Comentário ao artigo Hacia una teoría jurídica sin género

Caroline Marim[1]

 

Referência do artigo comentado: Miranda, L. V. M; Oyaneder, C. V. Hacia una teoría jurídica sin género: feminismo, autonomía e igualdad relacional. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 206 –229, 2021.

 

            A partir de uma análise feminista decolonial do artigo “Hacia una teoría jurídica sin género: feminismo, autonomia e igualdade racial” (MIRANDA; OYANEDER, 2021), proponho mostrar que os esforços em reformular uma teoria do direito universal, pautada nos princípios de autonomia e igualdade, sem considerar as críticas que o feminismo liberal tem recebido nos últimos anos das epistemologias do Sul, incorrem nos mesmos problemas que se pretende solucionar.

            Caso levemos em conta um leitor ou leitora (provavelmente branco) treinado nas epistemologias e teorias políticas contratuais hegemônicas ocidentocêntricas, como normalmente encontramos, nos cursos de Filosofia e Direito, nas universidades brasileiras e em outros países latinos-americanos, a proposta de reformulação feita por Seyla Benhabib, a partir do “[...] reconocimiento de la identidad incardinada y arraigada de los agentes no impide a la autora conservar la universalidad como ideal regulativo” (MIRANDA; OYANEDER, 2021, p. 9) parece satisfatória e convincente. A ideia de um universalismo que propõe a diferença como ponto de partida, sem dúvida nenhuma, é tentadora e surge como a possibilidade de solucionar diferentes problemas de teorias contratuais e comunicativas avistando que, “[c]on ello se abre paso a las diferencias de género, tematizándolas y volviéndose sensibles a estas, toda vez que el yo se plantea como un ente encarnizado e incrustado en las relaciones humanas.” (MIRANDA; OYANEDER, 2021, p. 8 ).

            Entretanto, mesmo diante da “inclusão” de uma perspectiva relacional e encarnada, será que podemos falar de uma igualdade que contemple as diferenças sociais de classe e raça, em uma categoria de gênero tão ampla como mulher?[2] Qual ou quais mulheres servem ou servirão de referencial ou ideal regulador? Quem realizará a regulação? Juízes, homens, mulheres, todos brancos?

            Sabemos que grande parte das violações de direitos humanos enfrentadas ontem e hoje se deve principalmente à fragilidade de instrumentos jurídicos nacionais e internacionais, para garantir a sua proteção, principalmente tendo como proposta “[...] uma falsa semelhança universal (universalismo), que torna os indivíduos como seres iguais, ou seja, com uma mesma dignidade (abstrata).” (DE TOMAZ, 2016 apud PASSOS, 2020). O cenário em que vivemos, na América Latina e em grande parte do mundo, é de uma grande parcela da população afetada por pobreza extrema, exploração sexual, deslocamentos forçados, vulnerabilidade e opressão, “[..] que, coincidentemente ou não, afetam grupos específicos marcados pelo gênero e pela raça, a saber, mulheres em geral, mulheres negras e transgêneros, em particular, e também homens negros.” (PASSOS, 2020, p. 146).

            Quando feministas decoloniais do Sul global utilizam outras ferramentas de análise teórica que entendem como ponto de partida para a pluralidade e a impossibilidade de se universalizar, mesmo experiências encarnadas entre mulheres negras, tem-se como principal objetivo compreender o que pode ser feito para enfrentar e superar a diferença colonial determinada pela classe, raça e gênero. Teorias universalistas esquecem que

[a] visão do “Outro” é sempre construída não com base em aspecto de alteridade e semelhança, mas em visão aviltante daquele que, regional e politicamente, é posto em uma posição hierarquicamente inferior, em razão dos processos de subalternização, que, nesse caso, são compreendidos pela colonialidade. (PASSOS, 2020, p. 152).

 

É, portanto, necessário e imprescindível identificar os eixos de subordinação, compreendendo os aspectos estruturais fundantes das condições sociais junto às de gênero, rompendo radicalmente com as estruturas coloniais do poder, do saber e do ser (QUIJANO, 2000), de modo a rever o imperialismo ocidental, no qual o discurso dos direitos iguais e universais pode representar frente a outras culturas. Não é suficiente “boas intenções” teóricas e/ou jurídicas, a fim de garantir um diálogo de paridade de forças entre as diversas culturas existentes. São necessárias ferramentas epistêmicas que tornem possível a identificação de situações omitidas e invisibilizadas por projetos políticos e jurídicos de universalização que escondem outros caminhos possíveis de garantir a proteção dos direitos de pessoas subalternas. Caminhos que não perpetuem a dominação e exploração de grupos ou mulheres, como o caso exemplar apresentado no artigo - “Joane Florvil mujer, migrante, haitiana y madre” (MIRANDA; OYANEDER, 2021, p. 16) - para que possa, de fato, acontecer uma mudança.

Considerar ou “incluir”, de fato, a outra em condição de precariedade e subalternidade, a partir de pressupostos valorativos racionais modernos que foram impostos por processos de “globalização”, é extremamente problemático. A história da mulher africana e latino-americana negra e sua condição social é pouco discutida e silenciada – e, quando considerada, parte-se de uma avaliação e valoração colonial que ignora suas narrativas de vida, perpentuando assim a colonialidade respaldada em modelos eurocêntricos que a feminista branca liberal acredita serem igualitários e emancipatórios. Como Ochy Curiel (2009, p. 3) aponta:

A descolonização para nós mulheres se trata de uma posição política que atravessa o pensamento e a ação individual e coletiva, nossos imaginários, nossos corpos, nossas sexualidades, nossas formas de atuar e de ser no mundo e que cria uma espécie de “insurgência antiracista” intelectual, de práticas sociais e da construção de pensamento próprio de acordo a experiências concretas. Se trata do questionamento do sujeito único, ao eurocentrismo, ao ocidentalismo, a colonialidade do poder, ao tempo que reconhece propostas como a hibridação, a polisemia, o pensamento-outro, subalterno e fronteiriço.

 

                Por fim, as perguntas que surgem são: há, de fato, um avanço com a reformulação? Superação ou mascaramento dos mesmos problemas?

            Nesse sentido, Ochy Curiel (2009, p. 07-08) acrescenta:

Descolonizar para as feministas latinoamericanas e caribenhas supõe superar o binarismo entre teoria e prática pois lhe potencializaria para poder gerar teorizações distintas, particulares, significativas ao que se tem feito na região, que muito pode oferecer como aporte para descentralizar o sujeito eurocêntrico e a subalternidade que o mesmo feminismo latinoamericano reproduz em seu interior, senão seguiremos analisando nossas experiências com os olhos imperiais, com a consciência planetária de Europa e América do Norte que definem o resto do mundo como o OUTRO incivilizado e natural, irracional e não verdadeiro.

 

            Descolonizar é romper com qualquer tipo de projeto universalista que exclui valores e experiências culturais, as quais, muitas vezes, como aponta Oyèrónké Oyěwùmí (1997), possuem uma outra organização e valoração social, não pautada na colonialidade de gênero, como acontece, por exemplo, entre os Iorubas. Descolonizar o gênero é necessariamente uma práxis pluralista, conforme assevera Lugones (2008, p. 86):

Minha intenção é enfocar na subjetividade/intersubjetividade para revelar que, desagregando opressões, desagregam-se as fontes subjetivas intersubjetivas de agenciamento das mulheres colonizadas. [..] Chamo a possibilidade de superar a colonialidade do gênero de “feminismo descolonial”.

 

            Ou, como salienta Yuderkys Miñoso (2017, p. 162), que denuncia a subalternidade pelo feminismo hegemônico:

Si la afrodescendente o la indígena o mestiza, madre o lesbiana, trabajadora precarizada, campesina o fuera del mercado laboral, estudiante o analfabeta, monolingüe, bilingüe, expulsada por la pobreza o por la guerra a países del primer mundo… si ellas son nombradas, si ellas son objeto de discursos y políticas, aunque las feministas “comprometidas” del Sur y del Norte “hablen por ella” […] ella definitivamente no está ahí.

 

            Ou seja, propor uma teoria sem gênero, considerando apenas as diferenças entre gêneros binários, não é o mesmo que questionar os impactos que a colonialidade de gênero produziu e ainda produz, para que as diferenças entre mulheres brancas e negras sejam tão graves quanto as diferenças entre homem e mulher. A proposta de uma teoria universal faz parte da lógica capitalista e colonial, resultado da produção e supervalorização de saberes hegemônicos, os quais se desenvolvem em meio ao silenciamento e exclusão de outras culturas e vivências. Trata-se, portanto, de uma dominação epistemológica, em que há a desqualificação e desconsideração das muitas formas de saber e conhecimentos dos povos colonizados, mantendo-os num espaço de subalternidade, com a desculpa de que serão contados na esfera de consideração como iguais.

            Reformulações podem ser vistas como renovações, no entanto, podem também apenas regenerar o que deveria ser simplesmente abandonado.

 

Referências

CURIEL, Ochy. Construindo metodologias feministas desde o feminismo decolonial. In: DE MELO, Paula Balduino et al. (org). Descolonizar o feminismo. Brasília: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília, 2019.

DE TOMAZ, Carlos Alberto Simões; DE LANNA, Pablo Henrique Hubner. O Fundo Monetário Internacional e a proteção dos Direitos Humanos: Uma análise do programa de crescimento e redução da pobreza no Haiti. Revista de Direito Internacional, v. 13, n. 3, 2016.

LUGONES, María. Colonialidad y Género. Tabula Rasa, n. 9, jul./dez, p. 73-101, 2008.

MIÑOSO, Yuderkys E. De por qué es necesario un feminismo descolonial: diferenciación, dominación coconstitutiva de la modernidad occidental y el fin de la política de identidad. Solar, Revista de Filosofía Iberoamericana, Dossier Epistemologías feministas latino-americanas, v. 12, n. 1, p. 141-71, 2017.

Miranda, L. V. M; Oyaneder, C. V. Hacia una teoría jurídica sin género: feminismo, autonomía e igualdad relacional. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 206 –229, 2021.

OYÉWÙMÍ, O. Visualizing the body: Western theories and African subjects. In: OYÉWÙMÍ, O. The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.

PASSOS, Rute; SANTOS, Letícia Rocha; ESPINOZA, Fran. Direitos humanos, decolonialidade e feminismo decolonial: ferramentas teóricas para a compreensão de raça e gênero nos locais de subalternidade. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 10, n. 2, p.142-172, 2020.

QUIJANO, Anibal. Coloniality of power and Eurocentrism in Latin America. International Sociology, v. 15, n. 2, p. 215-232, 2000.

 

Recebido: 18/11/2020

Aceito: 21/11/2020

 



[1] Professora substituta do Departamento de Filosofia da UFPE/PE, Recife, PE – Brasil. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Epistemologias, narrativas e políticas afetivas feministas CNPq/PUCRS. Membra do GT Filosofia e Gênero ANPOF e do Grupo de Estudos em Decolonialidade Carolina Maria de Jesus - UFRJ. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4554-3653. E-mail: caroline.marim@gmail.com.

[2] Como categoria de gênero “mulher” compreendemos as cisgêneros, transgêneros, além de incluir também os gêneros não-binários e agênero, pois também estão excluídos da esfera de consideração do gênero homem.