HEIDEGGER E A PRODUÇÃO TÉCNICA E ARTÍSTICA DA NATUREZA

Marco Aurélio Werle1

RESUMO: O artigo examina como Heidegger pensa, a partir da natureza, o “produzir” técnico e artístico, tendo como referência certas noções centrais da história do pensamento, desde o registro inaugural dos termos gregos techné, poiesis e physis, e seus desdobramentos por meio da tradução latina, até seu reordenamento na metafísica da época moderna.

PALAVRAS-CHAVE: Heidegger. Arte. Técnica. Produção. Natureza.

INTRODUÇÃO

No centro do questionamento heideggeriano acerca da arte e da poesia, bem como da técnica e da ciência, apresenta-se uma refl exão sobre o que vem a ser o “produzir”, em sentido amplo, como modo de produção da existência humana, tanto na relação do homem consigo mesmo quanto com a natureza em seus vários aspectos e em seu caráter de verdade. O modo de produção não se restringe então a um problema especifi camente econômico, mas remete a uma atitude fundamental do ser humano, de amplitude histórica, diante do Ser e do ser do ente.

Esse questionamento de Heidegger pode ser acompanhado na exploração que realiza das várias nuanças do verbo alemão stellen: “pôr” ou “colocar”, nos ensaios A origem da obra de arte, A questão da técnica, A época da

1  Professor Livre-Docente do Departamento de Filosofi a da USP. Atua na área de Estética e de Filosofi a Alemã Moderna e Contemporânea. É autor de A poesia na estética de Hegel (Humanitas,

2005) e de Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger (EDUNESP, 2005) e tradutor de Escritos sobre arte de Goethe (Humanitas, Imprensa Ofi cial, 2005) e,   juntamente com Oliver Tolle, de Cursos de estética de Hegel (EDUSP, 1999-2004, 4 vol.).

imagem de mundo, Nietszche I e Para que poetas? Heidegger pensa a “produção”, tanto na dimensão especifi camente humana, quanto na que ultrapassa o homem e o determina como história, destino e proveniência ontológica. E essa refl exão passa não apenas pela consideração do que é a produção no sentido mais usual, a Her-vor-bringung, o “trazer à frente” ou o “levar à frente”, mas principalmente pelo modo como é conjugado o verbo stellen, o “pôr” ou “colocar”, com seus prefi xos e substantivos. O stellen está na base da forma artística como Gestalt e da categoria central da metafísica da modernidade, a representação, Vorstellung, e sua determinação como “armação” técnica: Ge-stell.

No artigo que se segue, farei um percurso que pretenderá acompanhar esses desdobramentos do stellen, na obra de Heidegger. Primeiramente, farei um exame do tipo de “pôr” que surge no âmbito da obra de arte, para, depois, avançar na caracterização heideggeriana da essência da técnica moderna como armação e em sua fundamentação metafísica como representação. Concluirei com ponderações sobre a possibilidade de um reencontro originário e natural entre arte e técnica, a partir da poiesis como origem comum de ambas.

1  A PRODUÇÃO NO DOMÍNIO ARTÍSTICO

Começo situando a afi rmação heideggeriana, em A origem da obra de arte (do ano de 1935/36), de que a obra de arte consiste numa clareira [Lichtung], um determinado lugar que se afi rma como centro irradiador em meio ao acontecimento do ente como um todo: “[...] em meio ao ente como um todo se apresenta [west] um lugar aberto [offene Stelle]” (HEIDEGGER, 2003a, p. 39-40). Na economia interna desse ensaio, esse é o ponto de chegada a partir do qual se põe a obra de arte, na medida em que exprime um certo lugar iluminado de encontro. Porém, qual seria esse encontro e o que se encontra, de fato, na obra?

Sabemos que Heidegger situa a obra de arte como um combate [Streit] entre terra e mundo. Esse combate, por sua vez, se trava numa posição aberta, gera uma certa operação de posicionamento como “[...] instituição de um mundo e a produção da terra” [Aufstellen einer Welt und das Herstellen der Erde]” (HEIDEGGER, 2003a, p. 34). É importante aqui acompanhar a expressão original alemã e atentar para os desdobramentos do verbo stellen, que é pensado desde a proveniência terrena da obra de arte, pelo her-stellen, que também pode ser pensado como “re-constituição” ou como “re-posicionamento”, bem como pela projeção mundana instituidora e construtora do auf-stellen. Os dois movimentos remetem ao modo de ser da terra e do mundo, sendo a terra aquele elemento que oferece resistência e possui a tendência de ocultar-se ou de se fechar, ao passo que o mundo é a abertura como espaço das decisões humanas e históricas. A obra de arte como produção apoia-se na terra, de onde vem (her-stellen) e se eleva (auf-stellen) num mundo.

Terra e mundo funcionam no pensamento de Heidegger como ampliadores ou amplifi cadores ontológicos do papel que, na tradição estética, assumiram e ainda assumem as categorias da matéria e da forma como reguladoras da produção artística. A obra de arte não signifi ca simplesmente uma operação subjetiva, operada pelo artista, que aplica conforme suas intenções e planos uma forma a uma matéria, mas é antes a mobilização da “natureza” como um todo (da terra como a physis dos gregos), bem como do mundo, sendo o mundo situado como uma espécie de condensação de todas as signifi cações possíveis na projeção do homem como ser-no-mundo. A terra irrompe, ao modo da physis, na obra de arte, e é lançada no mundo, como um mundo, de modo que esse irromper e o ser lançado geram um combate.

Também essa noção de combate implica um remanejamento da estética tradicional, pois a obra é compreendida para além da concepção tradicional de harmonia e equilíbrio ou até mesmo da categoria kantiana e schilleriana de jogo. Tampouco o combate é a expressão de uma aparência, contudo, da verdade apreendida para além da estrutura do enunciado. A verdade é, em Heidegger, o descobrimento e o encobrimento, segundo o termo que os gregos empregaram para dizer a verdade: alétheia, antes do surgimento da metafísica como o discurso do ser do ente.

Esse posicionamento terreno e mundano da obra de arte se consolida na medida em que encontra uma Gestalt, uma forma como substantivação e acomodação do stellen que assumiu uma confi guração sensível. Obviamente, o processo da fi guração artística não será tranquilo, porque, como resultado de um combate, importa que a obra de arte mantenha viva a luta de terra e mundo, no interior de uma diferença ontológica. E isso somente poderá acontecer caso, nesse combate, pulse uma certa tensão entre contrários ou até mesmo uma “ruptura”, que Heidegger exprime por meio do termo Riss, “rasgo” ou “traço”, situado entre os dois posicionamentos.

Com isso, a obra de arte alcança um complexo processo de posicionamento. Reproduzo, em alemão, um trecho central do ensaio de Heidegger, que indica vários parentescos conceituais do stellen: Der in den Riss gebrachte und so in die Erde zurückgestellte und damit festgestellte Streit ist die Gestalt. Geschaffensein des Werkes heisst: Festgestelltsein der Wahrheit in die Gestalt

(HEIDEGGER, 2003a, p. 51). Traduzindo, temos: “A forma é a luta conduzida para dentro do rasgo e assim reconduzida para a terra e solidamente estabelecida. Ser criada a obra signifi ca: estar a verdade solidamente estabelecida na forma”.

2  A PRODUÇÃO TÉCNICA ANTIGA E MODERNA

Ora, diante desse processo de “posicionamento” da arte, na qual o homem é convidado a tomar uma posição diante da natureza e do mundo, poder-se-ia justamente perguntar como se coloca a atitude humana, hoje corriqueira e dominante, a saber, a que foi determinada na época moderna (dos últimos quinhentos anos) por um outro tipo de experiência, isto é, pela técnica moderna, examinada por Heidegger principalmente em seu ensaio A questão da técnica, de 1953. Tal como a obra de arte, a técnica moderna ou a tecnologia também opera uma “posição”, só que sui generis, e que Heidegger designa pelo termo Ge-stell, uma “armação” como uma espécie de posicionamento no qual se revela uma atitude não solícita, mas im-positiva da subjetividade moderna. Se, na arte, o homem se ex-põe à terra e ao mundo, na técnica, ele pretende antes se im-por, embora acabe inevitavelmente também se ex-pondo, mas de uma maneira bastante perigosa, pois a técnica, juntamente com a ciência, consiste num bloqueio e numa quebra da irrupção da physis e numa agressão à natureza. Em Que é metafísica?, Heidegger emprega o termo Einbruch, que se pode traduzir por “invasão” ou por “assalto”, para indicar uma das marcas características da ciência moderna (HEIDEGGER, 1978, p. 105).

Todavia, o que signifi ca, em termos heideggerianos, a téchne, a técnica em sentido originário?

No ensaio “A vontade de potência como arte”, do Nietzsche I, Heidegger comenta o fato já conhecido de que os gregos denominavam tanto a arte quanto o artesanato com a palavra techné (HEIDEGGER, 2007a, p. 74). Todavia, ao mesmo tempo, também observa que a techné é, sobretudo, um saber e não um fazer. A techné é “[...] uma designação para aquele saber que porta e conduz toda irrupção humana em meio ao ente” (HEIDEGGER, 2007a, p. 75). Essa irrupção tem de ser pensada segundo a physis, como “[...] o que retorna e passa: a vigência que irrompe e retorna a si” (HEIDEGGER, 2007a, p. 75). Disso se segue que

[...] o artista não é um technites porque também é um artesão, mas porque tanto a produção das obras de arte quanto a produção de utensílios são uma irrupção do homem que sabe e procede de acordo com esse saber em meio à physis e em função da physis. O “proceder” a ser pensado em termos gregos não é, contudo, um ataque: ele deixa muito mais chegar o que já estava vindo à presença. (HEIDEGGER, 2007a, p. 75).

Logo a seguir, nesse mesmo ensaio, Heidegger situa o início da estética com Platão e Aristóteles como um certo desvio de rota do sentido originário da techné, uma vez que a mesma acabou sendo submetida ao discurso fi losófi co inaugural de Platão. O saber da techné, em consonância com a physis, foi subjugado à afi rmação da ideia como eidos, o “aspecto”, cujo conceito estabeleceu pela primeira vez a interpretação do ser como ser do ente. Se, antes, o ente era no ser, a partir de agora predominará o ser do ente, com o que se inaugura a onto-teo-logia, o discurso que vai em busca do ente superior a determinar, a cada momento, a entidade do ente.

No campo especifi camente relacionado ao produzir artístico, essa subjugação da techné pela ideia se exprime no enquadramento do produzir pelas categorias da matéria e da forma, da ülé e da morphé. Nesse novo patamar, a techné acaba sendo orientada pelo registro de algo que limita (forma) e de algo que é limitado (matéria). Essa diferenciação entre matéria e forma, além de ser dirigida pela ideia, possui seu domicílio originário na confecção do utensílio e das coisas de uso, no campo da atuação prática humana (cf. HEIDEGGER, 2007a, p. 76).

O mesmo argumento sobre a proveniência do par conceitual matéria e forma é desenvolvido por Heidegger, no ensaio A origem da obra de arte, onde esse par expressa a concepção dominante da “coisidade da coisa”, em relação às outras duas concepções, respectivamente de origem antiga, da coisa como substância com acidentes (Aristóteles), e de origem moderna, da coisa como um múltiplo dado às sensações (Kant). “Os três modos indicados da determinação da coisidade [Dingheit] apreenderam a coisa como o suporte de características, como a unidade de uma multiplicidade sensorial e como matéria enformada” (HEIDEGGER, 2003a, p. 15).

Essa ênfase na techné originária dos gregos como um saber e, portanto, não como um fazer, não como algo “técnico”, tal como se consolidou essa expressão na tradição ocidental, constitui o argumento central de Heidegger, em A questão da técnica, para diferenciar a técnica antiga da técnica moderna. Reinterpretando a doutrina das quatro causas de Aristóteles, Heidegger retoma o sentido grego de aitia, causa em latim, e mostra que as chamadas quatro “causas” – o eidos (forma), a ülé (matéria), o telos (fi m) e légein (causa efi ciente) – estão essencialmente orientadas por um descobrimento do ente que mantém conservado o encobrimento. Dessa forma, torna-se questionável o predomínio que, na tradição ocidental, acabou recebendo a causa efi ciente sobre as demais causas, a saber: as causas formal, material e fi nal. No modo de pensar grego, cada causa não signifi cava um cadere, um enquadramento, mas um acontecer de amplitude ontológica. Imperava antes um comprometimento interno e recíproco das causas, tendo em vista o ocasionamento do ente e um deixar acontecer o ente segundo a physis.

No entanto, a tradição ocidental pós-grega de pensamento, já com os romanos, interpretou o nexo de comprometimento e de cumplicidade interna das quatro causas sob o registro da presença do que se apresenta e da atividade humana de determinação dessa presença. Com isso, a causa efi ciente passou a se destacar e transformou-se no principal critério da realidade de tudo o que é. No texto Ciência e meditação, ao abordar a concepção de ciência como teoria do real, Heidegger insiste que “[...] nunca é demais precisar: o traço essencial do fazer efeito e da obra não repousa no effi cere e no effectus, mas no fato de que algo se ergue e repousa no que está descoberto” (HEIDEGGER, 2009, p. 45). A proeminência do efeito na compreensão do real redundará, mais tarde, na compreensão do real como objeto.

A época moderna se afasta da visão grega, ao pensar o levar à frente (determinado entre os gregos pela poiesis) como um desafi o da natureza (HEIDEGGER, 2007b, p. 381). Esse desafi o não se contenta apenas com uma extração momentânea da natureza, porém, objetiva uma reserva e um armazenamento, para que a natureza possa estar a todo o momento e mais facilmente disponível. O desafi o, a extração, a exploração, o armazenamento, a encomenda e a distribuição da natureza, bem como a repetição constante desse ciclo, formam um sistema e signifi ca a “armação” [Ge-stell], como “[...] invocação desafi adora que reúne o homem a requerer o que se descobre enquanto subsistência” (HEIDEGGER, 2007b, p. 384). A relação agora se inverte: não é o homem que aguarda o que a natureza tem a lhe oferecer, mas exige e dispõe a natureza como um objeto.

A propósito, como se coloca o homem nesse esquema de pensamento? De início, convém afastar a ideia ingênua de que o homem controla a armação, uma vez que ele mesmo está inserido no campo do desafi o da natureza, como um elo da cadeia da “armação”. Por estar dentro da cadeia, não depende do homem, enquanto indivíduo, como se dá o descobrimento do ente, mesmo que ele tenha a pretensão de determiná-lo.

Embora dependa de um destaque dado ao “fazer”, a técnica moderna não pode ser pensada como um mero fazer que se esgota no domínio da ação humana, mas remete a uma essência mais ampla, a uma atitude que antecede a operação técnica, que é justamente o que designa a “armação”, a Ge-stell, como a reunião do pôr desafi ante da realidade. Ainda que o pôr da armação se assemelhe à poiesis como modo de desabrigar e “inventar” o ente, ele é substancialmente diferente dela, pois, no interior da armação, o homem não encontra mais a sua essência. Por meio da armação, a modernidade perdeu o controle do princípio da subjetividade, se é que algum dia se pode considerar que a transformação do homem em sujeito lhe outorgou a posição de “controlador”.

Na técnica moderna, as imposições são exteriores à coisa. A técnica transforma todas as coisas em instrumentos, mas ela mesma em sua essência não é um meio, e sim uma atitude humana decidida na época moderna.

O que chamamos de técnica moderna não é somente uma ferramenta, um meio diante do qual o homem atual pode ser senhor ou escravo; previamente a tudo isso e acima das atitudes possíveis, essa técnica é um modo decidido de interpretação do mundo que não apenas determina os meios de transporte, a distribuição de alimentos e a indústria de lazer, mas toda a atitude do homem e suas possibilidades. (HEIDEGGER, 1989, p. 45).

A técnica é um perigo, dirá Heidegger, já que implica a intenção de ordenar o mundo de uma única maneira, de explorar a natureza tendo em vista uma única via e, com isso, regular a vida dos homens conforme essa via. A essência da técnica estende-se para o campo das atitudes humanas, acarreta um comportamento, principalmente de separação da natureza. A terra é submetida ao mundo e deixa de haver o combate, o qual na obra de arte ainda se mantém vivo. A arte, tomada como poiesis [Dichtung], é, ao contrário, um lugar onde a aproximação [dichtet] da terra e do mundo ainda permanece como uma possibilidade. Por isso, Heidegger dirá que

[...] a palavra ‘pôr’ designa no título armação não somente o desafi ar. Mas ela deve imediatamente guardar a ressonância de um outro ‘pôr’ da qual provém, a saber, guardar a ressonância daquele produzir e expor que no sentido da poiesis deixa vir à frente no descobrimento o que está presente. (HEIDEGGER, 207, p. 385).

A técnica pretende estabelecer como os homens devem se pôr no mundo. Trata-se de um pôr que dispõe conforme uma norma exterior e abstrata. Já a arte, antes de ser apenas um setor da vida humana, uma mera atividade do homem (de um pequeno grupo de artistas ou dos amantes da arte), constitui uma possibilidade diferente para o homem de estar no mundo. “Poeticamente habita o homem sobre esta terra”, ressalta o verso de um fragmento de Hölderlin, o qual Heidegger cita muitas vezes em seus textos. Ou seja, o que está em jogo na noção de poesia e de técnica (pensada desde sua origem como poesia) é a possibilidade de uma forma de existência.

E, assim, temos um forte contraste entre dois tipos de procedimentos e atitudes: uma situação é constituída pela terra como her-stellen e o mundo como auf-stellen, que estão em combate [Streit] na obra de arte e permitem o traço [Riss] enquanto forma [Gestalt]. Outra situação é o impulso desafi ador, extrativista e armazenador da técnica moderna como armação [Ge-stell]. No caso do mundo e da terra, na arte, não se trata de comandar o pôr, como na técnica moderna, mas em deixar que algo se ponha por meio de um movimento mais amplo.

A imposição técnica, por sua vez, resulta de uma determinação não apenas científi ca, no sentido de que se poderia pensar que a técnica moderna é uma aplicação da ciência moderna. Sobretudo sua essência é metafísica, pois se encontra comprometida com um outro tipo de posicionamento, que é o da subjetividade como representação [Vor-stellung]. Resta-nos agora examinar a noção de Vorstellung, que está à base da Gestell.

3  A DETERMINAÇÃO METAFÍSICA DA REPRESENTAÇÃO COMO ARMAÇÃO

Heidegger afi rma, no início do ensaio sobre a técnica, que “[...] a técnica não é nada de técnico” e distingue a técnica da essência da técnica. Uma coisa é pensar a técnica tal como se mostra imediatamente aos nossos olhos, segundo a relação instrumental como um meio para fi ns, outra coisa é pensar a técnica pelo modo como ela se apresentou, de acordo com a sua essência histórica, enquanto uma atitude decidida antes mesmo que a técnica se revelasse na existência. A palavra essência é então tomada segundo o verbo wesen e a pergunta pela essência da técnica é a pergunta pelo modo de se apresentar ou de se essencializar da técnica, em seu rasgo fundamental.

Disso decorre um fato simples: a essência da técnica não reside no modo de surgimento da técnica industrial e de máquinas, no século XVIII, como algo posterior ao surgimento das ciências matemáticas, as quais se impuseram com força, no século XVII, dando a ilusão de que a técnica seja ciência aplicada. Isso vale no âmbito da concepção instrumental da técnica, mas não quando se trata de sua essência, a qual está comprometida antes com a metafísica da época moderna.

A época moderna, por sua vez, é situada no começo de A época da imagem de mundo, texto de 1938, a partir de cinco características, que exprimem o propósito de o homem penetrar e dominar a natureza como sujeito. Num primeiro plano, vem a ciência e juntamente com ela a técnica moderna, cuja realidade é a técnica de máquinas. Esta, como já enfatizamos, não deve ser compreendida como mera aplicação da ciência, pois implica uma transformação específi ca da práxis e da atitude humana, cuja origem é a metafísica moderna. No horizonte da metafísica moderna, estão as outras três características que exprimem desdobramentos no campo da experiência moderna na arte, na cultura e na religião. A arte se desloca para o âmbito da estética, e o fazer humano se transforma em cultura, no sentido de que a cultura é a realização dos valores supremos do homem e o cultivo dos mesmos. Por fi m, apresentase a desdivinização, que não deve ser simplesmente entendida como a “morte de Deus” e como um afastamento humano do elemento divino, algo como um ateísmo, e sim como a cristianização da imagem do mundo, tornada infi nita. O próprio Cristianismo torna-se uma imagem de mundo, dentre outras.

O centro articulador da época moderna é a metafísica do sujeito, estabelecida em seus traços fundamentais por Descartes e que se manteve predominante até Nietzsche. É por intermédio dessa metafísica que o problema do “pôr”, do stellen, assume um privilégio como uma presença diante do sujeito, isto é, como Vorstellung.

A natureza e a história tornam-se objeto do representar explicativo [...] essa objetifi cação do ente cumpre-se num re-presentar [Vor-stellen], que tem como objetivo trazer para diante de si qualquer ente, de tal modo que o homem calculador possa estar seguro do ente, isto é, possa estar certo do ente. Só se chega à ciência como investigação se, e apenas se, a verdade se transformou em certeza do representar. É na metafísica de Descartes que o ente é, pela primeira vez, determinado como objetividade do representar, e a verdade como certeza do representar. (HEIDEGGER, 1998, p. 109-110).

É preciso ressaltar, nessa transformação, o fato de que o homem se torna sujeito, o que signifi ca que ele se torna a base, o üpokeimenon, a partir do qual a verdade se determina. A identifi cação do sujeito com um “eu” é uma consequência dessa transformação, mas não sua origem primeira, pois já nos gregos se tratava de um ego.

Heidegger considera que até Descartes – e isso no interior da metafísica estabelecida desde os antigos – todo ente era nele mesmo um sub-jectum, um üpokeimenon, “[...] algo subjacente por si mesmo, que, enquanto tal, está ao mesmo tempo na base das suas propriedades permanentes e dos seus estados que mudam” (HEIDEGGER, 1998, p. 131). Na metafísica de Descartes, esse sub-jectum se afi rmará como libertação do homem como autodeterminação de si mesmo e como um sub-jectum destacado por si mesmo e relativamente a todas as outras perspectivas, a todos os outros entes, inclusive diante de Deus. Heidegger então pergunta. “O que é este algo certo que forma o fundamento e dá fundamento? O ego cogito (ergo) sum” (HEIDEGGER, 1998, p. 133). A perspectiva do pensamento que, simultaneamente, pressupõe uma existência, um ser, permite o destaque da categoria da representação, que exprime a projeção do homem como pensamento diante dos entes.

Contudo, a representação não signifi ca simplesmente pôr algo diante do homem, “representar algo”, numa atitude passiva de que algo que ainda não existe é então representado pelo homem e se torna um objeto. Pelo contrário, o representar tem o carácter do coagitatio, no sentido de que comporta um representar que é, ao mesmo tempo, um determinado projetar humano e, sobretudo, uma pretensão de controle desse projetar. O representar apenas aparentemente é uma apreensão do que está à frente e que se orienta por algo que vem à frente, à presença.

O representar já não é o pôr-se-a-descoberto para [...], mas o agarrar e conceber de [...] não é o que-está-presente que vigora, mas o ataque que domina. O representar é agora, de acordo com a nova liberdade, um avançar, a partir de si, para a área ainda por assegurar do que está seguro. O ente já não é o que-está-presente, mas só o que está posto em frente no representar, que é ob-jetivo [Gegen-ständige]. Re-presentar é ob-jetivação que avança, que doma. O representar empurra tudo para dentro da unidade do que é assim objetivo. O representar é coagitatio. (HEIDEGGER, 1998, p. 133).

Pode-se dizer que o processo de representação é simultaneamente duplo: é tanto a colocação de algo diante de si quanto a remissão do que é posto a uma relação de coação de quem pôs. “Re-presentar signifi ca aqui trazer para diante de si o que-está-perante enquanto algo contraposto, remetê-lo a si, ao que representa, e, nesta referência, empurrá-lo para si como o âmbito paradigmático” (HEIDEGGER, 1998, p. 114).

Essa apreensão do homem como sujeito pela representação, que possui o carácter de coação signifi ca que o representar é, a partir de agora, acompanhado pelo caráter da certeza fundamental do sujeito, que a cada representação se encontra na base como orientação representadora ou representativa. “Enquanto subjectum, o homem é co-agitatio do ego. O homem funda-se a si mesmo como medida para todas as escalas com as quais se mede (se calcula) aquilo que pode valer como certo, isto é, como verdadeiro, como algo que é” (HEIDEGGER, 1998, p. 135).

Se retornarmos novamente à questão da armação, da Ge-stell, pode-se considerar que ela é a efetivação plena da representação subjetiva, na medida em que avança na organização do mundo. A Ge-stell surge como a expressão da atitude organizacional, volitiva e de coação da Vorstellung, ou seja, como a manifestação da representação como vontade no domínio da ciência e da vida. Obviamente, esse traço fundamental da subjetividade como vontade apenas será levado à luz pelo pensamento de Nietzsche, que considera a vontade de poder como a essência do ser do ente e o eterno retorno do mesmo como sua existência. Entretanto, de alguma maneira já se encontra na base da metafísica moderna cartesiana.

A armação pode também ser pensada no horizonte da transformação da representação em imagem e em sistema, uma vez que a essência da modernidade consiste no fato de que o mundo se torna imagem. “Fazerse imagem de algo quer dizer pôr o ente mesmo, no modo como está no seu estado, diante de si, e, enquanto posto desta forma, tê-lo constantemente diante de si” (HEIDEGGER, 1998, p. 112). E Heidegger acrescenta, mais adiante: “[...] é onde o mundo se torna imagem que o sistema chega ao domínio” (HEIDEGGER, 1998, p. 125). A noção de sistema, embora tenha encontrado sua expressão mais clara no campo do pensamento, implica uma estruturação da objetividade do ente ao ser representado. No sistema se exprimem concatenados os dois aspectos do “pôr” como posicionamento humano: o homem se torna sujeito e o mundo se torna imagem.

A consideração do homem como sujeito e do mundo como imagem se tornará cada vez mais forte e “dramática”, na época da consumação da metafísica, no horizonte da relação entre representação e vontade em Nietzsche e na poesia de Rainer Maria Rilke. A técnica moderna é poetizada na oitava elegia de Duíno de Rilke, na postura do enfrentamento humano do “aberto” (HEIDEGGER, 2003b, p. 288).

CONCLUSÃO

No ensaio sobre a técnica, ao citar os versos de Hölderlin, do hino Patmos: “Mas onde há perigo cresce também a salvação”, Heidegger visa a situar uma possível atitude humana diante da técnica, que se pode formular na pergunta: em que medida a técnica moderna, enquanto a matriz do modo como pensamos hoje o produzir, é um perigo para o homem?

E a resposta heideggeriana a esse questionamento, resposta que é ao mesmo tempo uma nova interrogação, consiste em explorar o sentido ambíguo da técnica moderna, pois, de um lado, a técnica moderna é a expressão continuada ou redirecionada da téchné antiga comprometida com uma poiesis, ao passo que, por outro lado, corresponde a algo radicalmente diferente e novo. Nesse sentido, a técnica não é um perigo, mas é o perigo. Em que medida se pode compreender esse carácter de perigo?

Na medida em que o homem pode se enganar com a amplitude de seu “fazer”, querendo inclusive fazer-se de Deus e compreender tudo que o cerca como o efeito ou a possibilidade de algo ser submetido a um fazer humano (HEIDEGGER, 2007b, p. 389). Em nossa época (do século XX e do XXI), o ser humano é cada vez mais absorvido por aquilo que faz, é “usado” pela técnica como armação. Com isso, há o perigo de a armação como essência da técnica moderna impedir a experiência do desabrigar como tal, impedir ao homem a experiência da relatividade desse modo de descobrimento e assim vislumbrar um outro tipo de relação com o ente (HEIDEGGER, 2007b, p. 390).

Justamente por isso e por mais paradoxal que possa parecer, Heidegger considera que a técnica, em sua essência original, não é um perigo, e sim somente é perigoso o ofuscamento e a cegueira provocados pela atenção exclusiva à determinação instrumental da técnica moderna. Dito de outro modo, o perigo da técnica não está nos resultados técnicos e nos objetos técnicos que nos cercam e que parecem assustadores, mas o bloqueio gerado pela essência moderna da técnica, que repousa na armação. Nesse sentido, o perigo não é visível, não está nas máquinas, todavia, no sistema de pensamento que as alicerça.

A estrutura da técnica moderna é tal que ela nos faz esquecer que, na origem da mesma, está uma decisão humana. Ela nos impede de pensar que uma outra forma de desocultação também é possível. O requerer, a cobrança e a segurança que determinam a armação afastam o homem de experimentar outras formas de descobrimento de si e do mundo, bem como de diferentes modos de abrigar e desabrigar, enfi m, de moradia sobre essa terra. “A técnica não é o que há de perigoso. Não existe uma técnica demoníaca, pelo contrário, existe o mistério de sua essência. A essência da técnica, enquanto um destino do desabrigar, é o perigo” (HEIDEGGER, 2007b, p. 390).

Segundo Heidegger, nunca iremos ter uma noção da técnica ou de uma outra possibilidade de conduzir nossa existência, enquanto nos ativermos apenas ao nível instrumental da técnica. Realizar reuniões ou debates técnicos sobre a técnica é o mesmo que bloquear um acesso verdadeiro à técnica. A atitude que se coloca no interior da técnica, simbolizada, por exemplo, no fi lme Tempos modernos, de Charles Chaplin, do operário que apenas vive em função de apertar os parafusos, impede a percepção da máquina como um todo. É preciso antes um distanciamento diante da técnica – e isso signifi ca enfrentá-la com sobriedade. Quando for feito isso, a técnica deixará de ser algo assustador, mas se revelará a partir de sua origem poiética. E aqui, de alguma forma, poderão reencontrar-se a técnica e a arte, o produzir artístico e o produzir técnico.

ABSTRACT: The article examines how Heidegger, by looking at nature, considers the technical and artistic ‘act of production’ (Stellen) regarding certain crucial notions in the history of thought, from the foundational Greek terms as techné, poíesis and physis, and its equivalent in Latin translation, to its rearrangement in modern metaphysics.

KEYWORDS: Heidegger. Art. Technique. Production. Nature.

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