Comentário ao artigo Escândalo e corrupção: da recriação do invisível nos mass media

 

Rita de Cássia Biason[1]

 

Referência do artigo comentado: Braga, J. Escândalo e corrupção: da recriação do invisível nos mass media. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 44, n. 1, p. 107 –124, 2021.

 

Em seu artigo “Escândalo e Corrupção: da recriação do ‘invisível’ nos mass media”, Braga (2021), analisa com profundidade o fenômeno da corrupção à luz do universo midiático. A reflexão, acurada e rigorosa, acerca da relação entre corrupção e mídia, nos permite ir além do binômio lícito-ilícito e nos convida a pensar sobre os sentidos e os significados dos escândalos políticos que emergem diariamente, nos diferentes meios de comunicação.

Escândalo é uma palavra que surge pela primeira vez no século XVI e, desde então, vem sendo usada para definir ações, acontecimentos ou circunstâncias, cuja conduta venha a ofender o “senso de decência”. No que diz respeito ao emprego religioso, refere-se à relação entre indivíduos e a crença religiosa, associa-se a transgressão religiosa (THOMPSON, 2002, p. 39). Já a definição recorrente de escândalo “[...] refere-se às ações ou acontecimentos que implicam em certos tipos de transgressões que se tornam conhecidos de outros e que são suficientemente sérios para provocar uma resposta pública.” (Thompson, 2002, p. 40). Tais ações e acontecimentos chegam aos cidadãos, pelos meios de comunicação que cumprem o seu papel, “[...] seja alterando as disposições do público, seja influenciando na qualidade da elite política.” (Miguel, 2008, p. 252).

Nesse caso, os escândalos possuem algumas características, tais como: representam a transgressão de valores, normas ou códigos morais; sua existência envolve um elemento de segredo ou ocultação; os não-participantes desaprovam as ações e podem denunciar e reprovar publicamente os acontecimentos; e a revelação e/ou condenação dos acontecimentos podem prejudicar a reputação, ou não, dos envolvidos (Thompson, 2002, p. 40-51).

Os escândalos de natureza política são distintos dos que ocorrem na esfera privada, uma vez que afetam as relações públicas e as instituições. Temos, na esfera pública, uma violação de um processo ou de regras que definem o jogo político, que estão assegurados pela constituição ou por leis que ordenam as instituições democráticas. Portanto, a presença de escândalos políticos pode sugerir que as estruturas institucionais, as quais ordenam um estado democrático, estão em dissonância com os fundamentos da própria democracia. Outra inferência que podemos fazer é que o escândalo pode ser um recurso para esvaziar o poder político dos adversários, destruindo e prejudicando a reputação, diminuindo a capacidade de influenciar processos e indivíduos e gerando uma desconfiança generalizada nas instituições políticas.

Desconfiança, em relação à classe política,

[...] remete ao fato de que ela é estruturalmente incapaz de cumprir os compromissos com seus constituintes, dados os vieses da representação política formal. Não se trata, assim, de uma elite política que piorou, ou de uma população que abriu os olhos quanto aos defeitos de seus governantes, mas de um processo histórico que evidenciou os limites da democracia eleitoral que temos. (Miguel, 2008, p. 269).

 

A presença de escândalos políticos não é uma novidade: existem há séculos e, com o desenvolvimento das sociedades modernas, a amplitude dos escândalos adquiriu novos contornos, de sorte que eles se tornaram cada vez mais ligados às formas midiáticas (Thompson, 2002, p. 59). Disso resulta que não se restringem ao local onde surgem. São escândalos noticiados e construídos pelas diversas formas de mídias, em grande parte porque escândalos “vendem” e influenciam as decisões políticas.

A associação entre mídia e poder pode ser exemplificada por meio da pesquisa realizada por Di Tella (2008) com os quatro principais jornais da Argentina, os quais informavam os escândalos de corrupção, no período de 1998-2007, indicando uma correlação entre a publicidade do governo recebido pelos jornais e a forma como os escândalos eram noticiados.

Resumidamente, a pesquisa revelou que há uma correlação negativa entre a quantidade de espaço da primeira página dedicado à cobertura de escândalos de corrupção e a quantidade de dinheiro na publicidade paga mensalmente ao jornal. Ou seja, identificou-se uma conexão entre as transferências de recursos do governo e as notícias de corrupção. Surpreendentemente, as notícias desapareciam, quando a publicidade não provinha de uma agência governamental ou quando os escândalos cometidos se referiam a atores não políticos (Di Tella, 2008, p.3).

Apesar do (im)provável comprometimento da mídia com os interesses de governo, a mídia é potencialmente importante para exercer o controle sobre governos abusivos, particularmente em países com altos níveis de corrupção e com sistemas jurídicos vulneráveis. Assim, para inibir a ação da mídia na investigação e divulgação dos escândalos políticos, os governos tentam influenciá-la através de ações que variam desde a censura direta e intimidação até favores e transferências de recursos para jornais.

No caso dos escândalos políticos, os quais envolvem práticas de corrupção, deve-se considerar que a notícia ganha relevância na mídia, não pela certeza de que a corrupção efetivamente ocorreu, mas principalmente pela suposição de que tenha ocorrido. Há uma correspondência entre corrupção e escândalo político, na qual as atitudes públicas são afetadas, tanto pelo impacto das atividades de corrupção quanto pelo impacto da exposição da corrupção (Newell, 2018, cap. 6). Se aceitarmos que os vários graus de corrupção e de outras formas de injustiça, por exemplo, são inevitáveis em qualquer sistema político, então o escândalo político pode realizar um papel importante nas persistentes tentativas de prevenir e controlar a propagação da corrupção.

 

Referências

Braga, J. Escândalo e corrupção: da recriação do invisível nos mass media. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 44, n. 1, p. 107 –124, 2021.

DI TELLA, Rafael; FRANCESCHELLI, Ignacio. Government advertising and media coverage of corruption scandals. Working Paper 15402, 2009. Disponível em: http://www.nber.org/papers/w15402. Acesso em: 20 fev. 2021.

MIGUEL, Luis Felipe. A mídia e o declínio da confiança política. Sociologias, Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 250-273,  jan./jun. 2008.

NEWELL, James L. Corruption in contemporary politics: a new travel guide. Manchester: Manchester University Press, 2018. Capítulos 6 e 10. (e-book)

THOMPSON, John B. O Escândalo Político: poder e visibilidade na era da mídia. Petrópolis: Vozes, 2002.

 

Recebido: 08/11/2020

Aceito: 10/11/2020


 

 



[1] Cientista Política e Professora na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Franca, Franca, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7956-4583. E-mail: rita.biason@unesp.br.