COMENTÁRIO ao artigo Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau

 

Thomaz Kawauche[1]

 

Referência do artigo comentado: BANDERA, M. Dela. Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 262 –278, 2021.

 

Com o artigo “Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau”, Bandera (2021) oferece aos estudos rousseaunianos uma valiosa contribuição em língua portuguesa. Trata-se ali de examinar a passagem da ordem natural para a ordem civil – pedra angular da teoria contratualista de Rousseau –, deslocando-a para o quadro analítico no qual Lévi-Strauss estuda o incesto. O sistema de pensamento que permite ao genebrino investigar o problema da origem da sociedade é, desse modo, cuidadosamente trasladado para o registro discursivo, onde a antropologia estrutural do século XX inscreve o conceito de cultura. Graças a esse sagaz arcabouço de aproximação entre esquemas de inteligibilidade distintos, Bandera (2021) é convincente, quando afirma ver no momento de formação das primeiras famílias o lugar-comum para compararmos a etnologia de Lévi-Strauss à “ciência do homem” de Jean-Jacques. A força de persuasão do texto se deve ainda à escrita clara e adequadamente fundamentada em fontes primárias dos dois pensadores analisados, além do comentário tão relevante quanto esclarecedor de Jacques Derrida, em sua Gramatologia.

Sendo a análise do artigo extraída da reflexão madura exposta na tese doutoral defendida pelo autor (BANDERA, 2018), não podemos deixar de notar o significado histórico de sua publicação. Do ponto de vista do cânone filosófico no Brasil, os desdobramentos da leitura de Rousseau por parte de Lévi-Strauss dizem respeito a um tema tratado com muita atenção por Bento Prado Junior (1937-2007).

Na bibliografia dos estudos acadêmicos em Rousseau, é Prado Junior quem primeiro abordou o “estruturalismo” do Cidadão de Genebra. São emblemáticos os seguintes ensaios, nos quais vemos as semelhanças entre Rousseau e Lévi-Strauss: “Filosofia, Música e Botânica: de Rousseau a Lévi-Strauss” (PRADO JÚNIOR, 1968), “Lecture de Rousseau” (PRADO JÚNIOR, 1972) e “Jean-Jacques Rousseau entre as flores e as palavras” (PRADO JÚNIOR, 1978). Em linhas gerais, Bento Prado defende que tanto Lévi-Strauss quanto Rousseau recorrem à linguagem científica, cada um à maneira das ciências de sua época, buscando a formulação de um discurso de crítica à metafísica clássica; um discurso que, ao tomar a sociedade como objeto, pudesse realizar duas tarefas: (1) evidenciar os limites da ideia de natureza humana, tal como postulada pela metafísica clássica, e (2) propor, numa perspectiva que contemplasse de modo filosófico o imbricamento entre racionalidade e paixões, as condições de possibilidade para a crítica interna da própria filosofia. Infelizmente, durante muitos anos a discussão inaugurada por Prado Júnior permaneceu esquecida, o que frustrou a possibilidade de diálogo entre os filósofos rousseaunianos e os pesquisadores da área de ciências sociais.

Dos textos que valem menção, na bibliografia brasileira, verifico apenas dois de Mariza Werneck (2005; 2007) e um de Pedro Paulo Pimenta (2014), aos quais se soma agora o artigo de Bandera (2021). Em suma, podemos dizer que Bandera (2021) prolonga uma antiga e pouco explorada linhagem interpretativa na história da recepção da obra de Rousseau, no Brasil. Vejamos rapidamente a maneira como ele realiza esse feito.

A leitura que Prado Júnior faz do Rousseau lido por Lévi-Strauss é enriquecida por Bandera (2021), graças à luz lançada sobre um detalhe etnológico encontrado no capítulo IX do Ensaio sobre a origem das línguas. No trecho em que trata da origem das famílias, Rousseau distingue as uniões puramente físicas das uniões autorizadas pelas leis civis: ou seja, mesmo sem utilizar a palavra “incesto”, ele está falando da lei de interdição aos casamentos consanguíneos. Bandera (2021) é arguto, ao observar que Jean-Jacques identifica uma causa efetiva de corrupção moral na perpetuação das famílias por meio de laços de sangue, de tal forma que haveria necessidade de interditar certas uniões inconvenientes, a fim de forçar a expansão das redes de acordos para além da sociabilidade “natural” dos clãs familiares, engendrando assim a produção de um liame da coletividade menos propenso à degeneração dos costumes. (Observação: é importante notarmos que, por ser excessivamente problemática, a hipótese da sociabilidade “natural” é abandonada por Rousseau, no Discurso, o que simplifica as premissas do modelo e evita as complicações envolvendo o incesto do Ensaio.)

Certamente, para o leitor apressado, essa seria apenas uma visão moralista sobre as uniões civis, entendendo-se aqui o sentido pejorativo de moralismo religioso; entretanto, o autor do artigo tem a cautela de demonstrar que o ponto de vista de Rousseau é estritamente lógico, sendo as relações humanas consideradas de forma abstrata, tão somente em termos dos bons ou maus efeitos que decorrem necessariamente das supostas escolhas realizadas e, é claro, sem entrar no mérito ou no demérito dos preconceitos religiosos: como alerta Bandera (2021), do ponto de vista do método do Discurso, é suficiente que o estado de natureza exista apenas “por suposição”. Tudo se passa como se Bandera (2021) transpusesse para o quadro teórico da filosofia de Rousseau o olhar distanciado de Lévi-Strauss, enquanto instrumento de análise do problema do incesto.

De todo modo, não seria descabido nos indagarmos aqui sobre uma possível ilusão retrospectiva, por conta da qual a ciência do homem de Rousseau se confundiria com a etnologia de Lévi-Strauss. Porém, não obstante o cabimento de tal dúvida, sabemos que a radicalidade do viés lógico-conceitual adotado como premissa para traçar a gênese das relações sociais assegura a análise contra toda e qualquer acusação de anacronismo: aliás, Bandera (2021) é enfático, quando afirma que, do ponto de vista metodológico, a reflexão de Rousseau é construída no quadro de uma história conjectural. Podemos dizer que o artigo de Bandera (2021) é exemplar, no que diz respeito ao rigor da demonstração.[2]

Nesses termos, justifica-se tanto em Rousseau quanto em Lévi-Strauss que antropologia e história sejam passíveis de teorização, no interior de quadros de inteligibilidade que Bandera (2021) denomina “mecanismos metodológicos”. Trata-se, por assim dizer, do casamento ideal entre sincronia e diacronia. A lei da proibição do incesto é, nesse sentido, um “operador metodológico” (expressão do autor do artigo) para analisar as sucessivas transformações das relações humanas, ao longo do tempo. Dito de outro modo, na leitura de Bandera (2021), Rousseau identifica no incesto o elemento estruturante de seu modelo abstrato de passagem para o modo de existência condicionado pelas instituições civis, localizando assim, com essa demarcação na história conjectural das origens da família burguesa, o não-lugar da passagem hipotética do estado de natureza “por suposição” para a rede de relações sobre as quais se ergueram as sociedades civis existentes na realidade material. Não por acaso, Dela Bandera “pega carona” no comentário de Derrida para aludir a esse não-lugar como o “quase” lá e cá de um discurso que, como diria Luiz Roberto Salinas Fortes, referindo-se a Rousseau “escritor político”, se situa entre a teoria e prática.

Destaco, a seguir, três trechos que fazem a leitura do artigo valer a pena. Eles mapeiam com extrema precisão o registro epistemológico onde Rousseau analisa as relações sociais, como se fosse um Lévi-Strauss do século XVIII:

O que seguramente podemos sustentar – tal é o objetivo destas páginas – é que a proibição do incesto não engendra apenas uma mera ligação entre as famílias, mas sim a ligação moral, isto é, a passagem da ordem física e natural (leia-se animalidade) à ordem moral e cultural (leia-se humanidade). Trata-se assim da própria armação ou ordem social, diferente de uma aglomeração ou agrupamento natural baseado nas inclinações naturais, no hábito ou no instinto. Sem ela, o gênero humano poderia ser destruído se entendermos essa destruição como a ausência do social e da ordem moral. (BANDERA, 2021, p. xx).

A proibição do incesto é o elemento que revela a instauração da cultura e, portanto, representa também a origem da paixão, da preferência, da sociedade e das línguas. Não por outra razão só depois de haver a proibição do incesto é que se pode falar em sociedade e em ordem moral. (BANDERA, 2021, p. xx).

O mérito de Rousseau reside no fato de ter percebido a função socializante que a interdição do incesto impõe às famílias, já que com a regra de interdição do incesto aparece necessariamente outra, a saber, a exogamia. A necessidade de buscar parceiros/parceiras fora do raio da consanguinidade se mostra como o elemento fundamental para possibilitar a interação entre as famílias e, por conseguinte, a amarração do tecido social para além dos limites familiares. (BANDERA, 2021, p. xx).

 

Por fim, uma única observação crítica, a qual, no entanto, em nada diminui o brilhantismo do artigo em debate.

Bandera (2021) e Lévi-Strauss (2008) concordam em relação à premissa geral da análise: que Rousseau entende a transição da ordem natural para a ordem civil como sendo a “[...] condição solidária de todo pensamento e de toda sociedade” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 600), lembrando que essas são palavras do antropólogo, em Pensamento selvagem, para se referir à identificação primitiva que Jean-Jacques vê entre as paixões e a razão, quando este investiga as condições de possibilidade da ordem civil. Contudo, a delimitação da instigante análise de Bandera (2021) me parece excessiva: ele se concentra no problema das famílias e, mais ainda, restringe esse problema ao Ensaio sobre a origem das línguas, o que, de certa forma, evita as complicações propriamente filosóficas expostas por Rousseau no Discurso sobre a desigualdade.

Meu questionamento é se a vantagem obtida por um tal procedimento de aproximação do olhar vale o custo da perda de visão mais abrangente do sistema; ou ainda, se a leitura mais clara acerca do viés etnológico da exposição do Ensaio compensa a impossibilidade de compreendermos a filosofia social de Rousseau como um todo.

Isso não chegaria a caracterizar uma dificuldade – obviamente, sem entrarmos no mérito de ser o Ensaio um escrito póstumo e subordinado ao Discurso –, se pudéssemos ignorar a abrangência necessária da análise do próprio Lévi-Strauss. Afinal, sabemos que este vislumbra na obra de Rousseau não apenas reflexões etnográficas, mas também um discurso filosófico, ou, para citarmos o antropólogo francês, em Totemismo hoje, uma “[...] filosofia de identificação original com todos os outros.” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 544, grifo nosso). A essa constatação, Bento Prado complementaria, explicando que tal filosofia se caracteriza necessariamente como uma reflexão voltada, de modo crítico, contra si mesma: “Lévi-Strauss reconhece, nos textos em que Rousseau instaura o processo da filosofia, o mesmo procedimento que comanda a crítica etnológica da metafísica: num caso como no outro, o projeto de universalidade da filosofia aparece como ideológico.” (PRADO JÚNIOR, 2018, p. 56 e p. 106).

Isso posto, parece-me que a análise mais restrita do problema do incesto delimitada ao Ensaio desloca para um segundo plano o problema da pitié. Mecanismo passional primitivo qualificado no Discurso sobre a desigualdade como fonte de “todas as virtudes sociais” (ROUSSEAU, 1964, p. 155), a pitié diz respeito ao indivíduo e, por isso mesmo, precede o problema das famílias, além de tornar dispensável a hipótese da sociabilidade “natural” dos primeiros laços familiares (veja-se a observação entre parênteses que faço, no início deste comentário). Não é preciso ser especialista para reconhecer que a pitié, por ser um princípio anterior até mesmo à razão, é estruturante na “ciência do homem” de Rousseau e em sua teoria social, o que a torna um tópico incontornável no trabalho de comparação estrutural entre os sistemas de Rousseau e Lévi-Strauss. Com efeito, o próprio Bandera (2021, p. xx, nota 15) reconhece (na nota sobre a teoria da piedade, no Ensaio e no segundo Discurso) que uma discussão mais abrangente a respeito desse assunto exigiria o estudo das diversas interpretações do tema da piedade, tendo-se como pano de fundo para essa análise o problema da origem da ordem civil no Discurso. Será então que, para falarmos do nível zero do debate sobre o “estruturalismo” em sentido lato, na “antropologia” do Cidadão de Genebra, seríamos forçados a incluir, de alguma maneira, o problema da pitié nesse recorte de viés etnológico do Ensaio?

 

REFERÊNCIAS

BANDERA, M. Dela. Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 262 –278, 2021.

BANDERA, M. A origem da alteração e a alteração de origem: antropologia de Rousseau. 2018. Tese (Doutorado em Filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

GOLDSCHMIDT, V. Anthropologie et politique: les principes du système de Rousseau. Paris: J. Vrin, 1974.

LÉVI-STRAUSS, C. Œuvres. Paris: Gallimard, 2008 (Col. Bibl. de la Pléiade).

PIMENTA, P. P. Lévi-Strauss, Rousseau e o fim da filosofia. Ponto Urbe, n. 15, 2014.

PRADO JÚNIOR, B. A retórica de Rousseau e outros ensaios. São Paulo: Edunesp, 2018.

PRADO JÚNIOR, B. Filosofia, Música e Botânica: de Rousseau a Lévi-Strauss. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 15-16, 1968.

PRADO JÚNIOR, B. Lecture de Rousseau. Discurso, São Paulo, n. 3, 1972.

PRADO JÚNIOR, B. Jean-Jacques Rousseau entre as flores e as palavras. Almanaque, São Paulo, n. 8, 1978.

ROUSSEAU, J.-J. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes. In: Œuvres complètes, t. III. Paris: Gallimard, 1964 (Col. Bibl. de la Pléiade).

SALINAS FORTES, L. R. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo: Ática, 1976.

WERNECK, M. Claude Lévi-Strauss e o aprendizado do delírio. In: MARQUES, J. O. A. (org.). Verdades e mentiras: 30 ensaios em torno de Jean-Jacques Rousseau. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005.

WERNECK, M. Presença (e ausência) do caminhante solitário na obra de Claude Lévi-Strauss. In: MARQUES, J. O. A. (org.). Reflexos de Rousseau. São Paulo: Humanitas, 2007.

 

Recebido: 25/10/2020

Aceito: 30/10/2020



[1] Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e Professor Visitante na Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7275-6814. E-mail: kawauche@unifesp.br.

[2] Sabe-se que Rousseau atribui à história o estatuto de ciência da razão, de sorte a não confundi-la com a história tradicional, entendida até o século XVIII como ciência da memória. Jean-Jacques se distingue dos historiadores antigos, porque elabora uma história da sociedade, não como um erudito responsável por compilar acontecimentos particulares, mas, isto sim, à maneira dos geômetras e dos físicos. Na perspectiva do genebrino (um olhar típico das ciências modernas), a história, tal como concebida no Discurso sobre a origem da desigualdade, diz respeito a fatos fictícios, os quais, embora inspirados na observação empírica das coisas tais como são, na diacronia do mundo material, ainda assim não deixam de ser ideias abstratas formuladas pela razão humana, ou seja, conjecturas sincrônicas de acontecimentos hipotéticos descritos como poderiam ser no plano ideal, e isso, a despeito de todas as limitações da faculdade racional para tratar de assuntos próprios da metafísica clássica. É, portanto, uma história filosófica no sentido em que a modernidade aprendeu a entender a nova relação entre filosofia e história introduzida por Rousseau. A diferença no tocante à história natural de Buffon, também filosófica, é que, para além da mera classificação dos fenômenos segundo a ordem da natureza, os fatos observados são ordenados segundo um duplo critério: não apenas em relação às leis físicas que os condicionam segundo a ordem da natureza, mas também conforme uma lei interna que os conecta segundo o desenvolvimento dos sucessivos modos de vida dos homens (lembremos que a “segunda natureza”, a qual podemos observar pelos moeurs, é passível de se transformar movida pelo atributo da “perfectibilidade”, que, como sabemos, cumpre a função de lei do indivíduo e da espécie). Em suma, Rousseau emprega um rigoroso método filosófico para refletir acerca dos fatos históricos como construtos da razão, fatos estes ligados numa cadeia necessária de causas e efeitos – uma etiologia, como frisou V. Goldschmidt (1974, p. 164 e 383) – que, em seu modelo, representaria tanto os movimentos da ordem natural quanto os da ordem social num “tempo lógico”. Por exemplo, as invenções tecnológicas (cabanas, metalurgia, agricultura), o nascimento da vaidade pelas trocas de olhares, o momento em que a divisão social do trabalho se torna uma necessidade geral etc. – são todos fatos da razão que denotam a lei dos condicionamentos a uma só vez físicos e culturais sofridos necessariamente pela espécie humana, ao longo de seus desenvolvimentos na narrativa hipotética (isto é, situada na linha do tempo lógico) do Discurso.