Ética dialética da Interpretação: A hermenêutica romântica de Friedrich Schleiermacher[1]

 

Mauricio Mancilla[2]

 

Resumo: O artigo a seguir tem como objetivo expor o pensamento hermenêutico de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), levando em conta o contexto germinativo fértil de sua obra e sua influente posição filosófica, no âmbito do “primeiro romantismo alemão” (Frühromantik). Schleiermacher renuncia a um importante fundamento transcendental a-histórico, em favor de uma compreensão situada, a qual se configura através do diálogo. A hipótese central deste artigo alerta que o desenvolvimento paralelo e sistemático das lições sobre ética, dialética e hermenêutica, em Schleiermacher, não é mera coincidência, muito menos um sintoma isolado, senão que revela um projeto de caráter orgânico. Por um lado, será examinado – à luz de seus textos – o papel da linguagem como variável histórica e social para a compreensão e, por outro, algumas reflexões sobre as novas possibilidades de seu método hermenêutico e suas implicações, para a reflexão filosófica contemporânea.

 

Palavras-chave: Schleiermacher. Hermenêutica. Compreensão. Linguagem.

 

INTRODUÇÃO

A hermenêutica, vista como arte da interpretação – segundo Jean Grondin (2001, p. 34) –, sempre teve a tarefa de “[...] traduzir o conteúdo significativo de um mundo estranho” e torná-lo compreensível no próprio mundo. A busca e a transmissão do “sentido correto” de um “discurso alheio” (JUNG, 1997, p. 161) requer a geração de uma arte vinculada aos pressupostos teóricos da interpretação. Embora a hermenêutica seja essencial para dar sentido aos textos do passado e para restabelecer a conexão entre as novas formas de pensar com as antigas tradições, esta foi relegada às margens do conhecimento e só voltou nos casos problemáticos de dúvida, falta de definição ou ausência de elementos cruciais para fazer um julgamento.

Inicialmente, era uma disciplina auxiliar relacionada à interpretação das Sagradas Escrituras, assim como de textos clássicos ou jurídicos, porém, com o passar do tempo, sua importância e abrangência foram se ampliando. Na modernidade, a par dos processos de secularização e racionalização do universo humano, surgiu um clima espiritual que favoreceu o desenvolvimento da hermenêutica, de modo geral. No início do século XIX, no contexto do romantismo alemão, houve um “ponto de inflexão” (Wendepunkt) nessa história, onde Friedrich Schleiermacher – nas palavras de Wilhelm Dilthey (1999, p. 26) – desenvolveu o “[...] fundamento definitivo de uma hermenêutica científica.”

O que há de especial e inovador na posição hermenêutica de Schleiermacher se baseia na expansão do problema da compreensão. Ele foi o primeiro a chamar a atenção sobre o fenômeno da compreensão em si, para captar seus princípios gerais – e isso o torna o “[...] ponto de partida indiscutível da hermenêutica moderna.” (ANGEHRN, 2003, p. 50). Seu objetivo era estabelecer uma teoria geral que fosse mais além de uma hermenêutica especial. Os princípios que usamos para interpretar os textos clássicos ou na exegese bíblica são os mesmos que seguimos, quando tentamos compreender outros tipos de textos, sejam eles novelas, peças de teatro, até mesmo “artigos de jornais”. A hermenêutica não se limita de forma alguma aos “[...] discursos que a escrita fixa a primeira vista”, contudo, aparece sempre onde nos encontramos com “pensamentos” que se manifestam por meio das “palavras” (SCHLEIERMACHER, 2002a, p. 608).

Até recentemente, as ideias de Schleiermacher sobre hermenêutica não eram tão amplamente reconhecidas quanto suas obras teológicas. Uma das razões disso se deve ao estado de publicação de seus textos sobre hermenêutica. Além de suas duas palestras proferidas no plenária da Academia Prussiana de Ciências, nas quais formam um todo coerente, as reflexões de Schleiermacher sobre hermenêutica estão disponíveis principalmente em forma de notas, fragmentos e aforismos, os quais constituem parte do corpus das lições que ele deu nas universidades de Halle e Berlim, entre 1805 e 1833. Apesar de várias tentativas, Schleiermacher – que morreu aos 66 anos de idade – não conseguiu editar seu projeto de uma hermenêutica geral. Inclusive, as conferências mencionadas também ficaram inéditas.

Inúmeras especulações foram feitas, tentando explicar as razões pelas quais esses textos nunca foram publicados. No entanto, é provável que ele tenha renunciado à publicação dessa parte da sua obra – e nisso seguimos o argumento de Jean Grondin (2001, p. 104) – por convicção do “romântico autêntico”. Provavelmente, nunca ficou inteiramente satisfeito com seus projetos ou com a forma como os formulou, o que se reflete na oscilação incessante de sua terminologia e dos pontos gerais sobre os quais giram suas propostas. Além disso, conforme foi revelado por sua própria concepção, um discurso nunca é totalmente compreendido, todavia, trata-se de “[...] uma tarefa infinita (eine unendliche Aufgabe).” (SCHLEIERMACHER, 2012, p. 6).

Uma parte de seu pensamento hermenêutico chegou até nós, através da edição póstuma feita por seu discípulo Friedrich Lücke, após quatro anos de sua morte, com o título Hermeneutik und Kritik mit besonderer Beziehung auf das Neue Testament (cf. SCHLEIERMACHER, 1838). Por mais de um século, a edição de Lücke acabou sendo o único texto “canônico” a acessar suas abordagens hermenêuticas. Nos últimos 60 anos, foram publicadas duas versões que imprimem algumas variantes desse “cânone”. Por um lado, Heinz Kimmerle organizou e republicou uma pequena parte dos manuscritos e materiais, acrescentando “anotações”, “discursos acadêmicos” e um conjunto de “notas”, destacando o caráter de “rascunho” (Entwurf) dessa obra (cf. SCHLEIERMACHER, 1959). Por outro lado, Manfred Frank apresentou uma nova edição expandida dos manuscritos publicados por Lücke, juntamente com uma importante série de anexos (cf. SCHLEIERMACHER, 1977a).

No entanto, o caráter póstumo de sua obra não é a única dificuldade enfrentada pelos leitores de Schleiermacher: uma segunda razão vem de um fato histórico-filosófico. A maioria dos comentários contemporâneos feitos sobre esse programa hermenêutico partem de uma “posição acrítica” e reproduzem os pressupostos traçados pela “leitura dominante” de Hans-Georg Gadamer. Embora o autor de Wahrheit und Methode valorize o estabelecimento de princípios gerais para a interpretação, seu interesse se limita a reconhecer nesse gesto a evolução de uma “metafísica estética da individualidade” como um mero comportamento reprodutivo da subjetividade (GADAMER, 2010, p. 193). A influência da órbita filosófica de Gadamer restringe a interpretação das aproximações de Schleiermacher. Isso foi possível pela falta de uma “edição crítica” de sua obra hermenêutica, recentemente corrigida com a publicação do volume que reúne seus Vorlesungen zur Hermeneutik und Kritik e que contém um extenso número de notas e materiais adicionais (cf. SCHLEIERMACHER, 2012).

À luz da recente edição crítica, neste artigo, gostaríamos de refletir sobre o impacto da hermenêutica de Schleiermacher na teoria da interpretação contemporânea, mais além do rígido “espartilho” intelectual imposto pela apreciação de Dilthey e Gadamer. Portanto, no que diz respeito à forma concreta de proceder, propõe-se uma análise conceitual de todas as suas obras e uma interpretação que – como acabamos de apontar – não será determinada pelos chamados textos clássicos da filosofia hermenêutica. Embora a hermenêutica tenha se tornado, nos últimos anos, um conceito-chave para a reflexão filosófica e metodológica, e um requisito indispensável para uma interpretação segura e correta, parece-nos que esse termo tem – em seu uso atual – uma aura difusa, pois se considera que, com base no programa de Schleiermacher, é possível propor uma nova “lógica hermenêutica” que renove as possibilidades de interpretação para as ciências humanas. Isso é sustentado na validade teórica das diferentes áreas de sua obra e na sua riqueza para enfrentar os desafios de uma sociedade global e complexa.

 

1 O CARÁTER DIALÓGICO DA HERMENÊUTICA ROMÂNTICA

A hermenêutica, entendida como uma disciplina geral da compreensão, é o resultado de uma série de circunstâncias históricas que convergem com o surgimento do romantismo na Alemanha, no final do século XVIII. O “princípio do romantismo alemão” (Frühromantik) surge como uma radicalização revolucionária que se levanta contra qualquer lei que não tenha sua origem no sujeito autônomo e criador. Como argumenta Otto Pöggeler (1999, p. 14), o romantismo – no seu início – tomou a Revolução Francesa como fonte de inspiração, porém “transferiu os ideais revolucionários” para o campo da “estética e da religião”. Essa revolução leva a uma mudança na arte e na moral e, consequentemente, na atitude humana diante da vida. O romantismo precoce não é apenas um hino à liberdade, mas, acima de tudo, uma nova forma de consciência, na qual a fé no progresso ocupa um lugar destacado.

Esse movimento englobou todos os campos da arte, da música, da religião, da filosofia, da história, das ciências políticas e, com força especial, da literatura (cf. Arndt, 2009, p. 4-5). Os poetas procuraram alcançar uma grande síntese cultural, a qual apagasse as fronteiras que separavam as diferentes áreas do conhecimento e, portanto, conceitos antagônicos como intelecto e sentimento, arte e vida, realidade e ilusão, finalmente foram fundidos. Ressalta o jovem Friedrich Schlegel (2005, p. 67), em seu famoso fragmento 116 do Athenaeum, onde expõe a síntese mais clara do programa daquela geração: “A poesia romântica é uma poesia universal progressista.” Progressividade aqui significa nunca ser concluído ou terminado e estar aberto a novas formas e conteúdos. A universalidade da forma é a anulação da fronteira entre os gêneros e as artes. Schlegel (2005, p. 67) exigiu uma mistura entre “[...] poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia artística e poesia natural.”

Uma das primeiras preocupações de Schlegel era transformar a filologia em uma “ciência da antiguidade”, a ponto de gerar uma arte filológica reconstrutiva que articulava tanto a crítica quanto a capacidade criativa literária. Como ele aponta, em seu texto com o título de Notas sobre filologia, de 1796-1797, a crítica e a hermenêutica admitem por si só um propósito histórico. Argumenta também que, para que a hermenêutica alcance sua perfeição, é preciso ter conhecimentos históricos sobre a antiguidade (cf. Schlegel, 1981, p. 38). Nesse contexto, o jovem Schlegel introduziu Schleiermacher na arte filológica. Os conceitos que orientaram seus notáveis trabalhos foram: a forma interior da obra, a história evolutiva do escritor e a totalidade da literatura, articuladas em si. Seu ponto de partida foi considerar o indivíduo criador como um todo. De acordo com essa perspectiva, pode-se dizer que uma obra e o espírito de um autor só são compreendidos, quando se pode reconstruir sua dinâmica e articulação com o resto da obra. Um autor só pode ser compreendido, quando a esfera da história literária a que pertence foi descoberta, ou seja, quando um conjunto maior do qual é membro é revelado.

Schleiermacher (2012, p. 73), em sintonia com Schlegel e o movimento romântico, argumentará que a hermenêutica é “[...] a arte (die Kunst) de se colocar na posse de todas as condições do compreender”, portanto, a teoria da interpretação é transformada em uma reflexão metódica sobre as condições práticas da possibilidade de compreensão. A necessidade de uma hermenêutica é mais urgente, quando a compreensão se vê obstaculizada. Nesse sentido, o uso espontâneo não reflexivo, ou seja, o uso cotidiano da compreensão leva inevitavelmente a erros graves que devemos verificar e corrigir, através de uma criação de “arte” (téchne). O fato da interpretação ser “artística” (kunstmäßige) torna expressivo que sua tarefa seja reproduzir uma produção original, isto é, recriar o ato original de um determinado discurso (SCHLEIERMACHER, 2012, p. 127).

Embora a necessidade de uma hermenêutica se torne evidente, diante da dificuldade ou impossibilidade de compreender um discurso, Schleiermacher exige uma prática estrita que não começa com dificuldades ou manchas escuras, mas que assume que a compreensão não seja natural. O “mal-entendido” (mißverstehen) é visto como a regra e não como o caso excepcional a ser evitado. Todo discurso, seja devido à indeterminação, seja à ambiguidade, tem um lado naturalmente “incompreensível” (unverständlich) que nunca pode ser completamente eliminado. Ao enfatizar que o mal-entendido “vem de si mesmo”, o pensador berlinense aponta para a importância essencial de desenhar e aplicar conscientemente um conjunto de regras ou diretrizes rígidas, o qual, ao mesmo tempo, evidencia a universalidade do fenômeno positivo da compreensão, onde “[...] em cada ponto deve ser desejado e procurado.” (SCHLEIERMACHER, 2012, p. 127).

Ao longo de sua carreira, Schleiermacher deu um total de nove palestras sobre hermenêutica. Em 1804, foi chamado para a Universidade Luterana de Halle para dar aulas de exegese do Novo Testamento, onde recorreu às obras do filólogo e teólogo pietista Johann August Ernesti, o qual, em 1761, publicou seu Institutio Interpretis Novi Testamenti. Schleiermacher (2008, p. 67) percebeu sabiamente que essa obra – assim ele expressa, em uma carta a seu amigo e professor de teologia, Joachim Christian Gaß – era “bastante inadequada” como uma teoria da interpretação. Esse fato o levou a desenvolver sua própria proposta hermenêutica. Como pode ser visto no “primeiro rascunho” (Erster Entwurf), de 1805, embora siga a antiga tradição teológica, não reivindica expressamente ser uma hermenêutica sagrada, mas apenas propõe seguir as “regras gerais” (allgemeinen Regeln) que contém (SCHLEIERMACHER, 2012, p. 5).

No referido “rascunho”, Schleiermacher (2012, p. 17) alerta que será na linguagem onde se encontrarão os “pressupostos objetivos e subjetivos” que guiarão a interpretação. A tarefa hermenêutica centra-se na compreensão de um discurso, seja ele oral, seja escrito, produzido por um indivíduo no qual expressa seus pensamentos, sentimentos e desejos. Contra o conceito de sujeito transcendental kantiano como fiador do conhecimento, Schleiermacher defende um sujeito histórico ancorado no mundo real. O sujeito finito só pode superar sua limitação, quando confronta seu ponto de vista com o de outro sujeito igualmente finito. Assim, também é capaz de ir além de suas limitações subjetivas e aproximar-se do conhecimento da verdade, contudo, sem nunca chegar até ela. Neste último caso, é colocada em jogo uma concepção linguística específica que devemos tentar esclarecer.

Para Schleiermacher, a linguagem é, por um lado, uma estrutura histórica que muda e se forma ao longo do tempo e, por outro, uma estrutura social que só existe no processo de comunicação interpessoal. A linguagem, assim como suas manifestações sociais e históricas, é tratada por Schleiermacher como uma expressão supraindividual, na medida em que nela o singular-pessoal está enraizado (THOUARD, 2016). Graças a essa concepção, a comunicação interpessoal é possível, todavia, não deve ser reduzida a uma mera função transcendental. A linguagem é sempre modificada pela ação criativa e engenhosa das pessoas e, portanto, não pode ser entendida como uma estrutura estática. Cada pessoa é, de fato, “[...] um lugar onde uma linguagem se configura” (SCHLEIERMACHER, 2012, p. 121) e onde um determinado sistema linguístico se manifesta, de maneira específica. As palavras, por exemplo, só podem ser entendidas em estreita relação com o sistema linguístico no seu conjunto. O processo de influência que conecta o homem à sua linguagem é de natureza circular, insere-se organicamente no modo de vida da comunidade e é transformado sucessivamente pelos falantes.

A relação entre a fala e a compreensão, segundo Schleiermacher (2012, p. 76), é tão estreita que “[...] todo ato de compreender é a inversão do ato de falar”, o que, em sua essência, nos convida a tentar chegar ao pensamento que “[...] está por trás do que se diz.” As pessoas conectam suas vidas, interesses e desejos principalmente por meio de uma linguagem comumente falada. Na verdade, trata-se de capturá-la desde o interior. No entanto, o verdadeiro propósito da atividade interpretativa não termina aí. Busca-se o subjetivo-individual que pode apresentar a singularidade e o gênio do autor. Mais além de qualquer tipo de compreensão linguística externa, segundo Schleiermacher, só podemos compreender o significado do texto, se pudermos revivê-lo e experimentar os processos mentais de seu autor. O progresso sistemático da compreensão emerge, em alguns aspectos, como uma repetição retrospectiva do processo criativo: a partir do resultado, um texto ou uma obra de arte, temos que encontrar o caminho de volta à vida mental criativa do autor.

Se a interpretação é uma arte, isso significa que se baseia em uma habilidade que pode ser aprendida, praticada e aprimorada. Porém, ao mesmo tempo, compreender é também uma tarefa infinita, já que toda interpretação de “[...] algo finito determinado resulta do infinito indeterminado.” A linguagem é infinita, assim como qualquer indivíduo também é inesgotável, já que pode estabelecer um número infinito de relações e pode ser descrita de maneiras infinitas. Por conseguinte, a prática efetiva dessa arte é baseada tanto no “talento linguístico” quanto no “[...] conhecimento dos homens tomados individualmente.” (SCHLEIERMACHER, 2012, p. 122). Como sabemos, a competência linguística é uma habilidade que pode ser treinada e desenvolvida até certo ponto, semelhante ao aperfeiçoamento das habilidades em línguas estrangeiras, onde ampliamos nossos conhecimentos básicos, enriquecendo progressivamente nosso vocabulário, até atingirmos um nível de fluidez. Ser um bom hermeneuta significa ter um conhecimento especial do idioma e a capacidade de perceber amplas analogias e semelhanças, assim também como diferenças sutis.

Para desenvolver essa arte, já não é suficiente – como a maior parte da literatura anterior – limitar o esforço hermenêutico à análise linguística de um texto, porque compreender não é apenas “compreender na linguagem”, mas também “compreender na fala”, porque todo locutor é, por um lado, um órgão da linguagem, na medida em que guia suas combinações intelectuais; por outro lado, a linguagem também é um órgão do locutor, já que ele enriquece o universo linguístico por meio de sua experiência e modo de pensar (SCHLEIERMACHER, 2012, p. 50). Essa é uma das ideias mais importantes de Schleiermacher, nessa área, por isso, ele divide suas lições, por um lado, com o aspecto gramatical, que trata da compreensão da linguagem, e, por outro lado, com o aspecto técnico-psicológico, o qual privilegia a compreensão do autor. Na interpretação gramatical, o humano é entendido a partir da linguagem e, na interpretação técnico-psicológica, a linguagem a partir do humano. Ambos devem estar relacionados e ligados entre si. Essa conexão torna a hermenêutica uma arte, em contraste com o mero seguir regras mecânicas. Nas próximas páginas, revisaremos brevemente os principais pontos que sustentam essa forma de proceder.

 

2 A GENERALIZAÇÃO DO MÉTODO HERMENÊUTICO

Independentemente da dimensão filosófica que a hermenêutica de Schleiermacher adota, através de sua justificativa do ato de compreender, ele nunca perde de vista os problemas metodológicos e práticos da interpretação. Sua conexão em torno da linguagem recém-delineada implica imediatamente uma dicotomia no exercício da interpretação. Cada discurso pode ser visto de uma perspectiva dupla: seja como um sistema que expressa as condições e limitações a que o locutor está sujeito, seja como um meio que é usado para expressar os pensamentos mais pessoais. Logo, a dupla questão básica de sua hermenêutica é a seguinte: como fazemos para definir o sentido do texto como tal? Como definimos a intenção subjetiva do autor?

Para responder a essas duas perguntas, será necessário se encarregar das tarefas relacionadas à sua proposta hermenêutica. Em primeiro lugar, é preciso compreender a interpretação das manifestações linguísticas como expressões da própria linguagem, que se inclui atrás do nome de interpretação gramatical; e a interpretação das manifestações linguísticas como expressões de uma subjetividade pessoal, que é reconhecida como uma interpretação técnico-psicológica. Em segundo lugar, tentaremos esboçar uma síntese do programa filosófico de constituição de uma “doutrina da arte de compreender” (Kunstlehre des Verstehens), em consonância com a configuração dos métodos comparativos e adivinhatórios. Finalmente, é proposta uma reapropriação do pensamento de Schleiermacher, com base nos “princípios ético-dialéticos de interpretação”, para reavaliar a relevância do projeto hermenêutico romântico do referido autor. Este último, em conexão com o problema da linguagem, posto que sua proposta envolve uma teoria dialógica da compreensão, com base na qual se funda a comunidade.

 

2.1 INTERPRETAÇÃO GRAMATICAL E INTERPRETAÇÃO TÉCNICO-PSICOLÓGICA

Em suas primeiras lições sobre a hermenêutica – como bem mostrou Wolfgang Virmond (2012, p. VII - LII), na recente edição crítica –, apesar do uso de fragmentos e aforismos para expressar sua reflexão, encontramos a concepção de um projeto estruturado que segue até suas últimas lições. Uma leitura comparativa de seus manuscritos revela que sua abordagem permaneceu igual, ao longo de sua vida. Nesse conjunto de lições, dois de seus componentes principais são expostos: a “generalização” e o que Schleiermacher chama de “dupla compreensão”, ou seja, a compreensão da língua e do falante (BERNER, 1992, p. 69). Essa distinção inicial alcançará a sua concreção no que, anos mais tarde, será, por um lado, a interpretação gramatical, e, por outro, a interpretação psicológica.

Em sua lição de 1809/1810, é possível encontrar um esboço mais amplo e mais complexo de sua hermenêutica, o que evidencia a articulação desses dois momentos intimamente associados: o primeiro deles contempla o discurso em relação a toda a linguagem, já que busca compreender um discurso tão plenamente como é possível, com referência à língua original em que as ideias são expressas; o segundo é orientado para captar o estilo expressivo do autor, ou seja, um pensamento individual que se desenrola na linguagem (cf. Schleiermacher, 2012, p. 75). As duas formas de interpretação têm como uma tarefa comum a reconstrução da unidade da obra, que é resolvida como uma unidade do geral e do particular. Nenhum existe sem o outro e nenhum deles tem uma preeminência absoluta sobre o outro. A reconstrução ou reprodução dessa unidade original é o que determina essencialmente o alcance da objetividade que confere toda a hermenêutica de Schleiermacher.

No caso da interpretação gramatical, a própria tradição é fundamentalmente importante como um passado histórico que surge linguisticamente e que conecta aos locutores entre si. A tradição carrega consigo um rastro que tem um efeito benéfico e inadvertido, no desempenho da performance. Recuperar isso é a tarefa primordial da hermenêutica, pois nenhuma oração pode ser entendida a menos que tenhamos adotado ou reconstruído uma herança linguística comum de antemão: é um meio entre autor e leitor que permite a compreensão. A interpretação gramatical deve prestar atenção ao enredo do texto, pois o significado de cada palavra deve ser visto à luz do contexto no qual ocorre, caso contrário, não teria sentido, pois as palavras por si mesmas permanecem vagas e ambíguas, cujas definições de dicionário fornecem apenas alguns usos que podem ser delimitados, esclarecidos e complementados. Conforme Schleiermacher (2012, p. 135) aponta, a “tarefa original” dos dicionários é encontrar “a unidade perfeita da palavra”.

Com referência à expressão “interpretação técnica”, Schleiermacher aproxima-se do que os gregos chamavam de téchne e que os latinos traduziram com a expressão art. Na opinião de Schleiermacher, a hermenêutica tem a obrigação de ir além da letra do texto, para destacar o espírito de seu autor, a partir dos signos em que é objetivado. Esse aspecto técnico da hermenêutica será denominado posteriormente por ele como interpretação psicológica. A ideia fundamental é clara: do ponto de vista gramatical, o autor está a serviço da linguagem; do ponto de vista psicológico, a linguagem está a serviço do autor. Cabe ressaltar que, na lição que transmitiu em 1819, seu interesse maior se concentrou na interpretação gramatical, enquanto, a partir de 1820 até suas últimas lições de 1832-1833, o foco era o aspecto técnico da interpretação.

Dessa forma, não devemos ver uma degradação progressiva da interpretação gramatical, senão um aprofundamento dos aspectos técnicos que, por outro lado, não foram abordados de maneira tão exaustiva, no início. Na recepção do pensamento hermenêutico de Schleiermacher, o aspecto técnico-psicológico certamente teve um significado mais consistente e levou – na linha de Gadamer – a uma falsa consideração dele, em termos de psicologismo (GADAMER, 2010, p. 190).

Assim como a interpretação gramatical não pode ignorar o horizonte universal da totalidade da linguagem, a interpretação técnica deve referir-se firmemente à totalidade da personalidade do autor. Isso possibilita que, ao ocorrer a passagem da interpretação gramatical para a técnica, a atenção se desloque para o indivíduo, fonte de origem da obra. A tarefa da interpretação técnica é justamente seguir as linhas da obra até a personalidade do autor e a compreensão do vínculo que se estende entre os dois extremos. Embora possa haver um mínimo de interpretação gramatical, bem como um mínimo de interpretação técnica, cada interpretação é uma combinação de ambos. Apesar de a interpretação gramatical e a psicológica serem aplicáveis em todos os lugares, às vezes, prevalece uma, às vezes a outra. Por exemplo, no caso das cartas pessoais, é necessário um mínimo de gramática versus um máximo de interpretação psicológica.

 

2.2 EM DIREÇÃO A UMA DOUTRINA DA ARTE DO COMPREENDER

Ao inaugurar sua lição de 1819, Schleiermacher (2012, p. 119) alerta que uma hermenêutica como “[...] a arte do compreender (Kunst des Verstehens) ainda não existe” e só é possível apreciar uma dispersão do exercício de interpretação por meio de “[...] muitas hermenêuticas especiais.” Uma verdadeira “arte da interpretação” (Auslegungskunst) implica colocar-se na posse “[...] de todas as condições de compreensão.” (SCHLEIERMACHER, 2012, p. 73). Seu propósito é a compreensão no sentido mais elevado, e somente foi compreendido o que foi reconstruído em todas as suas relações e contexto. Ao estender a interpretação ao domínio psicológico, a hermenêutica de Schleiermacher se torna uma “doutrina da arte” (Kunstlehre) de interpretação. É um trânsito que vai de uma ars interpretandi a uma constituição de um método de interpretação. Embora seu trabalho tenha revelado uma série de regras bastante precisas, no campo da interpretação gramatical, estas não têm o mesmo alcance na execução da interpretação psicológica.

Nesse novo cenário, como veremos mais adiante, ele enfatiza o caráter adivinhatório do método hermenêutico, pelo qual o procedimento interpretativo deixa de ser “científico”. A compreensão completa da fala ou da escrita, assim como a intuição pela qual o intérprete apreende a ideia do autor, não pode ter regras fáceis de ensinar e aprender, porém, é uma conquista artística que aplica apenas diretrizes gerais:

A compreensão correta de um discurso ou de uma escrita é o resultado de uma arte que exige consequentemente uma “doutrina da arte” (Kunstlehre) ou técnica, no qual expressamos com o nome de hermenêutica. Tal teoria da arte é dada somente na medida em que as prescrições formam um sistema baseado em princípios claros derivados da natureza do pensamento e da linguagem. (Schleiermacher. 1977b, p. 132).

 

Se olharmos para a prática concreta da arte da interpretação, Schleiermacher (2012, p. 157) distingue dois processos fundamentalmente diferentes que operam no exercício cotidiano da compreensão, porém que são complementares ao modo de interpretação gramatical e técnico-psicológica: são métodos comparativos e adivinhatórios. Por um lado, o método comparativo supõe “[...] o que deve ser entendido como algo geral” e, a seguir, encontra o peculiar, “[...] na medida em que é comparado com o outro.” O adivinhatório é aquele “[...] que em si mesmo se transforma igualmente no outro e busca aprender o indivíduo imediatamente.” Como exemplo, Schleiermacher (2012, p. 85) afirma que a aquisição do idioma primário pelas crianças é baseada tanto na adivinhação quanto na comparação dos usos de uma palavra, em vários contextos.

Na hermenêutica de Schleiermacher, a adivinhação não tem um significado místico, mas se refere ao que mais tarde será chamado de empatia. No campo da interpretação psicológica, a adivinhação – como indicamos acima – é aquele estado de consciência por meio do qual o intérprete se transforma igualmente no outro e procura apreender o individual de maneira imediata, ainda que na prática adivinhatória se enfatize – em consonância com o pensamento romântico – que a personalidade do autor quase nunca consegue ser capturada em todas as suas dimensões. Um mistério fundamental e incompreensível se esconde por trás de qualquer criação.

Os métodos adivinhatório e comparativo não são independentes um do outro. Na interpretação comparativa, as observações feitas sobre as obras escritas de um povo devem ser comparadas com todas as outras formas de objetivação da cultura, visto que são manifestações do mesmo espírito comunitário e, contudo, manifestações do mesmo espírito individual, enquanto, na interpretação por meio da empatia, abordamos diretamente a outra pessoa e captamos sua singularidade, de um modo totalmente pessoal e criativo, portanto, de uma maneira mais artística. Assim, o intérprete não atua de acordo com as leis científicas do entendimento, mas apenas com base em seu talento pessoal e em seu gênio específico. Quanto melhor você conhece alguém, enfatiza Schleiermacher, mais analogias você pode encontrar (SCHLEIERMACHER, 2012, p. 169-170).

Dessa forma, chegamos talvez à contribuição mais valiosa da teoria hermenêutica de Schleiermacher: por um lado, a interpretação gramatical pode ser totalmente formalizada e legitimada em etapas metodológicas externas; por outro lado, a interpretação psicológica, a qual não pode ser abordada de forma científica, deve ser entendida como uma “arte” (Kunst). A compreensão seria, então, a arte de combinar adequadamente os aspectos gramaticais e técnico-psicológicos.

Surge aqui uma das características românticas do programa de Schleiermacher (2012, p. 128): o compreender é uma tarefa infinita, pois seu objetivo é “captar” (begreifen) a individualidade do discurso, que, entretanto, só pode ser abordada por aproximação progressiva. A interpretação torna-se “reconstrução” (Nachkonstruiren). A obra do intérprete é uma imagem refletida do autor da obra, no sentido de que seu objetivo é a reconstrução do texto. O trabalho de reconstrução não é uma compilação, mas consiste no esforço de acompanhar o progresso da obra, para poder captar a sua gênese, desenvolvimento e a lógica composicional que a habita.

 

2.3 Ética dialética da Interpretação

Esse trabalho rigoroso de reflexão sobre a interpretação das obras do passado tem suas raízes no admirável e sistemático lavor desenvolvido por Schleiermacher, para traduzir os diálogos de Platão. Como sabemos, esse projeto foi planejado programaticamente em conjunto com o jovem Friedrich Schlegel, mas foi finalmente ele sozinho o primeiro que realizou esse projeto, e sua tradução apareceu entre os anos de 1804 e 1828. Entretanto, não deve ser ignorado que Friedrich Schlegel exerceu uma influência importante em seu pensamento, pois muitas das ideias daqueles anos são compartilhadas e, frequentemente, não está claro qual dos dois era a fonte original.

Quando lidamos com problemas pensados em conjunto, no caso de Schlegel, os manuscritos conservados são muito menos detalhados e muito assistemáticos. Por outro lado, a reflexão de Schleiermacher (2002b, p. 69) conclui, como aponta em seu ensaio “Sobre os diferentes métodos de tradução”, de 1813, explicando as diretrizes que devem ser cumpridas pelo tradutor (o intérprete), para enfrentar um abismo conceitual entre a linguagem do texto e a língua materna do tradutor.

Aqui emerge um dos temas mais interessantes e problemáticos do pensamento de Schleiermacher. Se, como acabamos de ver, sua proposta hermenêutica é apresentada em torno da “reconstrução” metodológica do processo criativo, a fim de uma compreensão mais objetiva, essa abordagem se torna problemática, quando se trata de salvar a distância espiritual e temporal que separa aquele que compreende e o objeto a ser compreendido. Esse aspecto fundamental da obra de Schleiermacher é desenvolvido pelo grande estudo de Wilhelm Dilthey, A vida de Schleiermacher, que é o primeiro (e possivelmente ainda mais amplo) em tentar situar Schleiermacher dentro de seu próprio tempo e do espírito da sua época. Aí Dilthey reconstrói o trânsito de uma hermenêutica particular a uma “doutrina da arte do compreender”, a qual é caracterizada por dois momentos radicalmente diferentes: a) o interesse para compreender um discurso tão plenamente quanto possível, por referência à língua original em que as ideias são expressas; b) o interesse em compreender intuitivamente o estilo de um autor, ou seja, o seu pensamento particular que é expresso na linguagem (cf. Dilthey, 1985, p. 687-689).

Em consonância com o exposto, em seu projeto de “ética filosófica”, é possível observar também uma primazia da linguagem, onde o problema da ética entrega os fundamentos para uma aproximação de uma hermenêutica geral (SCHLEIERMACHER, 1990, p. 7-8). Dilthey foi um dos primeiros a notar que a hermenêutica de Schleiermacher faz parte de um desenho sistemático integral, no qual a dialética participa como a disciplina filosófica “mais alta” (höchsten) e a ética como uma filosofia real especulativa que estuda a ação da razão sobre a natureza. Por outro lado, a dialética, sendo uma teoria geral da ciência, também determina o método de ética e hermenêutica. No entanto, como revela Christian Berner (1995), tanto a hermenêutica quanto a dialética são ciências de ação subordinadas à ética, pois esta última compreende um campo de ação muito mais amplo do que as anteriores: processo de alcançar a razão em sua totalidade. Essas relações recorrentes de hierarquia recíproca são características do sistema de Schleiermacher.

Embora a ética filosófica – como já foi alertado anteriormente – seja parte das lições que Schleiermacher (2011, p. 73-74) ditou, em sua primeira palestra em Halle, sua preocupação com esse assunto vem de muito antes e é claramente registrada em seu texto Princípios de uma crítica as éticas anteriores (1803), onde as doutrinas éticas mais valorizadas são aquelas cujos conteúdos subjetivos e individuais são considerados elementos positivos de “um contexto participativo comum”. Do mesmo modo, em suas lições de ética, encontramos, em oportunidades repetidas, exemplos que nos retornam ao campo da tradução, conforme ressalta Schleiermacher: na “arte da tradução” (Übertragungskunst) se parte da base de que a linguagem é um sistema peculiar de conceitos e modos de combinação, onde o ato de traduzir implica conduta ética, já que se fundamenta no que Schleiermacher (2002b, p. 69) chama “respeito pelo alheio” (Achtung für das fremde). Ao encontrar outros sempre dignos de ser compreendidos, reconheço-os como seres racionais, que se movem com as mesmas lógicas e ferramentas que o intérprete.

Distinguimos aqui quais são os princípios éticos envolvidos na arte de compreender. A compreensão pressupõe uma comunidade de dialogadores que reconhecem a individualidade e a possibilidade de tomar o ponto de vista do outro. Portanto, o método adivinhatório tem, segundo já antecipamos, uma “[...] orientação original para o acolhimento do outro.” (SCHLEIERMACHER, 2002a, p. 620). É uma ética comunitária, em que a comunicação só tem o papel de ideia regulatória. Nela deve ser realizada uma compreensão abrangente, na qual as expressões e discursos dos sujeitos sejam integralmente capturados e reconhecidos na intersubjetividade. A importância da hermenêutica é – do ponto de vista filosófico – mostrar que o indivíduo é moralmente realizado como pessoa em uma comunidade onde busca, com os outros, compreender o que é entregue como significado. Nesse sentido, é “ético” querer entender os pensamentos dos outros.

Finalmente, Schleiermacher vê a hermenêutica como um “contraponto à dialética” (ARNDT, 2013, p. 302), dado que ambas as disciplinas são “[...] doutrinas fundamentais da realidade da existência humana.” (Odebrecht, 1976, p. XXIII). O ponto de partida da dialética não se baseia na unidade da razão e da natureza, mas no “conflito eterno de opiniões”, concebido como o cumprimento infinito da razão na finitude. Sua dialética é apresentada como a “[...] arte de conduzir uma conversa” (Kunst der Gesprächsführung), inclusive mais: a arte de resolver desacordos, através da conversa (SCHLEIERMACHER, 2002c, p. 219).

A dialética proposta por Schleiermacher – ao contrário de Fichte e Hegel – nega a assunção de uma consciência infinita, na qual o significado alcance um sujeito transparente na totalidade, pois os sujeitos devem confirmar, de forma histórica, suas pretensões de verdade. Da mesma forma, essa maneira de compreender a dialética também contradiz a autocompreensão da filosofia moderna, ao afirmar que o conhecimento é limitado (finito), por conseguinte, nele se manifesta sempre uma “perspectiva” ou uma “visão do mundo”. A dialética, como a teoria da comunicação, executa e conduz ao conhecimento, através do desenvolvimento linguístico do pensamento que parte do mundo histórico, de onde Schleiermacher (2002b, p. 68) tende à aceitação da relatividade e do pluralismo dos sistemas de conhecimento que correspondem às diferentes “comunidades linguísticas” (Sprachgemeinschaften).

Seu interesse pela dialética, assim como pela hermenêutica, surgiu durante seus estudos da filosofia de Platão. Na dialética de Platão, Schleiermacher (2002c, p. 360) descobriu as “[...] indicações para a condução artística de uma conversa.” A dialética deve ser entendida aqui como a busca de um pensamento dinâmico que está em constante movimento, em devir, isto é, em busca infinita. A dialética não está apenas presente na lógica e na metafísica, mas também na vida cotidiana, e seu vínculo com a hermenêutica se baseia na capacidade de chegar a um acordo, por meio de uma conversa, de um diálogo ou de uma comparação com outros pontos de vista. A necessidade de encontrar um acordo resulta da finitude humana, da limitação e contingência do pensamento humano. A persistência com que Schleiermacher (1995, p. 50) buscou o sentido de compreensão do diálogo como aponta Gunter Scholtz torna-o um clássico da filosofia do diálogo.

O “giro hermenêutico” do conhecimento científico espiritual assume, principalmente, os aspectos “normativos” da formulação de Schleiermacher, os quais se transformam em princípios gerais que orientam a compreensão. Esse “giro” postula a hermenêutica como um segundo ato criativo, um momento de “congenialidade”, quando a historicidade da pessoa faz parte do aspecto dinâmico da individualidade, que capta a singular progressão temporal a partir da qual é implantada a experiência (cf. Pöggeler, 1999, p. 154-155; RUEDELL, 2012a, p. 8, 82).

Aqui uma das contribuições mais significativas do pensamento de Schleiermacher se manifesta, pois permite examinar os contextos históricos e linguísticos que dão forma ao contexto necessário para a interpretação de um texto. Assim, o ato de compreensão será visto como “realização reconstrutiva” (der rekonstruktive Vollzug) de uma produção, que, através de uma “repetição reprodutiva” (reproduktive Wiederholung) deve reexperimentar o processo mental que um autor seguiu, no momento de criar um texto (SCHLEIERMACHER, 2012, p. 102, 128; Behler, 1995, p. 124). Trata-se de um movimento circular, entre o todo e a parte, que obriga o intérprete a desenvolver um amplo domínio do patrimônio linguístico do autor, por meio da compreensão de suas obras e das peculiaridades de sua intenção. É uma questão de alcançar uma igualdade entre o leitor e o autor. Isto é como Schleiermacher formula seu famoso julgamento: “[...] compreender um autor melhor do que ele mesmo tinha compreendido.” (SCHLEIERMACHER, 2002a, p. 618).

 

Considerações Finais

À luz dos antecedentes até agora expostos, finalmente, nos termos levantados e em relação ao seu papel no debate contemporâneo, necessita-se de uma reaproximação do pensamento de Schleiermacher, para reavaliar a atualidade de seus projetos hermenêuticos. Segundo assinala Manfred Frank (1997, p. 25), a interpretação psicológica abre à compreensão um plano mais elevado: a busca do “estilo expressivo individual”. Portanto, a interpretação psicológica do trabalho de um escritor deve focar sua atenção, não tanto no aspecto formal e objetivo da linguagem como uma chave para esclarecer mal-entendidos, mas na compreensão de uma pessoa entendida como um enredo de significado, na qual é expressa em uma linguagem específica.

Isso abriu um novo campo para a investigação social científica além dos limites do “psicologismo”, onde a biografia e, portanto, o contexto experiencial e a forma como foram vividas são importantes para a compreensão de um corpus teórico. Inclusive, o próprio Dilthey tinha reafirmado esse critério, em seu trabalho Leben Schleiermachers (1979, 1985), onde a importância da obra de um autor é capturada através de sua biografia, ou seja, é orientada para a busca de unidade do “estilo” único em um escritor particular. Nesse sentido, para entender o pensamento de um autor, é preciso retornar – como aponta Schleiermacher – à “decisão germinal” (Keimentschluß) do discurso falado ou escrito, captando a perspectiva em que um autor tem algo a dizer (Schleiermacher, 2012, p. 171).

Schleiermacher repete, em várias de suas obras, a necessidade de lidar com uma organização estrutural de uma comunidade de pessoas particulares que falam umas com as outras. A comunicação não é apenas um meio indispensável para a troca de ideias; também se refere ao caminho em que os habitantes de uma comunidade viajam para conhecer e reconhecer uns aos outros. A interpretação, a qual parte do fenômeno vivo da comunicação, executa e conduz ao conhecimento, através do desenvolvimento linguístico do pensamento que surge do mundo histórico. Todo pensamento é “pensamento falado” (Sprechendes Denken) e, assim, na comunicação, as partes vão além de sua posição original limitada para reunir, de maneira conjunta, novos elementos em favor da comunidade. A dialética não surge como um monólogo especulativo da razão, entretanto, quer ser entendida como uma “conversa real” (Eigentliches Gespräch).

Um autor escreve para os membros de sua comunidade linguística historicamente localizada, pois o idioma dessa comunidade existe antes que o autor comece a pensar ou escrever e, em quase todos os casos, ele dura após sua morte. O pensamento de vários indivíduos implica uma “esfera linguística” (Sprachkreis) compartilhada, que não só alude a uma gramática social e histórica, mas também se transforma, ao mesmo tempo, em “um fator único” (ein Eigentumlich) que está em relação a uma esfera linguística mais ampla. Por isso, ao interpretar um discurso, em particular um texto em uma língua estrangeira ou um momento histórico do passado, a atenção do intérprete deve ser virada para esse quadro linguístico-cultural mais amplo, em que os elementos de um discurso particular podem encontrar o seu significado (Ohst, 2017, p. 303).

Assim, será necessário enfatizar que, para Schleiermacher, a tarefa de interpretação, tanto “gramatical” como “psicológica”, deve fornecer uma “perspectiva total” (Totalblick), a qual se faz evidente no linguajar. Uma palavra implica uma coerência entre o universal e o particular, portanto, a unidade semântica de qualquer palavra só pode ser reconstruída comparando uma série de utilizações que parecem estar estruturalmente relacionadas. Como frisa Friedrich Ast (1808), devemos buscar a “unidade do espírito” (Einheit des Geistes), para destacar que tanto o intérprete quanto os autores interpretados estão conectados, por isso, é possível compreender uma obra do passado. Este é o lugar onde a biografia cobra significado para a compreensão histórica, no qual abre uma redescoberta do eu em você.

Schleiermacher aponta níveis cada vez mais elevados de conectividade, já que a biografia abre o caminho para formas mais amplas de compreensão histórica. Sempre existe a possibilidade de novas perspectivas, e é por isso que há sempre a possibilidade de aumentar o nosso conhecimento sobre os outros e o mundo, esperando que cumpra os ideais que compõem todas as comunidades. Recuperar esse imperativo é um convite para a comunidade pensar em suas configurações atuais – contraditórias e complexas – e, para isso, a hermenêutica de Schleiermacher proporciona uma visão filosófica que não reivindica paradigmas “desusados”, como “etnonacionalismo” ou “fundamentalismo político-religioso”: ao contrário, estabelece a compreensão das manifestações intersubjetivas dos atores que constituem e projetam a comunidade.

 

Dialectical ethics of interpretation: the romantic hermeneutics of Friedrich Schleiermacher

 

Abstract: The following article aims to expose the hermeneutic thought by Friedrich Schleiermacher (1768-1834), considering the fertile germinal context of his work and his influential philosophical position within the framework of “early romanticism” (Frühromantik). Schleiermacher renounces an ahistorical transcendental foundation in favor of a situated understanding, which is configured through dialog. The central hypothesis of this article warns that the parallel and systematic development of the lessons on ethics, dialectics and hermeneutics in Schleiermacher is not a mere coincidence, much less an isolated symptom, but reveals a project of an organic nature. On the one hand, it is examined –in the light of their texts– the role of language as a historical and social variable for understanding and, on the other hand, some reflections on the new possibilities of his hermeneutical method and its consequences for contemporary philosophical reflection.

 

Keywords: Schleiermacher. Hermeneutics. Understanding. Language.

 

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Recebido: 12/04/2021

Aceito: 20/01/2022

 



[1] Este trabalho faz parte do Projeto FONDECYT nº 1161762: “Ética dialética da interpretação: a atualidade da hermenêutica romântica de F. D. E. Schleiermacher”.

[2] Professor do Instituto de Filosofia da Universidad Austral de Chile, Valdivia – Chile. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9423-7102. E-mail: mauriciomancilla@uach.cl.