DA SÍNTESE DE UM DISPARATE: SAUSSURE REPETE DELEUZE

 

André Dias de Andrade[1]

 

Resumo: Reconstruiu-se a semiologia geral elaborada nos escritos inacabados e indiretos de Saussure, recolocando sua noção de sentido próxima à de Deleuze e explicando-a por meio deste. Defende-se que toda teoria baseada na noção de “diferença” precisa dar conta do processo de individuação e, junto disso, por meio da descrição de dois níveis de diferenciação. Demonstra-se que isto é realizado por ambos os autores, para além e mesmo junto de suas divergências. Assim, o artigo recoloca a teoria do valor de Saussure na aurora de uma filosofia da diferença, mostrando que este inaugura e mesmo “repete” as teses que Deleuze explicitamente defende, nos anos 1960.

 

Palavras-chave: Estruturalismo. Filosofia da Linguagem. Saussure. Deleuze. Diferença.

 

Introdução: disparate

Obviamente, este artigo trata da noção de diferença. Mas é o disparate que o enseja. No estudo dos jogos, o “disparate” é uma brincadeira que desfigura o sentido, aproximando e ao mesmo tempo afastando interlocutores. Quem faz a pergunta no ouvido do colega não é a mesma pessoa que dá a resposta; e a graça aumenta, conforme o disparate entre ambas seja maior. Mesmo para um pensador tão interessado na noção de “jogo” quanto Deleuze, descobrir que ele possa ser respondido antecipadamente por outro que, em certa medida, ele critica, como Saussure, aumentaria ainda mais a graça. Soma-se a isso o fato de a resposta ser anterior à própria pergunta, já que Saussure fornece alternativas interessantes às questões que nem mesmo ouvira de seu companheiro de jogo. Caminho curioso este que os aproxima, digno de um disparate, já que Saussure responde à questão da diferença, sem colocá-la e sequer conhecê-la.

Deleuze, por sua vez, coloca a questão sem ouvir a resposta já dada por seu imprevisto interlocutor e apesar das críticas que ele mesmo lhe endereçava. Como lemos na abertura de Diferença e Repetição, é a primeira ninfa que repete todas as outras (DELEUZE, 1968, p. 8), pois apenas a singularidade (a verdadeira diferença) que pode repetir e ser repetida em cada um dos seus eventos, e é por uma relação disparatada que Saussure é capaz de repetir e mesmo responder uma indagação formulada tanto tempo depois. Deleuze e Saussure jogam o jogo do disparate, da diferença e sem mesmo se dar conta disso? Resta saber em que medida a brincadeira é consistente e serve para a teoria, em vez de apenas divertir. É o que descobriremos.

Em À quoi reconnaît-on le structuralisme?, publicado em 1967, Deleuze mobiliza diversas expressões teóricas que se aproximam da alcunha estruturalista em torno da noção de “simbólico” (DELEUZE, 2002, p. 240). É tão redutor quanto criativo, pois, no tocante a Saussure, isto só se verifica se caracterizarmos aquilo que chama de “valor” como simbólico, fora de qualquer pretensão de sobrepor-se ao real ou ao imaginário, conforme Deleuze assinala. Pensar que a estrutura é triádica, sendo o simbólico o “terceiro” que vem completá-la, para além do imaginário e do real, não permite compreender a concepção diádica de signo que, pelo menos em Saussure, é crucial para sua concepção de sentido. Segundo mostraremos, é justamente na teoria do valor desenvolvida por Saussure que repousa seus maiores avanços quanto a uma filosofia da linguagem, em particular, e uma filosofia da diferença, em geral. Desde já, só disparates nos cercam, até porque sabemos da dificuldade de colocar Saussure no estruturalismo, se ele nem mesmo parte da “estrutura”, e sim do “sistema”; e que, para além do preciosismo terminológico, compreende este de modo distinto da “estrutura”, tal qual repetirão infatigavelmente, por exemplo, Jakobson e Trubetskoy, pois neles a estrutura é fechada, e parte da noção de totalidade, enquanto o sistema de Saussure é aberto, e parte da noção de diferença. Ora, bastam tais considerações para mostrarmos o quanto o ensaio de Deleuze necessita ser lido com bastante atenção.

O dispositivo desenvolvido ali pelo autor depende de uma tripla implicação que lhe autoriza a leitura massiva do(s) estruturalismo(s) e que permitirá medir o alcance de sua crítica e possível incorporação de cada um deles. Primeiro, somente há estrutura, quando ela é vivida enquanto “simbólico”; esse simbólico, por sua vez, é a capacidade que diversos tipos de experiência têm de se organizar enquanto linguagem; e a linguagem, por último, é a possibilidade de organização de regimes de signos em séries ou, simplesmente, numa organização serial. De fato, o caso de Saussure é tão pioneiro quanto emblemático a esse respeito, pois, ao mesmo tempo que existe uma determinação recíproca e intersemiótica entre os signos, há uma determinação diferencial e intrassemiótica entre significante e significado, em cada signo. Basta seguir o Cours de Linguistique Générale (1916) e compreender bem a teoria do valor que ali se desenvolve.

A dupla diferenciação que está na base do signo, lida corretamente, ecoa a determinação recíproca e completa do sentido que reaparece com toda força em Diferença e repetição (1968), quando a questão passa a ser nominalmente “filosófica”. Como considerar nossas ideias e conceitos como produtos de uma síntese própria, que não identifica, mas diferencia diversos tipos de experiência (perceptiva, linguística, social) a partir de séries heterogêneas? Em suma, trata-se da gênese diferencial das ideias e então da filosofia capaz de dar-lhe conta, num propósito ainda não deliberado pela filosofia da linguagem de Saussure. Um ano antes de Diferença e Repetição, no ensaio de “reconhecimento” e aproximação conjuntural dos estruturalismos, fica claro que não existe estrutura (e nem ideia) sem essa organização serial. Toda a unidade provém de um conjunto heterogêneo que possui um tipo de organização própria. O estruturalismo procura entender como da heterogeneidade fulcral de nossa experiência surgem signos e, daí, entidades dotadas de um valor diferencial. Já Deleuze busca compreender a ideia como instância que perpassa sensibilidade e entendimento, de um ao outro (DELEUZE, 1968, p. 190), sempre criando um objeto-limite em cada faculdade, seja na linguagem, seja também na percepção, imaginação e assim por diante. Em ambos os casos, signos ou ideias são “problemas”, no sentido de possuírem uma natureza problemática e paradoxal, a partir da qual seu valor ou sentido só valem pela sua diferença ou por aquilo que não são. Um contato primordial com o “fora”, portanto.

Se o estruturalismo leva em conta os diversos ramos da experiência é porque eles funcionam como linguagem e que a própria experiência se expressa como uma linguagem; que ela fala e pode falar de si mesma, através dessa organização serial. Na base de toda experiência, ocorre algo de que Saussure já se dera conta. Quando a estrutura ou sistema advêm, ou seja, quando consideram a si mesmos em seu aspecto sistemático e estrutural, eles “criam” o seu objeto, já que passam a ser mais um ponto de vista. Isso coloca um inacabamento constitutivo à consideração estrutural e, doravante, à ideia filosófica. Como sabemos, nada equívoco, já que a verdade dessas abordagens estará na “perspectiva” bem considerada – no perspectivismo que elas encetam.

É curioso notar que, para Saussure, esse perspectivismo é o modo mais justo de ser da linguagem; é assim que ela faz sistema, e não quando ela funciona como uma totalidade completamente fechada e da qual cada elemento possui um valor absolutamente assinalável. Para isso, o linguista já afasta a análise estrutural de uma linguagem das essências, representativa de uma natureza pré-estrutural e da qual permanecemos reféns até encontrarmos a correta medida verbal de desvelá-la. O antissubstancialismo estava no ponto de partida de Saussure, ao iniciar com a comparação entre diversos idiomas e terminar por implodir a ideia de uma substância comum à qual eles poderiam fazer referência. Assim, quando chegarmos ao “arbitrário do signo” como princípio, a sua radicalidade só se verificará se seguirmos duas cláusulas: ela deve ser lida junto da destituição da ontologia como lugar privilegiado do pensamento, e também como a busca de renovação das categorias ontológicas convencionais.

A inseparabilidade entre estrutura e ponto de vista é mesmo um ponto crucial do pensamento estrutural, o qual Saussure parece compreender cedo. Não existe estrutura sem fala ou signo a considerar (Deleuze diria, sem sua encarnação num estado de coisas, no espaço e no tempo), assim como não existe sentido sem a organização estrutural da qual provém. É curioso notar que a mesma possibilidade de admitir estruturalmente a estrutura condiciona tanto o estruturalismo quanto qualquer filosofia baseada na diferença. Considerar estruturalmente a estrutura significa conceder-lhe o papel de uma gênese imanente do sentido. E é essa gênese que merece ser compreendida melhor.

Se “[...] o estruturalismo parece ser mesmo o único meio pelo qual o método genético pode realizar suas ambições” (DELEUZE, 1968, p. 237), isso se deve ao fato de que a estrutura congrega sua gênese junto de si. A indistinção entre estrutura e gênese seria o trunfo do estruturalismo. Não há arranjo sem atualização num estado de coisas, assim como não há tema ou experiência que não traga junto de si seu princípio de diferenciação. Como avança no ensaio de 1967, seria uma ilusão “[...] opor o genético ao estrutural” (DELEUZE, 2002, p. 252), indistinção que cresce um ano depois, na tese de 1968, quando lemos que “[...] não há oposição entre estrutura e acontecimento, estrutura e sentido.” (DELEUZE, 1968, p. 247). A questão é explicar como a estrutura carrega sua gênese e, correlativamente, como a verdadeira gênese do sentido só pode ser estrutural. Se isso acontece, é porque infatigavelmente ela é gênese imanente e não transcendental, na medida em que faz o sentido (a gênese) e não escapa ao seu produto (aquilo que ela própria engendra). Por quê? Porque ela é feita pela diferença e só se estrutura junto da diferenciação que culmina no sentido. Estrutura e acontecimento se dão juntos. Nosso objetivo aqui é mostrar como essa diferença não estava somente preparada pela consideração do sistema linguístico, mas descrita ali em todas as suas consequências.

Faremos isso em três tempos, elencados para mostrar como a teoria diferencial presente em ambos os autores se repete, embora creiam que estão tratando de temas diversos: Saussure, com o valor, Deleuze, com a Ideia. Assim, como este apresenta três aspectos da ideia de diferença ou, o que é um truísmo, sobre como chegamos a pensar e diferencialmente possuir “ideias” (na determinação recíproca e a determinação completa), Saussure compreende níveis distintos de diferenciação e sua organização do valor linguístico, os quais podem ser equiparados à Ideia no sentido deleuziana.

 

1 Reconhecimento e repetição

Um princípio caríssimo à linguística de Saussure é o arbitrário do signo (SAUSSURE, 1995, p. 100). O signo é arbitrário; quer dizer, ele possui um caráter arbitrário no interior de si mesmo, pelo qual é definido. Essa leitura deve ser bem compreendida aqui, pois vai na contramão daquilo que Benveniste elencava, ao procurar corrigir as teses de Saussure, no intuito de uma ciência da língua (não bem, portanto, de uma “filosofia da linguagem”). Segundo este, é arbitrário que um signo específico – digamos sheep – se relacione com o animal ontologicamente distinto da linguagem pelo qual é designado e existente no mundo; é arbitrário que as expressões linguísticas se refiram a determinados entes, e não outros, na realidade extralinguística.[2] Tanto é que poderíamos designá-la como sheep, mouton, ovelha etc. Desse modo, restituída a arbitrariedade à relação entre língua e realidade, ela deixa de habitar a língua em si mesma, e não pode ser pensada, como fazia Saussure, como um laço arbitrário entre significante e significado que gera o signo. Nada mais justo para a consecução de uma linguística no sentido forte, e de uma língua como objeto respectivo a uma ciência que lhe seja própria.

No entanto, quando Saussure afirma que é arbitrária a relação entre significante e significado, ele não diz que poderia haver um sem o outro, mas apenas que determinada “imagem acústica” – /ovelha/ – se relacione com determinado “conceito” – o do animal em questão. A arbitrariedade do signo não é sua existência, o som acoplado ao sentido, mas o modus operandi de sua existência, que justamente o exime de possuir uma essência imutável. Ora, isso mina a necessidade de que tal significante se relacione inextricavelmente a tal significado, tal como se daria na leitura de Benveniste[3] e, ao mesmo tempo, faz com que não estejamos defendendo uma posição distinta acerca da mesma batalha pela objetividade e completude da linguística, visto que uma tal leitura como a nossa retira os postulados de Saussure do âmbito estrito da linguística e os recoloca em temas filosóficos mais amplos. Mais do que isso, faz da arbitrariedade justamente um “princípio”, porque ela é responsável pela determinação do signo, entidade global dotada sempre de significante e significado (isso não é relativizado em nenhum momento) e cujo movimento na língua e na fala acarretam seu valor. Aqui, a partir do qual “[...] arbitrário e diferencial são duas qualidades correlatas” (SAUSSURE, 1995, p. 163).

Leituras assim nos aproximam daquelas como a de Simon Bouquet, para quem o Cours já podia ser lido do ponto de vista de uma filosofia da linguagem e que possuía diversos desdobramentos ontológicos imprevistos (BOUQUET, 1997, p. 122) e, mais recente, de Maniglier, que resgata Saussure na esteira de uma ontologia inaudita a respeito dos devires e das multiplicidades semiológicas (MANIGLIER, 2006, p. 17 - 18). É preciso fazer essa ressalva, porque a batalha em torno de Saussure não se deve ao preciosismo de escritório, mas à imensa fecundidade que suas proposições legaram aos diversos ramos de estudo.

Aqui, defendemos uma posição própria: toda filosofia que parte da noção de “diferença” necessita, em algum momento, sob pena de parecer perder-se no abstracionismo, descrever o processo de individuação. Ora, sem a garantia de um sujeito idêntico a si mesmo e que possa servir de cópula a uma série de predicados, ela precisa descrever como as chamadas “intensidades puras”, as quais só valem por sua ocorrência no bojo de relações (“onde”, “quando”, “como”, e não na questão ontológica fundamental pelo “é”), culminam no mundo organizado, tal como nós apreendemos em nossa experiência cotidiana. É notório que, para descrever a individuação, uma tal filosofia precisa trabalhar com ao menos dois níveis de diferenciação, uma pré-identitária e pré-opositiva, e outra já delegada às relações de semelhança e de oposição entre termos. Deleuze sempre deixou isso muito claro – seja com o par différentiation/différenciation, que procura dar conta desses dois níveis, seja até na distinção entre os regimes “molecular” e “molar” de produção de sentido. Havemos então de demonstrar como Saussure também já havia em muito antecipado e preparado esse procedimento que convém a uma filosofia da diferença. Aliás, dupla operação que o torna um verdadeiro repetidor da diferença deleuziana.

 

2 Determinação recíproca e determinação completa da ideia

Antes, passemos em revista o que Deleuze entende pela determinação diferencial (recíproca e gradual) de uma ideia, a partir de uma cadeia de signos. Uma ideia é uma multiplicidade de afetos, perceptos, sons, imagens etc., mas que possui um tipo de organização própria. Ela é uma multiplicidade serial que funciona por relações de determinação recíproca (DELEUZE, 1968, p. 236). A descoberta da série ou cadeia diferencial permite à várias áreas do saber conseguir determinar valores sem a necessidade de uma posição absoluta do sujeito ou de uma identidade fixa para eles. Assim, a variação de X (dx) é completamente indeterminada com relação a X, à sua identidade, natureza ou essência própria, mas pode ser captada em sua variação recíproca com relação a outros termos, por exemplo Y (dy), que se dá na relação dx/dy.

Essa determinação recíproca e gradual entre X e Y corresponde a uma determinação completa do que seria o “valor” diferencial entre ambos, pois o que se trata é justamente de medir a diferença vivida e não a subsistência de uma relação de identidade. Assim, “X” é indeterminado em si mesmo, mas determinado reciprocamente por relação a “Y”, “Z” e outros elementos da série, o que faz deles dx, dy, dz etc.; e, enfim, os termos são determinados completamente quanto à sua diferença uns com relação aos outros (DELEUZE, 1968, p. 222), visto que uma ideia nada mais é que uma multiplicidade organizada de eventos, elementos ou fatores onde “[...] cada termo absolutamente só existe em sua relação com o outro; não é necessário, nem mesmo possível indicar uma variável independente.” (DELEUZE,1968, p. 223).[4] A determinação completa, por sua vez, não deve ser confundida com a recíproca (DELEUZE, 1968, p. 227), pois ela é de outro tipo. A diferencial se determina reciprocamente; o singular, completamente. Como veremos, em Saussure, isso se dá pela determinação recíproca entre significantes e significados e pela determinação completa entre signos.

Como destacamos anteriormente, a respeito de uma doação de sentido que seja diferencial, ela pressupõe pelo menos dois níveis de relação. Quanto à determinação completa, “[...] ela concerne aos valores de uma relação” (DELEUZE, 1968, p. 228), quando de fato designamos termos na cadeia serial (pai-filho, água-fogo, vermelho-azul etc.). Aparecem então “termos” portadores de todas as diferenciações já adiantadas nas determinações recíprocas, mas que coexistem com eles. Termos já individuados, é preciso enfatizar, mas nem por isso independentes das relações nas quais se encarnam e expressam. Apenas que estas são de outro tipo que a relação recíproca que diferencia primeiramente elementos. Aqui a “série” de termos passa a fazer sentido: “[...] é somente aí que a forma serial na potencialidade adquire todo seu sentido.” (DELEUZE, 1968, p. 228).

Em Saussure, esses dois modos de determinação também se verificam. O uso discriminativo de um fonema (/p/ ou /b/) não depende de uma constância assinalável do som, pois, a cada vez, ele é proferido de forma diferente, e a sua constância é meramente imaginária. Todo “p” ou “b” ouvido é sempre diferente, irrepetível, mas os traços distintivos que nascem gradualmente entre eles podem passar a ser mensurados dentro de uma ideia apropriada de determinação. Deleuze (1995, p. 166) a denomina determinação recíproca, enquanto Saussure, diferenciação primária (ou, simplesmente, “diferenciação”. Da mesma maneira, um signo não vale por sua relação com a identidade que poderia lhe ser designada (“homem”), mas pela variação com que é usada (“homem” com relação a “mulher”, “mundo” ou “animal”), no bojo das relações diferenciais (homem/mulher, homem/mundo, homem/animal etc.). Deleuze denomina esta a determinação completa, enquanto Saussure a pensa como uma diferenciação secundária ou “oposição” (1995, p. 167).

            O valor do signo linguístico é duplamente condicionado. Primeiro, pela diferença entre significante e significado, a qual faz com que uma “imagem acústica” se acople a um “conceito” (SAUSSURE, 1995, p. 98), e que faz com que /sol/ se refira ao “astro” e não a um animal ou a outro objeto. Segundo, pela relação dos signos entre si, que faz com que “sol” possua o valor que tem, por se diferenciar de “lua”, porém, também de “cadeira”, “ovelha” e assim por diante. Quando ele é usado para se referir ao astro, ao centro da vida, a uma luz que subitamente ilumina o espírito, obviamente seu valor também muda e, portanto, nunca deixa de ser relativo. Ambas as diferenciações são cruciais e ambas são variáveis, sendo “[...] uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de um certo som e de um certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do sistema do qual faz parte”, (SAUSSURE, 1995, p. 157), de maneira que os dois tipos de variação são interdependentes. Uma não existe sem a outra.

Importa sobretudo que elas correspondem a dois tipos ou níveis de um processo de individuação, possibilitado pela diferença e marcado pela diferença ou, como denominará, de um “princípio de diferenciação” (SAUSSURE, 1995, p. 167). Primeiro, a diferenciação intrassemiótica e pré-individual, com a série heterogênea e contínua de sons e pensamentos; segundo, a diferenciação intersemiótica ou opositiva, com a série de signos num sistema determinado. As duas se relacionam com os processos de determinação recíproca e completa da ideia em Deleuze, embora esta não seja a impressão que o próprio tem do seu imprevisto interlocutor.

Deleuze crê que Saussure ainda não admite um valor afirmativo para as diferenças que engendram os signos e o valor entre eles. Também pensa que Trubetskoy, o qual daria prosseguimento ao Cours, interpreta a relação entre os signos em termos de “oposição”, e não de diferenciação, e, por isso, confessa a relação dessa linguística incipiente com a imagem tradicional do pensamento (DELEUZE, 1968, p. 264). Todavia, existem nesse ponto duas incorreções[5]: a começar pela segunda, sabe-se hoje que a distância entre Trubetskoy e Saussure não é apenas geográfica, mas mesmo conceitual, e que o modo como cada um compreende a “estrutura” ou o “sistema”, bem como o sentido que deles provém, não é tão conciliável quanto a história da linguística no fez crer ( SÉRIOT, 2014, 249 - 250). Deleuze seria mais um exemplar nesse rol de leituras que se equivocam quanto à continuidade entre os linguistas. A primeira objeção também deve ser posta em perspectiva aqui, porque, quando Saussure usa o termo “negativo”, para marcar que a significação é “negativa”, ele não está sobredeterminando a relação entre signos por uma dialética que a totaliza. Vejamos melhor.

De fato, quando declara que não há “termos positivos” na língua (SAUSSURE, 1995, p. 166), ele não usa o termo “negativo” e, com isso, pensa menos que a língua é um todo dialético, no qual cada um dos termos é o contrário ou, no limite, o contraditório dos outros, do que um sistema diferencial. Deleuze via nisso apenas mais uma figura da consciência e do negativo, isto é, como uma representação ou mediação da diferença. Acreditava que o valor diacrítico provinha de um “não” que era a negação do resto do sistema e a partir do qual a diferença não seria positiva – pode-se sustentar, sem prejuízo, que ela não seria nada –, já que o signo “A” seria a negação de todos os outros. No conjunto formado pelo termos A, B, C e D, temos que A = ¬B, ¬C, ¬D, enquanto B = ¬C, ¬D, ¬A, e assim por diante.

Entretanto, para que a diferença seja negativa, ela necessita ser derivada de um sistema pensado como totalidade, ou pelo menos presumido como tal, a partir do qual a negação é capaz de percorrer a série e dialeticamente retornar sobre o valor do signo em questão – sobre sua identidade. Pelo contrário, a diferença afirmativa parece trazer junto dela um sistema que é inacabado, por princípio, e que nem mesmo pode chegar a ser visado em sua totalidade a cada gesto ou conduta de linguagem. Curiosamente e contrariamente ao que afirma Deleuze, a teoria de Saussure vai no sentido da diferença e não da oposição. Quando lemos que na língua só existem diferenças, e estão diferenças são sem termos positivos, é justamente a oposição que é vetada imediatamente (SAUSSURE, 1995, p. 166). Ela será o resultado do duplo processo de diferenciação, o qual permite determinar que uma língua (como toda estrutura) é feita de “termos” e que esses termos se distinguem entre si. É somente nesse caso que “[...] não se pode mais falar de diferença” (1995, p. 167), quando temos em vista as entidades formadas, por exemplo, “pai” e “mãe”, que “são apenas distintos” e entre os quais “existe apenas oposição.” (1995 p. 167).

Mas, logo em seguida, lemos que esse mecanismo da linguagem repousa sobre as oposições supracitadas e “sobre as diferenças fônicas e conceituais”, o que interdita a possibilidade de argumentar que Saussure ignora a diferenciação como processo original de formação dos signos, ou que ele mesmo a consideraria superada, quando se chegam aos valores linguísticos, pois o próprio já mencionara que “[...] o valor de qualquer termo é determinado por aquilo que o circunda.” 1995, p. 160). Podemos inclusive ressaltar que o valor é imanente e transcendente ao signo, porque ele é sempre o produto de ao menos duas diferenças: uma dentro do signo, entre som e sentido, outra entre o signo e seus pares dentro do sistema.

Assim, o sistema não necessita ser mais correlato da ideia de fechamento estrutural para funcionar, nem da ideia de adequação ou determinação completas para exprimir um sentido e, doravante, uma “verdade” que sejam seus. Da mesma forma que “[...] a variabilidade deixa de representar uma passagem progressiva através de todos os valores de um intervalo” e passa a “[...] significar apenas a assumpção disjuntiva de um valor nesse intervalo” (DELEUZE, 1968, p. 229), podemos antecipar que “[...] a língua é por assim dizer uma álgebra que teria apenas termos complexos [...] em todo lugar e sempre esse mesmo equilíbrio complexo de termos que se condicionam reciprocamente.” (SAUSSURE, 1995, p. 168; 169)[6].

 

3 Os dois processos de diferenciação do sentido

Tudo começa com a determinação recíproca, portanto, e a ideia é a encarnação de um estado singular a partir do qual algo aparece ou simplesmente é sentido, sem que este tema tenha ainda sido individuado. O conteúdo sensível é pré-individual, sem valor ou qualidade exatos. Não possui uma identidade consigo mesmo, pois é sem centro coordenador de seu sentido. Ele é meramente intensivo – e lembremos que a intensidade é o nome mais apropriado da diferença, pois a purga de qualquer dependência à identidade. A intensidade é diferença de intensidade em si mesma, e é sempre uma dedução caracterizar a intensidade pela diferença, assim como uma tautologia empregar a expressão “diferença de intensidade” (DELEUZE, 1968, p. 297). A intensidade é sem recurso a uma identidade inicial ou a outra pretendida. Por isso, ela retira a equivocidade ainda presente na terminologia diferencial, cujo peso da tradição representativa e da recognição se fez sempre próximo. Se a intensidade é a origem sensível da racionalidade – das séries de atos, falas e pensamentos que buscam dar conta de sua “diferença” –, isso é devido a ela depender do seu acontecimento para poder ter um sentido. Não à toa, em Lógica do Sentido, o sentido desses estados pré-individuais e de suas transformações será definido como événement (DELEUZE, 1969, p. 30; 47; 65 - 66; 72; 174 ss).

A intensidade não permanece e nem necessita permanecer a “mesma” para possuir um sentido, e o ato pelo qual eu a descubro e coloco diante do pensamento não é o da recognição. Não há “referência” para o valor proveniente dessa cadeia de signos ou de intensidades puras. Basta assinalar que a cadeia sempre se expressa, e que o sentido daquilo que é expresso é o seu “acontecimento”, visto que não há sistema sem atualização, nem atualização sem a organização e encadeamento de pelo menos duas séries. Ora, este é exatamente o mesmo problema da teoria do sentido – da semiologia – que inaugura Saussure. Sem o contraponto com Deleuze, o qual fica por nossa conta, é nestes termos que Maniglier recupera o projeto de uma semiologia geral no autor:

O problema semiológico é somente uma reformulação daquele da gênese do inteligível a partir do sensível nos seguintes termos: como se passa do caráter heteróclito, variável e contínuo da experiência a estas entidades duplas que são os signos, homogêneos, invariantes e descontínuos. (MANIGLIER, 2006, p. 283).

 

Essa relação está mais próxima do que se crê de Diferença e Repetição, onde já explicamos como a síntese ideal da diferença reenvia a sua origem na síntese assimétrica do sensível. De modo análogo, a teoria do valor linguístico depende de uma determinação pré-individual dos signos, ainda na sua diferenciação sensitiva e ideal, a fim de que, somente então, eles constituam sistemas bem-formados.

Já destacamos que o princípio de arbitrariedade do signo não se referia ao processo pelo qual todos eles necessariamente relacionam uma imagem acústica a um conceito, pois o par significante-significado era já o que definia o signo, mas sim à indeterminação de que tal imagem acústica se acople a tal conceito. Elas variam conjuntamente, como a água do mar e a atmosfera – superfícies sempre juntas, embora amorfas, e que culminam em diferentes tipos de entidades denominadas signos (SAUSSURE, 1995, p. 56). Essa imagem das “séries” do significante e do significado – como a água do mar e o vento que variam juntos – não nos deve enganar: o que existe imediatamente é a divergência, o disparate e a diferença entre ambas, em vez da correspondência, cujo espírito disparatado é captado melhor pelo estruturalismo, quando propõe uma estrutura diádica e um valor diacrítico para o signo, e melhor pela filosofia da diferença, quando assegura que pensamos a partir de, pelo menos, duas séries.

Mesmo o signo, em seu aspecto diádico ou duplo, é já fruto de uma abstração com interesse didático, porque ele é o “resto” de um processo qualitativo e multifacetado através do qual o múltiplo se organiza ele mesmo e de modo diferencial: “Este processo de estruturação de um plano qualitativo por outro produz uma espécie de estoque que é a entidade positiva do signo, impressão distintiva da correlação.” (MANIGLIER, 2006, p. 283). E essa estrutura problemática reafirma a cada vez um parentesco insuspeito entre os autores: a ideia tem por objeto a relação diferencial; a língua, também.

Contudo, afinal, se não há determinação prevista quanto ao seu objeto, se não há necessidade de um centro da estrutura que a determine para além das relações recíprocas e diferenciais, de onde surge o ideal de determinação possível que parece acompanhar o desenvolvimento de uma ideia, seja ela composta de séries heterogêneas, como quer Deleuze, seja ela de elementos heterogêneos, como propunha Saussure?

Essa segunda característica da ideia se relaciona com o fato de que o sistema de diferenciações da língua não apenas diferencia termos, mas, justamente, os torna por isso “positivos”. Assim, a passagem das relações puramente diferenciais entre significantes e significados – que constitui o signo – para relações opositivas dos signos – que colabora com seu valor – coloca algo novo: uma vez que os signos são termos, eles ainda continuam a ter um valor puramente relacional, porém, eles não são mais “diferentes”, e, sim, “distintos” (SAUSSURE, 1995 p. 167). Trata-se de notar a estabilização serial dos chamados “termos”, os quais, por conseguinte, podem constituir unidade mínimas no estudo sistemático da língua. pois sua gênese, como vimos, não provém de unidades mínimas, mas de puras variações entre a matéria fônica e o substrato semântico. Dessa forma, parte-se de uma “[...] série de diferenças de sons combinadas com uma série de diferenças de ideias” que “[...] engendra um sistema de valores.” (SAUSSURE, 1995, p. 166).

As leituras que valorizam os aspectos objetivos da linguística que provêm dessas análises tendem a se debruçar sobre esse momento positivo dos termos, quando os valores servem bem a uma análise gráfica e semântica – por exemplo, com a distinção das palavras “concerto” e “conserto”, ou “acento” e “assento”, e com a distinção dos sentidos de “homem” face a “mulher”, “mundo”, “animal” e assim por diante. É sempre na amálgama dessas duas variantes gráfica/fônica e ideal/semântica que se dá o valor. Mas, em prol da ciência da língua e das suas unidades positivas, obliteram a gênese recíproca do valor, com base nos traços distintivos puramente diferenciais. Assim, consideram a determinação recíproca de um ponto de vista abstrato, como se a reciprocidade se estabelecesse entre termos fixos, quando é ela que engendra termos e cada signo é complexo e problemático em si mesmo. Num eixo de leitura distinto, próximo àquele que endossamos aqui, Maniglier defende que “[...] a positividade semiológica não é então a associação entre diferenças já dadas, mas antes a singularidade que resulta do condicionamento recíproco dos traços distintivos acústicos e dos traços distintivos semânticos.” (MANIGLIER, 2006, p. 308).

Enquanto a determinação recíproca se relaciona com a origem puramente diferencial do valor, a determinação completa se refere à relação opositiva dos signos. No entanto, isso não significa que a relação de oposição seja pacífica, pois sua positividade não provém de diferenças dadas, estanques, e só opera junto destas. Inclusive, podemos encontrar na ideia de determinação deleuzeana um sentido próximo àquele das variações entre os signos saussurianos, agora lida como “condicionamento recíproco”. Com efeito, Saussure procura nas conclusões de sua teoria do valor cumprir duas tarefas: descrever como da diferença surgem termos; explicar como esses termos se relacionam de modo opositivo e distintivo, uns com relação aos outros. Existe então uma dupla determinação do valor de cada signo e de como todos funcionam conjuntamente no sistema.

Talvez o mal-entendido da crítica de Deleuze resida aqui, porque a primeira diferenciação é sem termos – considera-se que existem sons ou ideias que se diferenciam apenas à guisa didática, pois a continuidade da massa sonora (sua linearidade) vai de par com a informalidade do pensamento. Aliás, do mesmo modo que o “arbitrário do signo” funciona como primeiro princípio de compreensão do signo linguístico, o chamado “caráter linear do significante” atua como seu segundo princípio (SAUSSURE, 1995, p. 103). Ele é uma linha contínua, sem corte, e que se diferencia em sua continuidade. Ora, Saussure defende que a diferenciação não é um processo colateral ao sentido, quer fônico, quer ideal, mas sua natureza mais própria. E que ela, inclusive, possui dois momentos ou níveis.

Podemos compreender que essa primeira diferenciação corresponde à différentiation. Já a segunda diferenciação, a qual Saussure nomeia opositiva, corresponde à relação entre signos já formados, pela união entre imagem acústica e conceito, e poderia bem corresponder à différenciation.[7] Sem entrar no mérito de como essa distinção entre ordens de diferença se associa com o par conceitual virtual/atual, basta notar como, na virtualidade, a multiplicidade de valores, sonoros, sensíveis em geral, e de ideias, coexistem numa organização própria que ainda não as individualiza (matéria fônica amorfa; valor conceitual indeterminado). Já essa virtualidade se atualiza a cada vez em estados de coisa ou termos distintos, que correspondem aos signos diferenciados e capazes, finalmente, de se distinguir uns dos outros. Basta ler esta dupla de passagens de Deleuze para comparar com as formulações que já soerguemos, a respeito de Saussure:

Quando o conteúdo virtual da Ideia se atualiza, as variedades de relações se encarnam em espécies distintas e, correlativamente, os pontos singulares, que correspondem aos valores de uma variedade, se encarnam em partes distintas, características de tal ou qual espécie. (DELEUZE, 1968, p. 266 - 267).

 

A estrutura é a realidade do virtual. Aos elementos e às relações que formam uma estrutura devemos evitar, ao mesmo tempo, atribuir uma atualidade que eles não têm e retirar a realidade que eles têm. Vimos que um duplo processo de determinação recíproca e de determinação completa definia essa realidade [...]. (DELEUZE, 1968, p. 270).

 

A complexidade do Cours não parece ser levada em conta, quando apenas se repete o princípio de diferenciação e, em seguida, se assinala a sua remissão à oposição como característica operativa. Cada valor no sistema sofre ao menos o trabalho de duas diferenciações: “Todo valor é duplamente determinado, por um jogo de codiferenciação heterogênea de um lado, e por um jogo de oposição entre os ‘nós’ codiferenciais por outro” (MANIGLIER, 2006, p. 299); “[...] o ‘paradoxo’ do valor é então aquele da dupla inscrição de todo o valor, uma vez como correlação diferencial, isolada, mas dupla, e uma vez como oposição formal, homogênea mais relativa.” (2006, p. 319). Desse modo, os signos são entidades duplas não apenas porque possuem duas “partes”, significante e significado, mas porque possuem seu significado neles e fora deles mesmos. O valor é produto dessa dupla diferenciação. Tendo-se em vista a relação entre diferença diferencial e diferença opositiva, nos valores de cada signo e nos valores dos signos entre si, é possível notar o quanto ela se coaduna e se explicita pela ontologia das multiplicidades que Deleuze prepara, já na década de 1960, porque ali a oposição se refere a termos que são produto de diferenças, que possuem um valor meramente diferencial, como uma oposição entre diferenças e não entre identidades; e seria impossível pensar que ela desconsidera essa diferenciação que ela mesma recolhe para seu funcionamento.

As relações de determinação recíproca e determinação completa são aqui recuperadas avant la lettre. Sobre isso, é possível tecer mais considerações sobre a aproximação entre diferença e oposição, em Saussure, com as duas modalidades da différent/ciation, em Deleuze.

Em ambos os casos, na diferenciação intensiva entre valores e na diferenciação opositiva entre termos, há um modo de errôneo e outro correto de lê-las. Elas possuem um “duplo negativo” (DELEUZE, 1968, p. 266), como Deleuze diria, ao traçar a gênese do negativo, a partir da diferença, numa “imagem deformada” dela mesma. Em seu caso, a ideia possui “[...] todas as variedades de relações diferenciais e todas as distribuições de pontos singulares” (DELEUZE, 1968, p. 266), ela é um “problema” e suas atualizações, “casos de solução”. Num e noutro caso, o que ocorre é a seleção e não negação das diferenças entre singularidades, sons, cores, qualidades de todo tipo, as quais, juntas, manifestam um novo tipo de valor diferencial, sem que a sua coexistência virtual seja negada.

Essa seleção é chamada perplicação, uma seleção que contém os elementos não selecionados, que não são deixados de fora, mas contribuem com a própria seleção e, por isso, com o caráter relacional que ela sempre tem. “Por exemplo, a Ideia de cor é como a luz branca que perplica em si os elementos e relações genéticas de todas as cores, mas que se atualiza nas cores diversas e seus respectivos espaços; ou a Ideia de som, como o ruído branco.” (DELEUZE, 1968, p. 266 - 267). Uma gênese afirmativa do negativo, por conseguinte, bem diferente de partir do negativo para se chegar à afirmação – como seria o caso de pensar o som, a partir do silêncio puro, ou a cor, a partir de crepúsculo absoluto. Do mesmo modo, há uma “linguagem branca” que se diferencia, uma “sociedade branca” que se diferencia etc., não muito distintas da linearidade dos sons (na qual se diferenciam os fonemas) e da massa amorfa do sentido/pensamento (na qual se diferenciam as ideias) a que alude Saussure. A consideração do sistema linguístico como algo completo ou acabado é apenas “uma” imagem da relação arbitrária pela qual sons se relacionam a ideias e, dessa forma, se imiscuem em valores. Trata-se daquela “imagem tradicional” que representa a relação como necessária, mas que arbitrariamente coloca essa necessidade na relação sem mesmo se dar conta, pois é a diferenciação intrassígnica (som-sentido) e intersígnica (entre signos) que produz a ideia de todo e de unidade. Nesse sentido, lemos nos Escritos de linguística geral:

Os objetos [que a ciência da linguagem] tem diante dela jamais possuem uma realidade em si mesmos, ou à parte dos outros objetos que se há de considerar; não tem absolutamente nenhum substrato de existência fora de sua diferença ou DAS diferenças de toda espécie que o espírito pode unir À diferença fundamental (mas cuja diferença recíproca constitui toda a resistência de cada um deles): mas, sem que se possa sair de modo algum deste dado fundamentalmente e para sempre negativo da DIFERENÇA de dois termos, para as propriedades de um termo. (SAUSSURE, 2004, p. 67 - 68).

 

É salutar ler esse conjunto de escritos junto com a teoria sistematizada nos seus cursos, porque podemos notar que os dois princípios linguísticos – arbitrariedade e linearidade – se fundamentam em dois princípios de cunho filosófico – o da continuidade e o da transformação. Todos os objetos especiais da linguística e da metafísica – sistema, sincronia, diferença, oposição e, mesmo, o signo – derivam do continuum heterogêneo que define a língua, também colocado como linearidade. Assim, quem suprime “[...] a ideia de continuidade, imaginando que o francês saiu um dia dos flancos da língua latina armado da cabeça aos pés, como Minerva do cérebro de Júpiter, cai irremediavelmente no sofisma da imobilidade.” (SAUSSURE, 2004, p. 141). É preciso admitir, a partir desse primeiro princípio, um segundo, o da transformação: “Consideramos absoluto o princípio de transformação incessante das línguas.” (SAUSSURE, 2004, p. 141). Ou seja, para que os recortes sincrônicos do “francês”, do “latim” ou tantos outros recortes diacrônicos que comparam esses sistemas possam se operar, é necessária uma continuidade própria à língua, a qual permite o recorte de “equilíbrio” em “equilíbrio”, apenas porque é desde já em si mesmo um movimento da língua se fazendo ou em devir de estados metaestáveis. Logo, é a diferença que organiza a unidade da língua no presente e de sua transformação na história. Em poucas palavras: é a diferença que opera a relação entre identidade e mutação, espaço e tempo, natureza e história. Como escreve o próprio, “[...] continuidade, mas divergências. Fonética.” (ELG, 154).

Olhando de perto, as teses de Saussure são menos tradicionais do que se pensa, já que elas levam a uma explosão de todo sentido “fora” da língua, ao mesmo tempo que conduzem à explosão de todo “fora” (ou de todo “sentido” de fora) da estrutura. A estrutura é sem exterior; ou, antes, o exterior e o interior são pontos de vista a respeito dela. E esta seria a consequência mais justa em se defender que o ponto de vista cria o objeto.

 

Considerações finais

Vista do prisma de uma teoria diferencial do valor, é possível notar que a divisão entre significante e significado é derivada daquilo que lhe constitui: uma variação mais ou menos estável entre séries de traços diferenciais e heterogêneos. Logo, a ideia de signo é o resultado de um modo de pensar diferencial, já fruto de uma meta narrativa ou de um ponto de vista a respeito da estrutura, no qual é preciso forjar uma entidade dupla ou uma terminologia capaz de dar gradualmente conta desse fenômeno essencial que é o da variação heterogênea. Todo valor é metalinguístico, se o pensamos como uma representação do que seria o signo a cada momento, sua imagem acústica junto de seu significado estável, pois falar em “signo” é uma maneira de exprimir o que seria a tendência congênita da linguagem (e de toda estrutura em nossa vida) de se organizar duplamente. É uma maneira de homogeneizar aquilo que, em sua natureza, é heterogêneo – que, a bem da verdade, não possui natureza fixa – e Saussure se dá conta disso muito cedo, quando assevera que os esquemas não são mais do que, justamente, esquemas.

De modo análogo, da determinação recíproca entre sons e entre conceitos pode surgir a ideia de uma determinação completa do sistema de signos no idioma na sincronia, com cada elemento possuindo um valor assinalável. Saussure repete Deleuze, porque é a diferença e a criação que repetem antecipadamente todas as suas retomadas e celebrações – como já frisamos que é a primeira ninfa de Monet que repete todas as outras (DELEUZE, 1968, p. 8) – e porque, de uma forma ou de outra, somente a diferença pode ser repetida. Se dissessem o “mesmo”, talvez jamais poderiam ter dito a mesma “diferença” que os vincula pelo disparate; e falar a mesma língua não é a única maneira, nem a mais propícia, de comunicar uma verdadeira divergência produtiva. Aquela que vincula, ao invés de afastar ou, pior, igualar os interlocutores.

 

ON THE synthesis OF A DISPARATE: SAUSSURE REPEATs DELEUZE

Abstract: The paper reconstruct the general semiology elaborated in Saussure's unfinished and indirect writings, replacing his notion of meaning next to that of Deleuze, and explaining it through the latter. We argue that any theory based on the notion of "difference" needs to account for the individuation process and, together, through the description of two levels of differentiation. We demonstrate that this is accomplished by both authors, beyond and even with their disagreements. Thus, the article puts Saussure's theory of value on the dawn of a philosophy of difference, showing that it inaugurates and even repeats the theses that Deleuze explicitly defends in the 1960s.

 

Key words: Structuralism. Philosophy of Language. Saussure. Deleuze. Difference.

 

Referências

ANDRADE, André Dias de. Diferença e oposição: uma controvérsia. Griot: Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v. 21 n. 2, p. 358 - 375, jun. 2021.

BENVENISTE, É. Problèmes de linguistique Générale I. Paris: Gallimard, 1976.

BOUQUET, S. Benveniste et la représentation du sens: de l'arbitraire du signe à l'objet extra-linguistique. Linx, v. 9, p. 107 - 122, 1997.

DELEUZE, G. Différence et répétition. Paris: PUF,1968.

DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Minuit, 1969.

DELEUZE, G. L'ile deserte et autres textes. Paris: Minuit, 2002.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Capitalisme et schizophrénie: t. II: Mille Plateaux, Paris: Minuit, 1980.

MANIGLIER, P. La vie énigmatique des signes. Saussure et la naissance du structuralisme. Paris: Léo Scheer, 2006.

SAUSSURE, F. de. Cours de linguistique Générale. Payot, 1995.

SAUSSURE, F. de. Escritos sobre linguística general. Barcelona: Gedisa, 2004.

SÉRIOT, P. Structure and the whole. East, West and non-darwinian biology in the origins of structural linguistics. Boston: Walter de Gruyter, 2014.

 

Recebido: 01/3/2021

Aceito: 20/4/2021

 



[1] Pós-Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. Apoio: FAPESP, processo 2019/21515-5. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5962-7065. E-mail: andre8ada@gmail.com.

[2] Benveniste dá bastante ênfase à sequência do Cours, onde lemos que “a palavra arbitrário [...] quer dizer [que o signo] é imotivado, isto é, arbitrário com relação ao significado, com o qual ele não possui nenhum vínculo natural na realidade” (SAUSSURE, 1995, p. 101). Esta última passagem é a que fomenta sua leitura: “está claro que o raciocínio é falseado pelo recurso inconsciente e subreptício a um terceiro termo, que não estava compreendido na definição inicial. Esse terceiro termo é a coisa mesma, a realidade” (BENVENISTE, 1976, p. 50). Mas diversas fontes manuscritas e edições críticas já mostraram que por vezes Saussure utiliza “signo” para dizer o conjunto significante-significado, e por vezes para se referir apenas ao “significante” (uma equivocidade, aliás, presente em incontáveis autores). Além da disputa documental, mostramos como a teoria do valor de Saussure independe deste terceiro termo e de modo bastante consciente o nega.

[3] “O domínio do arbitrário é assim relegado para fora da compreensão do signo linguístico. [...] O arbitrário existe apenas existe aqui com relação ao fenômeno ou ao objeto material e não intervém na constituição própria do signo.” (BENVENISTE, 1976, p. 53).

[4] Assim, a determinação recíproca não é identificadora, mas relativa ou, antes, qualitativa. “A reciprocidade da determinação não significa, com efeito, uma regressão ou uma estagnação, mas uma verdadeira progressão em que os termos recíprocos devem ser ganhos cada vez mais [de proche en proche], e as próprias relações, postas em relação com eles.” (DELEUZE, 1968, p. 271).

[5] Como já tivemos a oportunidade de mostrar, a respeito do caso Trubetskoy e sua diferença com Saussure, além da nuance que deve ser mais bem notada entre o estruturalismo do segundo e sua possível retomada na versão “pós”, em Deleuze (ANDRADE, 2021).

[6] Parece possível preencher o hiato criado pelas obras de 1960. Já nas décadas seguintes, junto de Guattari, a crítica se endurece. Por exemplo, em Postulados da linguística dirão que o desaparecimento do sujeito enunciativo não é apenas um modo de deslegitimar o subjetivismo (digamos, uma atitude fenomenológica quanto à enunciação, como poderia ser caracterizada por exemplo a de Benveniste), mas também o estruturalismo, “[...] dado que este reenvia o sistema da língua à compreensão de um indivíduo de direito, e os fatores sociais, aos indivíduos de fato enquanto eles falam.” (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 101). Seria esta uma forma de repetir a má distinção entre estrutura e acontecimento, ou entre estrutura e gênese, fazendo da estrutura um todo fechado. Além disso, tal concepção parece fruto daquela interpretação dos signos em termos opositivos e não diferenciais. Toda essa crítica está, então, preparada desde 1967 e 1968. Mas, se partimos de uma leitura justa de Saussure, junto das reinvindicações que Deleuze fazia a ele, parece que ele se desvia dessa dupla interpretação, porque sabemos que o sistema não é opositivo e não remete ao transcendental, mas ao diferencial, e se endereça ao acontecimento. As duas críticas de Deleuze não passam aqui e são mesmo respondidas avant la lettre com um estilo que parece bem o seu.

[7] Leitura nossa, mas que não à toa parece se coadunar à excelente redescoberta de Saussure por Patrice Maniglier: “Pode-se considerar que é o nível ‘molar’ (unidades) que supõe um processo ‘molecular’ (correlação entre várias séries de diferenças), enquanto que o resultado ‘molecular’ (sub-unidades) supõe um processo ‘molar’ (classificação das unidades linguísticas).” (MANIGLIER, 2006, p. 310-311).