COMENTÁRIO:

CONTRA AS “BIOPOLÍTICAS DA ORDEM PÚBLICA”

 

Miguel Ângelo Oliveira do Carmo[1]

 

Referência do artigo comentado: Navarro, P. P. Ordem e perigo: superfícies do corpo político. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 291 –309, 2021.

 

Ter em mente e ser capaz de captar, no seio das desavenças políticas, nas limitações dos gritos públicos, nos choques entre os corpos, nos perigos da ação, na ordem (pública) que encontra a desordem (púbica) e nos amargos silêncios da derrota, as politizações estratégicas e subjetivas que nos despontencializam é um profundo diagnóstico dos instantes. Essa tarefa, de cunho teórico-prático e transformativo, apresenta-se como resistência contínua contra as biopolíticas do presente, de maneira mais específica naquilo que foi chamado de “biopolíticas da ordem pública”.

Tal evidência salta aos olhos nas análises do artigo de Navarro (2021) aqui comentado. Podemos dizer que temos aqui, até certo ponto, uma genealogia da “ordem pública”, enfatizando, através dos movimentos de protesto, resistências a toda constituição que separa e organiza as “superfícies do corpo político”. Para tanto, o mesmo se faz valer de uma historicização conceitual da expressão “ordem pública”, passando pela sua evidência como dispositivo estruturador das morais, dos sexos e das coabitações corporais, seja pelos aparatos jurídicos, seja pelos policiais. O conceito de dispositivo encontra sua referência em Foucault, em trabalhos em torno da prisão e da sexualidade bem realçados nos anos 1970. Essa relação permite acentuar dispositivos biopolíticos da ordem pública, os quais trazem como efeito práticas de “rituais de purificação”, racismo, constituições topológicas de gênero e sexo, criando problemas para toda forma de alteridade ou corpo político fora do modelo.

Diremos que o grande mérito do artigo de Navarro (2021) não se encontra tanto na exposição dos conflitos oriundos dos ativismos em cena pública ou nas “denúncias” das organizações em torno do sexo e da raça (claro que isso tem a sua importância e relevância), mas na tomada genealógica da noção de ordem pública e a sua inscrição biopolítica como dispositivo. Faz-se uso histórico da primeira, mostrando, a partir dos protestos do Movimento 15-M, a incumbência sempre presente de uma eliminação de qualquer da desordem nos espaços públicos. Ora, essa eliminação tem seus traços jurídicos e autoritários, mas também seu alinhamento político, ao constituir moralmente os corpos possíveis de ocupação espacial. O resultado buscado é o ataque contínuo às relações que não sejam do âmbito predeterminado social e moralmente. O espaço público deve ser clean e o será, pela determinação dos corpos aptos a ter e frequentar tais espaços, com ordenamento moral.

No entanto – e o nosso autor acentua isso, ao tomar o espaço púbico em seu caráter de dispositivo –, o seu traçado histórico não se reduz aos efeitos soberanos do Direito. A problematização vai mais longe, quando se faz uso do dispositivo, da ordem pública como dispositivo. Se Foucault, na preocupação e utilização do dispositivo, em suas pesquisas, realça o dito e o não dito em sua rede estratégica de dominação, amplificando a heterogeneidade que lhe é inerente, Navarro se faz valer disso para mostrar, a partir da extrapolação semântica e da sua relação com formas autoritárias, a sua aparição biopolítica. Talvez resida aí a importância em se fazer bom uso do sentido foucaultiano do dispositivo; talvez também, deixando de lado suas diferenças teóricas, Agamben (2009) tenha tão bem insistido em marcar a força desse conceito em Foucault.

Para não insistir simplesmente no conceito de Foucault, bem presente no artigo de Navarro (2021), trago a colocação elucidativa e direta de Agamben (pensador este a que Navarro não deixa de fazer importante referência, ao explicitar o dispositivo como um “estado de exceção”): “[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”. (Agamben, 2009, p. 40). Ora, se tomarmos essa definição a partir de uma análise histórica, é imperioso que à palavra dispositivo não podemos deixar de realçar seu caráter de problema, ou melhor, de elemento problematizador. E se trago essa característica é para apontar que a discussão de Navarro tomou muito bem essa direção, quando investiga historicamente a ideia de ordem pública e a remete às suas evidências biopolíticas. Não é dizer muito que o texto, partindo dos grupos de resistência como o 15-M da Espanha e se espraiando nas políticas dos corpos e culminando em um diálogo com teóricos da cena queer e da disciplina, contribui muito nesse ponto.

Ao tomar a noção de ordem pública como dispositivo, o autor do artigo problematiza e traz à tona não só as relações entre os mecanismos jurídicos da ordem e as racionalizações do gênero pelo viés sexual e racial. Vai além, ao nos lembrar que, no caso da busca do ordenamento moral que se abate na superfície dos corpos, a ordem pública é um dispositivo o qual está entrelaçado naquilo que fabrica. As técnicas e regulações, a rede dos ditos e não ditos a serem empreendidos são imanentes ao efeito esperado no trabalho do dispositivo: ordenamento moral do espaço e dos corpos, no espaço. Nesse sentido, escapa-se do círculo puramente legal. É esse alargamento de sentido que encontramos no conceito foucaultiano de dispositivo e na definição de Agamben – Navarro (2021, p. xx) aqui não deixa passar despercebido, ao usar a bela expressão “regime de inteligibilidade do corpo”.

O traçado genealógico está presente. A ideia moderna de ordem pública é identificada a partir do Código Napoleônico, de 1804, e ganha caráter biopolítico nas linhagens de gênero e de raça. De um lado, a determinação heterogênea do sexo como modelo a ser seguido – e a ser seguido principalmente no casamento; de outro, a defesa contra a mistura, a impureza das raças. O texto não deixa de realçar o sentido biopolítico do dispositivo de ordem pública, com base em Foucault, através da sexualidade e do racismo de Estado, e firma neste uma precisa aliança que culmina (e isto temos atualmente em grande evidência) em estados de exceção e práticas necropolíticas.

Não se pense que o eixo voltado para o dispositivo de sexualidade ficou para trás, neste artigo que comentamos. Como bem deixou claro Foucault, tal dispositivo se tornou um dos mais importantes do século XIX (FOUCAULT, 1988, p. 132; 2000, p. 300) e sua elucidação veio acompanhada, na discussão, com os chamados “rituais de purificação”. Edgardo Castro (2009, p. 401) pontuou a importância política desse dispositivo em relação com o corpo – suas funções fisiológicas, sensações e prazeres – e Navarro amplifica esse uso político, através do “ordenamento das relações de parentesco”. Como se aplica o ordenamento dos papéis sexuais no matrimônio, fazendo uso dos rituais de purificação? Como esse dispositivo ordena biopoliticamente e publicamente a população, na sua construção sexual? Aponta-se para a eleição, pelo Estado, da relação monogâmica de parentesco, trazendo toda uma exclusão cultural e toda uma ficção identitária. Historicamente, com usos jurídicos, criou-se o discurso do limite entre relações permitidas, por isso aceitas no espaço público, e proibidas, aquelas oriundas da diferença e da estrangeiridade comportamental – como o corpo islâmico, em exemplo dado no artigo. Na superfície dos corpos, encontramos a repugnância que trabalha na higienização das relações.

Das formas de racismo que justificam as ações jurídicas do Estado, na coabitação espacial, ao esquadrinhamento moral das relações sexuais e de parentesco, temos toda uma complexa biopolítica da ordem pública que não deixa de, a cada momento, se evidenciar nas superfícies dos corpos, quer pela lei, quer pela repugnância da diferença. A ordem pública, traço de origem soberana, mas que ganhou suas ramificações e complementaridades políticas na nossa contemporaneidade, nesse texto de Navarro, salta aos nossos olhos, em uma urgência de percepção de perigo e nos coloca contra suas formas biopolíticas.

 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é o Contemporâneo? E Outros Ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução de Ingrid Müller Xavier; revisão técnica de Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria T. da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

Recebido: 18/11/2020

Aceito: 20/11/2020


 

 



[1] Professor Associado da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4793-325X. E-mail: mguel@hotmail.com.