O HOMEM E A TÉCNICA EM BERNARD STIEGLER

 

Adelaide Pacheco[1]

 

RESUMO: A filosofia da técnica de Bernard Stiegler mostra o caráter intrinsecamente trágico da evolução tecnológica, mas defende que é possível explorar a natureza ambivalente ou farmacológica dos instrumentos técnicos. Num primeiro momento, acompanha-se o seu percurso argumentativo, destacando o papel por ele atribuído aos instrumentos em geral na abertura da temporalidade extática, assim como o estatuto singular das técnicas de registo “ortotético”, como condição simultaneamente desestabilizadora e possibilitadora de uma consciência histórica e hermenêutica. Num segundo momento, mostra-se o que Stiegler considera ser o pharmakon fundamental do Antropoceno e a centralidade da questão da entropia e da neguentropia, para pensar uma possível saída para a catástrofe ambiental. Num terceiro momento, examina-se a crítica de Stiegler ao transumanismo e a sua proposta de uma negociação e composição entre a tradição humanista e o desenvolvimento tecnológico.

 

Palavras-chave: Hipomnemata. Linguagem. Entropia. Pharmakon

 

INTRODUÇÃO

Bernard Stiegler nasceu em 1956, em Sarcelles, França, e morreu este ano (2020), deixando um importante legado como pensador da técnica, de que podemos sublinhar, como aspeto decisivo, o seu contributo para pensar a técnica na sua dimensão paradoxal. É hoje necessário reconhecer a inevitabilidade da presença massiva da tecnologia no quotidiano globalizado da maior parte dos seres humanos, assim como o caráter catastrófico do seu impacto sobre os ecossistemas e os sistemas sociais que tornaram possível o desenvolvimento da vida tal como a conhecemos.

A evolução e a pressão de cada uma dessa série de fenómenos - evolução tecnológica e dinâmica dos sistemas da vida - sobre a existência humana conferem à problemática da técnica uma dimensão paradoxal e inquietante, que está a adquirir uma feição trágica.

O pensador francês veio precisamente recordar-nos que podemos pensar a técnica à luz daquela virtude singular das grandes aporias trágicas no teatro clássico: recriando uma situação desesperada na qual a existência se precipita no negro abismo, as representações trágicas permitiam, ao mesmo tempo, que os expetadores vislumbrassem um ténue fio de luz.

 Sendo as circunstâncias da sua descoberta da filosofia, descritas no ensaio “Como me tornei um filósofo” de 2006, já em si mesmas paradoxais, Stiegler encontrou na filosofia desconstrutivista de Derrida o caminho para o trabalho “farmacológico” de mediação e negociação entre os extremos, os quais orientaram constantemente o seu questionamento da natureza da técnica. Manteve um constante diálogo com Husserl, Heidegger, Nietzsche e Marx, no campo da Filosofia Alemã, e Simondon e Leroi-Gourhan, no campo do pensamento francês, abrindo uma espécie de caminho intermédio entre uma apologia otimista da técnica dos autores franceses e alemães, que veem nela um aspeto fundamental da evolução filogenética da espécie, e a crítica heideggeriana, que vê na sua configuração atual a afirmação total do niilismo e desintegração do humano

O que constitui, no entanto, o aspeto mais singular desse caminho intermédio aberto por Stiegler é o facto de ele construir inúmeras pontes entre a filosofia e diversas áreas científicas, desde as ciências computacionais, a física e a biologia, até às ciências humanas, com particular destaque para a psicanálise e a economia. Abrindo dialogicamente um espaço teórico intermédio entre uma tal diversidade de disciplinas, ele aproxima conceitos oriundos de campos teóricos heterogéneos e, por vezes, conflituantes e acolhe-os num horizonte compreensivo mais amplo, em sintonia com a intenção inclusiva do desconstrutivismo de Derrida.

Para além disso, é preciso sublinhar que uma formação técnica na área da eletrónica e tecnologias digitais habilitou-o a abordar, de forma competente, as várias dimensões da revolução digital em curso e imprimiu à sua reflexão um carácter teórico-prático que é exemplar para essa área de estudos. Em 1989, presidiu a uma equipa de investigação da Biblioteca Nacional de França, para a conceção dos postos de leitura assistida por computador; em 1992, esteve associado ao lançamento do programa Open (ferramenta digital de edição personalizável realizada com base num programa 4D); em 2005, fundou a Ars Industrialis, associação internacional que ambiciona criticar o desenvolvimento tecnológico como meio de controlo dos comportamentos e contribuir para a formação de uma “ecologia industrial do espírito”. Em 2009, foi nomeado diretor do Centro de Investigação e de Inovação do Centro Georges Pompidou.

Dedicando-se, em simultâneo, à criação de uma extensa obra teórica, ele mostrou como a evolução dos sistemas técnicos transforma as relações simbólicas, através das quais os seres humanos organizam a sua vida coletiva. Cada época se estrutura em torno duma inovação tecnológica central, que produz deslocamentos inevitáveis nos sistemas socias e culturais. Para Stiegler, esses conflitos sempre latentes entre os sistemas técnicos e os sistemas simbólicos deixaram importantes traços, tanto nalguns diálogos platónicos como nas tragédias gregas, conforme a seguir iremos demonstrar, e é a ressignificação desses traços que procura na sua revisitação dos textos clássicos (STIEGLER, 2018b).

Do mesmo modo, textos literários, como “O Homem sem qualidades”, de Musil, ou os discursos da Frente Nacional, ou ainda a devastação estética das cidades, por efeitos duma arquitetura puramente funcional, apresentam-se hoje como “sintomas” da rutura dos mecanismos de transmissão dos sistemas simbólicos, por efeitos da intensa aceleração e difusão tecnológicas na era hiperindustrial (STIEGLER, 2004).

Essa dimensão trágica da técnica é-lhe constitutiva e não pode ser suprimida, exigindo um segundo tempo de ajustamentos na totalidade dos sistemas técnicos e simbólicos, ajustamentos que Stiegler designa como redoublement epocal, ou um segundo movimento de constituição de aquilo a que podemos chamar uma nova época histórica, ou uma nova configuração do espírito (STIEGLER, 2018b).

O espírito é, para Stiegler, o processo noético pelo qual os indivíduos herdam os “objetos ideais” que constituem o cimento da sua vida coletiva, como a ideia de Estado, ou a ideia de Humanidade, ou a ideia de Igreja. O processo de transmissão desses objetos ideais é sempre mediado e condicionado pelos dispositivos técnicos, em cada época disponíveis, dispositivos a que os gregos chamavam hipomnémata, isto é, mnemotécnicas.

É a ausência desse segundo movimento de redoublement epocal, na era hiperindustrial, que faz com que estejamos a viver uma “não época”, caracterizada por um empobrecimento noético e pela invasão da totalidade da vida psíquica por pulsões primárias. Tal destruição do espírito, associada primordialmente às tecnologias de comunicação e ao capitalismo consumerista, configura um fenómeno de regressão na evolução antropológica, assim descrito no Manifesto da Ars Industrialis:

[...] o modelo industrial fundado sobre o consumo, …levou até ao limite a produção de externalidades negativas e de toda a espécie de toxicidades, resíduos tóxicos, poluição, esgotamento de recursos, destruição da vida do espírito, défice de atenção, comportamentos patogénicos de todo o género, intoxicação dos corpos por sobre consumo, generalização da irresponsabilidade e da incivilidade, com o desenvolvimento cada vez mais generalizado da mentira e do engano, corrupção etc.) este modelo tornou-se caduco e deve ceder lugar a um outro modelo industrial […]. (STIEGLER, 2010)

 

Na primeira parte desta exposição, daremos conta da sua antropologia da técnica apresentada em a Técnica e o Tempo. Na segunda parte, iremos esclarecer a posição de Stiegler sobre os atuais debates relativos ao Antropoceno e, na terceira parte, discutiremos a questão do humanismo de Stiegler, tópico controverso, o qual põe em jogo os conceitos de “humanismo”, “transumanismo” e de aquilo a que poderíamos chamar “sobre-humanismo”

 

1 A TÉCNICA E O HOMEM

1.1 A TÉCNICA E A TEMPORALIDADE

A tese principal de Stiegler é a necessidade de reconhecer como central a dimensão antropológica da técnica, e é resumida pelo próprio nestes termos (2018b, p. 269): “O tempo é o Dasein, quer dizer: o tempo é a relação ao tempo. Mas essa relação é sempre determinada pelas condições tecno-tecnológicas da sua historicidade, efeitos de uma condição tecno-lógica originária.”

 Para desocultar essa condição tecnológica originária, Stiegler refaz o percurso encetado por Heidegger, indo ao encontro da experiência grega, isto é, trágica da técnica. Nos relatos míticos se encontraria uma experiência originária da técnica, apontando para uma correspondência essencial entre técnica e linguagem e, por conseguinte, confirmando o papel estruturante dos instrumentos na ex-istência. Tal experiência originária permite-nos reclamar o fim das oposições entre logos e tecné e physis e nomos, as quais dominaram a história da filosofia e limitaram a compreensão heideggeriana da técnica:

Se nos atemos à primeira hipótese na qual linguagem e técnica estão ligados como dois aspetos de uma mesma propriedade do homem, esta hipótese fere a metafísica que se constitui justamente e desde o início, opondo logos e tekhné, physis e nomos, inteligível e sensível, astros e desastres:

- domínio dos artefactos, a tekhné é a possibilidade do arbitrário e da pior ubris, da violência do homem contra a phusis quando eles se tomam por deuses;

- região da aletheia, o logos é também o metron da atenção levada ao “como tal” do ente (a sua phusis).

Contudo, a compreensão grega trágica da técnica é completamente diferente. Ela não opõe dois mundos. Ela compõe duas regiões da mortalidade, como sendo os seus limites: de um lado, os imortais; do outro, os seres vivos sem conhecimento da morte (os animais), entre os quais e à distância dos quais está a vida técnica, isto é, o morrer. A antropogonia trágica é uma tanatologia, que se tece em duas fases, a replicação de Prometeu por Epimeteu. (STIEGLER, 2018b, p. 216)

 

O mito de Prometeu ocupa em Hesíodo um lugar central como charneira e passagem da Teogonia para o poema Os Trabalhos e os Dias: ele atesta que a visão trágica e mítica dos gregos não se desenrola a partir dessas oposições binárias da metafísica. O mito delimita a região ontológica dos humanos como a dos entes simultaneamente destinados à mortalidade e à tecnicidade.

Prometeu roubou o fogo para o entregar aos homens e outorgou-lhes depois a arte da manipulação e do fabrico dos instrumentos. Hesíodo diz que os homens logo começaram a usar o fogo nos sacrifícios aos deuses, repetindo o sacrifício inaugural, que os instaurara na sua dupla condição ontológica de mortalidade e tecnicidade, aceitando, assim, o seu duplo ser para a morte e para o trabalho.

Essa ambígua condição dos humanos de ser para a morte na vizinhança da imortalidade é a mesma condição ambígua da própria técnica; tal ambiguidade - simbolicamente representada pelo fogo, ora humanizado e domesticado no oikos, ora violento e destruidor quando participa da húbris própria dos deuses - é central na reflexão de Stiegler.

Para o pensador francês, Heidegger, ao pensar a técnica em Ser e Tempo como modo de ser do Zuhandenheit, teria deixado escapar essa ambiguidade essencial. Assim, para Heidegger, o uso apropriado da linguagem pelo pensador e pelo poeta está associado a um exercício autêntico da temporalidade extática, e a ação técnica e instrumental está associada a um exercício inautêntico da temporalidade. A técnica vê-se assim, em Ser e Tempo, desvalorizada como “mero instrumento”, e a ação técnica pensada como Besorgen, enquanto forma decadente do cuidado (Sorge).

Na perspetiva de Stiegler, pelo contrário, o centro do mito de Prometeu não é apenas a afirmação de que a técnica deve ser pensada como coextensiva ao homem, o que Heidegger também aceita, mas de que o homem é em si mesmo um ser técnico, e é esse ser técnico que pode exercer-se de modo apropriado como cuidado, como não apropriado como descuido.

Stiegler refere ainda que, quando Heidegger, no discurso do reitorado, comenta o mito de Prometeu, não atende ao significado essencial dessa figura mítica, a qual instituiu o instrumento como região ontológica, que não se limita ao modo de ser da Zuhandenheit. Não basta uma antropologia da técnica, é preciso reconhecer a natureza própria dos objetos técnicos, como matéria organizada, como Organon, com o seu dinamismo específico e a sua evolução própria, que escapam ao arbítrio humano.

Nesse discurso, Heidegger teria, além do mais, incorrido num segundo lapso, ao ignorar a figura de Epimeteu, que era, contudo, essencial na versão platónica do mito de Prometeu. No mito platónico, Epimeteu é culpado duma primeira imprevidência, ao distribuir todos os dons aos animais, esquecendo o homem e, mais tarde, é culpado dum segundo descuido, quando ignora os avisos de Prometeu, recebendo o dom de Pandora e tornando-se assim um instrumento involuntário da vingança de Zeus.

Na perspetiva de Stiegler, “a imagem solitária de Prometeu […] não tem sentido. Ela não consiste senão na sua reduplicação por Epimeteu.” (2018b, p. 216). Epimeteu reduplica a figura de Prometeu como o seu exato oposto: de um lado, a previdência e o cuidado pelo futuro de Prometeu, que outorga ao homem o dom de estar fora de si, pela habilidade técnica e saber da morte; do outro, a imprevidência de Epimeteu, o estar sempre em atraso em relação ao presente, possuindo apenas o saber como reflexão do já sido.

A confrontação da analítica existencial com o mito de Prometeu/Epimeteu levada a cabo por Stiegler fundamenta-se na interpretação do mito feita por J. P. Vernant, segundo a qual Prometeu e Epimeteu seriam, na sua inseparabilidade, “imagens da temporalização” (STIEGLER, 2018a, p. 37). No mito grego, a articulação do ser lançado para o futuro e o estar retido pelo passado, do saber e da imprevidência, do cuidado e do descuido, da memória e do esquecimento confere à tecnicidade essencial dos humanos uma irremediável ambiguidade, e à existência, a abertura e a indeterminação.

O ser para a morte é sempre simultaneamente assombrado pelo medo e pela esperança no futuro (ambiguidade afetiva que o mito designa por elpis), de sorte que a visão trágica da técnica instaurada pela narrativa clássica não é a da necessidade inexorável do destino, mas a de um caminho não linear, feito de incerteza e de bifurcações inesperadas: é um advir e não o devir das projeções estatísticas que planeiam e determinam o nosso futuro.

 

1.2 TÉCNICA E LINGUAGEM

Essa coopertença do homem e da técnica estabelecida desde os mitos gregos é ainda defendida por Stiegler, em diálogo com o estudo desenvolvido por Leroi-Grouhan, em O Gesto e a Palavra: Stiegler mostra que, partindo dos estudos de Leroi-Grouhan, podemos supor que os Zijantropus se estabelecem já na qualidade de humanos, enquanto manipuladores de instrumentos capazes de cooperar e competir entre si, ainda antes das regras partilhadas para a articulação linguística.

A existência do humano antes da linguagem articulada é tomado por Stiegler como argumento para demonstrar que o instrumento é em si mesmo uma forma de comunicação, de partilha e de transmissão de memória social. Usar um instrumento é lembrar a forma como ele foi configurado e como foi utilizado no passado e, mais importante ainda, ele apresenta-se como possibilidade de novas modificações no futuro.

A técnica instaura um novo tipo de memória, que já não é simplesmente genética (própria da vida em geral), nem epigenética (própria dos animais dotados de sistema nervoso), mas epifilogenética: é uma memória externa, materializada em próteses (STIEGLER,2018a).

A técnica assinala, assim, uma rutura na ordem e na organização do vivente, ela está no centro do processo da evolução filogenética, em estreita articulação dialética com o desenvolvimento e a complexificação do córtex cerebral:

A aparição do utensílio […] deve ser posta em relação com uma organização particular das áreas corticais do cérebro que esclarece a relação dialética que se desenvolve entre a mão e o sistema nervoso central: há um laço direto entre a não especialização e o desenvolvimento das zonas corticais do cérebro. (STIEGLER, 2018a, p. 177).

 

            O aparecimento do homo sapiens representa uma etapa muito posterior, no desenvolvimento humano, em que o desenvolvimento orgânico do cérebro está acabado e a sociedade humana se estrutura em formas complexas de cooperação. Daí em diante, a relação entre o cérebro e a estrutura social virá a ser mediada pelo processo ortográfico de formalização que representará uma revolução tenológica decisiva.

A relação entre o organismo biológico, os órgãos sociais e os instrumentos (em grego organon) é uma relação que Stiegler afirma, na sequência de Simondon, ser transdutiva ou de interdependência: um órgão fisiológico (incluindo o cérebro) não evolui independentemente dos órgãos técnicos e sociais. Assim, o aparelho psíquico não é redutível ao cérebro, mas depende dessa relação transdutiva e, em particular, dos instrumentos técnicos que vão servir de suporte para os processos de simbolização.

A memória humana implicará, assim, uma tripla programação: uma programação específica ligada ao sistema nervoso e à determinação genética das aptidões individuais, uma programação socioétnica dependente de um organismo coletivo capaz de evoluir muito rapidamente, mas que é igualmente constringente e uma programação individual capaz de se confrontar com símbolos e de se libertar simbolicamente das limitações impostas pela programação genética e socioétnica. Essas três camadas de memória formam o fundo mnésico a partir do qual se pode compreender o devir do comportamento técnico do homem, mas são igualmente condicionadas por esse devir tecnológico (STIEGLER, 2018a).

As próteses vão acrescentar-se ao corpo humano, amplificando a ação e projetando o espaço (criando o afastamento e a dilatação espacial) e, desde os instrumentos rudimentares usados na caça até às elaboradas técnicas da escrita, elas vão também abrir novas dimensões temporais (o já sido, a previsão) (STIEGLER, 2018a).

A técnica abre a temporalidade extática própria da existência humana e é, por isso, já em si mesma, linguagem. Isto mesmo se encontraria já sugerido por Leroi-Grouhan, ao admitir que a criação de instrumentos acarreta um processo de exteriorização e de simbolização. No entanto, este viria a opor o Homo Faber ao Homo Sapiens, postulando que o primeiro possuía apenas uma linguagem pobre, incapaz de generalização e de diferenciação idiomática, enquanto somente o segundo teria uma linguagem semelhante à nossa, capaz de generalização e de diferenciação.

Ora, afirma Stiegler, por um lado, toda a linguagem implica a generalização, por outro lado, todo o instrumento implica, desde o princípio, um processo de exteriorização e de simbolização que admite a variação, isto é, uma pluralidade indefinida de usos.

Assim, na perspetiva de Stiegler, há um devir técnico-linguístico que instaura o jogo da différance, que estará na base de todo o processo de evolução psíquica e coletiva da espécie humana.

Técnica e linguagem são, assim, duas faces da mesma moeda, têm a mesma natureza, o que já se encontrava, de resto, afirmada no mito grego: era ao usar o fogo, oferecendo o sacrifício aos deuses, que os homens faziam soar a sua voz:

É nesta duplicidade, mediadora no sacrifício, que se fazem ouvir a “voz” e “as partes do discurso” (que traduzem phonen e onomata). A linguagem, o logos como linguagem, aparece (ela também, desaparecendo, ela também dúplice, podendo também significar o contrário do que queria dizer) pela técnica, pelo roubo do fogo e das artes. (tekhnai). (STIEGLER, 2018a, p. 225).

 

Porque há essa simetria essencial entre técnica e linguagem, Stiegler pensa que a esperança de salvação dos malefícios da técnica não pode ser concebida simplesmente como a recuperação da dimensão poética da linguagem, defendida por Heidegger, porém, ela tem que ser encontrada no interior dessa relação intrínseca ou organológica do homem com a técnica, que é ela mesma uma forma de linguagem.

Havia, desde Platão, uma ilusão metafísica, que tendia a fazer da linguagem apenas um instrumento de comunicação, não reconhecendo nela o lugar da constituição ontológica do humano, e essa ilusão foi criticada constantemente por Heidegger. Contudo, na perspetiva de Stiegler, não se trata tanto de lutar contra a instrumentalização da linguagem, mas de saber como deve ser compreendida a condição de instrumento, de não reduzir o instrumento a um “simples meio”:

[...] trata-se, antes, de interrogar os modos de ser da instrumentalidade como tal e como contendo em si a condição de uma diferenciação idiomática tanto como a de uma indiferenciação massiva, e as múltiplas dimensões do que poderíamos chamar a condição instrumental. (STIEGLER, 2018a, p. 236).

 

2 O CARÁCTER FARMACOLÓGICO DOS HIPOMNEMATA

A criação da memória epifilogenética, materializada nos objetos técnicos, constitui o nosso mundo como mundo histórico. Tal condição da Weltgeschichtlichkeit foi, como acima vimos, uma rutura fundamental e explosiva na história da vida.

Para compreender a historicidade da condição humana, não é suficiente ter em conta a perspetiva transcendental de Ser e Tempo, com a sua posição dos existenciários, enquanto condições da autotransmissão da existência. É imprescindível ter em conta as condições materiais dessa transmissão, reconhecer que esse conjunto proteico e instrumental tem uma dinâmica própria que se subtrai à dinâmica existencial, ele é o “quê”, sem o qual o “quem” não pode existir:

[...] o quem não é nada sem o quê porque eles estão em relação transdutiva no processo de exteriorização que a vida prossegue, isto no processo de diferenciação por outros meios que não a vida. O quem não é o quê: não há relação transdutiva senão entre termos diferentes. Há uma dinâmica do quê irredutível à do quem (a lógica do suplemento não é simplesmente antropológica) mas que tem necessidade da do quem como o poder de antecipação. O poder de antecipação do quem pressupõe, contudo, o “já aí” do quê que lhe dá acesso ao seu passado não vivido. (STIEGLER, 2018b, p. 321).

 

De facto, a lógica do desenvolvimento do “quê” é, antes, “organológica”, no sentido em que nos instrumentos a matéria se organiza progressivamente em conjuntos quase orgânicos, capazes de interagir entre si. Essa dinâmica dos objetos técnicos condiciona, de forma estrutural, o modo de autogestação da existência: “as especificidades das técnicas como suportes de registo do passado condicionam para cada época as modalidades segundo as quais o Dasein acede ao seu passado.” (STIEGLER, 2018b, p. 319).

Se a memória especificamente humana é originariamente exteriorizada na pedra de sílex, esta é, no entanto, apenas um suporte espontâneo, não foi criada com a função de arquivo dos registos mnésicos. As mnemotécnicas surgiram somente no paleolítico superior, e os primeiros textos só aparecem no neolítico, resultando no alfabeto e na criação da história propriamente dita. Assim, “a história do ser” (época propriamente histórica da história) começa com a história da literariedade (STIEGLER, 2018a).

As técnicas de registo da memória, para que Stiegler reserva propriamente o termo de Hipomnémata, assumiram sucessivamente a forma da escrita cuneiforme, hieroglífica e alfabética, estendendo progressivamente o saber e o poder humano, todavia, ao mesmo tempo, provocando clivagens e desajustes políticos e psicossociais. Isto ocorreu desde logo, na Grécia, com a invenção da escrita “ortotética”, e uma tal krisis repetiu-se no Renascimento, com a invenção da imprensa.

A escrita alfabética foi sistemática e completamente desenvolvida pelos gregos, a partir da escrita suméria: o que a distingue não é principalmente o ser uma técnica de registo fonético, mas ser “ortográfica”, isto é, uma técnica de registo do pensamento que se caracteriza pela sua elevada precisão, permitindo anular as dúvidas sobre a autenticidade da mensagem. Essa nova escrita “ortotética” (STIEGLER, 2018b, p. 345) será responsável pela mutação grega da compreensão da natureza da verdade, a qual se encontra ilustrada em Platão e foi comentada por Heidegger, como a compreensão da aletheia no sentido de orthotes (sem, contudo, a relacionar com a técnica de escrita).

Stiegler não associa diretamente a invenção da escrita ortotética à história do ser, mas a associa inequivocamente à idealidade visada por Husserl, assim como à inscrição da historicidade na différance de Derrida: a “imobilização” do passado na forma morta do registo ortotético é precisamente o que possibilita simultaneamente a invenção da idealidade geométrica e a hermeneia como apropriação viva dum registo textual (a partir dum novo contexto e dum novo leitor), doravante liberta para a “diferença” do seu próprio tempo.

Os gregos não apenas desenvolveram a escrita ortográfica até um nível de incrível precisão, mas divulgaram e ensinaram essa escrita, criando as condições de uma inteligibilidade coletiva na scholé, onde eram transmitidos os mathemata, assim como as condições da isonomia da pólis e do uso público da razão. Essa comunitarização do saber abriu também o caminho à filosofia como “autoexame do pensamento” e “jogo diferencial do que se encontra inscrito na língua.” (STIEGLER, 2018b, p. 351).

A escrita ortotética dos gregos lançou a civilização ocidental, porque ela é o modelo de todas grandes invenções tecnológicas que asseguraram o domínio do Ocidente. Inspirando-se na Gramatologia de Derrida, Stiegler apresenta a técnica de escrita ortotética como um processo de gramatização (isto é, de análise e síntese de unidades discretas: os gramas) que permite reproduzir e fixar com precisão um fluxo fonético.

Tal processo de gramatização contém in nuce a possibilidade futura da gramatização dos gestos corporais, isto é, da transferência das competências sensório-motoras contidas no saber-fazer para as máquinas, tornando possível a criação da fábrica e a revolução industrial. Da mesma maneira, assistimos hoje a uma gramatização dos processos cognitivos que suportam o saber, assim como dos processos da economia libidinal associada ao saber viver, que são exteriorizados e transferidos para os aparelhos das “indústrias do conhecimento” e das “indústrias culturais” que caracterizam a nossa sociedade hiperindustrial.

Estamos, hoje, constantemente ligados a aparelhos mnemotecnológicos sem os quais já não podemos viver, que vão desde a televisão, ao smartphone, ao computador e ao GPS, confiando uma parte cada vez maior das nossas competências noéticas às máquinas. A novidade dessas mnemotecnologias da sociedade hiperindustrial é que elas são uma nova forma de gramatização, resultante da tecnociência, ou seja, do conhecimento e da manipulação dos próprios processos noéticos.

A industrialização da memória é a fabricação industrial do “tempo real”, isto é, da presença simultânea e da velocidade da luz a que circula a informação nas redes: as novas mnemotécnicas anulam “o tempo diferido” da memória humana, o qual era essencial ao enunciado ortotético, destinado à disseminação duma “diferença indefinida, interminável e indeterminável.” (STIEGLER, 2018b, p. 378).

Anulando, pelo menos num primeiro tempo, possibilidade da leitura como repetição diferencial (différante), quer dizer, como trabalho hermenêutico e reflexividade crítica, as novas mnemotecnologias não suspendem apenas a programação cultural, mas também a programação política (2018) que suporta as instituições democráticas e ameaçam os processos de individuação, e de transindividuação:

Na expressão tempo real está em questão a transmissão. Se a transmissão dos saberes é também a sua elaboração, a modificação das condições da sua transmissão é a das condições da sua elaboração: a síntese industrial da finitude retencional é um sistema de elaboração-transmissão dos saberes em tempo real que se substitui à transmissão dos saberes que se operava até então em tempo diferido. (STIEGLER, 2018b, p. 461).

 

Para pensar uma tal crise, Stiegler volta-se ainda para “o choque epocal” sofrido na Grécia antiga pela invenção da escrita ortotética e pensado por Platão, no Fedro, como oposição entre a oralidade e a escrita, ou seja, entre hypomnésis, memória artificial associada à reprodução da escrita, à anamnésis, o pensar como diálogo consigo mesmo e afirmação de autonomia. Essa oposição aparece nos diálogos platónicos como sintoma de uma Krisis, ou seja, da rutura instaurada pelas novas mnemotécnicas nos processos de transindividuação que suportavam a cultura na Grécia pré-clássica.

 Ao denunciar a perda de memória resultante do confiar o pensamento à escrita, Platão teria antecipado, na ótica de Stiegler, uma primeira versão de uma “teoria da proletarização”, a qual apareceria, muitos séculos depois, em Marx, abrindo, simultaneamente, com a sua crítica à sofística uma frente de luta política para a filosofia.

No entanto, proclamando uma oposição absoluta entre hipomésis e anamnésis, Platão teria também lançado uma das antinomias que estruturaram a metafísica ocidental. Foi Derrida que anulou essa oposição, no célebre comentário La Pharmacie de Platon (1968), defendendo que o termo grego pharmakon, usado no diálogo platónico para designar a escrita, não tem uma tradução francesa precisa, pois ele designa uma droga ou um artifício, que tanto pode atuar beneficamente como medicamento como prejudicar e destruir enquanto veneno.

Onde Platão opõe autonomia da anamnésis à heteronomia da hypomnésia é preciso afirmar que elas se exigem uma à outra, constituem uma “composição” e exigem uma permanente negociação. Todo objeto técnico é farmacológico, isto é, é intrinsecamente ambivalente. “O pharmakon é ao mesmo tempo o que permite exercer o cuidado e aquilo com que é preciso ter cuidado - no sentido em que é preciso prestar-lhe atenção: é uma potência curativa no comedimento e na desmesura é uma potência destrutiva.(STIEGLER, 2010, p. 16).

Essa noção de pharmakon é relacionada por Stiegler com a noção de “objecto transicional”, em Winnicot: objeto simultaneamente exterior e interior, que medeia a relação entre a criança e a mãe, ele tem uma conotação simultaneamente relacional e intensamente afetiva, sendo ao mesmo tempo um meio de negociar a autonomia e um risco de adição (2010).

Ora, toda a técnica participa dessa ambivalência: a escrita alfabética foi não somente um instrumento de emancipação, como também de alienação, e a web pode ser também tanto um instrumento de expropriação da interioridade e de submissão ao capitalismo consumista como um instrumento de participação.

É assumindo essa dupla herança de Platão e Derrida que Stiegler pensa poder ser construído um projeto político renovado da filosofia, onde a técnica deverá tornar-se a questão central.

 

3 O ANTROPOCENO E A GESTELL

Esse processo de negociação e composição executa-se, por assim dizer, em dois tempos: num primeiro tempo (primeira reduplicação epocal), o devir técnico instaura uma memória de síntese que suspende os ritmos biológicos, socioétnicos e individuais. Num segundo tempo (segunda reduplicação epocal), é levada a cabo a apropriação da primeira reduplicação epocal pelo quem. A primeira reduplicação epocal instaura a síntese passiva do quê (o objeto técnico), a segunda, a qual chega sempre atrasada (como Epimeteu), instaura a síntese ativa do quem (o Dasein) (STIEGLER, 2018b).

É esta segunda reduplicação epocal que se encontra obstruída na sociedade hiperindustrial; as máquinas automáticas não se limitam a “imitar a memória humana” e os seus processos de síntese: instauram a hegemonia do tempo apreendido como cálculo (STIEGLER, 2018b) e anulam, com uma eficácia total, os programas anteriores (biológicos, sociais e individuais).

A automatização está, na perspetiva de Stiegler, no centro da problemática do Antropoceno. Intervindo nas recentes polémicas sobre o conceito de Antropoceno, criado pelo biólogo Eugen Stoermer e popularizado por Paul Cruztzen, Stiegler procura retirar esse conceito do âmbito exclusivo das ciências duras, por considerar que a sua dimensão política (entendida no sentido de uma política dos objetos técnicos) é essencial. Ele partilha da tese defendida em L’ Événement Antropocène, de Christophe Bonneuil e Jean Baptiste Fressoz, segundo a qual não é suficiente reconhecer o facto capital de que o Antropos se tornou a força dominante e o fator decisivo da evolução da biosfera, todavia, é igualmente imperioso reconhecer a falácia que seria ver nesse acontecimento um triunfo ou um aumento de poder da espécie humana, no seu conjunto:

No decurso desta era o antropos tornou-se o fator maior na evolução da biosfera. O antropoceno é o que Heidegger chamava “técnica moderna” que é evidentemente também o capitaloceno, isto é, um Entropoceno fundado sobre o primado estrutural do cálculo, com exclusão de todo o não calculável (com o custo de uma liquidação sistémica de todas as singularidades). (STIEGLER, 2018c, p. 166).

 

É a partir de Heidegger e de Marx que Stiegler forja esse conceito de Capitaloceno, sublinhando na figura heideggeriana da Gestell uma configuração radicalmente nova da técnica, caracterizada pela elevada integração dos objetos técnicos em sistemas capazes de reproduzir, integrar e controlar a atividade humana. A Gestell leva a cabo uma hipersincronização mecanizada e calculável de toda atividade social, eliminando todas as diacronias e transformando o tempo humano num valor mercantil.

Assim, a Gestell, ou o Antropoceno, não inauguram um poder absoluto do homem, mas, antes, a sua absoluta impotência, isto é, a incapacidade de composição e negociação entre a autonomia do homem e o poder dos hipomnemata.

No Capitaloceno, vigora a total subordinação e a dependência do trabalho em relação à máquina, já analisado por Marx, no célebre fragmento sobre as máquinas dos Grundrisse (1983, p. 593):

A atividade dos trabalhadores, reduzida a uma mera atividade abstrata, é determinada e regulada em todos os sentidos pelo movimento da máquina e não o inverso. A ciência que compele os membros inanimados da maquinaria, pela sua construção, a atuar de forma propositada, como um autómato, não existe na consciência do trabalhador, mas pelo contrário, atua sobre ele através da máquina como o poder alheio, como o poder da máquina em si mesma.

 

Contudo, o Capitaloceno não é apenas a submissão do homem, enquanto trabalhador, mas enquanto libido e noesis, que são elas mesmas exploradas e mercantilizadas. A Capitalização não é apenas o aumento do capital fixo, com consequências na economia, é a extensão dum processo de gramatização que reconfigura o humano, desviando o tempo hermenêutico do ócio da skolé para o tempo calculável do negotium e instalando a proletarização como condição universal.

A gramatização digital, com a internet, as redes sociais, a inteligência artificial e a robótica, representa uma intensificação (e talvez o estádio final) desse processo que se iniciou com a Revolução Industrial. Se os novos sistemas técnicos criados pela Revolução Industrial ganharam independência em relação às forças biológicas ou ecológicas ligadas ao território e ao contexto social, essa dinâmica de desterritorialização chegou hoje, no capitalismo Smart, ao seu limite extremo: a independência não a um território específico, mas à biosfera, no seu todo.

A World Wide Web concretizou uma reticulação planetária, tornada possível pela retenção terciária digital e, em 2017, quase metade da população mundial estava permanentemente ligada a plataformas e a redes (independentemente da sua localização na Terra), dispostas elas mesmas à volta da Terra. A nova infraestrutura industrial constituída por uma cintura de satélites na órbita terrestre ultrapassa a biosfera, curto-circuita as localidades terrestes e desenvolve as suas atividades industriais em todos os setores. O novo sistema técnico encaminha-se para a gestão global e a governação algorítmica, intensificando os processos de “orientação”, “organização” e “regulação” que configuram um poder burocrático totalitário.

Como toda a forma de governamentalidade, no sentido de Foucault, a governamentalidade algorítmica põe em ação tecnologias de poder fundadas sobre estatísticas. Mas, […] estas estatísticas constantemente inscritas e relevadas constituem e mobilizam uma racionalidade normativa e apolítica baseada na recolha, agregação e análise automática de dados em quantidade massiva de maneira a modelizar, antecipar e afetar antecipadamente comportamentos possíveis. (STIEGLER, 2015, p. 193).

 

Essa governação algorítmica, cujas decisões automáticas são fabricadas por uma incessante extração e combinação de dados dos “territórios digitais”, potencia a instauração de um novo “regime de verdade” (STIEGLER, 2015, p. 189), anulando a “temporalidade hermenêutica” da reflexão e da decisão ética e política.

As três dinâmicas da organologia industrial acima referidas (sincronização, capitalização e desterritorialização dos sistemas técnicos) estão no centro da análise teórica que Stiegler faz do conceito de Antropoceno. Cada nova etapa nesse processo representa novas formas de erosão das formas simbólicas, as quais constituem as culturas humanas, como um novo patamar de destruição da biodiversidade (STIEGLER, 2018c).

            A sociedade hiperindustrial não consagra o Antropoceno como o poder do antropos, mas sim das corporações, que levam a cabo uma guerra civil e económica mundial, saqueando as energias fósseis e destruindo as organizações sociais e os saberes noéticos, que estruturavam as civilizações e humanas.

Contudo, na perspetiva de Stiegler, há que encontrar a saída do Antropoceno na natureza do próprio Pharmakon que projetou essa nova estrutura epocal. O Antropoceno é também um Entropoceno, porque é uma nova etapa da história da técnica marcada pela invenção da máquina a vapor, que incorpora em si um conceito físico radicalmente novo:

O Antropoceno […] constitui uma crise epistémica de amplitude jamais igualada: o aparecimento da máquina termodinâmica que fez aparecer o mundo humano como perturbação fundamental, inscreve o processo, a irreversibilidade do devir e a instabilidade dos equilíbrios em que tudo isto consiste no coração da própria física. Todos os princípios do pensamento assim como da ação foram perturbados por esse evento. (STIEGLER, 2015, p. 26).

 

É também com base nesse paradigma instaurado pela máquina termodinâmica que somos hoje obrigados a pensar a própria vida como jogo entre entropia e neguentropia, conforme demostrou Schrödinger (1997, p. 82-83), ao afirmar que “o organismo vivo aumenta continuamente sua entropia […] e, assim, tende a aproximar-se do perigoso estado de entropia máxima, que é a morte”, e que “só pode manter-se vivo, através de um processo contínuo de extrair entropia negativa do ambiente.”

Na perspetiva de Stiegler, Heidegger foi incapaz de vislumbrar uma saída para a Gestell, porque não prestou atenção ao conceito de entropia. Ele é o pharmakon, cujo saber deve ser partilhado e interiorizado: instalando a questão da entropia e da neguentropia como o problema crucial da vida humana e da vida em geral, ele constitui a matriz de todo o pensamento do oikos, do habitat e das suas leis (STIEGLER, 2015, p. 28).

Não é na esperança num Deus que nos venha salvar ou no desenvolvimento da luta de classes que Stiegler vai procurar a saída do Antropoceno, porém, na exigência de uma nova política industrial, capaz de gerir o processo entrópico da automatização. Aprendendo com as lições da Epimeteia, Stiegler defende que é preciso levar a cabo o segundo “redoubleman epocal”, “compondo e negociando” com os novos pharmakon, de modo a abrir o espaço para o trabalho hermenêutico e a proliferação da vida em geral. Retomando Nietzsche, Stiegler anuncia a esperança na vinda do Übermensch, capaz de - invertendo radicalmente a tábua de valores do Antropoceno - proclamar a vida como valor supremo, assumindo a neguentropia, em vez do lucro, como finalidade da economia e critério fundamental de decisão política (STIEGLER, 2015).

 

4 O HUMANISMO E O TRANSUMANISMO

            As filosofias do transumanismo anunciam uma superação do humano, em direção a um ser aperfeiçoado e transformado pela máquina, e reinterpretam o conceito de Übermensch como uma legitimação desse projeto, o qual inspira cientistas e informáticos, como Raymond Kurzweil, apoiados pela Google e outros grandes grupos financeiros.

            Kurzweil, em The Age of Spiritual Machines (1995) e The Singularity is Near (2005), anunciou um futuro próximo em que a revolução tecnológica, dados os progressos simultâneos da Genética, da Nanotecnologia e da Robótica, atingirá um patamar radicalmente novo com a criação de máquinas inteligentes. Um tal patamar, a que ele chama “a singularidade”, assinalaria o ponto sem regresso onde o homem será colocado perante o desafio de ter de competir com as suas criações tecnológicas e obrigado a transcender todas as suas limitações, tornando-se, mediante o recurso a diversos suplementos, infinitamente mais inteligente e adiando, talvez indefinidamente, a doença e a morte. Esse devir para além do humano daria lugar a um sobre-humano, um ser híbrido, onde a máquina e o homem já não poderiam ser distinguidos.

Fortemente crítico dos transumanismos, Stiegler levou a cabo uma releitura de Nietzsche, que toma em conta a relação do filósofo alemão com a ciência e técnica do seu tempo. Retomando as teses de Bárbara Stiegler, em Nietzsche et la Biologie (2001), ele defende uma interpretação muito diferente da de Kurzweil, não apenas do conceito de Übermensch, mas ainda desse ponto sem retorno para que a atual revolução tecnológica nos conduz.

Stiegler (2018b, p. 401) reconhece que a tecnociência cada vez descreverá menos o real e, em vez disso, irá desestabilizá-lo radicalmente:

[...] não se trata de reproduzir o homem, nem o seu pensamento, mas de transformar um conjunto, do qual o ser orgânico que é o homem, o conhecimento que lhe é vital, enquanto acumulado em vários suportes e os instrumentos que ele desenvolve, formam um complexo a três termos.

 

As técnicas contemporâneas de tratamento de informação - que criam “um processo de exteriorização das funções do córtex cerebral e mais globalmente do sistema nevoso” (STIEGLER, 2018b, p. 400) - assim como a promessa de supressão da morte das biotecnologias desestabilizam a relação do homem com a morte.

Por outro lado, esse efeito do progresso tecnológico de desarticulação da existência é ainda amplificado pela aliança entre o marketing, o digital e as indústrias culturais. Essa aliança desestabiliza as estruturas do self, capitalizando sistematicamente a energia libidinal e deslocando-a para o consumo das coisas descartáveis e consumíveis. Desse modo, fica inviabilizado o investimento libidinal nas “consistências”, ou nos objetos ideais, criando-se “a infidelidade sistémica(STIEGLER, 2010, p. 105), curto-circuitando-se e destruindo-se os mecanismos de sublimação

A “telemática” (STIEGLER, 2018b, p. 425), isto é, o sistema integrado dos media, com os seus sistemas analógicos e digitais, como o computador, os satélites, as televisões e os telemóveis, produz um tempo industrial (o tempo medido a partir da velocidade de difusão da informação nas redes telemáticas, isto é, da velocidade da luz), com a consequente desrealização do tempo e do espaço, e a supressão do tempo diferido da história.

A telemática coloca-nos no centro de todos os eventos que vivemos em tempo real, sem possibilidade de qualquer juízo reflexivo: o “tempo real” da telemática é um tempo onde tudo está simultaneamente presente, é o ocorrer simultâneo de presentes pontuais.

A verdade da informação é o tempo luz. Por esta expressão queremos à partida designar a transmissão da informação à velocidade da luz, isto é, sem demora, o que as ortoteses analógicas e digitais permitem - enquanto que a ortotese literal implica um atraso essencial entre o que se pode chamar evento ou a sua captação de um lado, a sua receção ou a sua leitura de outro lado. (STIEGLER, 2018b, p. 436).

 

As novas técnicas de registo ortotéticas do sistema telemático têm características radicalmente distintas da ortótese literal, porque fazem explodir a temporalidade extática. Elas ameaçam o processo de individuação psíquica e coletiva, que é sempre existencial e narrativo, anulando o processo de transindividuação, o qual implica o tempo diferido da história.

A dissolução das consciências na mesmidade vazia do man, no anonimato e na impessoalidade ameaça transformar a espécie humana numa amálgama indiferenciada de consumidores e de utilizadores das redes digitais, onde os divíduos (isto é, os indivíduos privados da sua individualidade) estão integrados e submetidos ao sistema, como acontece num enxame ou num formigueiro.

Os estudos da pedopsiquiatria sobre os efeitos patogénicos da imersão do cérebro infantil no “banho mediático do audiovisual” demonstraram que o meio hipermediatizado curto-circuita a sensoriomotricidade que é, segundo Winnicot, a condição da psicogénese infantil. Essa sobre-exposição precoce ao ecrã está na origem de patologias como défice de atenção e a hiperatividade: a “sinaptogénese da criança é estruturalmente alterada pela imersão do seu cérebro no meio mediático.” (STIEGLER, 2010, p. 109).

Na perspetiva de Stiegler, estamos, assim, no limiar da regressão antropológica e duma desarticulação das estruturas da existência, já antecipadas por Heidegger:

Num tal contexto, com tais valores, não poderia haver transmissão de geração em geração dum património cultural que encontre a sua unidade historial na sua unidade territorial - como se a efetividade da velocidade devesse desrealizar o tempo e o espaço como tais. Ninguém melhor que Heidegger anteviu um tal destino e a sua enormidade. E ninguém melhor, nem tão cedo, como Derrida reinscreveu a sua necessidade radical - num afastamento decisivo - anunciando-se como rutura absoluta com a normalidade. (STIEGLER, 2018b, p. 434).

 

            Stiegler reconhece, como os transumanistas, que o desenvolvimento tecnológico chegou a um ponto crítico e sem retorno, todavia, tem desse ponto crítico uma visão radicalmente diferente, porque vê nele precisamente a degradação humana e ambiental, as quais tornaram o mundo imundo e fazem do triunfo do niilismo tecnológico uma catástrofe.

Contudo, a experiência grega da técnica aponta no sentido do fio ténue da esperança, isto é, da expetativa de uma bifurcação inesperada, a qual abra uma possibilidade de futuro.

A escrita ortotética digital volta a colocar em evidência, como questão central da civilização, o contraste platónico entre a anamnese, um saber por si mesmo que implica os circuitos longos da dialética, com os momentos da oposição, e da busca do consenso em torno do conceito e da definição e a hipomnésia, o saber dos curto-circuitos da opinião, o saber aparente, que se limita à replicação de um saber alheio para o qual não se tem justificação.

            Dominar os novos pharmakon exige conter a automatização e defender o direito ao trabalho hermenêutico, o direito ao otium da skole e à eudaimonia, a uma vida feliz e digna de ser vivida. Preconizando o regresso a essa matriz humanista da cultura ocidental, Stiegler proclama a separação entre o humano e a máquina, distanciando-se inteiramente da utopia transumanista, mas se mantendo fiel aos princípios da sua organologia, segundo a qual a relação e a interdependência entre os sistemas técnicos e não técnicos implica a sua diferenciação e composição.

Reconhecendo que a improbabilidade desse regresso a uma cultura de matriz humanista, num tempo em que foram curto-circuitados pela hipersincronização todos os mecanismos de negociação e composição com a tecnociência, Stiegler argumenta que essa possibilidade altamente improvável está também a ser, de facto, aberta pela revolução digital. Ele empenhou-se ativamente na criação de uma “Web hermenêutica”, ao serviço do processo de individuação, isto é, da formação de indivíduos noéticos, portadores de saberes vários, capazes de bifurcações (mudanças de paradigmas, crises epistémicas) que desautomatizam os procedimentos standardizados de decisão.

Essa Web hermenêutica poderá contribuir para um novo paradigma, que coloque a economia ao serviço da neguentropia e afirme o humano, enquanto energeia, isto é, enquanto força cuidadora, conectada com a rede da vida e instituinte da obra.

 

MAN AND TECHNOLOGY IN BERNARD STIEGLER’S WORKS

 

ABSTRACT: Bernard Stiegler’s philosophy of technique shows the intrinsically tragical character of the technological evolution and claims the possibility to explore the ambivalent character of technological or pharmacological instruments. First we will follow his argumentation, highlighting the role that he assigns to the instrument in opening ecstatic temporality, and the importance of the evolution of the “ortothetical” technologies of registration, as a condition which is simultaneously destabilizing and enabling of a historical and hermeneutic conscience. In a second moment, we will show what Stiegler names the central Pharmakon of the Anthropocene, and the centrality of entropy and negentropy to find a way out of the ecological catastrophe. In a third moment, we will follow Stiegler’s critique of transhumanism and his proposal for negotiation and composition between humanistic tradition and technological development.

 

Keywords: Hipomnemata. Language. Entropy. Pharmakon.

REFERÊNCIAS

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KURZWEIL, R. The Singularity is Near - When humans transcend Biology. New York: Viking-Penguin, 2005.

SCHROEDINGER, E. O que é a vida? O aspeto físico da célula viva. S. Paulo: Fundação da Editora UNESP, 1997.

STIEGLER, B. Nietzsche et la Biologie. Paris: Presses Universitaires de France, 2001.

STIEGLER, B. De la Misère Symbolique - 1. L’Époque Hyperindustrielle. Paris: Editions Galilée, 2004.

STIEGLER, B. Ars industrialis. Manifesto 2010a. Disponível em: http://arsindustrialis.org/manifeste-2010 . Acesso em: 28 out. 2020.

STIEGLER, B. Ce qui Fait que la Vie Vaut la Peine d’Être Vécue. De la Pharmacologie. Paris: Flammarion, 2010b.

STIEGLER, B. La Société Automatique - 1. L’Avenir do travail. Paris: Fayard, 2015.

STIEGLER, B. La Technique et le Temps - 1. La Faute d’Épiméthée. Paris: Fayard, 2018a.

STIEGLER, B. La Technique et le Temps - 2. La Désorientation. Paris: Fayard, 2018b.

STIEGLER, B. Qu’Appelle-t-on Penser ? - 1. L’Immense Régression. Paris: Liens qui Libèrent, 2018c.

 

Recebido: 08/01/2021

Aceito: 25/2/2021

 



[1] Pesquisadora no Phenomenology and Culture Group – Praxis: Centre of Philosophy, Politics and Culture/University of Évora, Évora – Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9673-066X. Email: pacheco.adelaide@gmail.com.