciência, o conceito se desenvolve a partir de si mesmo e é somente um progredir imanente e um produzir das suas determinações […] é, aqui, igualmente pressuposto a partir da Lógica.” (GW 14,1, § 31). Pressupor o método dialético significa que formas abstratas do pensar conceitual – Ser, Identidade, Diferença, Contradição etc. – não são novamente objeto de análise, na Filosofia do Direito. O mesmo deve valer para O Capital de Marx. Não faz sentido procurar, p. ex., um conceito marxiano de contradição, na leitura d’O Capital, quando Marx está analisando o modo de produção capitalista, a partir de categorias da Economia Política, isto é, das formas econômicas de determinação (MEGA II,2, p. 80). Hegel diria que as contradições sociais analisadas em sua apresentação da sociedade civil burguesa, na Filosofia do Direito – assim como n’O Capital de Marx – também adquirem um outro sentido daquele dado em função da análise lógica da “categoria” de contradição.
Como vimos, pressupor a Lógica tem, na verdade, o sentido aparentemente paradoxal de não pressupor nada, pois a análise prévia das formas abstratas do pensar conceitual significa fazer um uso refletido destas, para a análise de relações concretas do mundo empírico. Ao pressupor o método dialético, a filosofia pressupõe uma ciência que previamente analisou logicamente o seu próprio método de proceder, através de formas conceituais do pensar. Por isso, a pressuposição do método traz uma ideia de que o pensar conceitual não é condicionado por nada, já que as formas mais abstratas e elementares do pensar são refletidas por ele. Portanto, a ideia do incondicionado – ou seja, a ideia da liberdade – é o resultado necessário do próprio processo de análise sistemática da forma de proceder por meio de conceitos. Ao pressupor o método dialético, Marx precisaria então necessariamente trazer um conceito de liberdade para a sua crítica da Economia Política. Exemplifico, em seguida, como Marx “aclara” ou “transfigura” relações sociais existentes, com base na ideia (ainda que turva e indeterminada) de liberdade.
1. Maquinaria e grande indústria: para Marx, a aplicação da maquinaria, com o surgimento da indústria moderna, evidencia uma “contradição absoluta” do modo de produção capitalista. Se, por um lado, ela suprime toda “tranquilidade, solidez e segurança da situação de vida do trabalhador”, por outro, ela rasga o “véu que ocultava dos seres humanos o seu próprio processo social de produção”, pois ela cria as “aplicações” “conscientemente planejadas” das “ciências naturais”. Sua “base técnica” é “revolucionária”: ela “revoluciona […] constantemente a divisão do trabalho no interior da sociedade”, “condiciona” a “mudança de trabalho”, a “fluidez da função” e a “mobilidade do trabalhador em todas as direções”. A partir desse “processo de reviravolta” constituído pela indústria moderna, surgem as “escolas politécnicas e agronômicas” e as écoles d’enseignement professionnel, nas quais os “filhos de trabalhadores recebem alguma instrução sobre tecnologia e manuseio prático dos diversos instrumentos de produção.” Marx então conclui que o “desenvolvimento das contradições de uma forma histórica de produção” é “o único caminho histórico de sua dissolução e reconfiguração” (Neugestaltung) e prevê que com a “inevitável conquista do poder político pela classe trabalhadora” se conquistará também o “ensino teórico e prático da tecnologia” para as “escolas dos trabalhadores” (Arbeiterschulen). (MEGA II,10, p. 438-440).
2. Monopólio do capital: em determinado momento do processo capitalista de acumulação, o monopólio do capital se torna, segundo Marx, um “entrave do modo de produção que floresceu sob ele.” A contradição entre a “centralização dos meios de produção” e a “socialização do trabalho” “atingem um ponto” “incompatível” com o “invólucro capitalista”. Se o “modo de apropriação capitalista” – ou seja, a “propriedade privada capitalista” – se apresenta como uma “negação da propriedade privada individual fundada sob o próprio trabalho”, a produção capitalista “produz com a necessidade de um processo natural a sua própria negação”. A “negação da negação” – ou, segundo a dialética de Hegel, o “restabelecimento da primeira imediaticidade” (Wiederherstellung der ersten Unmittelbarkeit) – “[...] restabelece não a propriedade privada (Privateigenthum), mas a propriedade individual (individuelle Eigenthum) sob o fundamento das conquistas da era capitalista: da cooperação e da posse comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho.” (MEGA II,10, p. 684-685).
3. As empresas de capital aberto: no capítulo 27 – “O papel do crédito na produção capitalista”, Livro III d’O Capital –, Marx analisa dois fenômenos: as “fábricas cooperativas dos próprios trabalhadores” e as “empresas capitalistas por ações”. As fábricas cooperativas têm de reproduzir “todos os defeitos do sistema existente”, pois nela a “oposição entre capital e trabalho” é “suspensa” (aufgehoben) apenas em sua forma, já que “os trabalhadores, enquanto associação, são os seus próprios capitalistas”. Contudo, tais fábricas mostram, para Marx, como “sob um certo nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais e de suas correspondentes formas sociais de produção, surge e se desenvolve naturalmente, a partir de um modo de produção, um novo modo de produção.” Assim como as fábricas cooperativas, as empresas capitalistas por ações têm de ser consideradas como “[...] formas de transição (Uebergangsformen) entre o modo de produção capitalista e o modo de produção associado.” (MEGA II,15, p. 431-432).
Considerações finais
Os três exemplos mostram que Marx pratica exatamente aquilo que criticou na dialética hegeliana.[13] Para Hegel, “aclarar” ou “transfigurar” o existente tinha o sentido crítico-normativo de apresentar como “o universo ético” – ou seja, as instituições modernas – “deve ser compreendido”.[14] (GW 14,1, p. 15). Já conforme Marx, “aclarar” ou “transfigurar” o existente implica uma “correta apreensão do presente”, que “[...] conduz a pontos, nos quais se indica a suspensão (Aufhebung) da figura presente das relações de produção e, assim, foreshadowing o futuro de um movimento que vem-a-ser.” (MEGA II,1, p. 369).
Segundo Müller (2013, p. 34-35), a figura hegeliana do tribunal do mundo e do espírito do mundo também apontam para a prefiguração de um movimento que vem-a-ser: a filosofia social de Hegel está em condições de identificar agentes sociais, os quais – “[...] por se situarem na confluência de transformações exigidas por anseios de ampliação da liberdade possível ou por removerem obstáculos institucionais que impedem a universalização do reconhecimento recíproco” – podem romper com “[...] os limites de uma eticidade que perdeu a sua vitalidade e que se alienou numa institucionalidade vazia, impeditivas da universalização da liberdade.”[15]
Apesar da incompreensão de Marx sobre o status da Ciência da Lógica, em geral, e da ideia absoluta, em particular (ARNDT, 2020, p. 38), ao pressupor algum método dialético, ele precisou trazer um conceito de liberdade para a sua crítica da Economia Política – embora de maneira implícita, turva e indeterminada. Conforme Hegel, a ideia da liberdade se apresenta no mundo efetivo como o princípio moderno da vontade livre, ou como o “direito da liberdade subjetiva” (GW 14,1, § 124 A.). O direito é o “ser-aí da vontade livre” (GW 14,1, § 29). Assim como a filosofia hegeliana do Espírito Objetivo permanece sempre em relação com um outro – a Natureza –, Marx afirma que o “[...] reino da liberdade só começa de fato lá onde cessa (aufhört) o trabalho determinado pela penúria (Noth) e por finalidades externas”, mas que o “reino da necessidade natural” (Reich der Naturnothwendigkeit) permanece existindo “[...] em todas as formas sociais e sob todos os modos possíveis de produção.” Aos “produtores socializados” não há como fugir da tarefa de “[...] regular racionalmente o seu metabolismo com a natureza.” (MEGA II,15, p. 794-795).
Marx nos dá, assim, indicações sobre o potencial crítico de sua concepção de liberdade, diante, p. ex., da atual catástrofe ambiental.[16] No entanto, do ponto de vista da regulação das relações sociais, a sua concepção de liberdade permanece insuficientemente determinada.[17] Hegel já nos tinha advertido de que nenhuma outra ideia se sabe de maneira tão geral e indeterminada e está tão exposta aos maiores mal-entendidos do que a ideia da liberdade – e que esses mal-entendidos têm consequências práticas (GW 20, § 482 A.).
DOES MARX HAVE AN OWN DIALECTIC METHOD?
Abstract: This paper attempts to answer the question whether Marx really has an own dialectic method. My argument is divided into three parts. In the first, I try to show that Marx’s criticism of Hegel’s absolute method could be taken by Hegel as mere explanations of his own method. In the second part, I offer some considerations about what Hegel’s dialectical method is based on the figures of immediacy and mediated immediacy. In the last part, I present three examples of how Marx practices in his critique of Political Economy exactly what he criticized in Hegel’s dialectic method.
Keywords: Hegel. Marx. Dialectic method. Idea of freedom.
Referências
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Recebido: 25/5/2021
Aceito: 10/11/2021
[1] Este trabalho é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2018/23554-5.
[2] Doutor em Filosofia pela Humboldt-Universität zu Berlin. É atualmente Pós-Doutorando pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com bolsa FAPESP. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5297-3080. E-mail: el.nakamura@daad-alumni.de.
[3] Cito as obras de Hegel e Marx, com base nas edições críticas, respectivamente com a indicação das siglas GW (Gesammelte Werk) e MEGA (Marx/Engels Gesamtausgabe), com a indicação do volume e, quando for o caso, do tomo. O Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, eu cito a partir da coleção Marx/Engels Werke com a indicação da sigla MEW. Para a tradução das citações das Linhas fundamentais da filosofia do direito de Hegel (GW 14,1), utilizo, com alguma modificação, a tradução de Marcos Lutz Müller. As obras Linhas fundamentais da filosofia do direito, a Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830) (GW 20) e as Preleções sobre a filosofia do direito (GW 26,1) eu cito com a indicação dos parágrafos e, quando for o caso, seguido da abreviação A para Anotação. Para a tradução de citações do Livro I d’O Capital de Marx (MEGA II,10), cotejei as traduções de Régis Barbosa e Flávio R. Kothe (São Paulo: Nova Cultural, 1996) e de Rubens Enderle (São Paulo: Boitempo, 2013). Para a tradução das citações do Livro III d’O Capital (MEGA II,15), consultei a tradução de Rubens Enderle (São Paulo: Boitempo, 2017). Para a tradução das citações dos Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857–1858 (MEGA II,1), consultei a tradução de Mario Duayer e Nélio Schneider (São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011). Todas as outras traduções são de minha autoria.
[4] Sobre a diferença entre determinações puras do pensamento e categorias, é importante notar: “Pelo fato de que a Ciência da Lógica examina as categorias por si mesma e as apresenta em sua necessidade, não se trata mais, na verdade, de categorias (como determinações de um objeto em geral), mas de determinações puras do pensar. Esta distinção entre categorias e determinações puras do pensar é decisiva para o entendimento da lógica especulativa e é empreendida conscientemente por Hegel. As categorias são determinações do pensar em relação aos objetos.” (ARAGÜÉS, 2018, p. 87).
[5] “O idealismo de Hegel, que afirma que os homens obedecem a um conceito de poder, é essencialmente mais apropriado a este mundo invertido (verkehrten) do que qualquer teoria nominalista que queira aceitar o universal apenas como elemento conceitual-subjetivo. Ele é a sociedade civil burguesa enquanto ontologia.” (REICHELT, 1973, p. 80).
[6] É, portanto, incorreta a conclusão de Grespan (2002, p. 47) de que “[...] a dialética idealista completa logicamente a passagem dessa contradição ‘em si’ para a contradição ‘posta’, que ela acredita ser o Estado capaz de resolver os conflitos da sociedade civil.” O problema dessa abordagem está justamente em aplicar imediatamente determinações lógicas do pensar como “contradição em si” ou “contradição posta” em relações sociais. Não era a intenção de Hegel apresentar uma ideia de Estado que fosse a solução para todos os conflitos da sociedade civil burguesa: “[...] as colisões na efetividade finita têm de encontrar em si mesma as formas de movimento e resoluções.” (ARNDT, 1995, p. 91) A ideia hegeliana do Estado ético fornece apenas a maneira de compreender e se relacionar racionalmente com as instituições existentes, de sorte que as contradições sociais possam encontrar a sua forma de movimento e de resoluções, por meio de colisões entre direitos, sem nenhuma garantia de uma resolução definitiva para os conflitos sociais.
[7] É também por isso que a dialética de Hegel desperta hoje atenção da filosofia analítica: “A dialética de Hegel é, por fim, uma análise lógica, que se desenvolve em conversa com a tradição factual da cultura da humanidade e mais especificamente com a cultura filosófica da análise conceitual. Este desenvolvimento em si é impulsionado por contradições: com o uso habitual da linguagem, com a uma teoria comum ou com a uma prática normal.” (STEKELER-WEITHOFER, 1992, p. 233).
[8] Cf. Jaeschke; Arndt, 2012, p. 619.
[9] “Esta imediaticidade refletida ou mediada responde, em última análise, pela pura auto-referencialidade da ideia absoluta, que eliminou toda a exterioridade e se refere assim imediatamente, sem relação a um outro, a si própria.” (ARNDT, 2013, p. 30).
[10] “O absoluto não é nada mais do que o conceito da liberdade – e, enquanto método que deve poder se reencontrar em tudo que é, o conceito da liberdade é a norma para julgar todo o existente.” (ARNDT, 2015, p. 17).
[11] Cf. Schildbach, 2018, p. 77-111.
[12] “Aquela pura auto-referencialidade do conceito, que constitui o conceito absoluto e completo da liberdade, não pode ser realizada na esfera do Espírito Objetivo, que permanece ligado objetivamente.” (ARNDT, 2015, p. 37).
[13] “O uso de Hegel por Marx na sua Crítica da Economia Política poderia ser analisado completamente dentro das pressuposições do arcabouço da filosofia de Hegel. O próprio Hegel está fazendo o mesmo nas suas filosofias do real, isto é, as filosofias da natureza e do espírito.” (ARNDT, 2020, p. 34).
[14] A normatividade da dialética, ao instruir sobre como o mundo efetivo deve ser compreendido, pressupõe que “[...] as contradições são sempre também efeitos da própria construção dialética”. (JAEGGI, 2014, p. 391). Ou seja, trata-se de uma questão de como interpretar filosoficamente a realidade.
[15] Müller (2013, p. 34-35) chama de “processo de criação normativa” essa possibilidade, no âmbito da história mundial, de “ruptura” e de “transbordamento do horizonte normativo vigente no interior de uma totalidade ética”, na qual agentes sociais podem buscar “uma forma ou caminho mais radical de efetivação da liberdade”: “Nessa perspectiva, a figura do tribunal do mundo e o espírito do mundo enquanto instância judicativa e processo, respectivamente, encarnam essa razão atuante na história mundial. Ela não só julga com poder impositivo os conflitos a partir das exigências normativas historicamente dominantes e do direito estabelecido, concretizadas em instituições jurídicas e políticas que exprimem o grau da consciência da liberdade historicamente alcançada, mas incorpora as exigências normativas que surgem no próprio processo dos conflitos cuja resolução extravasa a mera aplicação do direito positivo.” (MÜLLER, 2013, p. 38).
[16] “Tanto a natureza quanto a sociedade têm de ser conceituadas em uma inter-relação e, em conformidade com isso, a análise científica explica, a partir da especificidade do modo de produção capitalista enquanto modo histórico de organização desse metabolismo, a desestabilização do ecossistema.” (SAITO, 2016, p. 300) Sobre o conceito de “metabolismo” (Stoffwechsel) em Marx, cf. Saito, 2016, p. 15.
[17] Procurei contornar essa lacuna, no pensamento de Marx, em outro artigo: cf. Nakamura, 2018. Uma tentativa bem-sucedida de tratar o problema foi também realizada por Arndt (2019, p. 114-115): “Ao colocar contra toda alienação romântica (Entfremdungsromantik) o reino da liberdade como tempo livre ao lado do reino permanente da necessidade, Marx está de acordo com o reino da particularidade e da liberdade pessoal (abstrata) no sentido hegeliano, substituindo assim o que para Hegel na sociedade civil burguesa era o princípio de conexão com a comunidade política. Trata-se aqui do espaço livre (Freiraum) da autodeterminação pessoal do singular. Na medida em que este espaço livre depende da regulamentação e controle comunitários do metabolismo social, ele requer também um quadro institucional correspondente, o que é difícil de se pensar sem normatizações vinculativas e, portanto, na forma do direito (rechtsförmige).”