DELEUZE E A ESCRITA: ENTRE A FILOSOFIA E A LITERATURA

 

Christian Fernando Ribeiro Guimarães Vinci[1]

 

Resumo: Esse ensaio buscará sondar as relações entre filosofia e literatura, no pensamento de Gilles Deleuze, a despeito de sua parceria conjunta com Félix Guattari, atentando tanto para as concepções de escrita expressas ao longo de sua obra quanto para o modo como essas concepções teriam influenciado o estilo de seus escritos filosóficos. Partindo da premissa deleuziana de que a escrita possui um acentuado lastro clínico, sendo a responsável pela elaboração de um diagnóstico das forças capazes de aprisionar ou calar a vida, procurar-se-á esmiuçar as ressonâncias desse lastro clínico, na concepção de filosofia como ato criativo, elaborada pelo autor. Como hipótese a ser aqui trabalhada, defende-se que a escrita deleuziana – compreendida como portadora de uma literalidade, conforme sustenta François Zourabchivili, ou como encrustada de uma poética imanentista, tal qual sugere Anita Costa Malufe – procuraria produzir uma zona de vizinhança ou indiscernibilidade entre a escrita filosófica, de caráter mais exegético, e a escrita literária, mais afectiva, de modo a produzir um deslocamento na relação do leitor com o ato de pensar.

 

Palavras-Chave: Gilles Deleuze. Escrita. Clínica.

 

Introdução

É incontestável o apreço de Gilles Deleuze por certas experimentações literárias. Hervé Micolet (2007), na introdução ao compêndio Deleuze et les écrivains: littérature et philosophie, corroborando essa impressão, insiste em afirmar que a relação do autor de Diferença e Repetição com o campo literário é algo visceral e, buscando ilustrar essa inferência, brinda-nos com um extenso inventário dos literatos citados pelo filósofo, ao longo de seu corpus teórico. Desde o primeiro escrito deleuziano, A ilha deserta (DELEUZE, 2006a), até o derradeiro, intitulado Imanência: uma vida... (DELEUZE, 2016), deparamos com remissões diversas a literatos e seus personagens. Ali, uma breve menção ao nome de Robinson Crusoé, personagem de Daniel Defoe, o romance que “[...] representa a melhor ilustração da tese que afirma o liame entre o capitalismo e o protestantismo” (DELEUZE, 2006a, p. 21); já em Imanência: uma vida... (DELEUZE, 2016), uma remissão a certo personagem de Charles Dickens, autor que “[...] contou o que é uma vida, ao considerar o artigo indefinido como indício do transcendental.” (DELEUZE, 2016, p. 409).

Entre um e outro registro, uma considerável mudança no tratamento concedido a cada um desses exercícios literários, por parte de Deleuze. No primeiro texto, o romance de Defoe representa ou ilustra uma determinada tese, enquanto no derradeiro escrito deleuziano, Dickens conta-nos algo sobre um dito campo transcendental, sendo o responsável por nos demonstrar sua existência, tal qual um filósofo o faria.[2] Essa complexa e nem sempre unívoca relação estabelecida por Deleuze com certos registros literários encanta Micolet (2007), autor para quem só podemos compreender essa afeição deleuziana pela literatura, se considerarmos o modo como o autor de Diferença e Repetição atrela o exercício filosófico a uma compreensão não filosófica.[3]

Outro comentador, Jorge Vasconcellos (2005), também insiste na importância em levarmos em conta a aliança forjada por Deleuze entre filosofia e a não filosofia, reiterando que essa aliança só é possível por meio daquilo que o pensador francês denominou intercessores, compreendidos pelo comentador como espécies de “[...] encontros os quais fazem com que o pensamento saia de sua imobilidade natural.” (VASCONCELLOS, 2005, p. 1223).[4] Esses intercessores, prossegue Vasconcelos, derivam dos mais variados campos, e apenas a partir deles conseguimos gerar pensar no pensamento, considerando que o ato criativo inerente ao exercício filosófico não é algo natural ou inato, mas surge sempre de um encontro violento com certos signos que nos forçam a pensar.[5] A literatura, por conseguinte, funcionaria como uma intercessora importante para Deleuze, uma emissora de signos que ressoam amiúde em sua criação filosófica.[6]

Ora, a relação vital da filosofia com a não filosofia, em Deleuze, é um fato inconteste, mas dessa constatação se poderia afirmar, como o faz Micolet (2007), que a literatura seria um intercessor privilegiado? Para Vasconcellos (2005), a literatura não seria um intercessor de maior destaque – dando vazão, assim, à leitura empreendida por Roberto Machado (2009), há tempos. Segundo o autor de Deleuze, a arte e a filosofia, Deleuze buscou a companhia da literatura tanto quanto do cinema, do teatro e das artes plásticas. Jamais, portanto, privilegiou um modo de expressão em detrimento de outro. Deleuze, nos lembra Machado, procurou produzir ressonâncias entre o filosófico e o não filosófico, porém, sempre privilegiando o primeiro campo e, por esse motivo, sempre transmutando “[...] em conceitos o exercício não conceitual de pensamento existente nesses outros domínios.” (MACHADO, 2009, p. 194). Para o comentador, a profusão de citações do campo literário é algo contingencial, apenas.

Discussões mais recentes, contudo, tendem a discordar de uma tal exegese. Micolet, o supracitado organizador do compêndio Deleuze et les écrivais: littérature et philosophie, ao lado de Bruno Gelas (GELAS; MICOLET, 2007), por exemplo, compreende a literatura como o principal intercessor deleuziano, importante não apenas por impulsionar ou coagir o pensamento filosófico do autor para outros rincões de pensamento, chegando algumas vezes a servir de exemplo ou contraexemplo, mas também por modular o modo como Deleuze escrevia filosofia. Encontramos ecos dessa leitura tanto em Phillipe Mengue (2013) quanto em Jean-Clet Martin (2016): conforme o primeiro, a literatura seria o único exemplo possível de ilustrar certas discussões políticas empreendidas por Deleuze, em companhia ou não de Guattari; Martin, por sua vez, não corrobora tal prognóstico, uma vez que parte do pressuposto de que Deleuze busca operar uma escrita que não passa por metáforas e/ou exemplificações de nenhuma ordem, todavia, não deixa de considerar que a literatura influenciou enormemente Deleuze em seu processo escritural e não pode ser tida como uma intercessora igual a outras artes.

É curioso constatar como, no interior dessas discussões recentes sobre a relação de Deleuze com a literatura, emerge a questão do estilo dos escritos deleuzianos. François Zourabichvili (2011) quiçá tenha sido o autor que mais abordou essa temática, chegando a apontar a existência de um estilo ou de uma poética da literalidade em Deleuze. A literalidade, em resumo, seria um modo de escrita que prima pela criação, ao invés da representação, evitando assim operar por metáforas ou outras figuras de linguagem. Essa discussão, no Brasil, acabou sendo retomada por Anita Cota Malufe (2012, 2015), autora para quem o filósofo francês teria construído uma espécie de poética em diálogo – intempestivo, muitas vezes – com os modos expressivos literários. Percebemos, por meio do resgate dos debates supramencionados, a importância dessa discussão sobre o papel da literatura, no interior do pensamento deleuziano, a qual é ampla e está longe de findar.[7]

No caso deste breve ensaio, não procuraremos resolver tal questão, mas buscar pontuar alguns elementos sobre a relação de Deleuze com a literatura. Partilhamos com Zourabichvili (2011) e Malufe (2015) o prognóstico de que, avesso ao uso metafórico da linguagem, Deleuze jamais buscou na literatura um exemplo para sua filosofia. Proust, Kafka e tantos outros são companhias de pensamento apenas, intercessores privilegiados, por se encontrarem em “flagrante delito de fabulação” (DELEUZE, 2006b, p. 157). A literatura, bem como as demais artes, cria pensamento tanto quanto a filosofia, variando unicamente o seu modo de expressão. Enquanto a filosofia, conforme defesa entusiasticamente apresentada em sua derradeira obra (DELEUZE; GUATTARI, 1992), pensa por conceitos, a arte pensa por afectos e perceptos, enquanto a ciência pensa por prospectos.[8] Fazer ressoar os meios de expressão artísticos e/ou científicos na criação conceitual própria da filosofia, por meio da criação de uma série (DELEUZE, 2006b), seria a única forma de produzir movimentos de pensamento, na concepção de Deleuze.

Essa captura, na verdade, ocorreria de maneira natural, uma vez que a filosofia, a arte e as ciências seriam “[...] espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e que não cessam de interferir entre si.” (DELEUZE, 2006b, p. 156). O ato de criação, comum a esses distintos modos expressivos, unifica arte, ciência e filosofia. Se assim o é, não podemos asseverar, como o fazem os comentadores supracitados, que a literatura teria maior proeminência expressiva sobre a criação conceitual deleuziana do que o cinema, por exemplo. Talvez seja necessário deslocar a questão.

Antes de querer corroborar o prognóstico de que a literatura ocupa um local de destaque no pensamento de Deleuze, convém esmiuçar como as experimentações literárias, enquanto elemento não filosófico, se articulam com a experimentação filosófica deleuziana. Por qual razão pensar essa articulação? Há tempos, Deleuze defendeu a necessidade de a filosofia se abrir para alguns modos expressivos literários, conforme ecoa em seu prólogo à Diferença e Repetição:

Um livro de filosofia deve ser, por um lado, um tipo muito particular de romance policial e, por outro, uma espécie de ficção científica. Por romance policial, queremos dizer que os conceitos devem intervir, com uma zona de presença, para resolver uma situação local. Modificam-se com os problemas. Eles têm esferas de influência em que, como veremos, se exercem em relação a “dramas” e por meio de certa “crueldade”. Devem ter uma coerência entre si, mas tal coerência não deve vir deles. Devem receber sua coerência de outro lugar. [...] Daí o aspecto de ficção científica que deriva necessariamente desse Erewhon [aqui-agora]. O que este livro deveria apresentar, portanto, é o acesso a uma coerência que não é a nossa, a do homem, nem a de Deus, nem a do mundo. Neste sentido, deveria ser um livro apocalíptico. (DELEUZE, 1988, p. 17).

 

Fica explicitado o quanto esses gêneros, romance policial e ficção científica, devem ser articulados filosoficamente, de sorte a produzir um deslocamento – operando como intercessores, portanto –, quer no modo como a filosofia opera com os conceitos, quer na maneira como pensa a lógica de nossas experiências ordinárias. É um deslocamento apto a permitir que, conforme prossegue Deleuze, em seu prólogo, tanto leitor quanto autor sejam levados a transpor o campo empírico no qual se veem situados em direção a um campo de não saber:

Ficção científica também no sentido em que os pontos fracos se revelam. Como escrever senão sobre aquilo que não se sabe ou que se sabe mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. (DELEUZE, 1988, p. 17-18).

 

Essa companhia literária, segundo Martin (2016), se justifica por conta do interesse deleuziano em produzir uma escrita filosófica que se preste mais a uma afecção do leitor do que propriamente a uma exegese. Corroboramos tal leitura, mas acrescentando que, se a literatura assume tal tarefa, isso se deve sobretudo por seu lastro clínico. Os conceitos, notou certa feita Deleuze (2016), buscam fomentar outros modos de existência e, se assim o for, o modo expressivo literário, com sua veia clínica, possibilitaria modular a criação filosófica, a fim de conferir-lhe um estatuto quase medicinal. Da junção filosofia e literatura, por conseguinte, seria possível promover existências outras.[9]

Dado esse preâmbulo, tendo em vista que as questões pontuadas acima estão longe de se esgotar, propomos realizar uma pequena imersão no corpus teórico deleuziano, com algumas pequenas injuções nas obras escritas, em parceria com Guattari, a fim de pensar a relação entre filosofia e literatura, em algumas de suas obras, buscando ainda ressaltar as ressonâncias dessa relação nos próprios escritos de Deleuze. Perseguir-se-á, assim, o seguinte excurso de pensamento: em um primeiro momento, será discutida a questão da potência literária, por meio da concepção deleuziana de que a escrita seria algo inseparável do devir e, no caso da escrita literária, da própria clínica; na sequência, objetivaremos recuperar o modo como Deleuze problematizou o ato de escrever, em sua própria obra, e procurou engendrar uma escrita singular, preocupada em fomentar no leitor uma leitura intensiva, afectiva. Como hipótese, a ser aqui talhada, defende-se que a escrita deleuziana – compreendida como portadora de uma literalidade (ZOURABICHIVILI, 2011) ou como encrustada de uma poética imanentista (MALUFE, 2012; 2015) – almeja produzir uma zona de vizinhança ou indiscernibilidade entre a escrita filosófica, de caráter mais exegético, e a escrita literária, mais afectiva, de modo a ensejar um deslocamento na relação do leitor com a obra filosófica.

A importância dessa paridade, contudo, só pode ser compreendida, se levarmos em conta tanto os ataques deleuzianos à função repressora da História da Filosofia quanto, e mais importante, sua concepção clínica acerca da literatura. A libertação do pensamento, ou a construção de um outro estilo filosófico – tal qual projeto exposto em Diferença e Repetição (DELEUZE, 1988) –, defendemos, necessita da produção de uma escrita singular, na qual literatura e filosofia se confundem, e cujas discussões sobre a literalidade ou a defesa entusiástica da relevância da literatura no pensamento deleuziano ainda não conseguiram apreender de todo.

 

1 Literatura e clínica

“Entre todos os que fazem livros com intenções literárias, mesmo entre os loucos, são muito poucos os que podem dizer-se escritores”, afiançou Deleuze, ao final de um pequeno opúsculo intitulado A literatura e a vida (DELEUZE, 2007, p. 16). Ali, o filósofo chegou ainda a definir a escrita como “[...] um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido.” (DELEUZE, 2007, p. 11). Ao longo do texto, percebe-se um esforço do autor em modular a sua concepção de escrita, até que esta se torne indistinguível da própria clínica. O exercício escritural, conforme acepção deleuziana, não se presta a narrar as vivências individuais – “[...] escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos e fantasmas” (DELEUZE, 2007, p. 12) –, antes, busca revelar singularidades por trás das individualidades ou, em outros termos, captar uma potência impessoal capaz de atravessar qualquer vivente e qualquer vívido. Dessa captura, surge o caráter clínico da literatura. Convém nos determos nessa concepção deleuziana, para compreendermos por quais caminhos a escrita se transmutará em clínica.

As individualidades dizem respeito aos acidentes interiores e exteriores de um indivíduo, as determinações que condicionam seus modos de existência e individualizam os sujeitos. “Não se escreve com as próprias neuroses”, lembrar-nos-ia Deleuze (2007, p. 13). Por qual razão? Esses estados – as neuroses, as psicoses etc. – “[...] não são passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmado.” (DELEUZE, 2007, p. 13). Por essa razão, já que as individualidades não estão do lado da vida, mas das doenças particulares, convém escrever com as singularidades. Estas remetem a um espaço impessoal, assubjetivo, e concernem a entidades altamente indeterminadas: um homem, uma mulher, um cachorro etc. Enquanto as individualidades apresentam um certo hermetismo, as histórias individuais, fechadas em suas próprias neuroses, as singularidades seriam portadoras de um afecto passível de abarcar a todos e qualquer um.

Essa potência impessoal, não obstante, singular, captada pelo processo de escrever seria alhures denominada por Deleuze (2016) uma vida: “[...] pura corrente a-subjetiva de consciência, consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem eu” (DELEUZE, 2016, p. 407), passível de emergir somente quando “[...] a vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal e, contudo, singular, que resgata um puro acontecimento liberado dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade daquilo que ocorre.” (DELEUZE, 2016, p. 410). É curioso constatar como, para expressar essa uma vida, uma vez mais, Deleuze recorre à literatura:

O que é a imanência? Uma vida... Ninguém melhor que Dickens contou o que é uma vida, ao considera o artigo indefinido como indício do transcendental. Um canalha, um sujeito ruim, desprezado por todos, é recolhido morrendo e, aqueles que estão cuidando dele, eis que manifestam um tipo de desvelo, de respeito, de amor para com o menor signo de vida do moribundo. Todo mundo se precipita para salvá-lo, a ponto de o próprio vilão sentir, no mais profundo de seu coma, algo de doce a penetrá-lo. Porém, à medida que retorna à vida, seus salvadores ficam mais frios e ele reencontra toda a sua grosseria, sua maldade. Entre sua vida e sua morte, há um momento que nada mais é do que uma vida jogando com a morte. (DELEUZE, 2016, p. 409-410)

 

Essa vida imanente discutida por Deleuze surge em diálogo com Dickens, um escritor. Apenas ele, um literato, poderia vislumbrar algo sobre essa uma vida que, ao menos em um plano conceitual, seria relegado a um segundo plano. Não poderia a filosofia alçar ao mesmo patamar? O conceito, criação máxima da filosofia, na concepção de Deleuze e Guattari (1992), permitiria a uma consciência individual apreender essa vida impessoal e imanente, cooptando elementos desse tópico, para análise e estudo pormenorizado. Todavia, não basta a compreensão, ao menos para Deleuze – autor para quem um verdadeiro problema jamais se esgota no conjunto de respostas racionais passível de lhe serem dadas (DELEUZE, 1988). Um verdadeiro problema carrega consigo implicações existenciais[10], por isso, necessita ser sentido mais do que compreendido. Por ser algo da ordem da sensação tanto quanto da razão, um problema filosófico precisa sempre carrear uma compreensão não filosófica. Disso decorre, em Deleuze, a convocação de um ou outro literato como companhia criativa.

Um adendo se faz necessário. A literatura não surge, em Deleuze, como exemplo de suas discussões conceituais, conforme nota Jean-Clet Martins (2016). Antes, ela seria convocada como uma companhia de pensamento, o lastro afectivo do problema que movimenta o filósofo em suas criações. No caso do texto Imanência: uma vida..., Dickens partilha um mesmo campo problemático que Deleuze. Ambos, de certa forma, se debruçam sobre um mesmo problema: a potência imanente de uma vida, capaz de reconfigurar o espaço das coisas ordinárias. Em Dickens, essa força se manifesta na agonia da personagem Riderhood; em Deleuze, em seu conceito de espaço de imanência ou mesmo em suas discussões acerca de um dito empirismo transcendental. Arte e filosofia, aqui, partilham um mesmo assombro e, por esse motivo, a literatura não pode ser reduzida a um mero exemplo para as discussões filosóficas empreendidas por Deleuze; antes, seria uma espécie de companhia.

Essa leitura, de que a literatura seria convocada por Deleuze em sua obra para fornecer um lastro afectivo às discussões conceituais empreendidas, uma vez que partilharia com o filósofo de um mesmo campo problemático, é corroborada pela análise realizada por Roberto Machado (2009). O prognóstico de Machado iria além, argumentando que Deleuze buscaria essas companhias também na pintura, no cinema, no teatro etc., sem fazer qualquer distinção entre as artes. Tal leitura procede, sobretudo tendo em vista que Deleuze, em parceria com Guattari, chegou a considerar os artistas, e os escritores entre eles, como videntes:

Com efeito, o artista, entre eles o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido. É um vidente, alguém que se torna. Como contaria ele o que lhe aconteceu, ou o que imagina, já que é uma sombra? Ele viu na vida algo muito grande, demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que a ameaça, de modo que o pedaço da natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não tem mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 222).

 

Não obstante todo e qualquer artista poder ser tomado como um vidente, dentro do corpus deleuziano, somente à escrita foi dada a possibilidade de operar o devir. Apenas ela conquistou um estatuto clínico diferenciado, em Deleuze (2007), por carregar consigo uma certa saúde difícil de ser vislumbrada em outros modos expressivos. Sobre uma tal saúde, o filósofo argumenta:

Não que o escritor tenha forçosamente uma saúde de ferro [...], mas ele goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis. Do que viu e ouviu, o escritor regressa com olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda a parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior deles? (DELEUZE, 2007, p. 14).

 

Reencontramos essa mesma concepção, da literatura como uma espécie de medicina, em O frio e o cruel. Ali, o filósofo sugere que uma das funções da literatura seria promover uma nova sintomatologia, uma ciência dos sintomas capaz de renovar a medicina. “Sendo o julgamento clínico cheio de preconceitos, devemos recomeçar tudo, e de um ponto situado fora da clínica, o ponto literário”, salienta Deleuze (2009, p. 14). Percebe-se, nessa incitação deleuziana, como a literatura é convocada para produzir um outro estilo de medicina tal qual antes, em Diferença e Repetição, havia sido convocada para operar uma movimentação expressa na filosofia. Por qual razão, em O frio e o cruel, Deleuze evoca os efeitos terapêuticos da literatura? Ora, os modos expressivos literários seriam os únicos capazes de apreender certos sintomas do mundo, a forma como certas forças domesticaram a potência criadora da vida e impuseram maneiras de agir e de pensar aos sujeitos individuados. Ao voltar com seus olhos vermelhos e com os tímpanos perfurados de seu diagnóstico, o escritor nos oferece uma saída por meio de sua escrita. Nela, a vida rompe barragens e emerge, dando novos sentidos ao mundo. “O escritor como vidente e ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias”, assevera Deleuze (2007, p. 16).

Conforme nota Guillaume Silbertin-Blanc (2011), esse conceito de sintomatologia, em Deleuze, aparece quando de suas discussões sobre o pensamento de Friedrich Nietzsche e, em certa altura de sua obra, desaparece misteriosamente. O filósofo alemão, na concepção do autor de Nietzsche e a Filosofia, transmutou o filosofar em uma busca pelos sintomas de decadência do mundo e o filósofo se transmutou em um médico da civilização:

Jamais encontramos o sentido de alguma coisa (fenômeno humano, biológico ou até mesmo físico) se não sabemos qual é a força que se apropria da coisa, que a explora, que dela se apodera ou nela se exprime. Um fenômeno não é uma aparência, nem mesmo uma aparição, mas um signo, um sintoma que encontra seu sentido numa força atual. A filosofia inteira é uma sintomatologia. (DELEUZE, 1976a, p. 3).

 

A sintomatologia seria uma maneira de apreender certos sintomas ou signos; os termos se confundem, conforme nota Silbertin-Blanc (2011), pela experiência ordinária. Ao realizar esse diagnóstico, a sintomatologia capta forças obscurecidas ou caladas pela experiência ordinárias, as quais, ao serem recuperadas, podem vir a alargar o nosso espaço de experiência ordinário. São forças capazes de, retomando a terminologia que Deleuze utilizará em sua obra tardia, produzir uma espécie de devir. É nesse ponto que a sintomatologia depara com o exercício da escrita, compreendida por Deleuze como o único processo “inseparável do devir” (DELEUZE, 2007, p. 11). Ao escrever, tornamo-nos alguma outra coisa, tornamo-nos clínicos do mundo. Com o tempo, o termo sintomatologia desaparece do léxico deleuziano, mas o intuito esboçado por Deleuze, quando dessa discussão, permanece, segundo é possível depreender, nesse texto tardio intitulado A literatura e a vida.

Essa potência inerente à escrita, discutida por Deleuze em momentos distintos de sua obra, através ou não do conceito de sintomatologia, teria restado como mero fundo temático ou gerado impactos mais profundos, no pensamento do autor de Diferença e Repetição? Novas leituras, como aquela proposta por Malufe (2012, 2015) e Martin (2016), sugerem que essas discussões não se limitaram a um plano conceitual apenas, mas também impactaram formalmente a obra de Deleuze – escrita ou não em parceria com Guattari. Haveria, na acepção de Malufe (2015), uma poética deleuziana, construída visando a dar corpo a um problema filosófico muito específico: o problema da imanência. Deleuze seria sensível à aporia aberta por essa temática, qual seja: ao falar de imanência, colocamo-nos em uma posição analítica transcendente e, assim, calamos sua potência própria.

Por essa razão, só seria possível fazer imanência e não falar sobre imanência. A literatura, nesse diapasão, seria um auxiliar da poética imanentista deleuziana, pois só ela consegue produzir outros reais, por meio da libertação de forças caladas aqui e acolá. Se seguirmos a leitura de Zourabichvili (2011) e Malufe (2012), ainda, apenas o modo expressivo literário evocaria a crença do leitor nos jogos linguísticos adotados pelo escrito filosófico, possibilitando assim a compreensão literal do texto.[11] Essa leitura literal seria a responsável pela produção de um real, ou seja, a escrita filosófica deleuziana assumiria sua função produtiva somente ao adentrar nessa zona de indiscernibilidade com a literatura e permitir a criação de outros modos de existência.[12] Essa função, complementando aqui a leitura proposta por Malufe (2012), se torna possível apenas se levarmos em consideração o estatuto clínico supramencionado.

 

2 Escrever com intensidade, ler com rapidez

Como essa aproximação da escrita com a clínica, em Deleuze, impactará em seu trabalho escritural? Levando em conta a discussão supramencionada, é difícil considerar que o filósofo francês, responsável por questionar as concepções vigentes de filosofia, houvesse deixado de modular sua própria escrita, de sorte a conduzir a potência clínica da escrita para o coração de seus escritos. A fim de esmiuçarmos essa temática, convém resgatar as concepções deleuzianas sobre escrita, recolhidas ao longo de sua obra. Para começarmos, convém resgatar aquela mais famosa, presente na Carta a um crítico severo, na qual Deleuze (2006b) distingue duas formas de se ler um livro. A primeira concebe o objeto-livro como uma espécie de caixa fechada, cujo interior comportaria um segredo a ser decifrado pelo leitor e exigiria deste uma única atitude: “[...] e comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos o livro do livro, ao infinito.” (DELEUZE, 2006b, p. 16). Demandaria, pois, um trabalho exegético apenas. Conforme argumentou em outra ocasião (DELEUZE, 2015), essa maneira de ler um livro implicaria tratá-lo como livro apenas, ou seja, um objeto interessado em atribuir significados ao mundo exterior, a partir da tomada de uma certa distância.

O livro e o mundo, nesse diapasão, estariam em uma relação de exterioridade, e a escrita, por sua vez, se prestaria a fazer a mediação entre ambas as esferas. A escrita, portanto, transmutaria o pensamento do autor em imagem ou signo a ser decifrado e/ou analisado pelo leitor, sendo algo da ordem da representação. As palavras no papel carregariam pensamentos formatados de véspera, ávidos para serem analisados e compreendidos pelo leitor, o qual, diante daquele emaranhado de páginas, se entrega ao exercício exegético ou, em outros termos, ao comentário. A escrita, assim, seria um simples meio, não possuindo nenhuma força por si só.

Para reverter esse cenário, Deleuze procurará ofertar aos seus leitores uma outra escrita, a qual não se renderá a qualquer sanha interpretativa e, assim, exigirá uma outra forma de leitura, uma leitura que prime por captar a intensidade de um escrito ao conectar esse singular objeto a um fora. Acerca desse modo outro, Deleuze argumenta:

Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica. Corpo sem órgãos, conheço gente sem cultura que compreendeu imediatamente, graças a seus próprios “hábitos”, graças à maneira de se fazer um. Essa outra maneira de ler se opõe à anterior porque relaciona imediatamente um livro com o Fora. Um livro é uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa. Escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entre em relações de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ação, de erotismo, de dinheiro, de política etc. (DELEUZE, 2006b, p. 16-17).

 

É curioso constatar certo descredenciamento da escrita, no excerto acima, considerada como apenas mais um fluxo dentre outros e sem qualquer privilégio em relação aos demais. Esse descredenciamento, contudo, não significa uma hierarquização, uma seleção: antes, coloca palavra e mundo, texto e corpo, em uma relação horizontal apenas. O objeto-livro, aliás, é apresentado como uma pequena engrenagem, dentre outras, em conexão com uma maquinaria mais complexa; um objeto, por conseguinte, que possui uma importância dentro de uma lógica produtiva, mas que não deve ser supervalorizado em função disso. Em consonância com outras tantas engrenagens, o objeto-livro pode fazer a máquina funcionar, criando outros possíveis ou, pelo contrário, pode atrapalhar o seu funcionamento. Por isso, logo ao início do excerto supramencionado, Deleuze sugere que a relação com o livro deve ser uma relação utilitária: passa ou não passa, funciona ou não funciona?

Ainda em relação a esse movimento, convém entender de quais atividades a escrita é aproximada. Escrever, para Deleuze, não se diferenciaria dos atos de evacuar, gozar, comer, falar, agir etc. Surpreende constatar que se trata de funções vitais, concernentes ao funcionamento de um corpo. Esse movimento, singelo, permite a Deleuze aproximar uma vez mais a escrita da vida, compreendendo-a como uma função vital e não como mera representação de ideias que se encontram em um alhures qualquer. Escrever não é apenas uma questão de modo de expressão, mas de potência vital – de clínica, portanto. Ao aludirmos à escrita, em Deleuze, tratamos sempre de vida, falamos da saúde dos corpos.

Uma vez que o livro não se presta mais a ser interpretado, compreendido e comentado, ele deve ser conectado com outros problemas, mais urgentes. Deve-se, então, adotar uma leitura rápida, já que não se trata mais de se debruçar sobre um escrito, para interpretá-lo ou analisá-lo. Antes, busca-se um choque, uma ligação elétrica, como sugere Deleuze, algo capaz de acionar o mecanismo de funcionamento da máquina vital literalmente.[13] Como produzir esse choque, contudo? Ora, modulando a própria escrita, seja por meio da adoção de uma literalidade, segundo recomenda Zourabichvili (2011), seja de uma poética imanentista, tal qual defende Malufe (2015). Tanto a literalidade quanto a poética imanentista, no entanto, não devem ser vistas como causas, mas sim efeitos da modulação escritural promovida pelo filósofo.

É por buscar escrever um livro plano, sem qualquer profundidade capaz de demandar do leitor atenção exagerada ou certo exercício interpretativo, que Deleuze escreve de maneira literal, recusando-se a utilizar metáforas. Encontramos essa modulação em seu formato mais ousado, na obra Mil Platôs, último tomo da coleção intitulada Capitalismo & Esquizofrenia, na qual seus autores sugerem operar através de uma escrita intermediada por slogans:

Escrever a n, n-1, escrever por intermédio de slogans: faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Nunca suscite um general em você! Nunca ideias justas, justo uma ideia (Godard). Tenha ideias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos. Seja a pantera cor-de-rosa e que vossos amores sejam como a vespa e a orquídea, o gato e o babuíno. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 36).

 

Essa exigência de uma escrita que opere por slogans busca também conferir uma certa velocidade ao escrito, a qual tornaria o exercício interpretativo mais custoso ou enfadonho, quando não impossível. Trata-se de um recurso estilístico importante, uma vez que imprimiria um fluxo específico ao texto. Este não deve ser objeto de ruminação, exigindo uma lenta apreciação por parte do leitor, mas sim um texto para ser lido rápido e conectado o mais breve possível com questões diversas, aplicado aqui e acolá sem muita reflexão. Embora essa modulação tenha assumido sua roupagem mais radical em Mil Platôs, encontramos resquícios dessa concepção em outros momentos da obra de Deleuze – como aquela escrita em parceria com Claire Parnet, Diálogos:

Mas uma boa maneira de ler hoje em dia, seria tratar um livro como se ouve um disco, como se vê um filme ou uma emissão televisiva, como se recebe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija um respeito especial, uma atenção de outro tipo, vem do passado e condena definitivamente o livro. Não há nenhuma questão de dificuldade nem de compreensão: os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens. São intensidades que vos são ou não convenientes, que passam ou não passam. Pop’filosofia. Não há nada a compreender, nada a interpretar. [...] É a boa maneira de ler: todos os contra-sensos são bons, na condição todavia de que não consistam em interpretações mas que digam respeito ao uso do livro, que multipliquem o seu uso, que construam uma língua nova no interior da sua língua. (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 14-15).

 

Percebemos que, há tempos, Deleuze parece exigir essa leitura apressada e desinteressada, mais atenta aos sentidos que à razão. Uma leitura que conecte o livro a uma urgência qualquer, um problema que lhe seja exterior. Um bom livro é aquele que nos emociona, ao se conectar com problemas e questões que não são realmente as do autor, ao invés daquele que simplesmente almeja nos convencer. Para gerar essa comoção, esse afecto, o texto deve ser modulado visando a dificultar, quando não tornar inócuo, o exercício interpretativo. É uma modulação, por fim, que exige a construção de um fluxo próprio – ou uma poética, como argumenta Malufe (2015) –, um fluxo capaz de arrastar autor e leitor para direções inusitadas, abrindo-os para outras experiências vitais.

 

Considerações finais

“Aproxima-se o tempo em que já não será mais possível escrever um livro de Filosofia como há muito tempo se faz”, vaticinou Deleuze, no famoso prólogo de Diferença e Repetição, e logo emendou: “[...] a pesquisa de novos modos de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir hoje, relacionada à renovação de novas artes, como, por exemplo, o teatro ou o cinema.” (DELEUZE, 1988, p. 18). Embora a literatura não figure como uma das artes arroladas por Deleuze, em seu prólogo, pouco antes, nesse mesmo texto, o pensador já havia sugerido que um livro de filosofia deve ser escrito tal qual um romance policial ou como uma espécie de ficção científica. Deleuze insiste nessa questão, não apenas por compreender que a filosofia necessita de uma compreensão não filosófica, mas também de maneira a escapar da função repressora exercida pela História da Filosofia. Para o filósofo francês, “[...] a história da filosofia exerce em filosofia uma função repressora evidente, é o Édipo propriamente filosófico.” (DELEUZE, 2006b, p. 14). Por qual razão, o Édipo filosófico?

Ora, certa concepção clássica da História da Filosofia exige que, para compreendermos um determinado autor, devemos ler suas obras e, em seguida, os seus comentadores, para, então, elaborarmos uma reflexão. Nesse sentido, ficamos reféns daquele modo clássico de se ler um livro, buscando compreender suas engrenagens internas e interpretá-lo até o limite de nossas capacidades. A Filosofia, nesse diapasão, vê-se refém de um exercício exegético cuja única função, argumenta Deleuze (2006b), é redizer aquilo que um filósofo disse. Renovar o campo filosófico, compreendendo essa atividade como um exercício criativo de pensamento (DELEUZE; GUATTARI, 1992), implica conectar a filosofia com o seu fora, por meio da adoção de uma outra relação com a escrita e, por conseguinte, também com a leitura.

Ao lermos um filósofo, prossegue Deleuze (2006b), devemos encontrar em suas obras aquilo “[...] que ele não dizia e que, no entanto, está presente naquilo que ele diz.” (DELEUZE, 2006b, p. 170). Ou seja, conectar sua obra com outras questões, mais vitais, e assim passarmos a inventar os nossos próprios problemas, em companhia daquele pensador. A filosofia deve servir à vida. Obviamente, esse exercício criativo exige quebrar velhos hábitos arraigados, por isso, a insistência deleuziana em operar com um outro modelo de escrita, mais literal, mais poética, mais conectada com o não filosófico. Dentro desse vasto campo denominado filosófico, corroborando o prognóstico de Micollet (2007), a literatura possui um papel fulcral – porém, não exclusivo –, uma vez que apenas ela parece apresentar uma faceta clínica. Modular a escrita filosófica em consonância com certas experimentações literárias, nesse sentido, permite a Deleuze escapar da função repressora da História da Filosofia, em um primeiro plano, ao mesmo tempo que confere ao exercício do pensar um lastro criativo/vital antes restrito à seara literária.

A questão da escrita, por conseguinte, é uma questão fulcral para Deleuze, tanto em suas obras individuais quanto naquelas escritas em parceria com Guattari, e não pode ser desprezada como uma questão menor. Se, até o presente, se abordou a questão da escrita pela via da literalidade, como o fez Zourabichvili (2011) ou Malufe (2012, 2015), convém compreender que essa literalidade é um artifício conectado a uma engrenagem filosófica maior, uma máquina construída por Deleuze, para propiciar uma relação mais vital com a própria escrita, bem como com o pensamento.

 

DELEUZE AND THE WRITING: BETWEEN PHILOSOPHY AND LITERATURE

 

Abstract: In this essay we pretend to study the relationship between philosophy and literature in Gilles Deleuze’s thought, despite of his partnership with Félix Guattari, mapping the conceptions of writing throughout his work and considering the influence of these conceptions to forge a certain style in his philosophical texts. Starting from the deleuzian premise that writing has a strong clinical backing - being responsible for the elaboration of a diagnosis of the forces liable to imprison or silence life -, we will examine the resonances of this clinical backing in his conception of philosophy as a creative act. Our hypothesis is that the deleuzian writing - having a certain literality, as François Zourabchivili argues, or encrusted with an immanentism poetics, as Anita Costa Malufe suggests - would produce a so-called neighborhood zone or zone of indiscernibility between philosophical writing, with a more exegetical character, and literary writing, which is more affective, in order to produce a shift in the reader's relationship with the act of thinking.

 

Keywords: Gilles Deleuze. Writing. Clinical.

 

REFERÊNCIAS

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ZOURABICHVILI, François. Littéralité et autres essais sur l'art. Paris: PUF, 2011.

 

Recebido: 14/4/2021

Aceito: 07/10/2021

 



[1] Professor adjunto da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Divinópolis, MG, Brasil. Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), instituição pela qual se bacharelou em História e Filosofia. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2914-3032. E-mail: christian.guimaraes.vinci@gmail.com.

[2] Edmund Husserl, no caso. Citada por Deleuze (2016), em uma singela nota de rodapé, a tese husserliana de uma consciência transcendente, criada a partir da imanência, da vida não individuada, apenas serve para ilustrar o movimento argumentativo construído em consonância com o relato de Dickens. A filosofia husserliana, nesse sentido, possui uma função acessória no escopo argumentativo do escrito deleuziano, quase um argumento de autoridade, enquanto a literatura de Dickens se destaca em um primeiro plano.

[3] Em O que é a Filosofia?, obra escrita em parceria com Félix Guattari, Deleuze foi taxativo, ao afirmar: “A filosofia precisa de uma não-filosofia que a compreenda, ela precisa de uma compreensão não-filosófica, como a arte precisa da não-arte e a ciência da não-ciência. Elas não precisam de seu negativo como começo, nem como fim no qual seriam chamadas a desaparecer realizando-se, mas em cada instante de seu devir ou de seu desenvolvimento. [...] É aí [pensamento não-pensante] que os conceitos, as sensações, as funções se tornam indiscerníveis, ao mesmo tempo que a filosofia, a arte e a ciência, indiscerníveis, como se partilhassem a mesma sombra, que se estende através de sua natureza diferente e não cessa de acompanhá-los.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 279).

[4] Em um curto texto dedicado ao tema, Os intercessores, Deleuze argumenta: “O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores.” (DELEUZE, 2006b, p. 156).

[5] A expressão “gerar pensar no pensamento” retoma as discussões deleuzianas apresentadas em Proust e os signos, nas quais Deleuze retoma sua concepção de que o pensamento não é algo inato ou natural. Diz-nos, ali, o filósofo: “O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese implica alguma coisa que violenta o pensamento, que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas.” (DELEUZE, 2010, p. 91, grifos nossos).

[6] Reconhecemos que as maiores experimentações escriturais deleuzianas foram empreendidas conjuntamente com seu parceiro, Félix Guattari, porém, para o fim desse artigo, optamos por privilegiar a produção individual de Deleuze, apenas tangenciando os seus escritos conjuntos. Em outra oportunidade, contudo, almejamos retornar a essa produção conjunta, de sorte a ampliar a discussão.

[7] Para um panorama dessa discussão acerca da literalidade, remetemos ao leitor a Vinci (2018).

[8] Perceptos, para Deleuze e Guattari (1992), não se confundem com percepções, assim como afectos não se confundem com afeições. A percepção e a afecção, em resumo, remeteriam à experiência de um sujeito constituído, enquanto tanto o afecto quanto o percepto resgatariam uma experimentação capaz de ultrapassar qualquer vivente e qualquer vivido, a sensação não individuada, portanto. Trata-se, nesse segundo caso, da busca pela consideração de uma perspectiva imanentista, segundo nota Malufe (2015), uma perspectiva que privilegia o campo da sensação em si e não a síntese dos sentimentos de um ou outro sujeito. A mesma lógica se aplica aos prospectos, os quais, na concepção de Deleuze e Guattari (1992, p. 37), devem ser compreendidos como “[...] proposições que não se confundem com juízos.”

[9] Afirma-se essa correlação entre filosofia e modos de existência, uma vez que, para Deleuze, se trata sempre de buscar “[...] um pensamento que iria até o fim do que a vida pode, um pensamento que conduziria a vida até o fim do que ela pode. Em lugar de um conhecimento que se opõe a vida, um pensamento que afirme a vida. A vida seria a força ativa do pensamento, e o pensamento seria o poder afirmativo da vida. Ambos iriam no mesmo sentido, encadeando-se e quebrando os limites, seguindo-se passo a passo um ao outro, no esforço de uma criação inaudita. Pensar significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida.” (DELEUZE, 1976b, p. 83).

[10] Desde Bergsonismo, Deleuze (2012) procura construir uma concepção existencial de problema, compreendendo que uma das formas de manutenção da servidão é a imposição de problemas construídos de véspera e impostos pela cultura. A liberdade, a verdadeira liberdade em acepção deleuziana, diz respeito à possibilidade de construirmos os nossos próprios problemas.

[11] Zourabichvili (2011) argumenta que, para haver literalidade, é necessário crença por parte do leitor, só assim o tom metafórico de um escrito cede espaço para uma outra experiência do texto. O modo como essa crença é sugestionada ao longo dos escritos deleuzianos, contudo, resta ser melhor esclarecido. Não por outro motivo, em outros momentos de sua obra, Zourabichvili (2011) retorna à questão para tentar esclarecê-la. A melhor resposta dada ao problema, aquela adotada aqui nesse ensaio, decorre da leitura de Malufe (2012), ao sugerir de que Deleuze construiu uma poética própria.

[12] Para Malufe (2012), Deleuze buscou produzir uma escrita “à même le réel”, como afirma o filósofo em Mil Platôs, ou seja, ao rés do real. Isso significa, como veremos adiante, que a escrita surge com um estatuto similar a de qualquer outro objeto, um corpo entre os demais. Como todo corpo, está apta a vivenciar encontros capazes de retirar o pensamento de seu estupor inicial e levar-nos a criação de outros possíveis.

[13] Em outra ocasião, Deleuze assim comentou, ironicamente: “Ler um livro, na minha opinião, como se lê poesia, a saber: isso passa ou não. Se não passar, tudo bem, você larga o livro e vai ver o seu psicanalista. Não há nenhum mal nisso. Não somos contra, não de todo. Se passar, aquele que lê não irá perguntar pelo significado, o que é esse conceito, o que significa ‘fluxo’, ‘corpo sem órgãos’, a não ser que lhe diga alguma coisa.” (DELEUZE, 2015, p. 210-211).